Um lugar à mesa

[dropcap]S[/dropcap]ão muitos, para todos os gostos, viciantes, uma pequena escola de culinária. Vão criando versões e reinventando-se uns aos outros. Contam-nos episódios ilustrados ao pormenor por fotografias em que os humanos são secundários e as refeições, o que importa. Fazem-nos companhia. Inspiram-nos. Vêem nascer amizades. A Ana Luísa Amaral tem muitos poemas que são, na verdade, receitas, e os seus poemas estão para a realidade como os blogs gastronómicos estão, bem, para o resto.

Já desconfiava da doença, porém nunca poderia adivinhar o resto. O que sabemos, realmente, senão o que as pessoas demonstram? Nas redes, pelo menos. A inevitabilidade de um ocasional revirar de olhos e uma crítica silenciosa quando surgem os moralismos que no fundo só são bons para os outros, sob a forma de posts partilhados. Share it until you make it, talvez. Partilhar para acreditar. Somos da velha escola, do blogspot e do livejournal, mas os flagelos que nos acometem são muito, muito mais antigos ainda e não parecem querer ir a lado algum.

Há cinco anos que este blog incontornável não era actualizado. Era como alguém cujo regresso desejamos secretamente mas não acreditamos que aconteça. Alguém com uma presença, um legado tão vincado que é impossível não nos entretermos mesmo na sua aparente ausência. Contar quantas vezes me alimentei e aos meus amigos com as suas receitas revelar-se-ia tarefa impossível.

“Deixa-a lá dentro, cortada, na cozinha,
e traz-me só café. Pousa a bandeja
ali, e depois vai. Não quero o seu olhar:

Recorda-me a prisão que ele habitou
(sem ser por mim) e a outra
em que eu morei, e onde fiquei,

Lembrando o seu olhar.”

Estava no supermercado, outro dia, a planear o que iria cozinhar esta semana, não fosse eu viciada em meal prep, mas algo me faltava. Algo que, tantas vezes, encontro no Ponto Espadana, na Smitten Kitchen, no Para Cozinhar, no The Kitchn, no Two Fat Ladies (saudades das originais) onde nem uma receita de caldo mancarra falta, na lista memorável de saladas do Mark Bittman no New York Times. Não desta vez. Abri um blog antigo, fiável, cujos links de receitas partilhei infindáveis vezes, e que, repito, não via posts novos há anos. Mas a verdade é que a última actualização aconteceu há precisamente um ano.

“E agora mostras
a toda a gente o cesto,
e não há sombra.”

A minha busca por inspiração foi abruptamente colocada em pausa. Fiquei ali, parada no corredor, a estorvar a multidão que se abastecia de mantimentos como se o fim de semana fosse uma catástrofe e o supermercado o bunker. Li um testemunho sincero, vulnerável, revelador: “assunto delicado e importante.”

“Tão brilhante e tão quente. Como
sabe a vermelho este café – ”

Uma despedida muito após o desaparecimento, com explicações para nós, os leitores.

“Deixo um bilhete à porta, junto ao Hades,
na esperança de que o cão
o não destrua – ”

Acontece que me habituara há muito a googlar o nome do ingrediente principal e o do blog, abrindo directamente as páginas que me interessavam, certa de que encontraria ali inúmeras receitas, dicas, dicionários de termos portugueses e brasileiros, curiosidades e histórias de familiares e amigos desta mulher que viveu em França, em Timor, na Terceira. Depois, espreitava as sugestões no fim de cada post. A Elvira (mãe dos blogs portugueses de culinária) lembrava-me a Filipa Vacondeus e o Chefe Silva (mãe e pai da tv e das revistas) por ter-se tornado um clássico. Por ensinar-nos os clássicos. Por ter sempre um nome carinhoso, de alguém que amava, para dar a uma receita em vez do original.

“Deve ser isso o que a mantém,
A faz vestir-se todos os dias, tomar o cesto das compras,
Escolher legumes naquela mercearia:
Os minúsculos gestos de que a vida é feita
Quando a guerra é ausente”

Um mês após esse último post, ela deixou-nos. Semanas passaram, no entanto, entre a minha primeira descoberta e a segunda, que me horrorizou ainda mais, quando procurei o seu nome no Google e surgiu o verbo morrer como sugestão complementar de busca. Agora, um ano após a sua partida, queria poder inventar uma receita que a honrasse, confortasse, fizesse dançar e cantar durante a preparação, ver o fuminho a sair delicado e seguro do que quer que estivesse no prato, talvez não um prato mas um tabuleiro de grão-de-bico com chouriço e ovos. Ou uma carne espiritual. Ou a delicadíssima lista que forneceu durante uma entrevista quando lhe perguntaram qual seria a sua última refeição. Não sei se a teve. Não sei se foi exactamente como ela queria. Não sei porque é que nunca lhe escrevi. Não sei se a Ana Luísa Amaral e a Elvira do Elvira’s Bistrot sabiam uma da outra, mas imagino-as a discutir receitas na cozinha e na vida, como nesta conversa imaginada. Não sei porque é que os cancros e as violências domésticas andam de mãos dadas. Mas sei que tudo aquilo foi real. Tudo: a sua dedicação e a nossa admiração.

“Vou apagar a luz. Sair da mesa.
Ela aguarda. E eu vou – ”

Sinto-me como se tivesse chegado tarde, demasiado tarde, a casa. Mas sei que a Elvira terá sempre um lugar à mesa.

12 Set 2019

O cronista: modo de usar

[dropcap]P[/dropcap]asseio-me por casa, sem destino. Aproxima-se o final da tarde e eu sei bem o que isso quer dizer. Então olho para as estantes onde estão os meus cúmplices em forma de livro. Escolho um, nem sequer um de que gosto particularmente. Escolho-o apenas porque está ali e eu preciso dele. Os olhos varrem as letras, nada fica das páginas que leio porque a cabeça está noutro lugar. Estou a adiar a hora da escrita, com um desespero mais ou menos controlado. A perspectiva é sempre um pouco assustadora, esta possibilidade do falhanço em conseguir dizer o que quero e poder ser ouvido. O facto de ser um caçador do acidental e das pequenas coisas não facilita. Nem sequer é a famigerada angústia da página em branco. Afinal, é só uma página em branco.

Não, amigos: é aquela famosa frase que ressoa na minha cabeça como uma sentença: «Detesto escrever, adoro ter escrito», disse a Dorothy Parker. Diagnóstico certeiro da minha condição.

Refugio-me nos rituais pré-escrita: um gin tónico ou um copo de vinho ao lado do computador. Sei que não irão oferecer-me milagres mas ajudam a cabeça a voar com um sorriso. E voa. Voa, amigos. De repente, e sem saber como nem porquê vêm-me à memória outros rituais, mais antigos, da minha infância. Vejo-me com o meu Pai, com nove ou dez anos. É um sábado de manhã soalheiro e subimos devagar a Pedro Álvares Cabral. Entramos num alfaiate, onde o meu Pai fazia os fatos. Seguem-se provas sem fim, medições que o eu-criança não compreendia e com que se entediava. Uma hora depois, terminava. O alfaiate – o senhor Faria – despede-se de mim e eu tento retribuir com o sorriso possível. Depois voltamos a descer a rua e entramos noutra loja de roupa, desta vez infantil: o Brummel (nome que mais tarde iria significar muito para mim). Mais provas e provações, desta vez comigo como protagonista. O meu Pai acompanha docemente este exercício, com paciência, e compreendendo a minha vontade de que tudo acabasse depressa. Subitamente, termina. Mas para mim começa: como recompensa, iria passar uma hora no Jardim Cinema, histórica sala de jogos lisboeta com mesas de ping-pong e uns matraquilhos de hóquei em patins, que eu adorava. Para trás ficavam as contrariedades e só passavam a existir aqueles instantes mágicos, em que o meu Pai me desafiava nos vários jogos. Voltava para casa sempre cansado mas sempre a sorrir.

Continua a voar, a cabeça. E junta, de forma caótica, memórias e observações que não consigo transpor para o papel, arranjar-lhes uma lógica qualquer: um encontro fortuito em Paris em 2009, uma crónica do Fernando Sabino, uma conversa apaixonada e nocturna sobre o estado da música, o cabelo imaculadamente branco de uma senhora que veio perguntar quais os poemas que tinham sido lidos numa sessão de leituras em que participei. A vida está cheia destes pedaços às vezes dissonantes que não cabem na ordem artificial das palavras, quanto mais num texto.

Mas por fim, descubro que hoje é isso mesmo que tenho para dar, esta Babel de memórias e emoções. Sempre achei importante conhecer as nossas limitações e hoje esta é a minha. E olhem, amigos: termino esta crónica com os olhos a brilhar, como se estivesse a jogar matraquilhos de hóquei em patins.

11 Set 2019

Um explorador cansado

Cisterna, Lisboa, 20 Agosto

[dropcap]O[/dropcap]rganizado como poucos, a dois dias da inauguração, o António [Gonçalves] faz visita guiada à sua «Carnis Color», privilégio dos que se insinuam entre nos interstícios do afecto e da função: ele explicava as suas razões, eu tratava de beber os detalhes de quem pensa e executa, processos que se misturam um no outro de forma tão íntima que nem carne e pele. Irrompe logo aqui exemplo óbvio: nada sofre de acaso nesta pintura e óbvio se torna que esta carne tem por esqueleto a moldura. Não se trata de mero enquadramento, um modo de dizer fragmento, pedaço, fecho do olhar em limite imposto. A escolha da madeira, tomado o perfume, o peso e o corte, biselado, de esguelha, encastrado, em redondo, a oferecer a leveza do papel, obedece a escolhas com vista à revelação do mistério que cada corpo contém. E toda a massa corporal sem estrutura se faz amorfa. Daí propor como ilustração (algures na página) reverso de moldura, crispada de detalhes, sombra do rosto brilhante e ardente. Aliás, também a montagem se entrega em grande inteligência, propondo subtil retrospectiva, aconchegando-se ao espaço em caminho de espanto e surpresa que desemboca no grand finale de catedral, passe a rima. Perturba muito este caminho através do sujo e perecível, sangue e tecido, uma investigação de autópsia, que se faz de forma pensada, quase toda mental frieza, limpa de impurezas e impulsos, tratada com luvas e bisturi. Para nos devolver a cada momento o pulsar sagrado, do âmbito do religioso, que toca os mecanismos do mundo, que parece dizer como somos por dentro, subtil festival de cores, alimentado pelo gás do pequeno nada de vida que nos faz seres, que dá corpo ao ser. O António mostra que sob as nossas carnes lavra um fogo, ou até que as nossas carnes, se vivas, ardem em contínuo. Mesmo para além do encontro com as correspondências no mapa do desejo. Talvez sejam partes, o que vemos em combustão, mas não deixamos de sentir a soma ardente. Nada é sem corpo, se até a sombra os duplica. Tiro-te o chapéu, António.

Convento do Espírito Santo, Loulé, 22 Agosto

Por coincidência, a caminho de uns dias de sono e leitura, paro para acompanhar a apresentação do volumoso volume «O homem que só quer ser Tóssan», caixa com três volumes, dois para versão escrita e outro, bem maior para a parte desenhada da obra, qualquer que fosse o instrumento. Tropeço sempre na palavra delícia a propósito de figuras deste jaez e mal conhecidas, mas, contas feitas, tão capazes de compor vida assente no bem-fazer, no bem dispor. O testemunho emocionado de Vitor Aleixo, Presidente da Câmara de Loulé, mentor maior deste projecto, que inclui ainda a mais compreensiva exposição (entretanto prolongada), sublinha isso mesmo, a boa disposição como modo de se relacionar com os outros, o desenho a criar mundos, o riso a interpretar o real. O Jorge [Silva] foi reunindo com devida paciência o essencial dos argumentos para dizer da qualidade de outro artista esquecido, e não apenas das artes gráficas. Tóssan acabou sendo performer, dá agora para perceber, capaz de encenação e texto para ser dito, de cenário e presença, devedor do teatro e da composição no branco, fosse a página um dia. Li um texto mais melancólico, a querer afirmar que o humor nos abre que nem bisturi, que nos sabe interpretar, e que por vezes contém uma melancolia pungente. Agora que escrevo, surgiu-me outro verso côncavo ou talvez converso, dos que mergulham no caleidoscópio da palavra, uma só, e que diz tanto de hoje, assumamos nós o papel que nos convenha, de espectador ou arrumadeira. «Um espectador/ com o foco na cara,/ outros com cara/ e sem focos/ ainda outros/ com as mãos nas caras/ e a arrumadeira/ de foco na mão/ ou com a mão no foco./ Um outro à procura do foco,/ outros sem o foco à procura./ A arrumadeira apaga/ o foco/ e o foco sem saber/ o que procura às escuras.»

Praia Verde, Castro Marim, 25 Agosto

Estava tentando, por todos os meios, afastar-me do mundo, mas, estúpido, pego no smartphone e logo irrompe a notícia. Fernanda Young (1970-2019) morre de falta de ar, de um falhanço da ferramenta que nos permite comunicar com o fôlego do mundo. Estava condenada à rapidez, a mesma dos diálogos da série «Os Normais», a mesma vertigem da sua prosa, a mesma ânsia criativa do verso e de tudo o resto. Conheci a Fernanda, mas não cheguei a conhecer a Fernanda. Almocei com ela uma única vez, pro intermédio de irmã querida, e fiquei fascinado. Era um vulcão de intensidade e potência criativa. Encheu-me de romances, novelas e o mais, ideias até. Além da Playboy onde se mostrou inteira, a fenda sentada sobre volumes de Bukowski ou Araki, mas o rosto sempre em sábia mistura de melancolia e mistério – uma névoa? – longe da alegria que experimentei. Que outra possível autora terei capaz de se apresentar de nudez e fulgor? Vou aprendendo que este caminho se faz de bastos falhanços e neles tenho que incluir o não ter editado Fernanda Young, por exemplo, de «As Pessoas dos Livros». Ela era mais, muito de carne e osso. E sopro. O seu último post, na véspera da morte, nosso lugar-comum, falava dessa incombustível ânsia: «Onde queres descanso, sou desejo.»

Jardins Palácio de Cristal, Porto, 5 Setembro

Subo ao Porto para a montagem do pavilhão que partilhamos com a Ler Devagar. Estamos no lugar 62, em ponta extrema onde ninguém irá, nem para dar de comer aos patos do lago, esses bem-dispostos, obrigado. Agrava-se tudo com as obras da semi-esfera, que soltam ruído em contínuo e nuvens de pó a cada dez minutos. Se pensarmos que o interessante neste modelo a Norte ia sendo a programação, e que esta nos ignora, ou quase, o resultado acaba sendo bastante simples: que raio andamos nós a fazer em Feiras onde pouco mais se quer saber além de preços (baixos, baixinhos, baixíssimos, anões)?

Jardins do Palácio Pimenta, Lisboa, 8 Setembro

No âmbito do festival que tenta prolongar o Verão, «Lisboa na Rua», o mano Nuno [Miguel Guedes] concebeu um ciclo de leituras conversadas tendo por bússola as comemorações da circum-navegação de Fernão Magalhães: «Viagem em Busca do Espanto», assim o feliz título. Estava escalado para o Oriente, mas um homónimo baldou-se e comecei pela «Partida», isto é, pela mítica Ibéria, tendo por companheiros a Paula [Cortes], o [José] Anjos e o Tiago Inuit na irrequieta e eléctrica guitarra. Agradabilíssimo, este fim de tarde, para o qual convoquei Lorca e Luis García Montero, Al Mutamid, Al-Thurthusi e Felipe Benitez Reyes, além de Bernardo Atxga, de quem traduzi esta canção dedicada a «um explorador cansado».

«Que outra coisa podia ver um explorador cansado/ Dentro dos limites de um metro quadrado de tristeza,/ A não ser Caminhos que os limoeiros acompanham, a não ser/ Colinas/ e ondulados Campos nos quais o vinho se pressente já;// Que poderia ver a não ser Ilhas de Cristal, Cidades/ Prateadas, áureas, Amanheceres, Barcos Ruivos/ que tripulações enlouquecidas levam sem rumo;// Serpentes gigantes, tigres, poderia ver também/ Baleias brancas submergindo em oceano cálido;/ Poderia ver duas mulheres de vestidos alaranjados/ Sentadas junto a uma parede incendiada pelo sol;// Poderia ver todos aqueles dias irrecuperáveis/ Pousando como um bando de pássaros imaginários.”

11 Set 2019

O génio de Clara Schumann

[dropcap]N[/dropcap]o dia 13 de Setembro assinalam-se 200 anos do nascimento, em Leipzig, de Clara Josephine Wieck, pianista e compositora romântica alemã, mulher do igualmente compositor e pianista Robert Schumann e considerada uma das mais distintas da era romântica.

