A verdade superior

[dropcap]Q[/dropcap]uando regressei ao jornal depois de umas semanas afastado, sem dar qualquer tipo de explicação aos leitores ou aos colegas, tinha bem visível na minha secretária uma indicação para ir falar com o chefe. Já sabia o que me esperava. Começou por dizer que apreciava muito o meu trabalho, que sempre acreditara em mim e no que era capaz de provocar, tanto na ira como na exaltação do público leitor. Mas não conseguia gerir as minhas ausências, desaparecia por semanas sem dizer água vai, e isso irritava-o sobremaneira, não podia controlar o exaspero que se assolava dele, por vezes, capaz de esmurrar alguém. Logo agora que ele tentava adoptar uma filosofia ancestral de bem-estar, incentivando a arte da quietude.

Para além disso, dava erros, deixava frases incompletas, ideias difusas difíceis de compreender, uma engarrafamento com a pontuação, metia os pés pelas mãos e escrevia com as unhas ainda por cortar, como as garras de um animal faminto. E a seguir, o inevitável. O usual. Sim, já não era a primeira vez, mais cedo ou mais tarde acontecia: “Está despedido!” E eu: “Espere”, nestas alturas formais não havia a camaradagem do trato por tu, “isto é capaz de dar uma boa história”, e fui buscar um caderninho para tomar notas, na esperança de que ele dissesse algo surpreendente.

Mas não disse. Notificou-me, apenas. “Arrume as suas coisas, pode ir embora, não precisamos mais de si.” Mas ainda assim, apontei o que lhe saiu da boca, palavra por palavra, sem deixar nada de fora. “O que está para aí a escrever, não disse para se ir embora?” E quando redigi o último ponto de exclamação passei-lhe o bloco para a mão. Quando o leu, olhou para mim de relance, já com qualquer coisa a querer sair-lhe do nariz. Mas antes que isso acontecesse a curiosidade levou-o de novo para o que tinha entre as mãos, e tomou a atenção nos seus dedos que começavam a dedilhar as folhas cosidas e encadernadas entre uma capa grossa e negra.

Fez uma pausa para respirar, como se os ensinamentos que tinha vindo a aplicar o tivessem alertado de que era necessário estancar o veneno que se soltava dentro dele, levando-o à meditação e à perscrutação do seu eu a qualquer momento do dia. Indagava e seguia o âmago do seu lado primata, sem sensação exterior e só consciência. À minha frente, via-o cerrar os olhos suavemente, inspirando o ar congestionado que nos rodeava e exalando-o ainda mais devagar, refeito. Fez isto uma ou duas vezes, como se estivesse sozinho e rodeado de floresta densa, onde o pipilar de aves exóticas e o doce escorrer da chuva tropical fizessem parte do cenário. As pálpebras que caiam sem pressa e o levavam para a frondosa natureza que desabrochava dentro de si.

Já nas nuvens espessas do seu ser, recitava naquele instante o título do Sutra do Lótus em sânscrito, a língua sagrada, fazia-o de modo continuado para eliminar as energias negativas acumuladas. Seguia os ensinamentos do monge budista Nichiren, que no 28.º dia do quarto mês lunar de 1253 elaborara esse mantra, o Daimoku. Deixava entrar o místico da inimaginável profundidade da vida que transcende a compreensão humana. Idealizava a flor de lótus, a flor e a semente que germinam ao mesmo tempo. A causa e efeito em simultâneo, numa só vereda, a abreviarem-lhe o entendimento. Sem dar por mim ou pelo caderno. Ou pelo facto de me ter despedido segundos antes.

Desde que entrara nesta completude de espírito, sentia um fascínio pleno pelo conceito de Dharma, um termo que encerra toda a compreensão do universo num grão de areia. Sentia-se glorificado por tê-lo descoberto. A Lei, era assim que o considerava quando a ele se referia. O fio por onde tudo se delineava e seguia de modo ajustado. Como se todos os remoinhos do cosmos se tivessem integrado numa plena gota de água e daí irrigassem toda a criação em redor, gerando rios, mares e a essência da vida. Tanto que escutava essa harmonia e tão grato estava por ter encontrado essa verdade superior. Sentia-se elevado.

Em tudo isto, no ir e vir, consegui ainda abrir e fechar os olhos e acalmar-me também. Dando azo às sensações auditivas, não entrando dentro de mim, mas fora, encostando-me ao que poderia estar a passar-se do outro lado da parede quando pegasse nas minhas coisas e saísse dali. Para todo o sempre, estava em crer. Não que sentisse o desapego dos meus colegas ou a troça a afunilar-se. Embora não privasse muito com eles, eram cúmplices de instâncias e vontades comuns. Estávamos no mesmo comprimento de onda. Em suma, iríamos ficar tristes e, possivelmente, com saudades. Mas nada que o tempo não curasse. Não, apesar da sintonia, não existia ali grande afecto.

Naquela altura só desejava ir-me embora. Já estava com os olhos lá fora, no futuro. Na mesa que ia abandonar, no computador que me feria a vista e deixaria de me apoquentar.

O caderno estava cheio de rabiscos e ideias avulso. Pensamentos tresmalhados que me saltavam da tampa e que tinha de apontar, como fiz com o encanto daquela hora de despedida. Depois perguntou-me o que era aquilo. E eu disse-lhe: “Nada!” Sim, não era nada, eram apenas fantasmas soltos que me davam insónias e que passava para o papel durante as madrugadas. Mas era realmente mato denso e havia ali muita coisa que nem eu sabia e que nunca pegara com o intuito de ler com a atenção de um averiguador. Já não me lembrava o que lá estava, e estava agora a observar a primeira pessoa a entrar naquele pipilar de pássaros. As gotas a escorrer nas folhas densas de amazónia milenar. A torrente feita nascente. O desdito nexo. E o autoclismo do espírito a fazer-se soar. Página atrás de página.

Estancou particularmente na personagem do irmão do Governador, que tinha sido inspirada no degredo que eu era, e que de tempos a tempos ia desenvolvendo. “Que é isto?”, e leu em voz alta: “Há medos, quase certezas do desfecho. O diário completa. O irmão que lhe veste a pele e prossegue.” E eu respondi que eram ideias para um romance que queria escrever sobre o território. “Agora que vou ficar sem trabalho talvez tenha tempo para o desenvolver”, como se aquilo fosse uma frase feita que me acompanhava a vida inteira, e o tempo perdido não fosse uma constante da minha existência, e fiz tensões de me levantar para me ir embora, esticando o braço para ele me devolver o caderno e um aperto de mão. Mas ele, pelo contrário, não correspondeu aos meus ensejos. “Espera”, disse finalmente, aquilo surgia quase como uma ordem e para quem tinha acabado de ser despedido não soava nada bem. Para além disso, voltáramos a tratar-nos por tu. “Tens aqui coisas muito boas.”

Mas não queria saber, naquela altura só desejava ir-me embora. Já estava com os olhos lá fora, no futuro. Na mesa que ia abandonar, no computador que me feria a vista e deixaria de me apoquentar. Os calções de banho que já tinha por baixo, a pensar onde tinha ficado a toalha. O guarda-sol, os chinelos. O comboio a gasóleo que tinha de apanhar, que me daria muito tempo para pensar, e o encontro com o que tinha ficado à minha espera, estendido ao sol. O meu Dharma.

“Fique com ele”, disse-lhe, já estava cansado de pensar na história do Governador e aquilo não ia dar em nada, “talvez tenha sido escrito por um monge budista.” E quando deu por isso, já os meus ex-colegas estavam com um aperto no coração.

26 Set 2019

A minha noite com Ava Gardner

[dropcap]J[/dropcap]á vos contei a minha noite com a Ava Gardner? Foi na noite de fim de ano na praia da Macaneta em que arrombámos seis garrafas de champanhe, depois de cinco garrafas de vinho. Normalmente, quando bebo muito não recordo os sonhos, mas daquela vez não foi assim. E mesmo tendo dormido apenas entre as duas e trinta da manhã e as seis da manhã, mas foi o suficiente, para que acontecesse.

Actuei sob disfarce, embora ela soubesse que era eu – os algoritmos nos sonhos são transparentes como água. Peço condescendência e compreensão: a beleza de Ava Gardner galvanizou entre os deuses um desejo de antropomorfização e carregava consigo, além do temperamento de Lillith, o desbocamento de Pandora; para além disso, ela havia-me confiado sobre o Sinatra, “tinha um pinto com a solidez de uma igreja românica” (não sei porquê, as legendas dos meus sonhos são muitas vezes brasileiras) e denegrido o John Kennedy deste modo: “Nunca me deitei com ele porque era um homem ordinário e prepotente que estendia ao mundo e às mulheres o seu olhar de putanheiro” – perceberão as reticências em mostrar-lhe o meu fuste e a minha técnica de artesão.

