Confesso-me culpado

[dropcap]N[/dropcap]a leitura de Ernesto Sábato, por causa de um prefácio a escrever, descubro: o escritor argentino não traía a paixão mais chã pelo futebol.

Eu sempre liguei menos ao futebol (por ter sido um praticante medíocre?) e neste fim de semana esqueci-me de ver o Benfica-Porto.

Todavia, o meu desafecto prende-se mais com o que Hans Ulrich Gumbrecht explica:

«Existem dois modelos básicos de comportamento, no tempo de lazer, na sociedade burguesa, um reconhecido como “exigente” e outro como “trivial”, e esta dicotomia valorativa é acompanhada por uma outra diferenciação que, pelo menos desde o período moderno inicial, pode ser observada entre os jogos que enfatizam o corpo e os jogos que enfatizam a mente, entre o desporto e a literatura.»

Ou seja, padeço (padeci?) de snobeira quanto ao desporto. Não tenho dúvidas.

O Gumbrecht elucida nuns ensaios notáveis porque se deu a transferência da valorização pública duma orbe intelectual para a desportista; as “estéticas da presença”, performáticas, apagam mais facilmente o fosso entre o artista e o público/observador e geram uma atmosfera simbiótica, seja no desporto como na música pop/rock; os quais se usam de velhos mecanismos, como a “identificação”.
No filme Bohemian Rhapsody, sobre o cantor Freddie Mercury, há um momento que ilustra bem este ponto.

Após a morte do cantor, Bryan May, o guitarrista, conta como nasceu uma canção emblemática da banda, Radio Gaga: para intensificar essa interação com o público em que o Freddie era mestre, lembrou-se de fazer uma canção que levasse o público a co-participar na textura do refrão através das palmas. Claro, foi um êxito.

Vi também um concerto de uma cantora brasileira (não me lembro qual) no qual, aos primeiros acordes de um seu sucesso, o público desatou a cantar tão maciçamente que a artista, comovida, do princípio ao fim, limitou-se a direcionar o microfone para o público, no fito de ampliar a comunhão.

Existe apenas o transe da música, já não existe de um lado o autor/intérprete e o receptor de outro; a amplificação fez sobressair o sentimento de pertença.

No futebol é o mesmo. No Iniesta, no Messi e no Luis Suarez “projecta-se” a jogada que os fãs desejam. O futebolista? Um mero heterónimo do fã.

A paixão do fã é a de quem foi tomado pelo fanatismo próprio ao entusiasmo que, para Platão, era o abono de vida do poeta (- entretanto, desviado para as malhas da racionalidade mais ilhada), e é essa exaltação que encadeia aquele transe colectivo.

Alguma arte e literatura, da ala mais erudita, ficaram arredadas desta qualidade. Desde que deixei de juntar cromos de futebolistas que, progressivamente, se me tornou tudo demasiado cerebral, distanciado, mediado pelo discursivo. Fareja-se, o entusiasmo em T.S. Eliot, na Arte Conceptual, no filósofo Heidegger? Só solenidade, discurso e disforias.

Ficou pior, agorinha mesmo: por causa do Sabato descobri o livro de Evgen Bacvar, Le Voyeur Absolu o magnífico fotógrafo esloveno que é cego desde os 12 anos de idade. Sheet, ia começar esta tarde no ginásio os meus treinos de boxe e, está visto, vou faltar para ler as letrinhas que o esloveno nunca leu e apreciar-lhe as fotos que imaginou mas nunca viu.

Já nos anos cinquenta George Bataille acusava a civilização, não apenas de ter deixado insatisfeitas as necessidades corporais da humanidade, mas, através da permanência de tal frustração, de as ter reprimido – ao nível coletivo. E a hipóstase da corporalidade – através da suposta exclusão do intelecto – sempre enervou muito os intelectuais. Falo por mim, que nunca acreditei muito no mito da espada do Afonso Henriques, do bem que faria aos peitorais erguê-la.

Enuncia Gumbrecht: «(…) coloquemos a questão: quem lê literatura contemporânea e o que é que os seus (já poucos) leitores – tipicamente – fazem com os seus corpos? (…) Enquanto experiências subjetivas “autênticas” do corpo, os intelectuais de hoje apegam-se àquelas experiências do corpo que “vão ao limite”, àquelas nos quais a própria experiência do corpo se torna uma “expansão da consciência”. Talvez esta obsessão em “experimentar os limites” seja um indicador de quão difícil (impossível) se tornou para eles habitarem os seus próprios corpos.»

É pertinente a questão, desdenhámos a inteligência colectiva que se manifesta no fluxo e na materialidade do jogo desportivo e que além de ser hoje o fermento da sociedade de massas estabelece uma nova relação entre o corpo, a sua discursividade e aproveitamento. Embora continue a parecer-me tão bizarro e intratável – roça o irrelevante – que se gaste dois anos de vida num treino intensíssimo e orientado para a meta de baixar um segundo a um recorde de quatrocentos metros livres, como passar dois anos a querer justificar a bisonhice de Heidegger em relação à comédia: duas ilusões razoavelmente infecundas, apesar dos pergaminhos que tais exercícios concedam.

Contudo, como, de uma forma até insuspeita, tudo se relaciona, podemos ler na organização tácita de uma equipa de futebol o equivalente das geometrias secretas que delineiam a composição de um quadro, na pintura.

Qual é o problema de José Mourinho? Foi perdendo a alegria do jogo e, perdido o entusiasmo, reduziu a leitura do jogo ao cálculo das probabilidades (supostamente científico), apostando agora excessivamente nas jogadas com contorno e nas estruturas tácticas, o que inibe severamente a improvisação nas equipas: tornou-se “um treinador figurativo”, de feição hierática, como o pintor Georges Rouault. Guardiola pelo contrário, deixa que cada jogo conte a sua própria história, apesar de ou contra as estruturas que monta: é um “treinador abstracto”, da ala Kandinsky.

Pelo menos é a divagação que me chega, hoje, neste remorso de ter dado banhada, como espectador, ao “meu” Benfica. Sinto-me culpado pela derrota, ou sinto-me derrotado pelo pensamento mágico: sinto que a minha falta de comparência é que quebrou o elã, levando a que aquele indescritível algo que, para além da técnica, pode catapultar a vitória não se tivesse dado. Ora, porra!

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