Clara começou a aprender piano com o seu pai, Friedrich Wieck, aos 5 anos de idade, após o divórcio dos seus pais em 1824. A sua mãe, Marianne Tromlitz, era uma excelente cantora lírica, dando concertos semanalmente no Gewandhaus em Leipzig. Ficando à guarda do seu pai, este impôs-lhe uma disciplina severa e, a partir dos 11 anos, Clara iniciou uma carreira pianística brilhante, apresentando-se em vários palcos pela Europa. Destacou-se não só por isso, mas também pela execução de obras de compositores românticos da época, como Chopin, Beethoven e Carl Maria Von Weber, mas também por ser uma das poucas compositoras da época. No âmbito de um ciclo de recitais dados em Viena entre Dezembro de 1837 e Abril de 1838, recebeu a maior distinção musical austríaca: Königliche und Kaiserliche Kammervirtuosin.

Na adolescência iniciou um romance com Robert Schumann, que na época era aluno do seu pai e vivia em sua casa, relação que este proibiu. A consequência foi uma longa batalha judicial, que, após um ano de litígio, fez com que Robert conseguisse permissão para desposar Clara, após esta completar 21 anos, o que aconteceu no dia 12 de Setembro de 1840, véspera do 21º aniversário de Clara.

Após o casamento, Clara e Robert iniciaram uma longa colaboração, ele compondo e ela interpretando e divulgando as suas composições. O casal travou conhecimento com o célebre violinista húngaro Joseph Joachim em Novembro de 1844, quando este tinha apenas 14 anos, desenvolvendo com o músico uma amizade que durou mais de 40 anos, ao longo dos quais Clara deu mais de 200 recitais com Joachim na Alemanha e no Reino Unido, mais do que com qualquer outro artista, sendo o duo particularmente apreciado pela sua interpretação das sonatas para violino e piano de Beethoven. Clara continuou a compor, mas foi forçada a interromper a sua carreira diversas vezes, devido às suas oito gestações e, apesar de Schumann aparentemente encorajar a sua criação musical, abdicou muitas vezes da sua carreira como compositora para promover a do marido. A situação era agravada por várias diferenças entre o casal: Clara adorava digressões, e Robert odiava-as. Outro problema eram as constantes crises nervosas do marido, que fizeram Clara assumir as responsabilidades familiares sozinha. A pior crise aconteceu quando Schumann entrou em depressão crónica, tentando suicidar-se, o que obrigou a família a interná-lo num asilo, onde ficou dois anos, até à sua morte em 1856.

Após 14 anos de casamento, Clara ficou sozinha com os filhos, tendo que dar aulas e concertos para sustentar a família, mas ficou livre para compor e dar concertos, e a sua carreira finalmente desenvolveu-se. A sua amizade com o compositor e pianista Johannes Brahms, que conheceu através de Joachim, foi o seu principal sustentáculo nesse período, o que deu mesmo origem ao rumor de que os dois teriam um romance. Foram anos de colaboração mútua, já que os dois artistas eram defensores ferrenhos da estética romântica ligada a um padrão mais formal, e opositores de Wagner e Liszt. Realizaram várias digressões juntos e com outros músicos da época, na Alemanha, Reino Unido, e noutros países, tendo mesmo o dramaturgo e crítico musical George Bernard Shaw escrito que os seus concertos contribuíram grandemente para a divulgação e apuramento do gosto musical em Inglaterra, além de Clara ter sido também responsável pela alteração do formato e do repertório do recital de piano. Esta amizade durou até ao final da vida de Clara. Ao mesmo tempo, trabalhou intensamente na divulgação da obra do marido, e toda a vez que se apresentava, fazia-o vestida de preto, por ser viúva. Os últimos anos da sua longa carreira de 61 anos foram marcados por um brilhante desempenho como pedagoga e concertista.

Os Três Romances para Violino e Piano, Op. 22 de Clara Schumann, considerada uma das obras mais brilhantes da compositora, foram escritos em 1853, em Düsseldorf, e publicados pela primeira vez em 1855. Dedicados ao seu amigo e lendário violinista Joseph Joachim, foram apresentados em digressão pelos dois músicos mesmo perante o Rei Jorge V de Hanôver, que ficou maravilhado ao ouvi-los. Um crítico do Neue Berliner Musikzeitung elogiou-os, declarando: “Todas as três peças exibem um carácter individual concebido de maneira verdadeiramente sincera e escrito de forma delicada e perfumada”. Stephen Pettitt, do The Times, escreveu: “Exuberantes e comoventes, fazem-nos lamentar que a carreira de Clara como compositora se tenha tornado subordinada à do seu marido”.

Cada um dos três andamentos é uma demonstração da voz original da compositora: a languidez doce do Andante molto, com o seu sentimento de urgência subjacente, está em desacordo com o Allegretto, cujos arpejos enérgicos são plenos de carácter. A maturidade de Clara é alcançada na complexidade do andamento final, Leidenschaftlich schnell, com os seus estilos musicais contrastantes e charme lírico eloquente.

O primeiro romance começa com sugestões de pathos ciganos, antes de um breve tema central de arpejos enérgicos, que é então desenvolvido e embelezado, tornando o andamento incrivelmente arrebatador e o diálogo entre piano e violino extremamente eficaz. A secção final é semelhante à primeira, na qual Clara Schumann se refere, encantadoramente, ao tema principal da primeira sonata para violino do seu marido Robert Schumann. O segundo romance, mais melancólico e com muitos enfeites, é supostamente representativo de todos os três andamentos, começando com um aperitivo melancólico pelos seus saltos e arpejos enérgicos e extrovertidos, seguido por uma secção mais desenvolvida com o primeiro tema presente antes de se resolver com uma declaração encantadora em pizzicato. O último andamento, o mais longo dos três, embora muito parecido com o primeiro, apresenta melodias de membros longos com um acompanhamento de piano borbulhante e rápido. A longa melodia tocada no violino é muito simples mas combina muito bem com o muito agitado acompanhamento com motivos arpegiados e constantes partes em movimento. O final da obra é muito belo, quebrando-se o ritmo e resolvendo-se lenta e magnificamente com o registo mais grave do violino e alguns ricos acordes tónicos do piano.

Sugestão de audição da obra:
Clara Schumann:3 Romances for Violin and Piano, Op. 22
Angela Hewitt (piano), Yosuke Kawasaki (violin) – Analekta, 2019

10 Set 2019

Rosely e Julieta

[dropcap]A[/dropcap] realidade encontra sempre várias formas de contrariar teorias e modos de pensar. Depois de Dilma Roussef, naquele que seria o seu segundo mandato, ter vencido Aécio Neves nas eleições para Presidente do Brasil, por uns escassos milhares de votos, parte da população brasileira veio para a rua exigir uma intervenção militar, de modo a depor Dilma e a instalar uma ditadura militar. Rosely, uma mulata alta e esbelta, de cabelo curto, com pouco mais de vinte anos e que trabalhava numa lanchonete na Rua Augusta, estava na Avenida Paulista junto com esse povo, gritando por uma tomada de posição do exército, que se fizesse alguma coisa, pois antes presa num regime militar, que livre numas eleições ganhas pelo PT, a “esquerdalha”, como muitos chamavam, e que se alargava para lá do partido dos trabalhadores.

O povo foi-se juntando na Avenida. E junto a esse povo havia jornalistas e fotógrafos de várias partes do mundo. Julieta, à beira dos trinta anos, era uma dessas fotógrafas, “freelancer”, activista dos direitos LGBT, que tinha vindo de propósito de Lisboa para seguir estes tempos conturbados do Brasil. Quando a câmara de Julieta captou Rosely, no meio daquela confusão de gritos e movimentos, não mais a quis largar. Julieta esqueceu a razão que a levara ali àquela manifestação e passou a fotografar exclusivamente a mulata. Não demorou a que Rosely se sentisse cativa da câmara. Demorou a perceber que era para si que elas olhavam, Julieta e a sua câmara, mas quando finalmente a fotógrafa lhe sorriu, devolveu-lhe o sorriso. Saíram da manifestação e foram para um boteco conversar. Julieta tocou em Rosely e esta descobriu em si sentimentos que desconhecia. Ainda antes da manifestação por uma intervenção militar terminar, já Rosely e Julieta estavam apaixonadas e se beijavam na boca, como que para salvar o Brasil, o mundo, o planeta, o ser humano. Rosely esquecendo os militares, Julieta esquecendo a continuação da presidência de Dilma. Julieta era a primeira mulher que Rosely beijava, o seu primeiro amor feminino. Agora, tinha a certeza de que sempre tinha sido lésbica, ainda que não o soubesse. A ironia de descobrir o amor numa manifestação pela intervenção militar não atrapalhou as contas dela em relação ao que pensava, embora agora a política se desvanecesse no corpo e nos sentimentos de Julieta.

Duas semanas depois, a fotógrafa regressa a Portugal com a promessa de tudo fazer para que Rosely se mudasse para Lisboa. Rosely, apaixonada como nunca tinha estado na vida, pensava o tempo todo na viagem sobre o Atlântico. Finalmente Julieta conseguiu um trabalho para Rosely e esta comprou o bilhete de avião, minutos depois. Por “skype”, a mulata ia dizendo, dia a dia, “faltam vinte dias para chegar à tua boca”, “faltam quinze dias”, etc.. À chegada ao aeroporto, Julieta esperava o seu amor com um enorme ramo de flores silvestres e um beijo demorado. Um beijo que tentava apagar a distância e o tempo que estiveram sem se encontrar.

Os dias em Lisboa foram passando, com ambas a viverem o idílio amoroso em casa da fotógrafa portuguesa. No Brasil, esse lugar tão longe da boca de Julieta, Dilma foi demitida e Temer assumiu o seu lugar. Na cerimónia de posse, um sinistro deputado do Rio de Janeiro, Jair Bolsonaro, evocou a memória do torturador de Dilma Roussef, no tempo da ditadura militar, que o deputado dizia não ter sido de ditadura, mas de heróis que salvaram o país do comunismo. O Brasil cai num dos seus momentos mais tenebrosos. Começara entretanto também a operação Lava-Jato, que desmontava uma enorme teia de corrupção na esfera política e empresarial. A violência aumenta exponencialmente em todas as cidades do país, causando um novo êxodo dos brasileiros em direcção à Europa e aos EUA.

Ao longe, Rosely vai esquecendo a política do Brasil. Ao fim de três anos, o amor não desvanecia, mas começava a ter a competição das saudades de São Paulo, da família, dos amigos, de um determinado modo de se estar o mundo, que é tantas vezes difícil de ultrapassar ou esquecer. Apesar do amor, Rosely entristecia. Julieta sugere que ela tire uma semanas de férias e vá a São Paulo visitar a família.

A visita de Rosely ao Brasil coincide com a campanha eleitoral e com a facada ao candidato à presidência, Jair Bolsonaro, na cidade de Juiz de Fora. Aquando do episódio, que se torna planetário, pelo menos transatlântico, a troca de mensagens entre Julieta e Rosely tornam-se amargas e rapidamente espaçadas. As amantes estavam claramente em lugares opostos da barricada: a brasileira defendia o candidato, a portuguesa atacava-o, apesar de lamentar o sucedido. Julieta começava a temer que Rosely não regressasse a Portugal. A política, a febre de mudança, de que o Brasil vai finalmente dar certo, grassava a sociedade brasileira, transversalmente. E Bolsonaro, apoiado pela bancada evangélica e a extrema direita encarnava o símbolo dessa mudança. Para Julieta, Bolsonaro não defendia valores, atacava valores, sendo o direito à diferença o mais importante. Apesar de inexplicável, Julieta estava certa, o seu receio tinha fundamento. Mas não foi só Rosely que saiu em defesa de Bolsonaro, figuras importantes da defesa dos direitos LGBT também o fizeram, e publicamente. Um dia, Julieta recebe uma mensagem de Rosely, que diz: “Meu amor, meu país precisa mais de mim que tu. Vou ficar.

Tenho de adiar o amor. Até sempre, Rosely”. Não sabemos se ainda continua a acreditar que é com Bolsonaro que o Brasil vai mudar, que vai dar certo, mas podemos imaginar que Julieta pense – ainda que possa não ser verdade – o quanto o seu amor era pequeno. Quando, entre amigas, Julieta tentava explicar a razão pela qual a sua amada a deixara, ninguém entendia. Num mundo como o de hoje, como entender que uma mulher troque o amor por Jair Bolsonaro?

10 Set 2019

O amor leva-nos para casa

«Se um homem pobre vem pedir-te ajuda de manhã, ajuda-o. Se ele voltar à noite, ajuda-o de novo»
( comentário sobre o Génesis )

 

[dropcap]A[/dropcap]credito que as nossas acções possam voltar um dia em pura sensação banidas que sejam as imagens, numa outra forma e num outro “olhar” pois se nada fica ocluso, nada ficará também por experienciar no tecido das coisas e das suas intenções – e se o tal dia amanhecer cruel, ainda assim, nos recordaremos que a proposta foi de novo regressar a Casa.

Toda esta distância feita abismo de que se ocupam as gentes por manter de forma sitiada, é feita com muitos batendo à porta, e com outros tantos que o acaso faz brilhar pelo enigma das direcções felizes. Por vezes estamos exaustos, nada parece sobrar de nós que se possa doar ou mesmo partilhar, um sacrifício continuado quantas vezes nos impede de dormir, pois que noites há em que nos sentimos culpados e pequenos diante de nós mesmos. São os chamados pesadelos, essa decrescente massa sem visões salvíficas, são medos, são dolos…

Um labirinto esmaltado é a Cidade, a pedra é dura, e dura a cidade na pedra em nossa fixação e nela há sempre mendigos – passam como sombras entre nós que andamos circulando e temos pena de não lhe darmos mais – sentimos que nem sempre são pessoas tristes, mas abandonadas e errantes que querem coisas…

… talvez pequenas atenções como falar para não perderem a memória dos seus próprios sons, e comer, porque a fome só é perigosa para além daquele estado em que já não se sente. Vamos compreendendo que nunca são os mesmos, que a vida os abate em ciclo estreito e outros lhes seguem sonâmbulos nos mesmos locais onde deambularam, só nós somos os mesmos, os que vivem melhor e mais anos. Nós os que passam com intenção pelos locais, e sem fome, vemos o que se passa: «Não desdenhes de nenhum homem e não desprezes nenhuma coisa, porque não há homem que não tenha a sua hora e não há coisa que não tenha o seu lugar».

Nesta vida temos ímpetos para fabricar comportamentos sem brio de selectiva obscuridade, e fazemo-lo com a certeza de uma superior condição que muito prejudica o bem de todos, essa matéria testada e destacada não deixa de ser por si uma forma de miséria e cresce sempre que a desprotecção social avança, nestes tempos, erguido o nosso olhar, vemos a crescente cauda daquilo de que a nossa Humanidade se envergonha e que por razões aleatórias e alienadas não são observadas com respeito e sustentabilidade, ainda nos vem a reserva do bicho que somos: se a vida não dá para todos, que se fique então com a maior e melhor parte, uma natureza fétida que oprime e castiga, pois que a sabemos distante dessa indelével marcha do regresso – o inviolável centro – onde iremos por alas, e pode ser que à espera das almas não lustrais esteja a máscara dos actos destas coisas tão terrenas, onde a Casa fechará as suas portas aos que habitaram a Terra sem a memória de uma lembrança sagrada.

Se o amor partilhado foi esquecido, se aqueles que nos deixam prosseguem, se todo o abandono pode ser uma emboscada, é então necessário saber que dessas coisas já não precisamos e sem necessidade delas somos naturalmente mais livres, mas também mais vulneráveis, devendo então aparecer somente para a justiça breve daquilo que deverá ser acertado. Seria muito bom para alguns, outros não existirem, e esse medo das suas existências, traz-lhes a ruína da alma que agitada se move para o seu precipício. Criam os espectros que os atacarão mais tarde, depois não sossegam, têm vozes agrestes, dormem em sobressalto, carregam negrumes, inventam os danos, uma auto- sabotagem pois que todo o sobrevivente a si mesmo é uma forma batida sem correspondência com algum grito de salvação. Deles já não se abeiram os anjos para as ceias, esses momentos onde as horas são o legado da festa, que é o tempo dos amantes, e os cálices não se elevam amantíssimos na rota do entendimento.