Desde miúdo que ela me obceca. Tenho em casa uma estante onde só se arrumam os filmes que ela protagonizou, os livros sobre ela ou aqueles em que é mencionada, que, diga-se, são inúmeros, sempre a renovarem-se. A Eva – habituei-me a chamar-lhe Eva, como se eu próprio fosse um Adão putativo – ocupa-me todos os pedaços que a minha vida tem livres. É mais do que um hobby, e já me divorciei uma vez por causa disso, juro. Ela excita-me de um modo incondensável, ponto, desejo-a com a urgência que materializam as viagens num transatlântico (quem já viajou assim sabe), mas receava que depois de consumado o acto ela fosse pôr o morrão noutros cinzeiros de mármore, e jamais idêntico a mim mesmo eu me condenasse aos melancólicos abismos das Fossas Marianas, deprimindo.

Este sonho trouxe-me uma solução de compromisso. Eu entrava com ela no Hotel Santa Cruz, em Maputo, aonde normalmente se hospedam os futebolistas na visita à cidade. Num hotel de futebolistas não se colocava o risco dela encontrar toureiros.

Alugámos uma suite. Na recepção deu-se a primeira surpresa. Ao identificar-me, reparei que estendera ao recepcionista o passaporte de Liév Tolstoi. Olhei-me no espelho que se dispunha nas costas do recepcionista e confirmei: crescera dez centímetros, os meus ombros abriam-se ao mundo, majestosos, e cofiava a barba de um anarquista de resoluto brilho. Era Tolstoi. Chamar-lhe-ão cobardia, eu vejo aí uma tonicidade exaltante, a prudente identificação que Freud descortinava no mecanismo dos sonhos. O Tolstoi não precisaria de viagras, como Kadhafi, por exemplo. Um segundo depois de me ter reconhecido como Tolstoi, o carisma e o dom do mago de Guerra e Paz manavam de mim com a energia de um tsunami ou, vá lá, com o volume de uma onda gigante da Nazaré. Estava superlativado o meu desempenho naquele pleito. E Ava mostrava-se encantada pois, entredentes, Tolstoi (moi, quem mais?) prometera-lhe o desempenho de Anne Karenine num filme. No seu olhar estava dissipado o mínimo traço do demónio ambíguo que amiúde a possui e lhe dá à pele aquele verniz que envenena. Sorria em corpo inteiro, num nexo por uma vez estável.

Elipse. Enrolávamo-nos na cama, sob o dossel medieval que a suite oferecia. A cama, confesso, era a mesma em que eu passei a seco várias noites na Ilha de Moçambique – os sonhos engendram estas colagens. Mas a diva, inesperadamente inibida pela presença bruta do colosso que com ela partilhava o leito e desculpando-se com um sinal informe na coxa direita que à viva força não queria que o mestre russo contemplasse, interpusera entre os dois corpos o lençol de seda, no qual aprontara com a sua tesoura de unhas um orifício. Oferecia-se, porém com entreposto. Embora o seu desejo, maior nitidez era impossível, lhe incendiasse o olhar. Bom, há oportunidades que evocam um tempo primeiro, quando não havia oposições nem contrários, e apesar daquele intervalo de seda entre as nossas peles, a saliva enchia-me a boca. Ela ajeitava o corpo, arqueava as costas, alçando as nádegas, de modo a fazer coincidir as suas humidades com o buraco no lençol. O desejo de acertar com o buraco sugava-lhe a rata. Perdoem-me a linguagem, mas o olhar de tesão da dama pede-o. Resolvi espreitar o meu pinto, verificar quem dobraria aquele cabo, se o meu ou o de Tolstoi. Levantei uma ponta do lençol e espreitei a opulência da haste. Uau, era a do mestre russo. Que conveniente identificação se inscrevera nas metamorfoses daquele sonho. Penetrei-a com a confiança cega do pangolim.

Como foi? Olhem, Helena foi a causa da guerra de Troia, ao suscitar a lascívia de Páris que arrastou milhares de nobres varões para a morte. Pois Helena merecia isso e muito mais.

Literalmente, o que naquele caso estava errado era que o volúvel Páris tivesse ocupado o meu lugar. O mesmo diria com Salomé, Jezabel, ou Messalina, que encontraram homens muito mais débeis do que eu. Também a Cleópatra sofreu o desprestígio que lhe foi montado por séculos de misoginia, quando tudo na sua vida teria sido mais simples e diferente num sonho em que coincidíssemos na mesma estação de comboios. Mas imaginem todo este desejo, que acicatou a vivacidade de tantas máscaras, congelado por milénios, este fluxo canalizado para um único acto de fusão carnavalesco em que Tolstoi me veste a pele para eu finalmente gozar do esplendor de Ava Gardner com o meu brônzeo pénis de cavalo nipónico e compreender-se-á a sintonia em que o céu ficou comigo, assim como com os animais e as plantas, a terra, os metais, as estalactites ou as tempestades.

E chega de indiscrições.

26 Set 2019

Perlaborar os formigueiros

[dropcap]T[/dropcap]inha vinte e poucos anos quando assisti a uma conferência de António José Saraiva. Retive na ocasião a ideia de que “os humanos não são formigas” e que, portanto, se não ousarem mudar radicalmente aquilo que são (ou julgam ser) ao longo da vida, mal vai a volta.

Pelo meu lado, tenho praticado esse anti-dogma várias vezes no correr do tempo. Razão por que abandonei muitas vezes os rituais de grupo em que me vi (ou vejo ainda) envolvido.

Alguns amigos meus – a maior parte mais novos do que eu – adora fazer provas de coerência e nem creio que dêem por isso. Talvez assim seja porque vivemos em tempos adversos a esse tipo de profissões de fé. Ou então porque os seus heróis-filósofos os satisfazem e lhes emprestam certezas inabaláveis, ou ainda porque o delírio hedonista os desenha numa (quase sempre protegida) fuga para a frente.

Por estar na moda desancar nos ‘franciunzes’ – por vezes também alinho nessa ‘gouttière’ -, passo a evocar um caso de curiosa metamorfose ligado a um senhor nascido em Versailles, meses depois do meu pai: Jean-François Lyotard.

Nove anos após ter publicado A Condição Pós-Moderna (1979) – um livro que varreu muita conversa nas duas décadas seguintes -, o autor adoptou, em O Inumano, a modalidade “reescrever a modernidade” em prejuízo do chavão “pós-moderno”, de que, aliás, se tornou bastante crítico. Nesse ensaio, justificou-se com dois argumentos para a mudança: o primeiro ligado à impossibilidade de imobilizar o tempo e o segundo ligado ao facto de não existirem narrativas plenamente relatadas.

A primeira vantagem sublinhava a futilidade de qualquer periodização da história cultural em termos de “pré” e de “pós”, e de “antes” e de “depois”, pelo simples facto de não resolver a posição do agora (do presente), a partir do qual é suposto adoptar-se uma perspectiva sobre os decursos cronológicos.

Já a segunda das vantagens, baseada no conceito de Sigmund Freud “perlaboração” (durcharbeitung), colocava em evidência o facto de uma narrativa nunca poder traduzir-se na plenitude, na medida em que existe sempre algo ‘não dito’ (ou “escondido”) num acontecimento, fazendo isso parte da sua própria constituição.

A perlaboração diz-nos que no mundo tudo está sempre a ser contado e que não existe uma única narrativa integralmente consumada. É natural que a tentação de desenterrar um dos aspectos dessa narrativa para lhe tentar descortinar a ‘essência’ – se é que isso existe – e a possível completude faça parte dos desígnios (ou das fantasias, dir-se-á) dos humanos.
Lyotard dá o exemplo de Marx e de Nietzsche, o primeiro, ao ter detectado por inefável sortilégio – o juízo é meu – “o funcionamento escondido do capitalismo”, aspecto que desenlaçaria todos os demais sentidos da história; o segundo, ao ter considerado que “não existe nenhum princípio primeiro e original” (um “ground” ou uma referência de fundo) a partir do qual uma narrativa pudesse ser pensada (caso da ‘criação do mundo’ e do ‘eschatón’ para as religiões axiais, do ‘bem’ para Platão ou do “princípio da razão suficiente” para Leibniz).

A modernidade seria, portanto, nesta acepção, um espaço de ilimitadas redescobertas e não o resultado de um desencantamento.

A atitude de “rescrever” um período que se evidenciou pelas suas características próprias tornou-se, para Jean-François Lyotard, em poucos anos, numa óbvia alternativa ao conceito “pós”. E o autor foi mesmo mais longe, ao afirmar que “o pós-moderno está já compreendido no moderno pelo facto de a modernidade” (…) “comportar em si o impulso para se exceder num estado que não é o seu”. A este dado, acrescentou ainda: “(O) que realmente se oporia à modernidade seria a idade clássica. Esta comporta um estado do tempo, digamos: um estatuto de temporalidade onde o “advir” e o “partir”, o futuro e o passado são tratados como se, em conjunto, englobassem a totalidade da vida numa mesma unidade de sentido.”.

Embora Lyotard tivesse desfeito o pacto esquemático (e ultrapassado) – ‘moderno vs pós-moderno’ –, a verdade é que a sua postulação é, também ela, uma longa história que está longe de estar contada. Mas isso ficará para uma outra crónica a acompanhar com material menos dietético e cauteloso.


