Antes asno que me carregue

[dropcap]O[/dropcap] início da vida musical de qualquer músico, que quase sempre se confunde com o início da consciência de si mesmo, é marcado pela tentativa de ser outro que não ele. Todo o jovem músico imita os seus ídolos e, mais do que ser como o seu ídolo, quer ser ele.

Acontece com todos os géneros musicais, sem excepção. Jorginho tinha sido um tremendo guitarrista rock, na sua juventude. Entre os 14 e 18 anos arrasou Curitiba com os seus solos e com as suas bandas “cover”. Desde o início que imitava na perfeição Eddie Van Halen, arrastando legiões de garotos aos seus shows, que estavam sempre cheios. Chegado à idade adulta, Jorginho começou a dedicar-se ao jazz, deixando o rock de lado. Mas cedo percebeu que era muito difícil viver de tocar jazz no Brasil e teve de começar a dar aulas, maioritariamente a garotos que queriam tocar rock. Com vinte e três anos, depois de várias tentativas de viver do jazz, percebeu claramente que no Brasil não podia dedicar-se a esse estilo musical a tempo inteiro. E, em relação ao rock, também só podia continuar profissionalmente se fizesse parte de uma banda “cover” ou “tribute”. O normal é passarmos do outro a nós mesmos, como músicos, deixarmos de imitar aqueles que nos ajudaram na aprendizagem. Mas não foi o que se passou com Jorginho. Depois de um período de juventude em que imitava os outros e de um período do início da idade adulta em que aprendeu a linguagem do jazz e começou a ter a sua própria “voz”, a ser ele mesmo musicalmente, Jorginho voltou atrás e ingressou numa banda que iria fazer com que passasse novamente a imitar os outros: ingressou na “Hot For Teacher – Van Halen Tribute”. O nome dava aos fãs da banda Van Halen um claro aviso de que tocava apenas os temas da primeira fase, com David Lee Roth na vocalização. Quando foi às audições, Jorginho arrasou. Muitos diziam que fechavam os olhos e era como se o próprio Eddie Van Halen estivesse ali a tocar. O problema é que não bastava tocar como Eddie, era preciso parecer-se fisicamente com ele, vestir-se e mover-se em palco como ele. A aparência não era um problema, nem o vestuário, embora implicasse ter de usar cabeleira, assim como todos os outros elementos da banda. O maior problema era os movimentos que tinha de imitar. Jorginho quase não se mexia, contrariamente a Eddie, que saltava, corria e atirava-se para o chão, enquanto tocava, embora nos pequenos palcos onde a Hot For The Teacher ia tocar não houvesse o risco de ter de correr. Jorginho percebeu que o que estava ali em causa não era apenas tocar a música na perfeição, mas ser uma “autêntica” imitação do outro. Passou mais horas a ver Eddie em palco, a estudar os seus movimentos, os gestos, do que a praticar as músicas, que ainda sabia de cor. Os shows foram aparecendo. Não só no estado do Paraná, mas por quase todo o Brasil. A primeiras cidades fora do estado foram Florianópolis e Porto Alegre, mas rapidamente se estenderam a Belo Horizonte e São Paulo. Os Hot For The Teacher corriam o país como se de uma banda de originais se tratasse. Passado um ano, com a divulgação e o sucesso que tiveram logo desde o início, principalmente por causa de Jorginho e do vocalista, que também imitava autenticamente David Lee Roth – e são esses que os fãs que não são músicos ou aprendizes mais reparam – chegavam a ter quatro e cinco shows por semana, o que fazia com que todos eles passassem a viver uma vida que não era a deles. Durante o dia, já nem despiam as roupas que usavam no palco. Viviam como se fossem não a Hot For The Teacher, mas a própria banda Van Halen. Chegaram mesmo aos canais de televisão, onde actuavam e davam entrevistas.

Numa dessas entrevistas, Jorginho dizia que este fenómeno só era possível porque no Brasil se valorizava muito o Rock, que nunca era visto como algo do passado, mas sempre presente. Referia-se evidentemente às cidades grandes do sul e centro do país. No fundo, disse, “o que fazemos não é muito diferente do que fazem os músicos de jazz e de música clássica ao tocarem e gravarem composições passadas; toda a música, seja qual for o estilo, também vive de reinterpretações”.

Na verdade, Jorginho sabia que não se tratava de reinterpretações, mas de cópia. E, para quem não era fã dos Van Halen, estas imitações autênticas eram uma aberração. Se a vida de um rocker de modo geral é uma vida fora da realidade, a vida destas imitações era duas vezes fora da realidade. Não estavam só fora da realidade, cada um deles estava fora de si mesmo. Eles não eram aqueles que eram os outros, mas aqueles que eram a imitação dos outros. Jorginho, que queria ser músico de jazz, sabia bem disso, apesar das entrevistas que dava, dourando a pílula. E quando num dos programas de televisão alguém lhe perguntou porque fazia aquela figura ridícula, a imitar uma outra pessoa – referindo-se ao modo de vestir, à cabeleira e ao comportamento em palco – respondeu em modo de provocação: “é melhor do que ser caixa de supermercado ou ralar num Mcdonald’s”.

E provavelmente estava certíssimo. Talvez seja preferível ter uma doce vida de imitação do que o inferno de uma autêntica. Aqui, qualquer português se vai lembrar da “Farsa de Inês Pereira”, de Gil Vicente: “Antes asno que me carregue do que cavalo que me derrube.” Ao que parece, antes de se tocar tem de se comer.

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