A morte vem-nos buscar um dia de forma tão normal como foi a vida gratuita ao ter-nos alcançado, e aí, o terminus ditar-nos-á a estrada do retorno, ou não. Ficar enjaulado de novo na batráquia origem do verme equilibrista é a maior derrota que se pode infligir a si mesmo. Temos de saber que a vida conspira para nos ajudar, em cada dia isso acontece, em cada instante vemos a sua grande causa, em nenhum momento ela nos deixou a sós. Como não ver isto, pode ser ainda a treva atravessando o horizonte da alma dos Homens. E quando nos abalroa e destitui, faz ainda um trabalho de reconhecimento que devemos aproveitar como lição. Afinal, queremos apenas, e de novo, o Amor ( esse bem sadio que a doença de ser entristeceu) e a Casa de antanho onde deixámos intacta a forma eleita de cada um dos nossos destinos.

Para os que pedem, façam-no em segurança, pois serão saciados. Para os mendigos, o nosso Amor primeiro para que assim sejam salvos das garras da indiferença e da humilhação. As coisas mais bonitas, essas, ficarão sempre por contar, mas nem por isso deixarão de ser registadas como um legado de manifestações transversais de uma profunda compaixão por tudo o que vive. No emaranhado das intenções as coisas sonegam-se e nem sempre já existe entendimento para a gravidade dos factos mencionados, mas é preciso chegar como se chega a Casa, descalçar os sapatos, abraçar alguém, dormir, e saber que partindo disto tudo, iremos continuar. Que sejam então belos os caminhos.

 

A caridade é maior do que os sacrifícios oferecidos no altar, mas a bondade é ainda maior do
que a caridade.
Rabi Nahman de Bratislava

10 Set 2019

Leonel de Sousa e o Tratado de 1554

[dropcap]P[/dropcap]elo édito Imperial de 1522 estavam proibidas quaisquer relações com os Fu Lan Ki, os desacreditados portugueses considerados na China homens de corações sujos, ladrões e alevantados, pois andavam fora da obediência do seu Rei. Chegavam como marinheiros e comerciantes às ilhas chinesas da costa de Guangdong, aportando para a anual temporada, de Abril a Outubro. Viviam a bordo dos barcos, esperando as sedas aí trazidas pelos mercadores chineses. Alguns seguiam em Junho viagem na monção de Verão para o Japão e no regresso voltavam cheios de prata a estas ilhas, para de novo se fornecerem de sedas e outros produtos chineses e via Malaca, em direcção à Índia e por fim, se a boa-sorte os acompanhasse, até Lisboa, retirando-se para um resto de vida desafogada.

Fr. Gaspar da Cruz escrevia em 1556: “Do ano de 1554 a esta parte, sendo Capitão-mor Leonel de Souza, natural do Algarve e casado em Chaul [Índia], assentou com os chineses que pagariam seus direitos e que lhes deixassem fazer suas fazendas nos seus portos. E de então para cá as fazem em Cantão que é o primeiro porto da China; e ali acodem os chins com suas sedas.” (…) “E assim fazem agora os Chins bem seus tratos; e agora folgam muito os grandes e os pequenos com a contratação dos portugueses e corre a fama deles por toda a China. Pelo que alguns principais da Corte vieram a Cantão só para os ver por ouvirem a fama deles. Agora nem nos comunicam debaixo do nome de Portugueses, nem este nome foi à Corte quando assentaram pagar direito; senão debaixo do nome de Fangim [Fan Ian], que quer dizer gente doutra costa.”

Sobre os direitos a pagar, o Aitão ofereceu a taxa de 20% aplicada aos navios e mercadores do Sião, país tributário da China, mas Leonel de Sousa não aceitava mais que 10%. Como a alteração da taxa só podia ser concedida por Beijing, significava, havendo acordo, o caso ficaria resolvido no ano seguinte. Torneando de novo a questão, o Aitão propôs para 1554 os portugueses pagarem 20%, mas apenas sobre metade das mercadorias e esperar-se a decisão de Pequim sobre o aceitar a taxa de 10%. Assente a solução, o Aitão pediu a Leonel de Sousa que “mandasse fazer bom agasalho aos mandarins que são como Desembargadores que os vissem fazer (os direitos) aos navios e que não olhasse que eram chineses senão as divisas e Armadas do Estado d’El Rey que traziam”, a fim de não se repetir as causas que inicialmente tinham levado a perder as boas relações com os portugueses.

Macau substitui Sanchoão

Na preocupação de tornar permanente este estado de coisas, o Aitão . Lembrou o receio que esta gente tem dos forasteiros, principalmente dos portugueses, .

Leonel de Sousa lembrou que pelo serviço prestado, além dos proveitos, já não haverá tantas mortes e perdas de navios todos os anos como havia; porque era uma das partes onde se gastava mais gente e cabedal; porque como a terra é muito fria e tempestuosa e na costa sempre andam grandes Armadas em guarda e se não podiam acolher aos portos de Mar, ou de os tomarem não escapavam, ou de se perderem.

Assim se celebrou em 1554 o ‘Assentamento’ ao largo de Cantão entre o Capitão-mor Leonel de Sousa e o haidao Wang Bo (subintendente dos Assuntos de Defesa Costeira), conseguindo-se reatar a confiança das autoridades chinesas de Cantão para com os Fan Ian (portugueses). O acordo foi verbal e autorizava os portugueses a negociarem nas águas de Guangdong, em Lampacao (Langbai’ao) e Haojing (Macau), ficando Sanchoão (Shangchuan) de fora, como Leonel de Souza em 1555 pôde perceber, pois, [desculpa para pisar a terra onde o Santo morrera]. Resultado, .

Porto de Amagau

Os portugueses alevantados, aventureiros que largando tudo partiam em busca de riquezas, fundando colónias espontâneas viviam a bordo dos barcos, mas em 1553 foi-lhes permitido em Haojing erguer cabanas de colmo para pernoitarem em terra enquanto reparavam as embarcações danificadas e secavam as mercadorias, acampamento que depois devia ser destruído. No ano seguinte os mercadores portugueses obtiveram permissão de aí fazer porto de trato e erguer cabanas provisórias para o período comercial, coincidente com as monções. Terminada a época, a península devia ser abandonada pelos mercadores, que na maioria partiam carregados de produtos para Malaca.

Em 1555, a resposta positiva de Beijing levou os portugueses a permanecerem após as monções, quando Fernão Mendes Pinto faz a primeira referência a Amagau. Leonel de Sousa regressava a Goa para vir a ser Capitão-Geral de Macau em Junho de 1557, substituindo Francisco Martins que na monção de Verão seguiu viagem para o Japão.

1557 foi o ano do estabelecimento oficial e fixação portuguesa em Macau, com a permissão de construírem habitações permanentes e ter um lugar para esperar a abertura da época de comerciar no porto de Cantão. Como corolário do mandato de haidao de Wang Bo, ainda em 1557 os portugueses ajudaram as autoridades de Guangdong a combater o corsário Ahmah, segundo Victor F. S. Sit e Montalto de Jesus refere Chang-Si-Lao, pirata que ocupava Macau e daí desalojado após derrotado pelos portugueses. Gonçalo Mesquitela refere “Fernão Mendes Pinto acredita que foi após este episódio que os portugueses solicitaram à China a permissão do seu estabelecimento em Macau e nesse ano construíram pela primeira vez sólidas casas de habitação.”

Trazendo materiais de construção, tijolos e madeira, nos anos seguintes aí se criou um porto com armazéns e habitações para descanso da dureza das viagens oceânicas, onde muitos portugueses após uma vida no mar se quedavam a tratar dos negócios. Assim, em Haojing foi aparecendo uma povoação de portugueses entre os dois núcleos já existentes de população chinesa: a Sul da península, os pescadores de Fujian junto ao Templo de Ama e a Norte, os agricultores em Mong-Há.

9 Set 2019

O lugar de todos nós

[dropcap]E[/dropcap]stive há pouco tempo no Alentejo, perto de uma semana, na casa de uma amiga. Tirando a quase completa ausência de elevações, o cenário e ambiente são-me muito familiares; como já tive oportunidade de escrever em diversas crónicas, para enfado ou desespero dos meus três leitores, os meus pais são do Algarve profundo, aquele que volta costas ao mar com o desprezo de um toureiro ante um touro anoréctico. Esse Algarve é em tudo semelhante ao Alentejo. Diz aliás o ditado que um algarvio é apenas um alentejano sem travões.

O sossego que se sente naquelas planícies borbotando de calor é apenas interrompido pela inoportuna consciência das obrigações ancoradas em Lisboa e subitamente desprovidas de qualquer sentido. Parte da perfeição – ou imperfeição – do Alentejo é a anisotropia geográfica na distribuição de internet (perdoem-me, mas sempre quis escrever isto). Na mesma localidade há zonas apetrechadas com rede móvel de dados suficiente para três dias de Pornhub, ao passo que, apenas dois metros para a direita de onde se está, o sinal é tão fraco que um indivíduo se vê obrigado a mover o aparelho em todas as direcções na busca de um pauzinho de rede.

Para mitigar essa dificuldade há as vendas e os cafés, museus vivos dessa forma de estar do Alentejo onde agora, entre uma prateleira de garrafas empoeiradas e um calendário do talho Gomes, se exibe com desarmante naturalidade e algum orgulho a password do wifi.

À cata de sinal aportei no café Botas, no qual se servia um café muito aceitável e se navegava a cerca de 20 Mbps. Cumpridas as formalidades dos mails, fui descendo de degrau em degrau para a cave da procrastinação até dar por mim a fingir interesse na compra de tubagens galvanizadas para escoamento de águas residuais em climas frios.

Quando tomei consciência da ausência neuronal – que se instala de forma tão insidiosa como subtil – resolvi arrumar a trouxa, contar os trocos para pagar os dois cafés consumidos e fumar o cigarro abaladiço. Lá fora sob o toldo absolutamente necessário, um sujeito não parava de fazer chamadas no telemóvel. Era para – suponho – um oficial de justiça, com o qual falava sobre a mulher e o filho de ambos que esta tentara matar, era para alguém a quem se queixava de estar a ser alvo de extorsão monetária, era para um rapaz que prometia perfilhar e a quem dizia estar a beber uísques desde as oito e meia da manhã e era, acto final, cai o pano, para a ASAE, queixando-se de no Botas não lhe terem facultado o livro de reclamações.

Estava obviamente bêbedo. Há muito, no entanto, que não via um bêbedo tão hiperactivo e capaz de diversificação no investimento, como soi agora dizer-se nos corredores da banca.

Movido pela curiosidade das crianças e/ou dos idiotas, resolvi ficar mais algum tempo. Lá dentro, uma senhora acercando-se da ribanceira da idade e muito versada em vinho branco confessava a um casal de amigos espanhóis a frustração por ver no marido tanta coisa – amigo, pai, irmão, filho – menos o marido com o qual ela se casara e que misteriosamente desaparecera, um dia qualquer, como a geada matinal num dia de Verão.

De repente, já não estava no Alentejo mas numa secção do Correio da Manhã. Em potência, pelo menos. Aquela na qual levantada a saia do crime horrendo transparecem as tão humanas frustrações que nos levam a limites mais ou menos concretizados de violência e arrependimento.

Aquele Alentejo, aquele café, aquele rapaz dramaticamente conversador e aquela mulher em psicoterapia artesanal já os vi em todo o lado. Já os vi no rosto dos meus amigos. Já os vi ao espelho.

6 Set 2019

Turismo

[dropcap]E[/dropcap]ste ano levava outros planos que porém não excluíam os banhos solitários na barragem, onde numa tarde vieram javalis beber a um recanto antes de darem pela presença humana; almoçaradas acintosamente adversas a pruridos nutricionais, cedendo à estação estival apenas na preferência pelo rosé; sestas impenitentes de “pijama e penico” à Camilo José; fins-de-tarde no terraço, deleitosamente expostos aos rigores da calma apenas temperados por mojitos e o eventual havano; noites sem tempo, defendidas pelo ladrar da cadela a repelir gatos bravios, saca-rabos e até texugos atraídos pelo cheiro da cozinha da casa.

Algum exercício físico não seria desdenhável, como o de ir às beldroegas que fizeram tufo junto a um furo do tubo de irrigação do olival e depois dar-se à maçada de as desfolhar minuciosamente.

Ou cozinhar ossudas peças de carne vermelha com toda a morosidade que o forno concede, execução de facto mais contemplativa do que dinâmica. Ou o de ir pela manhã espreitar abetardas ao longe. Ou de colmatar por uma hora a ausência do vaqueiro e seguir com a carrinha de apoio uma apartação de bezerros.

Mas que ninguém se iluda, não tem pretensões idílicas nem revigorantes este espairecimento, do qual só se tira partido se houver a segurança e a retaguarda de uma casa com águas correntes quentes e frias, ar condicionado e wi-fi que dê resposta aos breves momentos em que apeteça saber do mundo lá fora. Só quem não a sofreu ou dela não ouviu contar se apraz com a brutalidade de vida rústica. As Arcádias são antropologias de quem nunca apanhou carraças.

Mas este ano trazia um intuito, uma dedicação. O de preterir as leituras diletantes do costume, erráticas e meramente conduzidas pelo impulso, a favor do contacto e leitura – ou qualquer coisa parecida com isso – de algumas coisas que em breve fará falta conhecer.

Como era previsível foi um fracasso. Sabem-na toda os engenheiros quando ironizam que um plano é uma coisa que se estilhaça no primeiro encontro com a realidade.

Quem já para cá dos Pirenéus caminhe de frente para o Sol vindo da prosperidade europeia fique avisado que a última livraria digna desse nome antes de a costa atlântica lhe interromper a marcha é a Universitas de Badajoz.

Este ano havia jurado nem sequer ler as recomendações de Verão do Babelia mas acabei por folheá-la pois a curiosidade é inclemente com os fracos. Prometera passar ao largo da Universitas no entanto uma inexorável força centrípeta puxou para ela. Destas indulgências resultou sair de lá enriquecido por um par de livros. Nunca é difícil à transgressão valer-se da lógica e neste caso pareceu óptima razão que esses livros fossem imprescindíveis para colmatarem certas lacunas que de súbito se mostraram como um vexame.

E assim foi que em 15 dias frequentei durante 4 anos a Córdova do califa al-Hakan II, de 971 a 975, na época de ouro da dinastia Omíada.

Neste exacto território que temos consolidado como nosso porque o habitamos vai para gerações, há mais de mil anos floresceu e estabeleceu-se aqui uma sociedade tão diferente da actual que dificilmente a compreendemos com as ferramentas de que dispomos. Habitavam-no pessoas que podem ter sido antecedentes de sangue de alguns de nós se nos déssemos ao trabalho de procurarmos pela noite dos tempos até onde se prolonga a genealogia donde brotamos. Não era um mundo menos complexo nem mais mal organizado do que aquele em que hoje vivemos, nem os nossos antepassados eram menos inteligentes, aptos e sábios do que nós, a evolução é coisa de centenas de milhares de anos, no mínimo, e não de séculos.

O quadro mental em que esta gente se movia é-nos hoje quase impenetrável. A escala de valores, a ideia de Bem e de Mal, os tratos e os contratos tanto públicos como privados, os conceitos de “pessoa” e de “humano”, para usar termos que talvez não lhes fizessem sentido, o vínculo entre o céu e a terra, o modo de conceber a ordem divina e a sua intervenção secular, tudo isto media-se e incidia na vida, nas relações e na política de então de uma forma e com um sentido tão radicalmente diversos dos contemporâneos e com uma naturalidade que desmontam os paradigmas tomados agora como evidentes.

Da eternidade tida como irrefutável pelos que nela existiam restam umas quantas ruinas soterradas. Uma lição que estamos sempre a desaprender.

6 Set 2019

Das capelinhas

[dropcap]D[/dropcap]eixa-me sempre boquiaberto a maldade dos escritores. A maledicência é um passarito sazonal, refiro-me à maldade. Talvez por ser criatura carcomido pelas dúvidas e por, num erro de geografia amorosa, ter decidido viver num país com verdadeiros problemas, fiquei com o saco curto para esse efeito da rivalidade mimética que faz o gozo das capelinhas.

A escrita de um prefácio para Relatório Sobre os Cegos, de Ernesto Sabato, obrigou-me a mergulhar nos meandros da literatura argentina. E constatei que a sua obra concita grandes admiradores, sobretudo fora de portas, e veredictos implacáveis, principalmente de argentinos.

Numa passagem de 1956, Borges menciona a proximidade das eleições para a presidência da Academia Argentina de Letras e, criticando a instituição, comenta: “Deveriam levar energúmenos: o Sabato ou o [Ezequiel] Martínez Estrada”, conta Bioy Casares, no seu diário Descanso de Caminantes.