Jean-François Lyotard. A Condição Pós-Moderna. Lisboa: Gradiva, 1989.
Id. O Inumano: Considerações sobre o Tempo. Lisboa: Estampa, 1990.

26 Set 2019

Requiem pelo Outono

[dropcap]E[/dropcap]stes são os dias em que o outrora mais banal e malvisto tema de conversação ganhou subitamente urgência e manchetes de jornais. Estes são os dias em que falar do tempo – e aqui, o tempo climático – é pretexto de reuniões, manifestações e regatas transatlânticas feitas por adolescentes imbuídas de espírito messiânico.

Eu percebo e preocupo-me dentro das minhas limitações. Mas o que mais lamento, ó leitor confidente, é o desaparecimento das estações. Hoje começam a ser uma vaga memória, vestígios de um tempo romântico que nunca mais irá voltar. E é pena, até porque eu sou feito de uma estação.

Subestimámos as estações do ano. Habituámo-nos a enterrar os dias à pressa, schopenhauerianos involuntários que decidem sem querer ir matar o instante que se segue a outro instante  e acreditar que a vida é algo nesse intermédio. Caímos no erro de nos acharmos superiores ao que nos vai sobreviver, por mais aquecimento global que aturemos. Tudo se tornou, por nossa vontade, cinzento. Já ninguém fala de  pessoas primaveris, estivais, outonais, invernais. Misturar a nossa rica personalidade com uma mera estação do ano tornou-se ocioso e desacreditado. O que há resume-se às férias, ao trabalho, ao regresso às aulas, ao clima desagradável. Toda a gente se esquece das intempéries da alma, da força perfeita do Verão, da melancolia outonal, da tristeza de Dezembro, da inocência de Março – e como o gostarmos ou não gostarmos disso nos transforma naquilo que somos.

Eu sou um tipo outonal e não tenho vergonha que a adjectivação possa parecer ridícula ou poética ou ambas.  Talvez por ter nascido no inicio de Outubro renuncio à extrema alegria de Agosto. Apavoram-me esses dias que parecem, como escreveu Larkin, «emblems of perfect happiness». Prefiro, para não perder esta ajuda e arriscar o meu pretensiosismo, esperar por um «Autumn more appropriate».

E rejubilo quando ele se prenuncia, como é o caso do mês de Setembro. Não se trata de uma questão meteorológica, note-se; trata-se de reencontrar o que andava perdido e me fazia falta. Tempo para pensar, um tempo de regeneração e recomeço.

Mesmo que este mês oferecesse, para gáudio de muitos, temperaturas médias diárias de 30ºC, seria sempre o começo de Outono. A esperança em que não acredito reaparece ténue, com tudo o que pode significar: amor, paz, tempo. Setembro e o Outono são recomeços de mim. E sei que há muitos como eu, que o confessam em privado, quase a medo, vivendo na clandestinidade sob o entulho do quotidiano.

De forma que ando perdido, procurando sinais que sempre me foram faróis. Não os encontro e como sempre recorro à literatura. Lembro-me de parte de um poema de Robert Frost, Nothing Gold Can Stay, que nos fala da efemeridade da nossa passagem: “Then leaf subsides to leaf./So Eden sank to grief,/So dawn goes down to day./Nothing gold can stay.” É muito provável que o Outono tenha emigrado para um verso.

25 Set 2019

O cantar da cigarra

Horta Seca, Lisboa, 17 Setembro

 

[dropcap]E[/dropcap]m uma outra vida, mais por imposição do que gosto, dei-me por dono de vários grilos, de que recordo o contraste dos corpos negros com as várias cores de plástico berrante nas pequenas gaiolas, a que se acrescentava o verde da alface. O cativeiro mantinha e talvez agravasse aquele ralar minimal repetitivo do bicho. A prática era comum na grande cidade, talvez para manter próxima a ruralidade de que se fugia. Na dureza do quotidiano riscava-se um ponto de lirismo. Coisa de pobre, está bem de ver, suscitando noites de verão e, ao mesmo tempo, o reco-reco das engrenagens do fadário. Por acasos do dito, as minhas noites têm sido brancas mais por via da arte de perder o controlo do que pela sanha do trabalho e seu rebanho de linhas mortas. Deu-se um desvio na indisciplinada regra com desafio forma de homenagem à noite e ao lugar que a soube ampliar ao cubo, um coração que não apenas mudou a cidade tal a conhecemos, mas se fez ele próprio cidade, fábrica de cores na paisagem cinza. Assisti ao lavrar das imagens e atirei-lhes texto para fogueira. Tive por companheiro, hesito, um cigarro, um cigarra, enfim, uma cigarra-macho. A rua foi mais horta por estes dias e o canto iluminava o quase silêncio das horas mortas. Desliguei ventoinha e banda sonora de modo a aproveitar, comovido, a ajuda do baixo contínuo. Possuía uma qualidade de lamento atirado ao vazio, de irremediável desconsolo, temperado por brutal energia, quem sabe se não a alegria do dever cumprindo-se, e nisso se esgotando. Cabia aqui, coisa de pobre, a evocação de detalhes do processamento da vida nestas peles, a longa incubação no subsolo e a vida nas árvores ou abandono da carapaça por troca de exosqueleto, mas não me apetece mais tanger esta lira.

Horta Seca, Lisboa, 18 Setembro

Nada de novo, pelo que insisto em busca de ritmo. Não se pode excluir nenhum pormenor do objecto-livro. Exemplo breve: a impressão digital, que torna tudo mais ágil e barato, coloca um acetinado de barata no corpo da letra. Ninguém liga, bem sei, começando pelo autor, que se fica por certo detalhe da capa e outro da lombada. Irrita-me muito, para além da durabilidade. (Que interessa hoje o futuro? Matámo-lo logo a seguir a Deus, se nos relacionamos com as ideias em modo de fuzilamento?) Outro tanto se aplica às exposições, afilhadas mais queridas do padrinho espectáculo. A escolha e arrumação no espaço das peças a mostrar obedece a lógica nem sempre óbvia, nem sempre dita, mas que impõe leituras. Talvez o Simão [Palmeirim] saiba o título da exposição que acolheremos em breve, mas não o partilhou ainda. Depois de almoço conversado onde fomos a tantos lugares, por exemplo, à geometria de Almada, viemos ver como arrumar nas salas o seu trabalho de joalharia. Que caia aqui um raio se não me apercebo neste exacto instante que, além da multiplicação dos espaços, o artista tratou de apanhar, pela cor, a melodia do silêncio! Tratava-se portanto de escolher, não apenas o que entra, mas o modo como. Se nos dispomos ao convívio da inteligência, a criação brota que nem infestante na horta (seca) ou ruído no bairro. Descobrimos orientações oblíquas que farão da mostra uma floresta de subtilezas. Maldito acaso, sempre ele, mas voltou, pois seguiu-se a montagem da mais próxima. Não se perdeu o gozo, mais íntimo, esgotados que foram pouco mais de meia dúzia de anos a pendurar, a pendurar-me. Conheço estas paredes com as minhas mãos, sei onde me são fáceis ou resistem, em que ponto estão feridas ou particularidades, piscadelas de olho ou osso, onde tocou martelo ou acariciou pelo do pincel. Que pensará o prego invisível, chamado pela força, a segurar o que todos admirarão? Estúpido, o prego não pensa. Apesar de ter cabeça.

Horta Seca, Lisboa, 19 Setembro

O Cláudio [Garrudo] soprou-me a notícia ao telefone e não deu ainda para esmiuçar porquês, mas a estética iniciativa «Bairro das Artes», cuja equipa liderou com a Ana [Matos], finda-se ao cumprir a década. Em outras paisagens, uma vez o essencial feito, alguém continuaria, pelo menos, a mera articulação de começos. Temo o óbvio. Participamos atabalhoadamente há cinco anos, daí o testemunho, para dizer o mínimo, da simpatia, da eficiência, da generosidade, ferramentas simples mas raras, com que tudo foi sendo feito. A carência de intendência partilhada, sobretudo na dita sociedade civil, é tal que mais não digo: pela lição, bem-haja!

Este ano, a reentrada na atmosfera faz-se com o hiperactivo Pedro [Proença], fonte torrencial de criação e pensamento. «Cartas, Orelhas, Postais e Outras Coisas Mais» (imagem algures na página) reúne prolongamentos das ilustrações, em torno de figuras da mitologia mais ou menos reinventadas, para ou a partir do novíssimo volume da Rita [Taborda Duarte], «As Orelhas de Karenin», no prelo. Além dos postais-colagem de Sandralexandra enviados do mundo inteiro e arredores à sua amante, de que publicaremos também as intrigantes «Cartas de Amor». Cada conversa com o Pedro, preparatória ou dilatória, dá-me tempo a ganhar contra calendários e agendas, atrasos e desatinos. Todo ele se agiganta agitação, pouco depois reflectida em desenhos que fazem do humano corrida apressada em busca de gozo e sentido.

