A grande dama do chá

 

[CAPÍTULO ANTERIOR]

 

[dropcap]O[/dropcap] som era empolgante. Penetrava pelos ouvidos e fazia com que a batida do coração se acelerasse. Ezequiel de Campos não reconheceu a música, mas sabia que era de uma ópera. Quando entrou na sala da casa de Du Yuesheng, junto à praia de Cheoc Van, percebeu que o som vinha da varanda, onde encontrou Du e Luc LeFranc sentados. Ambos fumavam charutos e, na mesa que tinham defronte deles, estava uma garrafa de cognac francês com três copos. Dois quase cheios e um vazio. Havia também uma cadeira disponível. Percebeu que esse era o seu lugar. O som que vinha do gramofone abafava todos os outros ruídos. Quando se sentou, Du olhou para ele e disse, num inglês com forte sotaque:

– A música incomoda-o, sir?
– Não.
– Ainda bem. Gosto de ouvir ópera ao fim da tarde. Enche-me a alma.

Fez uma pausa enquanto o mordomo enchia o copo de Ezequiel. Depois disse:

– Sabe o eu é?
– Confesso a minha ignorância.
– Nem todos gostamos de ópera. Eu só aprendi a ouvi-la bastante tarde, em Xangai. Tinha de ir a acontecimentos sociais e este som foi-se entranhando. Passou a fazer parte de mim. Esta é uma das minhas favoritas. O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner. Não foi um acaso que tenha sido um oficial alemão a oferecer-me.
– E porque gosta dela? Pela música, pelo canto?
– Bem, eu não sei alemão. Mas sinto-me mais forte, especialmente quando oiço a parte da Cavalgada das Valquírias. Todos os personagens querem o anel mágico forjado pelo anão Alberich. Ao renunciar ao amor para sempre este cria o anel mágico, que permite dominar o mundo. Sem emoções isso é possível. É o que vemos quase sempre, não é?

Luc deu uma pequena gargalhada. Estava claramente à vontade perante Du. Ezequiel foi mais seráfico:

– Vemos muitas vezes. Mas o amor também consegue ser mais forte do que o poder.
– O amor trai-nos. O poder não, se o soubermos conquistar e preservar. Mas, para isso, temos de ser inclementes, até connosco próprios. Temos de ser como monges. O poder é uma religião.

Ezequiel, que tirara o curso na Universidade de Coimbra, era um devoto da cultura grega. E, assim, não deixou de recordar:

– Nos dramas da velha Grécia, não sei se conhecem, que sempre tiveram muita influência no Ocidente, os protagonistas predestinados e condenados, são sempre confrontados por um sistema que é indiferente ao seu heroísmo, à sua individualidade e à sua moral. Mas agora há novos deuses. E o maior são os negócios. O dinheiro é Zeus.
– Exacto, meu caro. Mas o dinheiro sempre foi o deus dos homens. É isso que nos move. A Terra não pertence a nada excepto ao vento. O dinheiro é o nosso vento.
– E quem dominar o vento, tem o poder.

Du fez um sorriso afável.

– É um homem que eu entendo.

Levantou o copo, num sinal de brinde. Não esperou que os outros o acompanhassem e bebeu um gole. Os seus olhos brilharam.

– Eu sabia que tínhamos algo em comum devido à forma como trata a Marina.

Ezequiel não disse nada. Mas não conseguiu ler nenhum traço de ironia nos olhos de Du. Luc LeFranc moveu-se um pouco na cadeira, mas continuou calado. Só observava, como se estivesse ali apenas como testemunha. O chinês disse então:

– Caro doutor Ezequiel, tenho as melhores referências de si. Foi por isso que lhe pedi para vir aqui. Imaginará porquê.

O português fez um ar surpreendido.

– Confesso que não sei. Tem algo a ver com a Marina?

Du deu uma pequena gargalhada.