Mas a acidez não emana apenas de escritos íntimos de autores mortos. Representantes da ficção contemporânea, como César Aira desancam publicamente a obra do escritor. No seu Diccionario de autores latinoamericanos, Aira, diz que Sabato tem um “robusto senso comum” e “ideias convencionais e politicamente corretas” que o transformaram no gagá favorito da mídia. Bom, é uma daquelas ”verdades” que convinha ser relativizadas.

A tal ponto chegou a situação que o crítico e escritor Abelardo Castillo disse que bater em Sabato se transformara num desporto nacional para os argentinos. Tudo por factores extraliterários, porque ter escrito Sobre Heróis e Túmulos e dois ou três mais do que estimáveis livros de ensaio ninguém lhos tira.

O rei da cacetada é o Bioy Casares que, entre múltiplas alfinetadas, inventa este sonho:
«Sueño. Alguien tenía el poder de convertir a cualquiera en sapo. Lo convirtió a Sabato, que esa mañana, ante el espejo, se llevó la consiguiente sorpresa. Matilde llamó a un médico.
—Estas cosas, tratadas a tiempo, no son nada —explicó.

Sabato estaba furioso con ella. No quería que nadie, ni siquiera el médico, lo viera. No salía de la casa; tenía la esperanza, desde luego sin fundamento, de que se curaría solo. A la espera de algún signo de esa mejoría, que no llegaba, dejó de concurrir a los lugares que frecuentaba habitualmente.»

Este mesmo Bioy Casares que aparece num diário de Saramago a concordar com as diatribes do autor de Memorial do Convento contra Octavio Paz – suponho que por motivos políticos – à falta de poder morder em Sabato, pois neste caso Saramago coloca-o nos píncaros.

Bom, no livro em que Orlando Barone exuma uma série de diálogos entre Borges e Sabato, cava-se fundo no que separa os dois criadores. Repare-se neste trecho:

«SABATO
Mas, como a morte nos espera no futuro, há pesadelos que só podem ser visões do inferno em que participaremos.

BORGES (sério)
Mas você não acredita, Sabato, que o Céu e Inferno são invenções verbais?
SABATO
Eu acho que são realidades, embora isso não queira dizer que sejam realidades tão ingénuas quanto as que se ensinam os meninos nas igrejas. Os pesadelos, as visões das pessoas loucas que “se colocam fora de si ” (repare como é significativa essa antiga expressão antiga), as visões dos poetas são realidades, não são amontoamentos de palavras. Quem via Dante passar pelas ruas de Ravenna, esquálido e silencioso, comentava em voz baixa, com uma espécie de temor sagrado:

“Lá vai aquele que esteve no inferno!”. Eu acredito que Dante viu, como todo o grande poeta, com terror e uma nitidez afiada, o que as pessoas comuns apenas entreveem. O que o homem comum confusa e penosamente consegue ver naquela pequena morte transitória que é o sonho.

BORGES (que o ouviu com suave descrença)
Fico confortável pensando que o céu e o inferno são hipérboles.
SABATO

Noutras palavras, você, às suas próprias histórias, considera-as como meras invenções verbais e não como descobertas de uma realidade… (ele muda a sua expressão e comenta para Barone). Embora ele resista a isso, ele é um descobridor de outras realidades. (pp. 128-129)»

Um, aposta tudo no lúdico – as hipérboles, no dizer de Borges, que é um armador de jogos -, o outro debate-se – como o seu personagem Castel, em O Túnel – contra a trivialidade. É a velha discussão entre Crátilo e Sócrates, que continua a provocar irritações e encarniçamentos, sem se ver que, à vez, ambos têm razão, há momentos em que estamos com César e outros com Deus¸ havendo ainda outros momentos para azucrinar os poderes e a gramática.

Daí que não veja a necessidade de escolher entre a Alexandra Lucas Coelho e a Ana Margarida de Carvalho, uma solista na secção dos sopros, outra na das cordas, as “novas” que mais me interessam. Nem descortino motivo para a sanha contra o Valter Hugo Mãe (onde até uma história truncada, como a do seu falhado encontro com Herberto, serve de anedota), um tipo que arrisca e tem livros e páginas superlativas (- bastava o capítulo O Poço, de Homens Imprudentemente Poéticos, para estar na história da literatura). Mais triste ainda, a capacidade do Diogo Vaz Pinto em ser o seu pior inimigo quando pode escrever livros notáveis como Manifesto; tão insensato como abrir a mais mortífera trincheira do mundo para conseguir dar corda ao relógio.

E quando agora leio Anti-Prefácios, do Alberto Velho Nogueira (que me foi oferecido pelo sempre atento Levi Condinho), e encontro, nas seiscentas páginas do seu alentado volume, algumas das páginas mais inteligentes e luminosas sobre a literatura portuguesa que li desde sempre, sabendo que o Velho Nogueira é absolutamente menosprezado por dar trabalho a sua leitura, e que nem aqueles que zurzem no Valter o reivindicam, só me apetece ir para a Nova Zelândia e voltar ao doce anonimato que foi o meu durante anos em Moçambique.

Ah, entretanto, ontem, finalmente, encontrei o título definitivo do meu romance (coitado, já teve dez títulos), que sairá neste inverno: Fotografar contra o vento. Podem começar a denegrir, a gerência agradece.

5 Set 2019

Nada de especial

[dropcap]U[/dropcap]m homem dorme sossegado no muro da mesquita. Tem meias pretas mas não lhe encontro os sapatos. O corpo curvado parece não ter espinha, só flexibilidade. As pessoas que saíram agora do trabalho passam para cima e para baixo. Passam-lhe ao lado. O miúdo sentado no passeio segura um helicóptero amarelo. Em pé, a mãe vê um avião passar. No IKEA, encostada a uma mesa alta, como um de dois cachorros quentes. Não aprecio a versão vegetariana por aí além. “Deviam ter muito mais cadeiras, é uma vergonha”, diz este homem de cabelos brancos, enquanto ajeita o pesado banco que acarretou durante uns metros para me ceder. Vai-se embora com a esposa silenciosa. Espantada e agradada com o gesto, quando acabo de comer tento fazer o mesmo por outra pessoa, mas ninguém parece prestar-me atenção, ou perceber o que quero, e acabo por desistir.

Na paragem de autocarro passa um homem com um miúdo de uns três anos, segurando um boneco. Sorrimos um ao outro. Alguns minutos depois, o miúdo já não vem de queixo colado ao ombro do pai e sim pendurado, todo desengonçado, de lado. Páram ao começo de nova birra.

“Fica aí então, eu vou-me embora”. O miúdo chora, lágrimas bem gordas que realçam os olhos verdes contra a pele negra. É muito belo, como aliás o pai. A mãe, que não fica atrás em beleza nem em caminho, aparece não sei de onde com duas amigas e convence-o a erguer-se das cócoras, a tirar os punhos das bochechas e a dar-lhe a mão, embora não abdicando da birra. Ele é tão pequenino, e toda a gente se vira para vê-lo melhor.

Deixei de dar os parabéns às pessoas nos seus aniversários por tempo indeterminado. A Sara trouxe-me um boneco representativo da ópera chinesa. De cada vez que se lhe inclina o chapéu, o boneco muda de cara. Somos todos boneco. O David perguntou-me como foi o resto daquele sábado. Digo que correu bem. “Fui-me embora quando começaste a falar”, admite. É o que todos queremos ouvir, respondo. Gosto demasiado de dizer aos outros como poderiam viver uma vida mais plena, mas a verdade é que ando há meses com a haste dos óculos torta, como se isso fosse mudar a minha perspectiva das coisas. Quero usar o cabelo apanhado e não posso, porque a afro ajuda a equilibrar a minha visão. Concluo, portanto, que não sou a melhor life coach do mundo.

Mas também não devo ser a pior amiga, afinal recebo mensagens do Brasil a perguntar como era mesmo a receita das chips de couve kale (galega para os amigos) que servi certa noite ao jantar, e pedidos de uma certa menina de olhos azuis em relação à roupa que vai usar em cada uma das suas inúmeras reuniões de trabalho. Agora que está desempregada sinto que eu também estou, de certo modo.

Vivo alheada da maioria das notícias e isso contribui muito para a minha tranquilidade. Decido ver toda a primeira temporada de Euphoria de uma assentada, abandonando The Wire. Rue, a personagem principal, interpretada por Zendaya, ameaça outra, no último episódio, citando nomes que reconheço como sendo de personagens de The Wire. Apanhada pela vida a fazer batota pela segunda vez, esta semana.

Entro no regional. Aprecio o quão vazio vai e o ar condicionado, tão menos exagerado que nos autocarros. Penso que gosto da expressão “Eu cá…”, como quem diz, eu cá gosto da Ana Cássia Rebelo, que tantas gargalhadas me tem arrancado. Mentira, dou-lhas de bom grado. Mas entretanto sinto comichão no nariz porque vai uma família de cinco ingleses com um português e acabaram de pôr, os ingleses, um perfume qualquer que, não sendo mau, também não é bom, e que multiplicado assim se torna difícil de suportar. Agora estão a falar de queijos. Eu coço o nariz com o marcador que veio com o livro. Tem a foto da Patti Smith em jovem e protege-me do cheiro real a perfume, do cheiro virtual dos queijos e da risada que continua aqui, à espera que um deles me olhe para sair.

No supermercado: mulher ao telefone declara a alguém que ele é seu e só seu, e que é bom que fulana o saiba. Outra conta à filha como a avó lhe deu a comer atum até enjoar. “Só voltei a comer atum quando conheci o teu pai”, revela. Tive uma conversa assim com o meu ex-namorado sobre queijo da ilha, mas deixei de comer quando terminámos. “Queriam levar o meu marido para o Monsanto, para a má vida”. Ou fico mais sã ou passo a aborrecer-me de morte, quando abdicar dos transportes públicos. Na biblioteca, folheio tudo excepto livros da autora que procuro. Nada como a morte. Num romance, encontro uma carta dobrada em três. “Cara professora Sara, gostaria de lhe pedir para deixar a Ariel trazer o livro de Estudo do Meio para casa, este fim de semana. Obrigada. A mãe – Inês, 4 de Outubro de 2018”. A mãe é daquelas pessoas cujo apelido é o mesmo que o do cônjuge, pelo que se repete. Se há algo de que não posso abdicar, é da minha solidão. Quando deixei de descurá-la, passei a nutrir-me. Entretanto, demorei tanto a escrever este texto que a haste dos meus óculos já foi arranjada. Pondero lentes, apesar de ter avançado três casas no tabuleiro de leitura.

5 Set 2019

 Para emendar de vez o caos

[dropcap]O[/dropcap] caos apenas respira onde não há imagens que lhe possam dar sentido. Quando se criam imagens, a voragem tranquiliza-se. São elas que melhor induzem a um reequilíbrio, mesmo se precário. São elas que conformam e dão a ver a vida como uma flutuação imprevisível que pode ser domesticada. Um bom design tranquiliza. Um bom site embala a navegação. Um anúncio a clamar por derrame estético demove-nos (aparentemente) do mal.

As imagens confundem os nossos gestos com o mundo e, por outro lado, conotam poderosamente, dando-nos a ver o que aparece, mas também o que lá não está, saciando-nos fantasias. De um detalhe efabulamos todo um continente. Esta capacidade de simultânea apreensão e aceleração aparece reflectida em actividades humanas ancestrais ligadas à persuasão. Mas não só. A história, relativamente recente, da publicidade e do design são trunfos que sempre respiraram dentro desta jangada que nos faz a todos marinheiros de um oceano feito de espelhos esféricos sempre a rodarem.

É curioso como as marcas trabalham a partir da ideia de uma anamorfose que permanentemente se recompõe. Definidas por Al Ries e Laura Ries (e por outros gurus da área) como “percepções que o público tem de um serviço, produto, pessoa, etc.”, a verdade é que ninguém detém ou controla uma marca*. É por isso que elas deslizam para além dos sentidos que as condicionam, como se fossem modelos em permanente reactualização, compostos por “património”, o que é tangível, e pelo essencial “core”, o que o não é. A uma referência (e a uma história) cola-se sempre uma nuvem (ou uma aura). Enquanto se afirmam, as marcas preparam, sem cessar, a sua encarnação noutra e noutra catadupa de imagens. É isso que as posiciona: a reencarnação. É isso que as cola a todos nós.

Este efeito de boomerang entre factos, acenos e figurações também é típico do design que nos compõe o pano de fundo (material) dos dias. Por um lado, pelo facto de ser a maior marca do mundo (na medida em que atravessa todas as actividades, bastando o nome que o designa – o design – para definir um horizonte, um status, uma fasquia). Por outro lado, pelo facto de desmistificar o encantamento estético, enquanto o empresta aos objectos em que se realiza (seja uma t-shirt, um automóvel ou um simples teclado de computador).

Dito de outro modo: o design propõe a transformação do mundo físico num imenso sopro onde o nosso corpo desejará idealmente rever-se ou verter-se (e ser acolhido) como se fosse um vasto estuário. Tudo o que ao longo da história moderna e industrial se limitava a ser apenas instrumental – um mero revestimento – está hoje a constituir-se como um modo de o humano, ainda que involuntariamente, se cumprir.

A ritualização de objectos culturais – muito desejados – que é levada a cabo pelo design reata práticas muito antigas (lembremo-nos dos báculos megalíticos que eram, ao mesmo tempo, objectos de culto e de pastoreio), mas adquire uma novidade sem precedentes, ao reunir a ‘transcendência estética’ com a emergência do dia-a-dia. O deslumbre e o quotidiano de mãos dadas.

Como se o design existisse para se sobrepor ao caos, ou para ilusoriamente o emendar, e isso justificasse o mais importante laboratório de imagens que existe no planeta. Não é por acaso que ele surge e se enuncia ao serviço de tudo o que nos rodeia (como se fosse uma camada invisível que nos inscreve o ânimo e nos promete sentido): na medicina, na publicidade, na rede, nos objectos, na indústria, nas campanhas políticas, na arquitectura e nas mil melopeias mais vãs da comunicação.

Curar a crueldade já foi função dos mitos nas sociedades ancestrais; hoje essa expiação pertence às grandes máquinas de sedução pública. E nós nem damos por isso: uma verdadeira cirurgia sem dor.


*Ries, A./L., (2002) 2003, A Queda da publicidade e a ascensão das relações públicas, Editorial Notícias, Lisboa.

5 Set 2019

Ilusão

[dropcap]M[/dropcap]aya é como as fundas Primaveras que nos agarra aos sentidos que reféns querem toda a manifestação das fomes trazidas, não por acaso Maio se nos dá em festa e das Maias são feitas as belas grinaldas das flores da Estação. Trazemos sentidos para as cores, imagens, cheiros e miragens, e nelas firmamos verdades que nos parecem eternas, como o germinar e o florir antes que se esgote o tempo de tão fecundo estar. Há quem se entranhe no mundo e mais não veja que o ciclo das coisas que o anima, são por si só os grandes animados, os soberbos animistas, as forças elementares em círculo nas fontes do desejo e na miragem da necessidade perpétua. Mas valerá ressalvar os diálogos perdidos que o prólogo de «Eclesiastes» 1, capítulo 2, traz a esta janela: “ilusão das ilusões: tudo é ilusão” que em latim é conhecida por :” vanitas, vanitatum et omnia vanitas”: mudada para vaidade, mas sinónima.

Todo o capítulo nos fala então do espectro ilusório e, se a abordagem não é simples devido ao carácter compósito da obra, ela abre o princípio da interrogação que torna um texto litúrgico muito rico e até diferente daquilo que estamos habituados, as reflexões mantém-se no trilho de uma autoanálise que se aproxima do ciclo poético da intervenção, em algumas passagens vamos encontrar a Roda como ciclo do eterno retorno, noutras, a dúvida acerca das realizações humanas e tudo o que isso significa, até essa natureza criada da imagem que em nós projecta a miragem das coisas e do mundo. Fala-nos ainda do tempo das coisas sem nenhum juízo de valor incluído, e em toda essa maravilha vemos que uma vida que se quer conseguida terá necessariamente de as abranger, é um mantra ritual do conhecimento humano talhado apenas para ser.

– Alude ao que ilude a resposta vã – nós que somos iludidos sempre que nos queremos mais velozes nem por isso estamos preparados para acarretar a desmesura dos erros nem conseguimos tirar as ideias feitas dos grandes observadores que somos que dizem coisas sem reconhecer quem as faz, ou quem as disse, ou porque foram ditas, e assim, na rigidez mental de uma forma de agir construímos imagens, conceitos e ideias que só a quimera mais terrível sabe fabricar. Dessas assombrações fazemos realidades, verdades, construímos conceitos, forjamos a moral, mas, o ser de que se fala, a coisa falada é até que aflore a bocas assim um completo desconhecido, somos vítimas da linguagem como submissos imprudentes, e dela não merecemos mais que a crítica constante e muitas vezes pertinaz.