Horta Seca, Lisboa, 20 Setembro

Duvido que alguma vez atinja o nirvana portátil de tocar livro por mim produzido no qual não encontre defeito. São nadas, que uma vez detectados se tornam permanentes assombrações.

Espreito a prova do ensaio do Andrea [Ragusa], que começa belo logo no título, «Como Exilados de um Céu Distante – Antero de Quintal e Giacomo Leopardi», para encontrar redundâncias e erros, todos gráficos e de simpatia, motivados pelo desembestamento da fabricação. E sofro. Em nada belisca o conjunto, a pedir o absoluto essencial, e que tanto falha, afinal: a leitura. O Andrea deu-se ao raro trabalho de ajardinar a tese, com aparatos e bordejamentos, até dela fazer bomba capaz de travar as alterações climáticas. Ou tão só de mudar o mundo.

Horta Seca, Lisboa, 21 Setembro

Lamento se me repito, ignorando o ritmo. Em outra vida, em lugar chamado «Ler», tive crónica-tese onde procurava confirmar que alguns livros só nos tocam se lidos em coincidência. «Um Homem Sorri à Morte com Meia Cara», de José Rodrigues Miguéis (ed. Estúdios Cor), cai-me nas mãos por generosidade do mano Bernardo [Trindade] para me iluminar, qual lanterna, os longos dias passados, para atrás e para a frente, por entre doentes. Muito possui para sublinhar, esta tocante noveleta autobiográfica, mas interessa-me sobremaneira as partes da viagem ao que pensa o paciente, nem sempre com paciência.

«[…] O próprio sofrimento, quando nos vemos a braços com ele, é uma questão pessoal que cada um procura resolver por si, a sós consigo, num tête-à-tête que pode parecer trágico a quem o vê de fora, mas é para o doente um jogo empolgante e decisivo.

Esta solidão do homem consigo mesmo, com o seu combate e o seu destino, este ensimesmamento, este (ouso escrevê-lo?) egotismo, é uma das coisas mais pasmosas e, a um tempo, mais consoladoras que a doença nos oferece. Cortam-se as relações com o mundo, e todos os factores da vida que não digam respeito à salvação são desprezados. Como entramos na vida, na solidão e obstinação dum esforço pessoal, assim lutamos para mantê-la ou afrontar o fim.”

25 Set 2019

Herdade

[dropcap]C[/dropcap]om estreia em 62 salas, este é o filme a que se tecem os mais rasgados elogios por parte de comunicação social e dos actores do sector.

É bom o conseguimento de um produtor, o Paulo Branco, e da equipa de comunicação do filme, desta vontade que exprime também a mudança significativa no acolhimento da produção cinematográfica portuguesa, que da indiferença e da crítica assente em pré-conceitos sobre a qualidade das obras, passou a um enaltecer, vendo pérolas cinematográficas nas obras que o cinema português vai conseguindo produzir. E isto é bom, mesmo que nem tudo seja pepita de ouro nos filmes que, por vezes após anos de insistência, vão conseguindo chegar ao grande ecrã.

Um dos problemas com que o cinema português se tem confrontado nas últimas décadas, é o do acesso aos públicos, o que é o mesmo de dizer, enorme dificuldade no acesso à exibição e distribuição. Um filme português ter estreia em 70 salas, a par de outras produções recentes que também chegam ao primeiro contacto com os públicos em 50, 60 ecrãs, é um dado novo que indica uma mudança de enaltecer, e até festejar.

Nas contas do primeiro fim de semana, de 19 a 22 de Setembro o filme foi visto por 19.424 pessoas, nos 62 ecrãs, o que representa uma receita bruta de 105.372,11€.

Herdade, é um excelente filme para, uma vez mais, se colocar a pergunta “O que é o cinema?”, já tantas vezes formulada no seguimento da formulação primeira, por André Bazin, na segunda metade da década de 40 do séc. XX. Curiosamente é também nos anos 50 que se inicia a materialidade cinematográfica deste fresco cinematográfico assinado por Tiago Guedes. A resposta à pergunta é vasta e depende do modelo de abordagem; dispositivo estético, modelos de produção, recepção, linguagem, géneros cinematográficos, cinema mainstream ou cinema indie, cinema-cinemas, são alguns dos possíveis ângulos para a análise e circunscrição da questão. O espaço permitido à escrita de uma crónica de cinema não é o lugar para uma aproximação/resposta à pergunta tantas vezes formulada, mas talvez seja oportuno pensar sobre uma outra pergunta que, por razões várias, anda próxima; o que é escrever sobre filmes?, ou que é hoje, escrever crítica cinematográfica?

Todos os filmes se confrontam com a memória cinematográfica, e o filme vive este aparente paradoxo de ser simultaneamente obra única e obra partilhada. Nunca é pouco o que se exige a cada filme. E ainda bem, esta exigência, esta expectativa de revelação, de emoção, racionalidade e maravilhamento perante cada nova obra cinematográfica que pela primeira vez chega ao grande ecrã é uma das condições para diferenciação cinematográfica na imensa produção audiovisual. Ao contrário do que muitos profissionais do marketing afirmam quando decidem antecipar o que os públicos querem, gostam, ou não gostam, um olhar atento mostra que os públicos de cinema, reconhecem e procuram a excelência cinematográfica, a qual raramente dispensa a história e o processo inteligível de a contar.

Escrever sobre um filme é, obviamente, escrever sobre a fotografia, o argumento, a montagem, os actores, a produção, a realização, mas talvez que seja sempre o fora de campo, que a própria escrita sobre qualquer objecto cinematográfico já é, aliás, o aspecto mais revelador e de interesse na escrita sobre filmes. Afinal, é eco do filme em nós, o que nos apaixona ou distancia da obra cinematográfica.

A primeira cena da Herdade começa com um plano geral no Alentejo, e uma situação narrativa de enorme força. Um sobreiro na paisagem de terra quente onde se adivinha o trigo e a determinação sem reservas nem complacência do confronto fenomenológico entre vida e morte.

Alguém, um homem trabalhador da herdade, decidiu pôr fim à vida. O corpo permanece inerte alguns metros acima da terra, enlaçado e pendurado pelo pescoço na corda grossa atada ao ramo vigoroso do sobreiro. Um outro trabalhador prepara-se para descer o corpo, a acção é interrompida por mando do dono da herdade, é dada ordem para ir chamar o filho – João Fernandes (o personagem interpretado por Albano Jerónimo quando adulto – aqui ainda criança). O pai quer que o filho olhe a realidade, diz-lhe que vai aprender uma lição de vida, indica-lhe o olhar para o enforcado. A criança, perante a crueldade da imagem, após um primeiro momento de confronto com a materialidade da morte, afasta-se a correr, refugia-se no isolamento oferecido pela pequena ilha, a ermida de Stº António, uma pequena ruína, no lago da propriedade. O lugar tenente do pai corre para apanhar a criança mas à voz do patrão que lhe dá ordem para o não fazer, imobiliza-se, regressa ao trabalho de descer do ramo do sobreiro o corpo do companheiro enforcado. Estamos perto da década de 50. A sequência seguinte é já com João Fernandes no lugar do pai, é ele agora o dono da grande Herdade, estamos ainda no Estado Novo, a Guerra Colonial exige esforços e alianças. João Fernandes está no picadeiro com o seu puro sangue, o cavalo negro, é-lhe anunciada a visita sem convite de um ministro de Estado. Nesta sequência conhecemos a família, o lugar tenente do patrão, uma personagem magistralmente criada pelo Miguel Borges, que é sem grande discussão merecedora de um prémio de interpretação pela contenção e desenho do personagem. E claro o contexto da época.

A importância, ou melhor o poder do senhor do latifúndio, e a forma do exercício do Poder do Estado, as necessárias visibilidades das alianças, os améns às decisões do Presidente do Conselho.

O tema é tratado com exagero, é forçada a boçalidade e falta de cortesia por parte de altos funcionários do Estado, com comportamentos onde não há distinção nem as regras básicas da urbanidade. É um exagero mas foi a escolha. Se quando se trata de funcionários da polícia política o tom grosseiro e sem urbanidade é justo e adequado, é desajustado quando em ministro ou seus secretários.

Ficamos a conhecer a Herdade, a família, o trabalho e a polícia política. Há um trabalhador ligado ao PCP que é preso, e o patrão vai a Lisboa libertá-lo. Afinal é casado com a filha do general que comanda a polícia política, e isto das relações de parentesco, antes do 25 de Abril como agora, continuam ser passaportes de grande validade nas mais diversas situações sociais.

A progressão na narrativa vai tendo lugar na maioria das vezes no tom e de forma adivinhada, e o golpe de Estado do 25 de Abril acontece.

Seguem-se os momentos de convulsão social conhecidos, a reforma agrária tentada na forma de ocupação da terra a que com pulso e sem vacilar João Fernandes faz frente, continuando a gerir a Herdade.