– Não o julgava tão ingénuo, sir. A Marina é uma velha amiga de Xangai, como sabe. Tenho a maior confiança nela. E sei que ela não se ligaria a um homem se não tivesse absoluta certeza sobre as suas ideias e sonhos. E, permita-me dizê-lo, segredos.

Ezequiel fungou.

– Acha que a Marina conhece todos os meus segredos?
– Claro que não. Todos os homens têm segredos que não confiam a ninguém. E ainda bem que o fazem. Mas ela confia em si. É o suficiente.

Fez uma pausa para beber mais um gole de cognac.

– É um homem de negócios, caro Ezequiel. Posso tratá-lo assim, não é verdade?

O português assentiu com um pequeno acenar da cabeça.

– Macau é uma terra de comerciantes. E, quer os portugueses, quer os chineses, fizeram disso o seu acordo de conveniência. Sem assinarem nada, o que vale mais que todos os contratos. Cada um faz os seus negócios, sem que ninguém importune os outros. A única diferença é que os chineses sempre fizeram o comércio sem a desculpa da religião.
– São mais livres, caro senhor Yuesheng.
– É verdade. E chame-me Du, por favor. E olhemos um para o outro. Somos ambos pessoas de comércio. E é por isso que queria falar consigo. Como deve saber, tive de sair de Xangai. É impossível negociar com os japoneses. Eles só conhecem as suas leis. Até agora eu negociava com os ingleses, com os franceses, com os alemães. O senhor LeFranc, que está aqui connosco, pode confirmar isso. E, por isso, decidi abrir novos mercados para os meus produtos. Macau é pequena, mas é importante. Nunca se sabe onde chegará a guerra.
– Assim é. Macau parece frágil, mas é forte. Talvez venha a ser mais importante do que Hong Kong nos próximos anos. Até porque Xangai poderá ficar nas mãos dos japoneses durante anos.
– Esperemos que poucos, sir.

Du recostou-se melhor na cadeira. Ezequiel olhou para ele com atenção. Tinha um ar frágil, mas Ezequiel sabia que isso era uma ilusão. Fora o mais poderoso gangster de Xangai. A sua palavra era lei, nas diferentes concessões estrangeiras. Traficava com tudo. O que Marina Kaplan lhe tinha contado, que era uma ínfima parte do que sabia, era um relato arrepiante do que ele fazia para manter o poder. Não havia limites para a forma como o exercia. Pesavam-lhe na consciência centenas ou milhares de mortos, muitos deles ligados à luta subterrânea contra os comunistas de Xangai, em nome dos ideais de Chiang Kai-shek. Ezequiel não queria fazer juízos de valor sobre isso. Era um homem de negócios, apesar de ter as suas opiniões sobre o assunto. Escutou novamente a voz de Du:

– A minha proposta é simples. Gostaria de ter um homem honesto a gerir, aqui em Macau, as minhas exportações de uísque e cognac para a Ásia. Não sei o que se irá passar em Hong Kong, para onde vou a seguir. Por isso este é um bom porto de abrigo para todas essas actividades. E, depois, há um negócio que muito me interessa: o do arroz. Em tempos de guerra é preciso alimentar os povos. Os preços sobem. Quem dominar o comércio do arroz pode ficar rico. Que me diz?
– Deixa-me sem palavras, senhor Yuesheng, ou melhor, Du. Mas parece-me uma boa proposta. Dê-me um dia ou dois para reflectir sobre ela.

Du fez um sorriso amigável.

– Tem esse tempo. Preciso é de uma resposta rápida. Porque não sei quanto mais tempo ficarei aqui em Macau. Sabe como é. Nada é eterno e, pelo contrário, tudo o que nos rodeia é frágil e perecível. Nunca imaginei que, um dia, poderia ver arder Xangai. Tal como também desapareceram muitas coisas e pessoas que eu acreditava que durariam para sempre.

Há muito que tinham deixado de escutar a ópera de Wagner. Agora só restava o silêncio. Mas, nesse momento de paz, todos sabiam o que estava em causa.

 

[CONTINUAÇÃO]

 

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