Se de ilusão o nosso tecido mental é feito, ela protege-nos todavia de realidades terríveis e assombrosos vislumbres de impossíveis. Morreríamos de dor ao não conseguir recorrer a uma galopante abstracção que nos desviasse das fronteiras cerradas da condição, mas não será bom derrubar as formas graves que subjazem a toda ela, não para a negar, mas para nos fazer mais conscientes da felicidade breve e do bem que é sentirmos que a conquistamos: como o livro dos amantes que diz que o ser amado primeiro se possuí e só depois se conquista.

O erro de percepção é lúdico para com os nossos sentidos, a Nuvem por Juno é isso mesmo e, no entanto, cognitivamente, estamos talhados para o ilusório que fabrica assim todo o espaço do pensamento, e houve alguém que pensando, era aí que existia. O mundo tangível não dá nada aos que criam – recriando – mas as coisas criadas outros as completarão, e quem faz, quem dita e redita nele tudo quanto nele é capaz? Aqui, ficamos estoicos, mas isso abranda o uso costumeiro da análise e a ilusão é posta a irromper noutras vertentes. « Põe então tua mão sobre o meu cabelo, tudo é ilusão, sonhar é sabê-lo».

A ideia de Deus surge no livro como um ente desconhecido, infalível, e que premeditou a causa de toda a dúvida, será sempre mencionado como a força que nos impele a descobrir, não dita, é ditado, e essa natureza cria então um campo imenso de dura solidão na medida em que se ela nos faltar nem a nossa sombra existe no meio do invólucro que somos. Mais que ilusória se torna por isso a sua ausência em nós. Para caminhos diferentes a mesma finitude, a mesma conclusão: quem distingue o que está certo neste mundo? E se a ilusão está presa aos sentidos, sem eles, que outra ilusão nos colheria? Os poetas respondem bem ao improvável, talvez na sombra de outras naturezas e assombrados de lucidez, se mantenham estáticos nalgum lugar que esqueceram os seres: “….nada em mim é risonho, quero-te para sonho, não para te amar. Os meus desejos são cansaços nem quero ter nos braços meu sonho do teu ser.”

Aquilo que é já existiu, e também o que há-de ser já antes foi. Deus só vai à procura daquilo que não se encontrou.

4 Set 2019

Do envelhecer

[dropcap]O[/dropcap]s dias do regresso sucedem-se devagar e previsíveis, como sempre deveria ser quando há alguma paz nas nossas vidas. Gosto de ver os lugares e as pessoas quase recompostas numa subtil mudança para o que nunca irá mudar. Aqui e ali as mesmas piadas, o mesmo sorriso, as mesmas diatribes. Depois da falsa suspensão da vida a que chamamos férias, o recomeço dá oportunidade de apresentarmos a mesmíssima pele mas mais lustrosa, preparada e engalanada para as batalhas que nos esperam. Este é o meu tempo preferido, a promessa de um Outono depois dos excessos mais solares e quase forçados. Um Outono que me é mais apropriado, parafraseando o meu poeta.

No meio deste remanso procuro em vão a sábia do bairro, a inevitável menina Marina. Dizem-me que não está, que não regressa, que encontrou lugar melhor. Desde logo sinto-lhe a falta e digo-o a quem me quis ouvir. Respondem-me: “Mas está aquela rapariga no seu lugar, muito mais nova. Precisamos de juventude, de caras novas.” Olhei para a moça em questão, bonita, simpática e competente, com o sorriso de despreocupada arrogância que normalmente é conferido pela mistura explosiva de beleza e juventude. Está tudo certo, mas ainda assim…

Talvez seja por sempre ter achado que a juventude é sobrevalorizada. Talvez seja – não, é-o de certeza – por sempre ter desejado ser mais velho. E aqui ser mais velho não equivale apenas a contar com mais anos, numa percepção meramente cronológica. Trata-se sim de ter mais vida.

Desde sempre a vida que tinha não me chegava porque não me permitia saber de muitas coisas. Daí ter sempre, de uma forma ou de outra, procurado a companhia de pessoas mais velhas. Ainda hoje tenho grandes amigos bastante mais velhos do que eu.

Numa cultura como a ocidental (ou, para não ir mais longe, num país como este a que pertenço) esta atitude é quase uma forma de resistência. Nunca compreendi este doce desprezo pelos mais velhos, que ou são ignorados ou infantilizados de forma estúpida e abusiva quando na verdade deveriam ser ouvidos e respeitados. Olhem, amigos: eu não estou a fazer uma estetização da velhice, que pode ser difícil e dolorosa; a perda de faculdades, físicas ou mentais, e o reconhecimento disso mesmo não tornam a vida mais doce. Mas no meio desse percurso há a memória e o sossego que quem já viu muito; mais importante ainda, há a possibilidade do legado, de transmitir o que se amou a outros que ainda o poderão fazer. Que essa possibilidade seja tão maltratada por nós é algo que considero inaceitável.

Vivemos numa altura em que a longevidade é clinicamente aumentada. Mas de que serve viver mais se ninguém quer saber da vida que se teve?

Não, pela minha parte estou como a mais fabulosa canção do musical Gigi, I’m Glad I’m Not Young Anymore, em que entre outros versos memoráveis há este: “forevermore is shorter than before”. Que a juventude é necessária e bem-vinda – certamente. Mas que envelheçam, envelheçam se puderem. Como dizia um dos grandes cronistas americanos, Garrison Kellor, “Envelhecemos e percebemos que não existem respostas, só histórias”.

4 Set 2019

Antes asno que me carregue

[dropcap]O[/dropcap] início da vida musical de qualquer músico, que quase sempre se confunde com o início da consciência de si mesmo, é marcado pela tentativa de ser outro que não ele. Todo o jovem músico imita os seus ídolos e, mais do que ser como o seu ídolo, quer ser ele.

Acontece com todos os géneros musicais, sem excepção. Jorginho tinha sido um tremendo guitarrista rock, na sua juventude. Entre os 14 e 18 anos arrasou Curitiba com os seus solos e com as suas bandas “cover”. Desde o início que imitava na perfeição Eddie Van Halen, arrastando legiões de garotos aos seus shows, que estavam sempre cheios. Chegado à idade adulta, Jorginho começou a dedicar-se ao jazz, deixando o rock de lado. Mas cedo percebeu que era muito difícil viver de tocar jazz no Brasil e teve de começar a dar aulas, maioritariamente a garotos que queriam tocar rock. Com vinte e três anos, depois de várias tentativas de viver do jazz, percebeu claramente que no Brasil não podia dedicar-se a esse estilo musical a tempo inteiro. E, em relação ao rock, também só podia continuar profissionalmente se fizesse parte de uma banda “cover” ou “tribute”. O normal é passarmos do outro a nós mesmos, como músicos, deixarmos de imitar aqueles que nos ajudaram na aprendizagem. Mas não foi o que se passou com Jorginho. Depois de um período de juventude em que imitava os outros e de um período do início da idade adulta em que aprendeu a linguagem do jazz e começou a ter a sua própria “voz”, a ser ele mesmo musicalmente, Jorginho voltou atrás e ingressou numa banda que iria fazer com que passasse novamente a imitar os outros: ingressou na “Hot For Teacher – Van Halen Tribute”. O nome dava aos fãs da banda Van Halen um claro aviso de que tocava apenas os temas da primeira fase, com David Lee Roth na vocalização. Quando foi às audições, Jorginho arrasou. Muitos diziam que fechavam os olhos e era como se o próprio Eddie Van Halen estivesse ali a tocar. O problema é que não bastava tocar como Eddie, era preciso parecer-se fisicamente com ele, vestir-se e mover-se em palco como ele. A aparência não era um problema, nem o vestuário, embora implicasse ter de usar cabeleira, assim como todos os outros elementos da banda. O maior problema era os movimentos que tinha de imitar. Jorginho quase não se mexia, contrariamente a Eddie, que saltava, corria e atirava-se para o chão, enquanto tocava, embora nos pequenos palcos onde a Hot For The Teacher ia tocar não houvesse o risco de ter de correr. Jorginho percebeu que o que estava ali em causa não era apenas tocar a música na perfeição, mas ser uma “autêntica” imitação do outro. Passou mais horas a ver Eddie em palco, a estudar os seus movimentos, os gestos, do que a praticar as músicas, que ainda sabia de cor. Os shows foram aparecendo. Não só no estado do Paraná, mas por quase todo o Brasil. A primeiras cidades fora do estado foram Florianópolis e Porto Alegre, mas rapidamente se estenderam a Belo Horizonte e São Paulo. Os Hot For The Teacher corriam o país como se de uma banda de originais se tratasse. Passado um ano, com a divulgação e o sucesso que tiveram logo desde o início, principalmente por causa de Jorginho e do vocalista, que também imitava autenticamente David Lee Roth – e são esses que os fãs que não são músicos ou aprendizes mais reparam – chegavam a ter quatro e cinco shows por semana, o que fazia com que todos eles passassem a viver uma vida que não era a deles. Durante o dia, já nem despiam as roupas que usavam no palco. Viviam como se fossem não a Hot For The Teacher, mas a própria banda Van Halen. Chegaram mesmo aos canais de televisão, onde actuavam e davam entrevistas.

Numa dessas entrevistas, Jorginho dizia que este fenómeno só era possível porque no Brasil se valorizava muito o Rock, que nunca era visto como algo do passado, mas sempre presente. Referia-se evidentemente às cidades grandes do sul e centro do país. No fundo, disse, “o que fazemos não é muito diferente do que fazem os músicos de jazz e de música clássica ao tocarem e gravarem composições passadas; toda a música, seja qual for o estilo, também vive de reinterpretações”.

Na verdade, Jorginho sabia que não se tratava de reinterpretações, mas de cópia. E, para quem não era fã dos Van Halen, estas imitações autênticas eram uma aberração. Se a vida de um rocker de modo geral é uma vida fora da realidade, a vida destas imitações era duas vezes fora da realidade. Não estavam só fora da realidade, cada um deles estava fora de si mesmo. Eles não eram aqueles que eram os outros, mas aqueles que eram a imitação dos outros. Jorginho, que queria ser músico de jazz, sabia bem disso, apesar das entrevistas que dava, dourando a pílula. E quando num dos programas de televisão alguém lhe perguntou porque fazia aquela figura ridícula, a imitar uma outra pessoa – referindo-se ao modo de vestir, à cabeleira e ao comportamento em palco – respondeu em modo de provocação: “é melhor do que ser caixa de supermercado ou ralar num Mcdonald’s”.

E provavelmente estava certíssimo. Talvez seja preferível ter uma doce vida de imitação do que o inferno de uma autêntica. Aqui, qualquer português se vai lembrar da “Farsa de Inês Pereira”, de Gil Vicente: “Antes asno que me carregue do que cavalo que me derrube.” Ao que parece, antes de se tocar tem de se comer.

3 Set 2019

A anexação da Checoslováquia na música de Bohuslav Martinů

[dropcap]N[/dropcap]ascido na Boémia no dia 8 de Dezembro de 1890, desde muito cedo que Bohuslav Martinů manifestou ter dons para a música, aprendendo violino com Josef Cernovsky e tornando-se mesmo um prodígio deste instrumento. Desenvolveu estudos de violino e órgão no Conservatório de Praga, de onde foi expulso duas vezes, estudando posteriormente por sua conta. As suas composições, em particular para piano e que datam desse período (1910-1915), reflectem já as ambições do compositor por uma grande riqueza de invenção. Em 1920, tornou-se violinista na Orquestra Filarmónica Checa, travando conhecimento com o chefe de orquestra Václav Talich e brevemente com o compositor e violinista também checo Josef Suk, encontro que o iria marcar para sempre. Após a independência do estado checoslovaco Martinů partiu para Paris em 1923, onde foi discípulo do compositor Albert Roussel e se afastou deliberadamente do estilo romântico no qual havia sido formado, cruzando-se também com o compositor suíço Arthur Honegger. Ambos viriam a exercer uma grande influência na sua existência e na sua música.

Entre 1920 e 1930, compõe muito para piano e voz. No início dos anos 30 encontrou a sua principal fonte composicional: o neoclassicismo desenvolvido por Stravinsky. Tornou-se prolifico, depressa compondo obras de câmara, orquestrais, corais e instrumentais. Experimentou o expressionismo e o construtivismo, e tornou-se admirador de desenvolvimentos técnicos europeus na época, exemplificados nas suas obras orquestrais Half-time e La Bagarre. Adoptou idiomas de jazz, como por exemplo na sua Kitchen Revue (Kuchyňská revue). Os seus primeiros grandes sucessos datam de meados dos anos 30, como as Inventions pour piano et orchestre, encomenda do Festival de Veneza (1934), Kytice (Le bouquet de fleurs, 1938) e, sobretudo, a sua primeira ópera, Juliette ou la clé des songes (1938), criada no Teatro Nacional de Praga por Václav Talich. Compõe também, em Setembro de 1935, para a cravista Marcelle de Lacour, o seu Concerto pour clavecin et petit orchestre, que ela toca pela primeira vez em Janeiro de 1936 em Paris. O seu Concerto Grosso e o Duplo Concerto para duas Orquestras de Cordas, Piano e Timbales, H. 271, contam-se entre as suas obras mais conhecidas deste período. o período francês do compositor

O Duplo Concerto para duas Orquestras de Cordas, Piano e Timbales, H. 271 começou a ser esboçado no Verão de 1938, na Suíça, num período de deterioração das relações diplomáticas e em que uma atmosfera tensa dominava toda a Europa. Encomendada por Paul Sacher da Orquestra de Câmara de Basel, esta obra poderosa reflecte impressões intensas, tanto da vida pessoal do compositor como dos eventos políticos da época, do medo e agitação omnipresentes, expressando o sofrimento checo após a anexação da Checoslováquia pela Alemanha em 1938. A obra foi escrita como um reflexo e em protesto contra estes eventos,.

Segundo Martinů, “É uma peça vivida em circunstâncias difíceis, mas no entanto não possui desespero nem melancolia, mas implica revolta, coragem e uma fé inabalável no futuro, expressa por meio de ondas dramáticas abruptas, uma corrente de notas que não para um segundo…”.

A capa da partitura do manuscrito ostenta a dedicatória “ao meu querido amigo Paul Sacher para comemorar os dias calmos e medrosos passados em Schönenberg entre os cervos e a ameaça da guerra”. Martinů terminou o último andamento do esboço no mesmo dia da assinatura do Tratado de Munique, que conduziu à anexação da Checoslováquia por Hitler, e que pôs termo ao sonho do compositor regressar ao seu país natal. A obra foi apresentada pela primeira vez pela Orquestra de Câmara de Basileia, conduzida por Paul Sacher, em Basileia, em Fevereiro de 1940; Martinů viajou de Paris para assistir à sua apresentação, apesar da difícil situação internacional. Arthur Honegger estava na plateia. Uma segunda apresentação do Duplo Concerto, desta feita em França, pela mesma Orquestra, teve que ser cancelada devido ao facto do compositor ter sido colocado na lista negra pelos nazis. Martinů e sua esposa tiveram que fugir do país, abandonando todos os seus pertences, incluindo a maioria dos manuscritos do compositor, sendo muitas vezes forçados a dormir em estações ferroviárias durante a sua fuga.

Atravessaram os Pirenéus a pé, em direcção a Lisboa, de onde partiram para os Estados Unidos a bordo de um navio. Uma das poucas partituras na sua posse era a do Duplo Concerto.

O concerto, com os andamentos Poco Allegro, Largo, e Allegro, é estruturado segundo o concerto grosso italiano do séc. XVIII, sendo os andamentos exteriores caracterizados por um tom de ansiedade expresso por ritmos sincopados, enquanto o Largo se centra numa afirmação declamatória. O início violento do primeiro andamento mostra vividamente o efeito chocante que o tratamento à sua terra natal teve sobre Martinů. Os três acordes finais do último andamento soam como os tiros de um esquadrão de fuzilamento.