Paulo Branco, de quem parte a ideia inicial do filme, não por acaso, convidou para montador do filme Roberto Perpignani, que foi quem montou o famoso documentário “Torre Bela”, onde é dado a ver a ocupação revolucionária da herdade com o mesmo nome. Roberto Perpignani, para além de ser uma vedeta dado ter montado filmes do Orson Welles e do Bertolucci, é um conhecedor do que foram os tempos da reforma agrária em Portugal no chamado verão quente da revolução. O tempo vai passando. O filho cresce. Uma nova linha de dramaturgia explorada, e neste grande fresco pelos perto de 60 anos da paisagem social e política deste país, surge uma estória de amor com contornos de Romeu e Julieta no contexto das barreiras da origem social de classe, a que o interdito do sangue vem acrescentar um toque queirosiano dos Maias, por razões de uma espécie de infidelidade consentida a quem é senhor de terras e patrão de gentes.

A Democracia está instalada, e se antes o problema da permanência da terra da Herdade passou por fazer frente à mudança de propriedade em razão da vontade e legitimação revolucionária, a que João Fernandes conseguiu fazer oposição vitoriosa, agora o problema vem da banca, e a Herdade vai desaparecendo, em parcelas vendidas aos próprios bancos. Um extenso terreno de cultivo de arroz é entregue. Outros já foram. Se a reforma agrária não conseguiu ocupar a Herdade, consegue-o agora a banca, na realidade neo-liberal da democracia.

O homem-tenente do patrão, dádiva irrepreensível do Miguel Borges, pai oficial, do jovem por quem a filha do patrão se apaixona e que é afilhado do patrão, morre num acidente que se adivinha propositado.

O filme termina com a queda e morte do cavalo de raça, e o recolhimento à pequena ilha no lago na infância do personagem principal do filme, num tratamento de arco de personagem de grande fôlego e muito bem conseguido.

Filme poderoso, que nos transporta nesta viagem pela história recente dos grandes territórios da agricultura em Portugal, com uma versão de série para televisão que terá bom acolhimento dos públicos com todo o merecimento.

Escrever sobre cinema é também isto, falar um pouco do filme visto, apelar à vontade de descoberta do filme sabendo que cada espectador tem um filme único à sua espera, e essa é também uma das muitas maravilhas do cinema.

Produzido por Paulo Branco, “A Herdade”, tem argumento de Rui Cardoso Martins e Tiago Guedes, estreou no festival de Veneza e esteve presente no festival de cinema de Toronto. É o candidato de Portugal aos Óscares (EUA) e também aos Goya (Espanha).

Diz o realizador, “A Herdade” é “um filme de personagens, de atores, de interpretações fortes, da grandeza das paisagens que os envolvem e das consequências dos segredos que transportam”.


Título original: A Herdade. Realizador: Tiago Guedes. Montador: Roberto Perpignani. Produtor: Paulo Branco. Com: Albano Jerónimo, Sandra Faleiro, Miguel Borges, João Pedro Mamede, Diogo Dória, Victória Guerra, Ana Bustorff, entre outros. Portugal, cores, 166 minutos
25 Set 2019

Embaixada Jesuíta de 1555

[dropcap]N[/dropcap]as viagens ao Japão, os portugueses tinham Lampacau como apoio na China, sua verdadeira sede entre 1553 e 1558, segundo Beatriz Basto da Silva. Feito o ‘Assentamento’ em 1554, foram eles autorizados a negociar nas águas do Guangdong, em Lampacao e Macau, e legalmente irem comerciar a Cantão. “Realizava-se com este acordo um dos principais pontos de que dependia a viagem ao Japão, para além de se assegurar o comércio pacífico com aquele imenso mercado que era a China; a possibilidade de, na época própria, poder haver, legalmente um porto na costa da China, embora ainda em regime provisório e menos estável do que as feitorias que teriam tido em Fu kien e no Che-kiang”, segundo Gonçalo Mesquitela, que refere, “A repercussão deste acordo foi imediata entre os portugueses, tal a importância que teve entre os mercadores e missionários de Goa e de Malaca, que finalmente obtiveram as condições para prosseguir o sonho em que morrera S. Francisco Xavier: a abertura da China à evangelização.”

A nova da vitória diplomática de Leonel de Sousa logo foi levada a Malaca, onde se encontravam os padres Belchior Nunes Barreto S.J. e o dominicano Fr. Gaspar da Cruz, que animados planearam ir a Cantão tentar resgatar os portugueses feitos prisioneiros na China ao longo do estado de conflito existente desde 1521. Cada vez que uma nau se perdia ou era tomada pelos chineses, os tripulantes eram mortos ou aprisionados; mas tudo isso mudara porque os portugueses passaram a ser reconhecidos e a pagar direitos.

Assim, em 1555 ocorreu a segunda “tentativa de penetração do Evangelho no Celeste Império, ao nível embaixatorial e por meios dos ‘filhos’ de Inácio de Loyola”, segundo Videira Pires, que refere, “Belchior Nunes Barreto, vice-provincial dos Jesuítas no Oriente, com o padre Gaspar Vilela, quatro outros irmãos (Fernão Mendes Pinto, Belchior Dias, António Dias e Estêvão de Góis) e quatro meninos catequistas, viajando para o Japão, chegaram a Sanchoão e aí celebraram Missa” a 20 de Julho. Seguiram para Lampacau de onde o padre Belchior Barreto se dirigiu por duas vezes a Cantão, no período de Agosto a Novembro de 1555. Beatriz Basto da Silva data de 20 de Novembro de 1555 a chegada a Cantão e refere ter sido o primeiro jesuíta a entrar na China Continental. E continuando com Videira Pires, o padre Barreto “em cada visita demorou-se um mês para negociar a libertação de alguns dos 60 cativos portugueses na China.

Só para Mateus Brito, ali preso há seis anos e mais dois portugueses, assim como três outros cristãos, o resgate era de mil taéis, por cabeça”. Mas o melhor produto para trocar pelos cativos portugueses era o âmbar cinzento, pois o Imperador Jiajing (1522-1566) há seis anos o procurava ansiosamente, por dar longa vida, noticia Fr. Gaspar da Cruz. No entanto, só depois da terceira visita do padre Barreto a Cantão e após a partida da missionária embaixada jesuíta a 7 de Junho de 1556 rumo ao Japão, foram estes seis presos libertados, passada a Quaresma de 1556 e antes de 1558.

O padre Barreto regressou a Goa em 1557, tendo exercido desde Agosto de 1555 a Junho de 1556 o apostolado entre os cerca de 300 portugueses que se encontravam então em Macau, assim como em Lampacau. Refere Victor F. S. Sit, “Fontes históricas indicam, também, que, até aos anos de 1555-1560, um certo número de comerciantes portugueses continuavam a viver em Lampacau, em cabanas precárias e a guardar mercadorias em armazéns provisórios durante o Inverno. Nesse local, havia entre 400 a 600 portugueses, cinco sacerdotes e uma igreja.”

Razões para Macau

Segundo Jin Guo Ping e Wu Zhiliang, em Revisitar os Primórdios de Macau, houve dois superiores motivos que levaram ao assentamento dos portugueses em Macau. O primeiro, o reconhecimento por parte das autoridades chinesas da superioridade bélica portuguesa e o aproveitar as esquadras bem equipadas destes para guardar dos piratas japoneses a sua costa, em vez de reconstruir de novo uma armada, extinta após as viagens de Zheng He, o que ficaria extremamente caro e não havia dinheiro para tal. O segundo motivo foi a falta do âmbar cinzento trazido pelas antigas embaixadas tributárias dos países vizinhos, mas que agora escasseava. Os portugueses conseguiam esse produto e de uma qualidade muito superior ao arranjado por vezes pelos mandarins. Assim, “a partir de 1555 as repetidas ordens de procura do âmbar cinzento dadas por Pequim” levaram a que as autoridades de Guangdong já deixassem “os portugueses estar à vontade em terra e os palhais que estes construíam passaram a casas.”

A permanência dos portugueses em Macau, refere Wu Zhiliang, talvez “esteja directamente ligada aos motivos de sustentar com o comércio as despesas militares e de servir Macau como uma barreira natural para a defesa dos mares, [mas] a razão essencial [para além de trazerem âmbar cinzento e outras estranhas mercadorias] foi a indisponibilidade das autoridades imperiais centrais da Dinastia Ming (1368-1644) no tratamento dos assuntos comerciais das costas do sudeste da China. Tal se devia à grave crise social verificada nos finais desta Dinastia e as guerras nas fronteiras do Império – a Revolta de Lótus Branco em Shandong, a invasão dos mongóis no Noroeste da China, a Guerra entre a China e Birmânia e os conflitos entre a China e Espanha nas Filipinas.”

Em 1557, no regresso da viagem ao Japão, o Capitão-mor foi informado terem as autoridades chinesas dado permissão para construir casas de carácter permanente contando-se a partir desse ano o estabelecimento efectivo dos portugueses em Macau. Também nesse ano o governo Ming criou, subordinado ao Subcomissário para a Defesa Marítima, três cargos para os assuntos de Macau: “Eram respectivamente o Superintendente de Macau (Ti-diao), com responsabilidades na administração, justiça e relações externas de Macau, o comissário para o combate à Pirataria (Bei-wo), encarregue também das patrulhas marítimas, e o Inspector de Segurança Pública (Xun-ji)”, segundo Victor F. S. Sit, que refere, “acreditados em Macau para desempenhar as respectivas funções, foram as instalações oficiais chinesas montadas a sul de Patane.”