Sugestão de audição da obra:
Bohuslav Martinů: Double Concerto for two String Orchestras, Piano and Timpani, H. 271
City of London Sinfonia, John Alley (piano), Charles Fullbrook (percussion), Richard Hickox (conductor) – Warner Classics, 2009

3 Set 2019

Haojing e o Tratado de 1554

[dropcap]P[/dropcap]elas ilhas do Sudoeste do Pacífico andavam portugueses alevantados, entre outros Fernão Mendes Pinto, a continuar a usar a estratégia de se misturarem com os mercadores das embaixadas dos países tributários para entrar na China; ou de barco, como piratas, intermediários entre desavindos vizinhos, dedicavam-se a trocar seda chinesa pela prata dos japoneses. Após Simão de Andrade e a derrota frente à armada chinesa em 1521, os portugueses foram proibidos de se acercar das águas de Cantão e rumando para Norte passaram a abastecer-se na Província de Fujian, onde se estabeleceram sem dar nas vistas e constituíram uma comunidade, tal como o fizeram em Liampó (Ningbo), Zhejiang. Até os portugueses descobrirem o Japão em 1543, as trocas eram feitas em alto-mar e os crescentes proveitos daí usufruídos pelos oficiais e mercadores dessas províncias levaram os mandarins de Guangdong a fechar os olhos à proibição de 1521, que trouxera a ruína às finanças provinciais.

Voltaram os mercadores chineses semi-clandestinos a fazer trato com os estrangeiros em Lampacau e Shanghuan, quando aí morreu a 3 de Dezembro de 1552 o jesuíta Francisco Xavier.

O Governo de Cantão, receando a sepultura tornar-se num local de peregrinação e poder trazer problemas, levado o féretro do Santo na monção seguinte para Malaca, trocou como porto de encontro o de Shanghuan pelo de Haoqing (Macau). Aí, nesse ano de 1553, os portugueses, a pretexto dos barcos danificados pela tempestade, pediram terra emprestada para secar as mercadorias e o haidao autorizou a estadia temporária em cabanas de colmo, que depois deviam ser destruídas.

Habituados a negociar com os chineses, os mercadores portugueses como Diogo Pereira, Guilherme Pereira, Pedro Velho e entre outros, Simão de Almeida, estavam já habilitados como intermediários quando o Capitão-Mor da Viagem do Japão Leonel de Sousa, capitaneando uma esquadra de 17 navios, fundeou na ilha de Sanchoão em finais de 1553. Por isso, neles se apoiou para realizar os primeiros contactos diplomáticos, referindo Leonel de Sousa, Simão de Almeida, homem honrado e cavaleiro, que da China tem feito com muita diligência e desejos de servir Sua Alteza. Por algumas obrigações do seu serviço que lhe pus diante foi sempre honradamente e veio, e à sua custa, e além do que gastou. Soube que dera algumas dádivas a pessoas e oficiais do Aitão com quem negociou mais ‘brebe’ do que o pudera fazer sem isso. Nem eu servira Sua Alteza como o servi se não fora sua ajuda e Conselho, porque eu tinha pouco cabedal para suprir, mais do que supri nem ele o quis de mim e disse sempre que se nisso servia a Sua Alteza, que dela queria o galardão e não d’ outrem>. Queixava-se ter vindo à China numa embarcação de mercadores, , mas conseguiu fazer o assentamento de 1554 com o haidao Wang Bo, pondo fim ao ciclo dos Fu Lan Ki piratas e abriu o dos Fan Ian, com novos desafios e ritos.

Capitão de Sua Alteza

Leonel de Sousa (c.1500-c.1572), natural do Algarve e casado em Chaul, era fidalgo da casa de el-Rei D. João III e obtivera a mercê de duas viagens sucessivas à China por Carta Régia de 22/2/1547. A mercê real de mera licença não garantia a concessão de viagem, mas de uma nomeação para capitão-mor de viagens da coroa, com as vantagens inerentes, sob regimento do Governador da Índia. Esse regime de licença não dava os privilégios do que viria a ser a partir de 1550 os da viagem da Nau do Trato, quando a coroa instituiu o monopólio da viagem ao Japão. A concessão do exclusivo dessa viagem anual outorgava poderes latos ao capitão-mor, como a jurisdição sobre os portugueses do Oriente após os graves incidentes de 1547 e 1549 em Liampó e Chincheu.

Em Goa, o Vice-Rei da Índia Afonso de Noronha (1550-54) recusou a Leonel de Sousa as viagens em nau da coroa alegando não ter D. João III mandado dar-lhe, pois se o mandasse ele daria, nem sequer ordenou que lhe fosse dado o ‘favor’ para a sua viagem, que diz ter sido dado a D. Francisco Mascarenhas e António Pereira, realizadas em 1556. Sem viagem oficial, a mercê permitia a alternativa de ser conferida licença para à custa do próprio, em seu barco realizar a viagem obedecendo ao regimento do Governador da Índia. Leonel de Sousa por lhe não terem bastado os meios, contentou-se em exercer a capitania na nau de mercadores, onde no terço emprestado de espaço embarcou a sua mercadoria destinada ao comércio na China.

Em 1554, ainda em mar chinês Leonel de Sousa tomou medidas para acautelar a segurança dos navios e pessoas portuguesas que com ele iam e recomendou-lhes não provocarem fosse o que fosse que pudesse ‘alevantar a terra’. Encontrou os portos da China todos encerrados e as armadas impediam ‘fazer fazenda’ e perante tal situação, .

A iniciativa partiu do Aitão (haidao) de Cantão, oficial “Almirante do Mar que provê em todo os negócios dos Portos do Mar, assim na Fazenda como Armadas, em que às vezes sai em pessoa com muito poder quando aí há causas para isso”, segundo Gonçalo Mesquitela (fonte principal deste artigo), que refere ter Leonel de Sousa, cuidadosamente observado os costumes chineses e as suas cortesias.

O Aitão, antes de visitar os navios da frota, mandou inquirir cuidadosamente dos poderes trazidos para com ele poderem negociar. Resolvido ficou o ponto mais delicado, a proibição imperial de negociar com os Fu Lan Ki (como chamavam aos portugueses de Portugal e de Malaca).

Ouvidos todos, Leonel de Sousa aceitou, considerando uma primeira vitória sobre o sistema anterior, de pura clandestinidade. Mesquitela remata, “O facto de pagar direitos era já um reconhecimento tácito da posição jurídica definida perante a coroa.”

2 Set 2019

Intoxicação elementar

[dropcap]O[/dropcap] relógio pára, alguém se senta à mesa e começa a escrever. Tenta arrumar pensamentos e debitar no papel ideias sobre a China. Deixa o cursor correr livremente sem apreensões do que verá escrito ao passar a ponte que separa a verdade da mentira – ficção da realidade, presente do futuro – ou a dúvida da exclamação. De janela aberta para o mundo, saboreia a brisa que corre para outras realidades. Bandeira ao vento, cheio de obstáculos, expõe o que lhe vai no discernimento, apregoando: nós, humanos, estamos aqui!

Arriscará essa pessoa fazer sombra a desmedida soberania, argumentando teimosias como um banal  “Homem do Tanque” – saquinho na mão, silêncio, dor –, de quem nunca se sabe identidade ou paradeiro? Esse homem que atravessou a ponte sem olhar ao precipício, cansado, com o desejo único de chegar a casa e respirar. Atarraxado à surdina da sua teimosia, enfrentou o colosso metálico com uma serenidade relampejante e ao fazê-lo deixou inscrita na retina da humanidade, colada ao ecrã, a bravura no seu esplendor. Trecho para sempre gravado, momento único e sublime. Já deu. Ocupou todos os canais. Mas será interdito falar neles, nos homens do tanque? Onde estão, já se foram? Passam a que horas?

Administrar um país não é tarefa fácil, há malhas irrequietas de indivíduos dotados de raciocínio para ajustar. São cativados a cada pulsar para que tomem determinado partido e direcção. Ao princípio, como todas as relações, é uma história de amor e pura sedução, repleta de alegrias e momentos dóceis. Mas com o passar do tempo outras ânsias se intercalam, o feitio começa a ser visto como defeito; os galanteios, importunações; os afagos, brutalidade; e por aí fora. A linha que define os extremos esfuma-se e a vida torna-se uma extensão perene de conflito e incerteza. Apesar das retractações, pedidos de escusa e elevações de espírito, nada volta a ficar como antes. Em casa, as malas chegam-se à porta. Num país, as ruas ardem e os governos mudam. Para mais tarde, em ambas as situações, o baile voltar a ser o mesmo e a cantilena regressar ao horário nobre da sabedoria. De todos os donos de casas.

Ao tomar conta de uma nação, existe o dever de proteger os ocupantes que nela germinam, dando-lhes conforto, educação e ciência. Este é o cardápio básico. A partir do momento em que a flor brota, os regentes da pátria tentam alistá-la no seu viço, para a vida inteira. Fazem-no na qualidade de jardineiros, assim como os progenitores que inscrevem os filhos ainda por rebentar no clube da sua predileção. É complicado regar esta planta, não basta o gota-a-gota. Em muitos casos, o nutrimento estanca, o gume desprende-se da faca e sementes adversas espigam. Som e fúria. Contrariando as necessidades de um vegetal, o desafio dos animais racionais não é só físico, mas mental. E aí não há sortilégio que atenda a complexidade das carências colectivas em uníssono. De cabeça perdida, o amante opta pelo impulso do malho no cinzel para esculpir o seu dito mais duro. Os governos, por seu lado, não se diferenciam. Apodrece-se o povo, para que se transforme e vingue num verão melhor. E tanta coisa se faz com matéria que apodrece. Um bom vinho, um bom queijo. A colheita precisa de fermentação. O tempo tudo cura.

No juízo vigilante, as redes ilimitadas da sociedade convergem para o mesmo ponto, o mesmo pedaço de alcatrão. Em sequência, as criaturas vão aparecendo no ecrã. “Estás lá?” Caminham juntas, por padrão, ainda ao lado dos famélicos da terra e do ar, encaixados nas caras dos livros, face ao poder dominador sempre que este se expande como domador de leões. Falamos de autoritarismo sem freio. Apesar da mordaça e da mais sofisticada disrupção propagandista, não há como negá-lo, o protesto ergue-se. Convocam-se liberdades. O ser. A voz. Algo que em anuências déspotas é negado na escarna política. Por demais exemplos na História – não é necessário tirar um curso para o aprender –, o ser revolta-se, a dor grita. Esta é a ordem congénita da natureza humana. Não há nenhum homem com o direito de privar outro dessa universalidade. Qualquer um. A liberdade é o ensinamento que circunscreve a identidade de cada indivíduo. Seres análogos. Uma espécie só. Cabeça, tronco e membros. Na semelhança se pungem diferenças. Como franjas de vocabulário.

Em casos alguns, grande parte do poderio é canalizado para toldar o progresso com realidades lineares e sem flatulências. Nem que para isso tenha de se produzir a falsidade e a “re-história”, erguendo a deseconomia e, mais à frente, a extinção. Criam-se modelos ordenados para enfrentar os juízos do povo, moldando clamores com poderes exacerbados que misturam modulações sociais, separando o trigo do joio, ora subindo o tom, ora baixando as acústicas mais graves. O sistema coloca-se em posição, em estéreo, para provocar a indolência. O técnico experiente e equitativo intende para que não se chegue à distorção, para que se entendam todas as nuances – dos instrumentos às vozes – instaurando a harmonia e a ponderação. O funcionário obtuso, às mãos de forças superiores, fá-lo espalmando a circunstância. Como um algoritmo, corta raízes, força pela anulação. Estingue. Seria ideal se todos tivessem oportunidade, sem que se façam das electrónicas estados de direito.

Os ponteiros avançam. Pessoas sem medo enfrentam poderes magnânimos, cá e lá, sabendo de antemão ser causa perdida. Antecipam-se e arrastam o universo às costas. Os astros rebolam, as ciências despertam. Porque o fazem? Modorra, urticária, infortuna? Poder-se-ia pensar que os homens que detêm o domínio na China são gente flexível, capaz de distintas perspectivas e sensibilidades para ultrapassar as limalhas da História ou o rigor do plano mestre. Não dá certo, tenta-se outra configuração, dando um passo maior do que as pernas. No país do meio, que já não é o de outrora, abre-se sempre um novo embrulho. Porque não é este país como o nosso? Será apenas pelo número infinito de gente?

Que dizer dos residentes de Hong Kong que protestam há meses rabiscando o seu destino? Ritual de fim-de-semana transformado em conexão sagrada, tentando – pasme-se! – que o território onde nasceram possa navegar ao sabor dos seus ventos. A base da revolta? Um “país” que possa viver livre. Surdina, colosso, relampejo. Palavras que não definem democracia, mas que a tentam sintonizar, com velas desfraldadas às ventoinhas do artifício.

Que pretendem os homens do Norte – e do Sul – quando esticam e apertam a corda? Que tencionam demonstrar ao mundo? Torná-lo melhor? Sorte ou azar daqueles que nascem num país com liberdades diminutas por uma questão de ideologia, idolatria ou desconfiança. Que pena, não serem livres e determinados sem mão ajustadora a abrir-lhes o caminho desde a nascença. Que fazer quando se cai dentro de um espaço limitado sem o horizonte amplo da vida? Poderá falar-se da China sem rodeios, aconselhando os homens que estão lá em cima com um caderninho na mão? Uma nação global a várias velocidades, onde o desencanto e o sublime rolam em paralelo, gota-a-gota. Dúvida ou exclamação? Que fazer dessa magnitude, com tanto de imperial a correr-lhe nas veias, quando o mundo real se desagrega? Quem o vigia, quem tem o plano mestre? O romantismo autocrático necessita de folga. Na fantasia das grandes muralhas a faísca ateia labaredas e pega-se ao fruto proibido. Quem o apaga?

A inteligência purifica o doping da democracia. Em que rua está escrita esta frase?

É relevante dar importância ao que se escreve, não o fazendo levianamente. Por esta altura, a cadeira já se partiu e o escritor nada escreveu. Escorregando por ideias esparsas, mistura modulações para que se entendam as nuances. Tira as coisas do lugar. Um rodízio de sentenças com semanas de maturação para que se leia e se oiça, chegando a outro escrutínio. Sobem-se escadas para se ler mais alto, para se ouvir melhor. Palavras que passam de mão em mão, como a sede que chega à boca, feita história de encantar. Escrito retirado a fórceps do meio de uma cabeça perdida, que ao alinhar esta exacta palavra precisa de a recuperar, para que a flor não murche. Escreve sem olhar, libertando o fantasma da realidade que não se dá a disputas regionais. Face ao escritor que usa as pernas e se põe a correr liso e sem relevo. Que palavras usar, como descrevê-lo?

A China. Pausa. Hoje não se vive. Amanhã, quando tudo isto passar, a vida retoma o seu lugar. Que fazer, Senhora? Que acústica usar para que o comboio chegue ao fim da ponte sem perder carruagens? “A inteligência purifica o doping da democracia”. Será com aspas? Em que rua está escrita esta frase? Os indivíduos irrequietos não calam o seu raciocínio. Consegue alguém colocar-se dentro da vida de outra pessoa? Os famélicos sobram e escoam para outros países. Hong Kong escoa para o mundo, na cola do ecrã. Um mundo perdido e a afundar-se. Se Deus é cinco, o Diabo é seis. Se o Diabo é seis, o Homem é sete. O técnico experiente não deixa chegar à distorção. A melodia persiste. This monkey is gone to heaven.

30 Ago 2019

A grande dama do chá

 

[CAPÍTULO ANTERIOR]

 

[dropcap]O[/dropcap] som era empolgante. Penetrava pelos ouvidos e fazia com que a batida do coração se acelerasse. Ezequiel de Campos não reconheceu a música, mas sabia que era de uma ópera. Quando entrou na sala da casa de Du Yuesheng, junto à praia de Cheoc Van, percebeu que o som vinha da varanda, onde encontrou Du e Luc LeFranc sentados. Ambos fumavam charutos e, na mesa que tinham defronte deles, estava uma garrafa de cognac francês com três copos. Dois quase cheios e um vazio. Havia também uma cadeira disponível. Percebeu que esse era o seu lugar. O som que vinha do gramofone abafava todos os outros ruídos. Quando se sentou, Du olhou para ele e disse, num inglês com forte sotaque:

– A música incomoda-o, sir?
– Não.
– Ainda bem. Gosto de ouvir ópera ao fim da tarde. Enche-me a alma.

Fez uma pausa enquanto o mordomo enchia o copo de Ezequiel. Depois disse:

– Sabe o eu é?
– Confesso a minha ignorância.
– Nem todos gostamos de ópera. Eu só aprendi a ouvi-la bastante tarde, em Xangai. Tinha de ir a acontecimentos sociais e este som foi-se entranhando. Passou a fazer parte de mim. Esta é uma das minhas favoritas. O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner. Não foi um acaso que tenha sido um oficial alemão a oferecer-me.
– E porque gosta dela? Pela música, pelo canto?
– Bem, eu não sei alemão. Mas sinto-me mais forte, especialmente quando oiço a parte da Cavalgada das Valquírias. Todos os personagens querem o anel mágico forjado pelo anão Alberich. Ao renunciar ao amor para sempre este cria o anel mágico, que permite dominar o mundo. Sem emoções isso é possível. É o que vemos quase sempre, não é?

Luc deu uma pequena gargalhada. Estava claramente à vontade perante Du. Ezequiel foi mais seráfico:

– Vemos muitas vezes. Mas o amor também consegue ser mais forte do que o poder.
– O amor trai-nos. O poder não, se o soubermos conquistar e preservar. Mas, para isso, temos de ser inclementes, até connosco próprios. Temos de ser como monges. O poder é uma religião.

Ezequiel, que tirara o curso na Universidade de Coimbra, era um devoto da cultura grega. E, assim, não deixou de recordar:

– Nos dramas da velha Grécia, não sei se conhecem, que sempre tiveram muita influência no Ocidente, os protagonistas predestinados e condenados, são sempre confrontados por um sistema que é indiferente ao seu heroísmo, à sua individualidade e à sua moral. Mas agora há novos deuses. E o maior são os negócios. O dinheiro é Zeus.
– Exacto, meu caro. Mas o dinheiro sempre foi o deus dos homens. É isso que nos move. A Terra não pertence a nada excepto ao vento. O dinheiro é o nosso vento.
– E quem dominar o vento, tem o poder.

Du fez um sorriso afável.

– É um homem que eu entendo.

Levantou o copo, num sinal de brinde. Não esperou que os outros o acompanhassem e bebeu um gole. Os seus olhos brilharam.

– Eu sabia que tínhamos algo em comum devido à forma como trata a Marina.

Ezequiel não disse nada. Mas não conseguiu ler nenhum traço de ironia nos olhos de Du. Luc LeFranc moveu-se um pouco na cadeira, mas continuou calado. Só observava, como se estivesse ali apenas como testemunha. O chinês disse então:

– Caro doutor Ezequiel, tenho as melhores referências de si. Foi por isso que lhe pedi para vir aqui. Imaginará porquê.

O português fez um ar surpreendido.

– Confesso que não sei. Tem algo a ver com a Marina?

Du deu uma pequena gargalhada.

– Não o julgava tão ingénuo, sir. A Marina é uma velha amiga de Xangai, como sabe. Tenho a maior confiança nela. E sei que ela não se ligaria a um homem se não tivesse absoluta certeza sobre as suas ideias e sonhos. E, permita-me dizê-lo, segredos.

Ezequiel fungou.

– Acha que a Marina conhece todos os meus segredos?
– Claro que não. Todos os homens têm segredos que não confiam a ninguém. E ainda bem que o fazem. Mas ela confia em si. É o suficiente.

Fez uma pausa para beber mais um gole de cognac.

– É um homem de negócios, caro Ezequiel. Posso tratá-lo assim, não é verdade?

O português assentiu com um pequeno acenar da cabeça.

– Macau é uma terra de comerciantes. E, quer os portugueses, quer os chineses, fizeram disso o seu acordo de conveniência. Sem assinarem nada, o que vale mais que todos os contratos. Cada um faz os seus negócios, sem que ninguém importune os outros. A única diferença é que os chineses sempre fizeram o comércio sem a desculpa da religião.
– São mais livres, caro senhor Yuesheng.
– É verdade. E chame-me Du, por favor. E olhemos um para o outro. Somos ambos pessoas de comércio. E é por isso que queria falar consigo. Como deve saber, tive de sair de Xangai. É impossível negociar com os japoneses. Eles só conhecem as suas leis. Até agora eu negociava com os ingleses, com os franceses, com os alemães. O senhor LeFranc, que está aqui connosco, pode confirmar isso. E, por isso, decidi abrir novos mercados para os meus produtos. Macau é pequena, mas é importante. Nunca se sabe onde chegará a guerra.
– Assim é. Macau parece frágil, mas é forte. Talvez venha a ser mais importante do que Hong Kong nos próximos anos. Até porque Xangai poderá ficar nas mãos dos japoneses durante anos.
– Esperemos que poucos, sir.

Du recostou-se melhor na cadeira. Ezequiel olhou para ele com atenção. Tinha um ar frágil, mas Ezequiel sabia que isso era uma ilusão. Fora o mais poderoso gangster de Xangai. A sua palavra era lei, nas diferentes concessões estrangeiras. Traficava com tudo. O que Marina Kaplan lhe tinha contado, que era uma ínfima parte do que sabia, era um relato arrepiante do que ele fazia para manter o poder. Não havia limites para a forma como o exercia. Pesavam-lhe na consciência centenas ou milhares de mortos, muitos deles ligados à luta subterrânea contra os comunistas de Xangai, em nome dos ideais de Chiang Kai-shek. Ezequiel não queria fazer juízos de valor sobre isso. Era um homem de negócios, apesar de ter as suas opiniões sobre o assunto. Escutou novamente a voz de Du:

– A minha proposta é simples. Gostaria de ter um homem honesto a gerir, aqui em Macau, as minhas exportações de uísque e cognac para a Ásia. Não sei o que se irá passar em Hong Kong, para onde vou a seguir. Por isso este é um bom porto de abrigo para todas essas actividades. E, depois, há um negócio que muito me interessa: o do arroz. Em tempos de guerra é preciso alimentar os povos. Os preços sobem. Quem dominar o comércio do arroz pode ficar rico. Que me diz?
– Deixa-me sem palavras, senhor Yuesheng, ou melhor, Du. Mas parece-me uma boa proposta. Dê-me um dia ou dois para reflectir sobre ela.

Du fez um sorriso amigável.

– Tem esse tempo. Preciso é de uma resposta rápida. Porque não sei quanto mais tempo ficarei aqui em Macau. Sabe como é. Nada é eterno e, pelo contrário, tudo o que nos rodeia é frágil e perecível. Nunca imaginei que, um dia, poderia ver arder Xangai. Tal como também desapareceram muitas coisas e pessoas que eu acreditava que durariam para sempre.

Há muito que tinham deixado de escutar a ópera de Wagner. Agora só restava o silêncio. Mas, nesse momento de paz, todos sabiam o que estava em causa.

 

[CONTINUAÇÃO]

 

30 Ago 2019

A casa

[dropcap]O[/dropcap] interior de uma casa não é dado por uma geometria pura do que está dentro por oposição ao que está fora. O que delimita o interior do exterior pode ser apenas a percepção da possibilidade do fora. Um quarto sem janelas deixa adivinhar corredores e outras divisões, a rua e as ruas contíguas. Mas são naturalmente janelas e portas que fazem a fronteira complexa entre dentro e fora, que permitem espreitar para dentro e olhar janela fora, entrar e sair, fechar e abrir, prender e soltar.

Há portas e portões que nos estão interditos ou podem estar abertos. Abrimos ou não a porta da nossa casa. Mas portas e janelas têm dimensões multifacetadas, como os portais virtuais do tempo passado e do tempo fantástico do sonho e da imaginação.

Neste sentido apenas se tem acesso ao “interior” da casa a partir de uma percepção da intimidade afectiva da própria casa. A casa não está apensa inserida na natureza que a acolhe: piso, andar, monte, colina, ravina, mas só existe humanamente quando ela começa a inserir-se, a enraizar-se na intimidade do humano.

Demora muito tempo a estar-se em casa, tanto quanto demora a sentirmo-nos em casa. A essência da casa é a intimidade do humano. A intimidade do humano não existe em nenhuma geometria esboçada até à data. O acesso à intimidade da casa é o acesso que o humano pode ter à sua intimidade. A intimidade da casa é de alguma maneira a intimidade do humano e não é perscrutável por quem nela não viva ou para quem se tenha já tornado outro e diferente de quem era.

Só o sonho pode como hipótese psicanalítica sintonizar e canalizar essa dimensão perdida para a memória de uma casa e das nossas vivências dela, distribuídas ao longo do tempo. “O sonho seria uma espécie de elevador que iria buscar, de forma alucinada, essa geografia perdida”. O que o sonho faz viver oniricamente como irreal não deixa de surtir efeito, accionar afectivamente o horizonte de sentido que se projecta sobre todo e qualquer conteúdo real, transformando-o, metamorfoseando-o.

O trabalho do acesso é hermenêutico. Se por defeito o quotidiano se encontra em “negação” relativamente ao estranho, inóspito, angustiante, ou melhor, se o quotidiano produz “recalcamento”, é necessário encontrar vestígios, muitas vezes avulsos e mascarados, que nos ponham na pista da dimensão profunda da existência, ou como os platónicos lhe chamam o outro mundo, ideal, mas mais verdadeiro do que mundo da realidade física.

As portas de abertura encontram-se esporadicamente e requerem não apenas atenção mas um trabalho de elaboração hermenêutica. Se o quotidiano provem de e acaba numa psicopatologia, os momentos de neutralização do pathos podem ser “vistos” no “equívoco, lapso, acto falhado”. São estas formas de descontinuidade no contínuo psicopatológico que constituem verdadeiras fissuras ou fendas, portais de entrada no que a psicanálise chama “inconsciente”, que o é tão pouco que nos acontece por sua visitação, talvez.

30 Ago 2019

Confesso-me culpado

[dropcap]N[/dropcap]a leitura de Ernesto Sábato, por causa de um prefácio a escrever, descubro: o escritor argentino não traía a paixão mais chã pelo futebol.

Eu sempre liguei menos ao futebol (por ter sido um praticante medíocre?) e neste fim de semana esqueci-me de ver o Benfica-Porto.

Todavia, o meu desafecto prende-se mais com o que Hans Ulrich Gumbrecht explica:

«Existem dois modelos básicos de comportamento, no tempo de lazer, na sociedade burguesa, um reconhecido como “exigente” e outro como “trivial”, e esta dicotomia valorativa é acompanhada por uma outra diferenciação que, pelo menos desde o período moderno inicial, pode ser observada entre os jogos que enfatizam o corpo e os jogos que enfatizam a mente, entre o desporto e a literatura.»

Ou seja, padeço (padeci?) de snobeira quanto ao desporto. Não tenho dúvidas.

O Gumbrecht elucida nuns ensaios notáveis porque se deu a transferência da valorização pública duma orbe intelectual para a desportista; as “estéticas da presença”, performáticas, apagam mais facilmente o fosso entre o artista e o público/observador e geram uma atmosfera simbiótica, seja no desporto como na música pop/rock; os quais se usam de velhos mecanismos, como a “identificação”.
No filme Bohemian Rhapsody, sobre o cantor Freddie Mercury, há um momento que ilustra bem este ponto.

Após a morte do cantor, Bryan May, o guitarrista, conta como nasceu uma canção emblemática da banda, Radio Gaga: para intensificar essa interação com o público em que o Freddie era mestre, lembrou-se de fazer uma canção que levasse o público a co-participar na textura do refrão através das palmas. Claro, foi um êxito.

Vi também um concerto de uma cantora brasileira (não me lembro qual) no qual, aos primeiros acordes de um seu sucesso, o público desatou a cantar tão maciçamente que a artista, comovida, do princípio ao fim, limitou-se a direcionar o microfone para o público, no fito de ampliar a comunhão.

Existe apenas o transe da música, já não existe de um lado o autor/intérprete e o receptor de outro; a amplificação fez sobressair o sentimento de pertença.

No futebol é o mesmo. No Iniesta, no Messi e no Luis Suarez “projecta-se” a jogada que os fãs desejam. O futebolista? Um mero heterónimo do fã.

A paixão do fã é a de quem foi tomado pelo fanatismo próprio ao entusiasmo que, para Platão, era o abono de vida do poeta (- entretanto, desviado para as malhas da racionalidade mais ilhada), e é essa exaltação que encadeia aquele transe colectivo.

Alguma arte e literatura, da ala mais erudita, ficaram arredadas desta qualidade. Desde que deixei de juntar cromos de futebolistas que, progressivamente, se me tornou tudo demasiado cerebral, distanciado, mediado pelo discursivo. Fareja-se, o entusiasmo em T.S. Eliot, na Arte Conceptual, no filósofo Heidegger? Só solenidade, discurso e disforias.

Ficou pior, agorinha mesmo: por causa do Sabato descobri o livro de Evgen Bacvar, Le Voyeur Absolu o magnífico fotógrafo esloveno que é cego desde os 12 anos de idade. Sheet, ia começar esta tarde no ginásio os meus treinos de boxe e, está visto, vou faltar para ler as letrinhas que o esloveno nunca leu e apreciar-lhe as fotos que imaginou mas nunca viu.

Já nos anos cinquenta George Bataille acusava a civilização, não apenas de ter deixado insatisfeitas as necessidades corporais da humanidade, mas, através da permanência de tal frustração, de as ter reprimido – ao nível coletivo. E a hipóstase da corporalidade – através da suposta exclusão do intelecto – sempre enervou muito os intelectuais. Falo por mim, que nunca acreditei muito no mito da espada do Afonso Henriques, do bem que faria aos peitorais erguê-la.

Enuncia Gumbrecht: «(…) coloquemos a questão: quem lê literatura contemporânea e o que é que os seus (já poucos) leitores – tipicamente – fazem com os seus corpos? (…) Enquanto experiências subjetivas “autênticas” do corpo, os intelectuais de hoje apegam-se àquelas experiências do corpo que “vão ao limite”, àquelas nos quais a própria experiência do corpo se torna uma “expansão da consciência”. Talvez esta obsessão em “experimentar os limites” seja um indicador de quão difícil (impossível) se tornou para eles habitarem os seus próprios corpos.»

É pertinente a questão, desdenhámos a inteligência colectiva que se manifesta no fluxo e na materialidade do jogo desportivo e que além de ser hoje o fermento da sociedade de massas estabelece uma nova relação entre o corpo, a sua discursividade e aproveitamento. Embora continue a parecer-me tão bizarro e intratável – roça o irrelevante – que se gaste dois anos de vida num treino intensíssimo e orientado para a meta de baixar um segundo a um recorde de quatrocentos metros livres, como passar dois anos a querer justificar a bisonhice de Heidegger em relação à comédia: duas ilusões razoavelmente infecundas, apesar dos pergaminhos que tais exercícios concedam.

Contudo, como, de uma forma até insuspeita, tudo se relaciona, podemos ler na organização tácita de uma equipa de futebol o equivalente das geometrias secretas que delineiam a composição de um quadro, na pintura.

Qual é o problema de José Mourinho? Foi perdendo a alegria do jogo e, perdido o entusiasmo, reduziu a leitura do jogo ao cálculo das probabilidades (supostamente científico), apostando agora excessivamente nas jogadas com contorno e nas estruturas tácticas, o que inibe severamente a improvisação nas equipas: tornou-se “um treinador figurativo”, de feição hierática, como o pintor Georges Rouault. Guardiola pelo contrário, deixa que cada jogo conte a sua própria história, apesar de ou contra as estruturas que monta: é um “treinador abstracto”, da ala Kandinsky.

Pelo menos é a divagação que me chega, hoje, neste remorso de ter dado banhada, como espectador, ao “meu” Benfica. Sinto-me culpado pela derrota, ou sinto-me derrotado pelo pensamento mágico: sinto que a minha falta de comparência é que quebrou o elã, levando a que aquele indescritível algo que, para além da técnica, pode catapultar a vitória não se tivesse dado. Ora, porra!

29 Ago 2019

Flores de Paris

[dropcap]N[/dropcap]unca peço este bolo. Há uma amiga que o escolhe sempre mas hoje, como ela não está aqui…” Completo-lhe a frase enquanto serve o seu chá. Pequenos, delicados, estranhos rituais estes, que passamos a ter na ausência de alguém para trazê-lo/a mais para perto de nós. Conversamos sobre as idas à piscina, o desamor, o negócio dos livros, doenças e solidão. Mais tarde falaremos sobre o cansaço das viagens e tudo o que pode correr mal em festivais literários. Dir-me-á para não pensar tanto em coisas que, assegura, fiz bem em deixar.

Passaram alguns anos desde que me enviou essa foto que nunca esqueci: flores de Paris, de entre as quais sobressaem verónicas, dálias e hortênsias. Noutra altura, uma tarte de maçã ladeada de hortelã e manjericão a emoldurar a singeleza. Não costumo ir muitas vezes à Versailles, o que é pena, porque a sopa de cebola, o pastel de bacalhau, os bolos, e até mesmo a formalidade, são bastante prazerosos. Não fazer muitas vezes algo que nos dá gosto ajuda a preservá-lo como deveríamos. Há uma mini Versailles no hospital onde fui operada a primeira vez e há uma Versailles umas ruas abaixo de onde vivo agora. Mas na original sentei-me com a minha amiga Ana a falar da sua mãe e de bandas desenhadas. De como o pai queria aprender a cozinhar para a mulher, que era professora e cantava fado. Eu não chegaria a conhecê-la, mas naquela tarde senti que sim. Foi ali que estreitámos laços, comovidas que estávamos. Por isso, não sei como poderia ter-me encontrado com mais esta amiga noutro sítio, independentemente do jeito que desse. Há algumas coisas que notamos sempre na primeira vez: quando nos chamam pelo diminutivo, quando alguém de quem gostamos nos diz que somos bonitas (mesmo se agora já o sabemos), quando uma amiga se nos refere como tal, em voz alta, a outra pessoa.