Substituindo Francisco Martins, que em Junho de 1557 seguiu viagem para o Japão, Leonel de Sousa tornou-se Capitão-Geral de Macau e sobre si escreveu: . Daí o elogio a Simão de Almeida e a recomendação que fez para mercês reais, “porque não é de Sua Alteza por exemplo dos que se acharem em partes tão remotas, que folgue de servir Sua Alteza com pessoas e fazendas como ele fez. Tiveram comigo alguns pontos d’ honra.”

24 Set 2019

A vida ao longe

[dropcap]A[/dropcap] vida tem muitas variantes e no Brasil multiplicam-se mais ainda do que em Portugal. Marquinhos vivia numa chácara no meio do mato a mais de quatrocentos quilómetros a oeste de Porto Alegre, com a mulher e duas filhas. Andava mais de meia hora a cavalo para ir até outra chácara, para concertar ou negociar alguma coisa. Vivia de pequenos concertos que fazia em toda a região, para além de cuidar da criação e das hortas, junto com a mulher. Tinham patos, galinhas e inúmeros vegetais. Não criavam animais de maior porte, por ser mais difícil de manter. “Criar porcos é pra gente grande!”, dizia. O cavalo era o animal mais imponente da casa. Tinha três cachorros – antes foram cinco – que vigiavam a casa e o galinheiro, pois além dos gatos bravos também abundavam as aves de rapina. O maior problema, porém, eram as cobras venenosas, que atacavam os animais, tendo já matado dois cachorros que Marquinhos muito estimava. As filhas, uma de 13 anos e outra de 9, andavam mais de meia hora para apanhar um pequeno ônibus que as levava à escola. Quando era preciso fazer compras, Marquinhos atrelava uma pequena carroça ao cavalo e lá ia uma meia hora até ao pequeno mercado, junto a uma povoação com meia dúzia de pessoas e posto dos correios. Embora longe, a uns cinquenta quilómetros, as cidades mais perto eram Rosário do Sul e São Gabriel.

Marquinhos tinha 31 anos, sempre viveu por estas bandas e cresceu como um verdadeiro gaúcho, a cavalo, na pampa, como se diz no interior. Quando criança e jovem adolescente, chegava a ir com o pai em viagem até à Argentina e foi lá que, numa dessas viagens, conheceu Rosário, rapariga um ano mais nova, que se tornou sua mulher, regressando com ele para o interior do Rio Grande do Sul. A chácara aonde vivem é arrendada, não lhes pertence.

Marquinhos não teme ser despejado, mas se um dia tiverem de sair dali, não haverá falta de chácaras para arrendar, “o mundo é muito grande, e a pampa mais ainda”, dizia. “As pessoas não imaginam o que se consegue fazer com o céu azul por cima e um cavalo”.

Invariavelmente começava o dia, bem cedo, partilhando um chimarrão com a mulher, qualquer que fosse a estação do ano. O sabor líquido da erva quente e acre ajudava a reflexão. Por vezes, ficavam somente em silêncio olhando uma para o outro, como se tentassem descortinar quem eram, ou as diferenças em relação ao que foram, outras ficavam em sintonia com a paisagem lá fora, mas de modo geral falavam sobre a vida, sobre as filhas e o que tinham para fazer, partilhando a cuia. Marquinhos falava quase sempre como se fosse velho: “A casa não tem internet nem computador. Essas coisas modernas não nos fazem aqui falta. O que me fazia falta era um burro, para não desgastar o cavalo com a carroça.” Fez apenas a escola básica, mas gostava que as filhas pudessem ir mais longe. “Esta vida ao longe da cidade não é para gente nova.” Tinham um pequeno televisor que transmitia meia dúzia de canais e Marquinhos via que as filhas se entusiasmavam com a vida da cidade grande. “Aqui a vida não tem futuro, é tudo muito atrasado… eu gosto desta vida, e também não conheci outra, mas as meninas assistem a outras vidas pelo televisor e sentem vontade de fazer parte desse mundo.”

Nos seu dia-a-dia pouco havia para não fazer. Descansava ao domingo, sim, mas havia sempre o que fazer. Para Marquinhos viver era fazer alguma coisa. Não conseguia sequer imaginar uma vida parada, sentada a ler, a assistir televisão, a botar conversa fora. Consertava algo na casa, nas cercas, carregava algo de um lugar para outro, ia às compras, cortava lenha, plantava as sementes na terra, levava comida aos animais, ou então estava com a mulher e com as filhas. O tempo que ele considerava para ele, precioso, o seu tempo só, era quando saia a cavalo. Como dizia muitas vezes, com o céu azul por cima e um cavalo, ao longe, como gostava de dizer que era a sua vida.

24 Set 2019

A chave dos sonhos

[dropcap]J[/dropcap]ulietta, ou La clé des songes (Julietta, ou A chave dos sonhos) é uma ópera em três actos com música e libreto original em francês do compositor checo avant-garde Bohuslav Martinů, baseada na obra com o mesmo nome do poeta surrealista francês Georges Neveux. A ópera, de meados dos anos 30 do século XX, foi um dos primeiros grandes sucessos do compositor, a par de outras obras como as Inventions pour piano et orchestre, encomenda do Festival de Veneza (1934), e Kytice (Le bouquet de fleurs, 1938). Martinů tomou conhecimento da peça de Neveux em 1932, dois anos após a sua estreia no Théâtre de l’Avenue em Paris, mas através de uma revista literária, e nunca chegou a assistir à peça, decidindo adaptá-la a uma ópera. Ao que parece, Neveux tinha chegado a um acordo com Kurt Weill para basear uma comédia musical nesta peça mas, ao ouvir alguma da música de Martinů, optou pelo checo. Quando a estreia ocorreu, alguns meses antes da última visita do compositor à sua terra natal, Martinů já tinha escrito oito óperas numa variedade de estilos.

Um libreto em checo foi mais tarde preparado pelo autor para a estreia na Checoslováquia, no Teatro Nacional de Praga no dia 16 de Março de 1938, sob a direcção de Václav Talich, com a presença de Neveux. O compositor esteve presente na estreia na Alemanha em Wiesbaden, em Janeiro de 1956. A estreia em França teve lugar no Grand Théâtre em Angers, em 1970, após uma emissão na rádio realizada em 1962, dirigida pelo maestro Charles Bruck. A estreia no Reino Unido realizou-se em Abril de 1978 em Londres pela New Opera Company, dirigida por Charles Mckerras, numa tradução em inglês. A ópera foi reposta pela English National Opera na temporada seguinte, seguida por uma produção na Guildhall School of Music and Drama em 1987, dirigida por Howard Williams. Seguiu-se uma apresentação no Festival de Edimburgo por uma companhia eslovaca e a próxima produção no Reino Unido foi pela Opera North em 1997.

Uma produção de Richard Jones em Paris em 2002 foi reposta pela English National Opera em Setembro/Outubro de 2012, com grande êxito. Uma nova produção pela Bielefeld Opera na Alemanha, dirigida por Geoffrey Moull, teve oito representações em 1992. O Teatro de Bremen realizou uma nova produção em 2014, sob a direcção de John Fulljames. Andreas Homoki e Fabio Luisi montaram uma nova produção na Opernhaus Zürich em 2015, e a Berlin Staatsoper estreou uma nova produção no dia 28 de Maio de 2016, sob a direcção de Daniel Barenboim, com encenação de Claus Guth, com Magdalena Kožená no papel de Juliette e Rolando Villazón no papel de Michel.

Posteriormente, a ópera foi executada de forma intermitente no Teatro Nacional de Praga; novas produções foram montadas em 1963 e 1989, e uma produção da Opera North foi vista três vezes em 2000; em Março de 2016, foi estreada uma nova produção, a qual foi reposta no dia 16 de Março de 2018, no 80º aniversário da sua estreia.

O musicólogo James Helmes Sutcliffe acentuou na Opera News a “bela partitura de Martinů” e a sua “música atmosférica, lírica”. A obra é amplamente considerada a obra-prima de Martinů. O arranjo de Martinů do seu libreto é primariamente lírico, embora não haja árias a solo prolongadas. O “diatonismo estendido” das obras maduras do compositor surge ao lado de “ritmos motores encontrados no seu Duplo Concerto de 1938, especialmente onde a trama se move rapidamente para a frente”.

O musicólogo Jan Smaczny observa que a capacidade do compositor de caracterizar, aperfeiçoada como observador da vida de uma cidade pequena, enquanto criança a viver na torre do relógio de Polička, resulta numa sequência de “quadros pintados com nitidez”, como um “carnaval de caricaturas”, tanto cómico quanto comovente. Para os cantores, há o factor de que secções significativas da peça são constituídos por diálogo e não por canto, embora a experiência de Martinů numa variedade de obras teatrais antes desta, a sua nona ópera, lhe permita tecer as palavras faladas como parte integrante do impacto da ópera, “distanciando o público da qualidade muitas vezes onírica do tecido musical”. Um fragmento de melodia num acordeão fora do palco, e um fragmento melódico que simboliza a saudade, são introduzidos em momentos-chave da partitura. Smaczny comenta que “a sugestão é tudo nesta partitura, e Martinů é surpreendentemente bem-sucedido em estimular a imaginação, muitas vezes com uma economia de meios de tirar o fôlego”. A ópera era uma das obras favoritas do compositor, e este incorporou alguns compassos da obra na sua última sinfonia composta em 1953.

Há dois papéis principais: Julietta (soprano) e Michel (tenor). A premissa de Julietta é que Michel, um vendedor de livros parisiense que chega a uma cidade costeira e é assombrado pela memória de Julietta, uma rapariga que conheceu numas férias à beira-mar três anos antes, cuja voz ouviu uma vez. Enquanto ele a procura nos seus sonhos, encontra uma sucessão de personagens da cidade que se comportam de maneiras cada vez mais bizarras, principalmente motivadas pelo fato de que não se lembram do passado e só podem existir no momento presente. Michel é eleito presidente da câmara da cidade, e mata Julietta; para apaziguar a multidão, conta-lhes uma história, apenas para ser atacado novamente, não por causa do assassinato, mas porque a história não era muito boa.

Sugestão de audição da obra:
Bohuslav Martinů: Julietta ou La clé des songes
Magdalena Kožená (Julietta), Steve Davislim (Michel), Frédéric Goncalves, Michéle Lagrange e Nicolas Testé, Czech Philharmonic Orchestra, Sir Charles Mackerras – Supraphon, 2009
24 Set 2019

Para lá do horizonte da angústia

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário, não dos queixumes, mas antes dos temores e inquietações sussurradas pelos livros que me passam pelas mãos. O livro não é simplesmente coisa que se leia com mais ou menos prazer, menor ou maior proveito. Pois sim, meu secretário, eles oferecem-nos resistência: uns são fluidos e deles se sai como se entra, com facilidade relativa, portanto; mas outros carregam material de fibra, de antes quebrar que torcer.

Se neles embatermos de chapão, ganhamos mazelas, guardamos marcas, mossas, arranhões; por vezes, cicatrizes que nos atravessam a vida. Arregaçam as mangas da camisa, com olhar enviesado, e sabemos bem que, dali, não escaparemos incólumes ao meliante: esses livros ameaçam-nos, exigem-nos a alma ou a vida: nós damos as duas, embrulhadas, como se fossem uma só, e entregamos, já agora, a bolsa, também. Fazem de nós o que querem, gato sapato.

Assim é, tal e qual, meu tão certo secretário. Pois, notai: a minha intenção era aqui confiar-vos mais um livro de poesia, como de uso, mas foram reeditados, de uma penada, num só volume, «Tanta gente, Mariana» e «Palavras Poupadas», de Maria Judite Carvalho. Este punhado de contos ( ou de novelas e vários contos) podem mais do que eu e a minha vontade, pelo que não poderei deixar de vos entregar em confissão, meu secretário, sempre fiel, os padecimentos, sinais, que me provocou o volume. E foram tantos….

Comigo, é certo, ainda assim, os livros não fazem muita farinha. A leitura é uma guerra e eu não sou de tréguas fáceis. Com os demais leitores, correm talvez as coisas de outra feição, que também os há cobardes, cheios de mesuras, punhos de renda e rodriguinhos. Leitores haverá que, mesmo que um livro lhes dispense tratos de polé, e lhes aplique um murro no estômago que obrigue regurgitar a vida, as memórias, as crenças, tudo em borbotão, se deixem ficar, intimidados; e ao livro que os deixou derreados: nem uma página se lhe despenteia, nem um sublinhado a arranhar-lhe as folhas, nem páginas dobradas; sequer capas esfarelando-se nos cantos, a arquejar. Ah, meu tão certo secretário, comigo não: livro com que ande eu à bulha, fica com marcas no corpo, que não sou de apanhar e não dar troco. Mas deitemos água pouca em muito fogo, para um tudo nada mais inflamar. E ensino-vos já aqui de uma penada um método infalível para aferir do gosto literário, sem que a canga da opinião curve os ombros derrotados; sem a necessidade de vos confiar a titubeante tradução frouxa por palavras do prazer de ler (ou da sua dor), sem o uso de uma mancheia de adjectivos puídos, coçados por terem servido de casaca pobre a tantos outros livros. Como fazer fazer prova da marca que nos deixa um um livro, sem gasto de tinta ou saliva, que, ela por ela, são afinal a lã rafada da mesma meada, a farinha agra do mesmo saco.

Como fazer a prova de que um livro nos marcou? Marcando-o, também: dobrando-lhe as páginas, sublinhando-o, com resposta viva e rápida a cada estocada, cada golpe que ele nos aplica. Por exemplo, o exemplar desta edição novíssima de «Tanta Gente, Mariana» está feito num oito, como quem diz feito num fole, cada página a sua marca, seja para assinalar uma metáfora certeira, uma descrição, a singeleza de um adjectivo pungente no sítio exacto, a construção de personagens e ambientes tão densos. Livro que nos golpeia assim, tem de receber a paga.

Quase só mulheres, tristes até ao imo, tão sós (e tanta gente, à volta, tanta gente), habitam estas páginas massacradas. Como é possível que estas personagens, no fundo nomes grafados numa folha, ganhem tanta força que sirvam de diapasão, modelo amargo, para deformarmos o mundo em torno? Poucos livros comovem como este, mas não pelos grandes dramas, a grande tragédia, ou impossíveis amores, mas pela consciência de que fica sempre dentro do peito um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei de onde, e dói, sabendo bem nós porquê: é, sim, por um fascismo entranhado que ensombra a narrativa, mas não o político, às escâncaras (quando é assim, pressente-se bem, e personagens e leitores, a par, põem-se em guarda); o fascismo que bafeja o livro, e se insinua, nasce dos quotidianos pobremente tristes das personagens, da prática, da vida baça, do dia-a-dia abafado, em que habitam. Um fascismo de costumes bem enraizado no viver das personagens (medo, solidão, vidas sem saída, infelicidades crónicas, bem profundas). E porque são essencialmente mulheres as personagens do livro, esta mesma tristeza atravessando os contos de Maria Judite Carvalho têm «também aquela beleza da tristeza de se saber mulher», como na canção do Vinicius. E angustia esta tristeza branda, mas escavada no peito, sem grandes histórias para contar, só a pequena e aflitiva tortura de se viver…

Poucos autores transmitem, como Maria Judite de Carvalho, esta angústia amena que nasce com a certeza de que há sempre ainda mais por onde se sofrer. A amargura triste e mediana é o horizonte das páginas do livro; mas bem se sabe, meu secretário tão certeiro, a linha do horizonte é uma miragem sempre cada vez mais longe. Por mais que se ande e caminhe, fica-se sempre ainda aquém. É que a terra é redonda como o sofrimento: não tem início nem fim.

Quase todas mulheres ao longo dos contos: Mariana («Também deste por isso. Há gente que vive setenta ou oitenta anos, até mais sem nunca se dar conta. Tu aos quinze…todos estamos sozinhos, Mariana. Sozinhos e muita gente à nossa volta. Tanta gente, Mariana! E ninguém vai fazer nada por nós. Ninguém pode. Ninguém queria se pudesse. Nem uma esperança.»), ou Arminda, «menina, apesar dos seus quase quarenta anos», ou Emília e também a sua mãe, ou Graça, ou ainda mulheres sem nome, feridas, humilhadas pela vida, desbotadas e incolores: «Era uma mulher alta, muito branca, de fartos cabelos claros, um pouco flácida já e desbotada, incolor, como uma freira reclusa.»

Vidas frígidas de mulheres-satélite, gravitando em torno de outros centros, que não elas, ambíguos e à deriva, também, por sua vez; por vezes, esse centro corresponde a um punhado de homens baços, de vidas igualmente turvas e macilentas. Tristes, desfocadas: Armindo, Duarte, e outras personagem, homens, também, sem nome…

Que fazer desta comoção tão forte por pessoas de papel, nomes impressos na página que tão bem sabemos não existirem? Sim, tendes razão, meu tão certo secretário: é mesmo assim, a suspensãozinha da tal descrença, consabida, aquele momento em que nos quedamos cegos pelas letras, deixando de as ver, para somente confirmar, lá por trás, o real a desabar. Mas mais amargura provoca este desalento que vem de manso do que grandes tragédias: Aristóteles afinal pouco percebia da poda… é a impressão ao de leve, subtilmente crescente que corrói e leva, sim, à catarse e não necessariamente a anagorisis que conduz ao pathos. Cada personagem de cada história do livro, seu sofrimento, é um poço que se vai escavando cada vez mais fundo.