«Como é que eu podia explicar à mamã que o problema não era ela, mas a deformação que o tempo sofria na casa dela? Eu entrava na casa da mamã e o tempo tornava-se um mecanismo tosco, como se alguém o esculpisse em fisga, eu à mercê dessa fisga, eu munição contra mim mesma, a ser puxada para trás no tempo e depois atirada, desprotegida contra o presente, onde via todos os meus erros e fracassos. A casa da mamã guardava tudo o que eu não quis ser, e que ironicamente acabei por ser.» Troco mensagens com uma amiga que me diz: “Cliffhanger maravilhoso na Eliete”. Rio-me.

Pergunto, citando o livro: “Não vais apagar agora, pois não, Carlota?” Responde com um “Somos todos Eliete”. Somos, mas só a Dulce pode ser a Dulce. Daí a uns dias, vamos a uma conversa na Tigre de Papel e rimos como umas perdidas enquanto trocamos bilhetinhos secretos, ela com uma carraspana de meter dó, anunciando uma morte para breve antes de abandonar a sala mais cedo.

«Vou ter de comprar um medidor de tensão arterial destes, e o coração ficou esquecido nos rascunhos.» A capa do livro funde-se com o meu velho edredão laranja. É bom saber que há mais de onde vieram estes livros, estas mulheres. Há muito de Portugal, daquela coisa mesmo deliciosa e terrivelmente portuguesinha em Eliete. Na Dulce há uma gentileza que me encanta sempre. Nunca usei tanto a expressão temos de parar de encontrar-nos desta forma com alguém como com ela.

Porque a encontrei quase sempre por acaso, em transportes públicos ou restaurantes de fast food. Não é todos os dias que temos um ataque de riso com alguém que nos faz sentir tanto com a sua escrita. A primeira vez que a vi, ainda não a conhecia, foi num evento com laivos de chique, trazia um vestido preto e havaianas. Sempre a rir, sem querer saber. Há uns anos, a um sábado de manhã, quando entrou e se sentou à minha frente no metro, mochila e casaco floridos, pareceu-me que era ela, a cabeleira loira inconfundível, mas achei que devia controlar-me. Os meus auscultadores só estavam a funcionar de um lado. Sorte a minha.

Ele – Lembras-te do Professor Pardal? Também andava sempre com uma lâmpada.
Ela – Lembro. Mas ele era magrinho. Terias de fazer uma dieta. (Risos)
Eu – Riso silencioso, a tentar ser discreta, mas sem conseguir, à medida que ela se ia metendo mais e mais com ele, um beicinho a nascer-lhe.
Ele – A música deve estar boa. (Para mim)
Ela – Ahaha
Eu – Peço desculpa. (Sem conseguir conter o riso mas a tentar, a limpar as lágrimas e a encolher os ombros)
Ele – Deve ser um podcast. (Já a corar)
Ela – Eu também tenho disso (Para mim, ambas a rir sem parar). Podia ser a tua imagem de marca, podias ir a todo o lado com uma lâmpada. (Para ele)

Como explicar uma amizade que começa antes de que se possa saber o mínimo não-tão-indispensável sobre alguém? Ou será assim que surgem algumas das amizades mais ternas? Não saber quase nada sobre alguém, nem precisar, é o derradeiro guilty pleasure das relações modernas.

Ou melhor, saber só o que importa. Levar o seu tempo, e fazê-lo olhos nos olhos. Coisas para as quais não há pressa, flores que continuam a crescer ininterruptamente, para lá dos seus vasos fotografados, num país onde nunca estive.

29 Ago 2019

E se a Gronelândia fosse um travesti?

[dropcap]H[/dropcap]á alguns dias, andei à procura de ilações absurdas para iniciar uma crónica. Precisava desse condimento. Já veremos por que razão. O percurso seria elementar: bastava passar por notícias vindas da Arábia ou do Irão, ou entrar em algumas universidades como a de Quilmes, em Buenos Aires, cujas pesquisas científicas são sempre interessantes, nomeadamente a que provou que os hamsters recuperam melhor das mudanças de fusos horários, quando estão sob o efeito de viagra.

Mas como os humanos são seres azougados, bastou esperar umas horas para que um dos títeres do nosso tempo me proporcionasse ilações absurdas: depois de se comemorarem 152 anos sobre a compra do Alaska ao Canadá (já nem falo dos conhecidos episódios na fronteira sul pela mesma época), eis que o PR dos EUA se propôs comprar a Gronelândia à Dinamarca, um território correspondente a 26 vezes a superfície de Portugal. Um simples negócio imobiliário.

Moral da história: procurar ilações absurdas no nosso tempo é um acto absurdo. Kierkegaard e Camus, cada um a seu jeito, já se tinha encarregado do assunto e a primeira-ministra Mette Frederiksen, em Copenhaga, leitora do primeiro dos autores por razões óbvias, voltou agora a sublinhá-lo com aqueles seus olhos de iceberg verde vago. Há seis anos, já outra PM dinamarquesa, Helle Schmidt, tinha caído no goto de Obama, durante as exéquias de Mandela. As primeiras-ministras dinamarquesas e os EUA parecem, pois, para o pior e para o melhor, manter uma relação estilo Deucalião e Pirra.

Mas o assunto que me trazia para os corredores desta crónica era literário e elevado, podia lá ser outro, e prendia-se com o conto de Truman Capote ‘Uma candeia numa janela’ que pode ser assim resumido: um homem perde-se na floresta e descobre uma casa onde é bem recebido. A anfitriã é uma senhora de idade, viúva, que vive com vários gatos. O homem passa aí a noite e no outro dia descobre que o amor pelos gatos de Mrs. Kelly estava recheado de dotes faraónicos. Ao abrir a arca frigorífica, uma vasta colecção de gatos congelados comprova-o. E a dona da casa confessa a sua perdição: “Todos os meus velhos amigos. No eterno repouso. É que eu não suportava a ideia de os perder”.

O conto tocou-me, porque faço parte daquela franja da humanidade que tem um enorme fraquinho pelos gatos. Mas não sou maluco ao ponto de ir votar no PAN, pois é mais importante voltar a normalizar o Serviço Nacional de Saúde do que criar um paralelo destinado aos mais belos felinos da galáxia.

Voltando ao tema, devo referir que, por razões profissionais, procurei na rede críticas a este conto de Capote e ao livro onde ele surge publicado, ‘Música para Camaleões’. E foi então que, por acaso, encontrei um artigo científico que deixa as pesquisas da Universidade de Quilmes a um canto. Insere-se no naipe de investigações que, hoje em dia, fazem vida nos chamados ‘Estudos de Género’. O texto é da autoria de Michael P. Bibler e deixo-o aqui sem mais comentários (a tradução é minha, deixo o original em inglês em rodapé):

“Embora a história nos prepare para o facto de os gatos congelados serem símbolos ou substitutos do seu falecido marido, torna-se claro que ela ama os seus gatos literalmente enquanto gatos e nada mais. Capote leva-nos a compreender e a aceitar este amor pelos seus gatos como uma coisa em si mesma. E ao fazê-lo, ele convida-nos a imaginar um mundo mais hospitaleiro capaz de se ajustar a outras opções para além dos limites do casamento heterossexual, incluindo, ainda que sem se limitar a tal, a sua homossexualidade.”

Depois de ler esta preciosidade, pergunto-me se valerá a pena sequer comentá-la. Entre comprar a Gronelândia e a ideia de que os gatos congelados significam uma sexualidade de várias entradas, o que sobrará?

Sobrará talvez uma breve narrativa de teor oral que me foi contada por um amigo pintor que, por coincidência, é um apaixonado pela prosa de Truman Capote, pelos romances de Camus e pela filosofia de Kierkegaard:

‘O marido queria praticar sexo anal com a mulher, mas não sabia como pôr em prática um projecto de tal complexidade. Lembrou-se de comprar um busto de Napoleão. Colocou-o em frente à cama, ao lado da televisão. Na noite seguinte, a mulher perguntou – “O que faz ali aquele busto?” – e o marido, virando-se para ela, replicou – “qual busto, qual quê, o que tu queres sei eu”. E lá avançou como pôde, coitado’.

Esta breve narrativa, que em certos meios científicos é classificada como anedota, tem uma carga suplementar de vernáculo (diz literalmente “ir ao cu”), o que lhe confere um certo fundo antropológico. Se se convidasse o senhor Michael P. Bibler a interpretar este excurso no auditório da Gulbenkian, o que diria ele?

Diria que o marido, ao focar-se no peito de Napoleão (era essa a inexorável proeminência do busto), estaria a convidar-nos a imaginar um mundo mais hospitaleiro e capaz de se ajustar a outras posições e opções para além dos limites do sexo oral, competência em princípio partilhável nos mundos hetero e homossexual.

Acrescentaria ainda em jeito de conclusão: como os humanos não conhecem o género a que pertencem e precisam de aulas para o descobrir (por causa do dilúvio, Deucalião e Pirra ainda estão na lista de espera), se se tratasse do busto de Trump, tornar-se-ia necessário descongelar os gatos de Mrs. Kelly e a Gronelândia inteira e, depois de tudo derretido, tal como aconteceu com os hamsters de Quilmes, logo se veria para que fuso pendiam as coisas. Só então se podia, com propriedade, falar em negócio imobiliário.


Capote, Truman, Música para Camaleões, trad. paulo Faria, Livros do Brasil, Porto, 2015 pp.35-38 [Em linha]. (S/D.) https://static.fnac-static.com/multimedia/PT/pdf/9789723829044.pdf [Consult. 3 Ago. 2019].

“Although the story prepares us to expect that the frozen cats could be symbols or surrogates for her dead husband, it becomes clear that she loves her cats literally as cats and nothing more. Capote pushes us to acknowledge and accept this love for her cats just as it is. And by doing so, he invites us to imagine a more hospitable world in which we accommodate other kinds of object-choice beyond the confines of heterosexual marriage, including but certainly not limited to his own homosexuality.”. In Michael P. Bibler,  Capotes´s Frozen Cats – Sexuality, Hospitality, Civil Rights, Journal Angelaki, Journal of theoretical humanities. [Em linha]. (Volume 23, 2018 – Issue 1 / Queer Objects. Issue Editors: Guy Davidson and Monique Rooney) https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/0969725X.2018.1435387?journalCode=cang20 [Consult. 3 Ago. 2019].

29 Ago 2019

A Vulgaridade da Morte na Morte de Herbert Marcuse

[dropcap]C[/dropcap]onheci Marcuse em Junho de 1967 quando ele veio a Berlim para uma curta estadia. Do aeroporto de Tempelhof dirigiu-se de pronto para o edifício da ópera onde, algumas semanas antes, um estudante tinha sido assassinado por um polícia à paisana durante as manifestações contra o Xá do Irão.

Na noite da sua chegada, encontrou-se com um pequeno grupo de pessoas no seu hotel, em Dhalem, para longas discussões. Hans Magnus Enzensberger, Rudi Dutschke e Henri Lefevbre já lá estavam quando entrei na sala. A primeira coisa que ouvi Marcuse dizer foi, “O nosso dilema é que as pessoas que beneficiariam das mudanças que desejamos levar a cabo não desejam essas mudanças em si mesmas.” Não era exactamente isso que queríamos ouvir naquele momento.

Muito depois, disse-me que ter encontrado todos aqueles estudantes alemães, decididos antifascistas, em protesto, significou, para si, uma espécie de reconciliação com a Alemanha.
Meio ano passado sobre aquela noite, encontrámo-nos na mesma universidade da Califórnia. O gabinete de Marcuse ficava dois andares acima do meu, pelo que nos vimos quase diariamente ao longo de mais de doze anos. Ele não tinha “tabus” de Esquerda; por exemplo, condenou o ataque dos Estados Unidos ao Vietname tanto quanto criticou o ataque chinês ao Vietname, e recusou um convite para ir à China com o comentário: “Não passarei por uma porta que tenha sido aberta por Kissinger!”

Quase todos os escritores e filósofos que conheci desenvolveram, no decurso das suas vidas, um hábil sistema de defesas, a fim de protegerem o seu trabalho das indignidades que se repetiam à sua volta. Não Marcuse. O que o caracterizava era uma constante vulnerabilidade, o seu choque, mesmo quando cara a cara com o esperado, e uma quotidiana, dolorosa consciência do contexto em que trabalhava. A frase que possivelmente o ouvi dizer mais vezes foi “Temos de fazer algo sobre isso imediatamente!” Era demasiado sensível aos horrores diários para se proteger do envolvimento neles. Pode dizer-se que o seu trabalho, a sua escrita, teve que ser feito, e defendido, nos breves intervalos de tempo entre cada novo ultraje.

Quando criança, sempre achei que um filósofo era alguém continuamente espantado com tudo, que levava tudo a sério. Marcuse preencheu essa minha noção de infância com a sua atenção não apenas às ideias, mas a tudo o que pudesse ser apreendido sensitivamente: um hipopótamo, uma alface, ou uma colher de chá da casa de seus pais. Estas eram três coisas que ele adorava; ao passo que veículos de recreio, rádios portáteis e motas eram três que ele odiava e queria abolir depois da revolução. Também odiava viajar, porque significava despedida.

Admirava o respeito dele pelos objectos. Ele desculpou a ordem militar na minha cozinha com uma citação de Virgílio, dizendo que “as coisas também têm lágrimas”; e o direito ao seu próprio espaço onde se sentem confortáveis.

Ele odiava a morte com uma intensidade que me surpreendia, até que finalmente entendi que só um ódio tão tremendo poderia sondar a vulgaridade, a gratuitidade da morte. Em Dezembro de 1972, convidei-o e à sua esposa Inge (com quem também muito aprendi) para jantar. Ele ligou-me na noite anterior para dizer que ela tinha uma dor de estômago e não podia vir. Por altura do Natal, na Alemanha, recebi uma carta registada. Marcuse comunicou-me que Inge estava a morrer de cancro e não teria mais que oito meses de vida. Concluiu a sua carta com as seguintes palavras: “‘L’amour est plus fort que la mort’ – que repugnante, desprezível aldrabice!”

Nos últimos doze meses da sua vida, Marcuse estudou minuciosamente A Alternativa de Rudolf Bahro e redigiu uma profunda análise da mesma. Mas as consequências da resposta pública ao “Holocausto” e, relacionada com isto, a célebre questão sobre a possibilidade da “poesia depois de Auschwitz”, ocuparam-no mais, chegando ao ponto de considerar uma revisão da sua estética anterior. Procurou material, instigou debates, correspondeu-se intensamente acerca destas preocupações. Teve grande relutância face a uma literatura que, retratando a violência, foi uma “privatização de Auschwitz”; e também se inquietou com a nova tendência romântica na Europa, na qual não há mais a lembrança do horror.

Os seus escritores contemporâneos favoritos eram Peter Weiss e Samuel Beckett, e ele sentiu-se honrado quando este último lhe dedicou um poema no ano passado, por ocasião do seu octogésimo aniversário. Perguntou-me uma dúzia de vezes se eu achava apropriado que ele escrevesse uma nota de agradecimento a Beckett. Encorajei-o, dizendo que não concebia que um escritor se ofendesse com o facto de Marcuse ter gostado de algo que ele tivesse escrito. Acabou por lhe escrever.

Nunca, durante o tempo em que o conheci, foi ele tão incapaz de esconder a sua emoção como durante o nosso último almoço em La Jolla. Parou de comer e disse-me que Beckett, certa vez, fora desafiado por um crítico para explicar a estrutura da sua escrita. “Eu posso explicar-lhe a estrutura da minha escrita”, respondeu Beckett. “Uma vez estive num hospital e, no quarto ao lado, uma mulher, que estava a morrer de cancro, gritou a noite toda. Este grito é a estrutura da minha escrita!”

 

tradução de:
The Vulgarity of Death. On Herbert Marcuse’s Death
City Lights Review, n.º 1, 1987, San Francisco, pp. 54-55
ed. Lawrence Ferlinghetti e Nancy J. Peters

primeira versão do texto de Reinhard Lettau:
Herbert Marcuse and the Vulgarity of Death
New German Critique, n.º 18, Outono de 1979, pp. 19-20

28 Ago 2019