Que dizeis, meu tão certo secretário? Que comecei por insinuar que de pouco servem as palavras estafadas, ou as metáforas, para justificar o apreço por um livro? Que bastaria exibir as marcas que nele deixamos para atestar as marcas que ele nos deixa? E que esta figura de estilo que diz que não vai dizer o que afinal está dizendo é uma espécie de antífrase fácil? Pois sim, tendes razão, que bastaria o regozijo, sem redundâncias, por a editora Minotauro (Almedina) estar resilientemente a reeditar as obras completas de Maria Judite Carvalho. É uma felicidade poder ler esta tristeza mansa e profunda, até ao âmago, que sobrevém aos seus contos.

Maria Judite de Carvalho, Obras Completas [Tanta gente, Mariana/As palavras Poupadas], Lisboa, Minotauro, 2019

23 Set 2019

A Grande Dama do Chá

 

[CAPÍTULO ANTERIOR]

 

[dropcap]P[/dropcap]ara Cândido Vilaça, Macau ainda era um labirinto de ruas desconhecidas. De esquinas e becos onde se escondiam almas que não queriam revelar o seu passado. Ele não era diferente. O seu passado atormentava-o, como se fosse um fantasma incapaz de adormecer para sempre. Olhou para o céu em busca das estrelas. Não as viu. Estava uma noite nublada e quente. Caminhava calmamente para o restaurante “Grande Oriente”, onde combinara encontrar-se para jantar com José Prazeres da Costa. Ainda um pouco longe, ouviu o estampido dum tiro, algo que não o incomodou. Ouvira muitos em Xangai, quando os assassínios se sucediam, mesmo nas avenidas mais movimentadas da concessão francesa. De qualquer maneira apressou o passo. Passados cerca de cinco minutos chegou defronte do restaurante. Junto a ele aglomeravam-se algumas pessoas e um par de agentes da Polícia de Segurança Pública. Aproximou-se. No chão estava um corpo. Não tardou a reconhecê-lo. Era o do russo Ivan Sapojnikov, que trabalhava para Toshio Nomura. Não era um bom sinal. Fora morto a tiro.

Os agentes da PSP pediam aos curiosos para se retirarem, enquanto esperavam a chegada de um médico e de um oficial superior. Cândido entrou no restaurante, onde muitos clientes pareciam não se ter apercebido do sucedido. Ou então, não desejavam saber o que se passava.

José Prazeres da Costa estava sentado numa das mesas, com um copo de vinho tinto à frente. Cândido sentou-se à sua frente e, antes de dizer algo, Prazeres da Costa questionou-o:

– Está morto, não é?
– Parece-me que sim.
– É uma desgraça. Tinha estado a falar com ele há pouco. Ia levar um recado meu para o Nomura. Porque é que aconteceu isto?
– Porque tinha de acontecer.

O olhar de Prazes da Costa ficou lívido:

– Achas? Será que também me seguem?
– Quem?
– Os chineses do Bando Verde. É deles que Nomura tem medo.

Foram interrompidos por Tomé de Freitas, o dono do restaurante. O seu ar era pesado. Olhou fixamente para Prazeres da Costa e, depois, para Cândido, antes de perguntar:

– Desejam jantar?

Ambos escolherem os inevitáveis bifes com batatas frita e ovo estrelado, uma especialidade da casa. Tomé de Freitas ia dizer algo mais, mas conteve-se. Não conhecia bem Cândido. Afastou-se, rumo ao balcão. O músico olhou para Prazeres da Costa. A sua habitual postura orgulhosa, mas tímida, dera agora lugar a outra, em que os seus mais pequenos gestos traduziam apenas inquietação. Ou desconfiança e insegurança. Cândido viu-o sondar a sala com os olhos. Tinha medo. Tentou desviar a conversa:

– E Amélia, como está?
– Tenho de tomar uma decisão. Mas agora não sei. Se eu estou em perigo, ela também o poderá estar. Meu caro Cândido, esta morte é um sinal. Não vai haver tréguas. Nomura vai retaliar. Este era um dos seus tenentes. Não sei se sabes mas têm morrido homens do Bando Verde e outros que alinham connosco. Assassinados. Outros desaparecem. Tem sido uma guerrra subterrânea, mas onde só têm sido sacrificados peões. Como no xadrez, compreendes. Agora, a guerra é outra.
– Achas que poderá chegar a ti?

Prazeres da Costa fulminou-o:

– E a ti, se desconfiarem do que fazes. Se perceberem que usas o que te diz a chinesa para nos informares, também serás um alvo. Não era nada disso que o Nomura me prometera. Mas se o russo foi morto… Até o Tomé, que é um grande amigo nosso, e tem ouvidos muito atentos, está receoso.

Cândido franziu os lábios. Bebeu um pouco de vinho, no momento em que colocaram a comida defronte deles. Depois disse:

– A política sempre foi uma actividade perigosa. Aprendi isso em Xangai. E outra coisa. A justiça as vezes não é cega, como o de uma deusa, mas tem pés de chumbo. A polícia portuguesa não vai descobrir quem o matou.

Prazeres da Costa estremeceu um pouco e olhou com insistência para o tecto, julgando, talvez, que dali viesse alguma resposta para as suas dúvidas. Depois comeu um pouco do bife. Parecia ter deixado de ter apetite. A voz trémula dizia tudo:

– Porque é que achas que o russo foi morto?
– Porque sabia demais.
– Não. Foi para começar uma guerra.

Olharam um para o outro, à espreita do perigo. Mas nenhum dos dois o via naquele momento. Cândido, mais descontraído, disse:

– O primeiro passo para resolver um problema é vê-lo de forma clara. Nomura fará isso.
– Achas? Ele, às vezes, perde a calma. E guia-se pelas emoções.

Cândido reparou, pela primeira vez, que Prazeres da Costa tinha os dedos amarelos, por causa da nicotina. Fumava demasiado nos últimos tempos. Por causa dos japoneses. E, sobretudo, por causa de Amélia. Voltou à conversa:

– Isso é mau. Talvez seja o que os chineses do Bando Verde estão à espera. Que ele dê um passo em falso. Já agora, diz-me, ele ficou contente com a minha informação?
– Muito.

Cândido olhou à volta. A noite apresentava-se promissora. Tinham chegado novas raparigas ao restaurante. As que, quando a iluminação deixava de ser tão clara, cirandavam pelas mesas, em busca de companhia. Algumas eram russas, outras da Mongólia. Naquela noite apresentava-se ali uma fadista que tinha vindo de Lisboa. E, de caminho para Goa, aproveitara para conhecer Macau. Apeteceu-lhe ir buscar o saxofone e juntar o seu som ao da guitarra portuguesa e da voz dela. Era uma rapariga de pouco mais de 30 anos. Muito morena e de olhos negros. Usava um xaile, algo que era um acessório quente para as noites de Macau. Mas era uma imagem que definia uma fadista como ela. Ana de Freitas, assim se chamava aquela jovem que tinha a voz quente e poderosa que, à meia-luz, fez silenciar todos os que estavam no restaurante. E cantava:

Venho
Desse tempo já esquecido
Quando as mãos se tocavam nos becos
Trocavam beijos ao luar
Tudo isso é tempo ido
Que saudades de amar

Venho
De esquinas sem idade
Onde mulheres de má fama
Liam sinas cheias de verdade
Onde viam perigos
Numa vida de enganos

Tenho
Uma faca e um canivete
Para sobreviver
Aos meus pecados
Na pele, gravados
No coração, desenhados

Quando ela terminou, quase meia hora depois, entre aplausos, Prazeres da Costa fitou Cândido e disse:

– E a tua amiga Marina Kaplan? Não posso deixar de lhe agradecer o que fez por mim.
– Ela é uma senhora. Poderia, se quisesse, recrutar qualquer pessoa para as suas causas. Até os padres. Ou mais.
– Seria uma boa recruta para Nomura.
– Não a tentes com isso. Perderás uma amiga.
– Achas?
– Tenho a certeza. Marina não alinha com ninguém. Só com os seus interesses. E estes são insondáveis. Já agora, que sabes de Ezequiel de Campos?
– Ele é a pessoa por detrás das cortinas. Tem mais poder do que muitos que julgamos serem os mais poderosos de Macau.

Cândido bebeu mais um gole de vinho. Apetecia-lhe sair dali. Já deveriam ter retirado o corpo do russo do passeio onde tinha sido assassinado.

– Ficas, José? Eu vou indo.
– Vou ficar. Apetece-me ficar embriagado. E conhecer as novas raparigas.
– E depois vai jogar?
– Hoje já jogaram o suficiente comigo. Poderia ter sido eu a morrer.
– É verdade.

Cândido saiu. Não se via ninguém na rua. Sabia-lhe bem o cheiro da noite. Mas sentia que lhe faltava algo. Seguiu rumo ao “Bambu Vermelho”. O aroma do ópio chamava-o, para que se pudesse acalmar. E dormir em paz.

20 Set 2019

Quando lá fora

[dropcap]O[/dropcap]s meus amigos são lestos a gabar-me a sorte que tenho em viajar por obrigações profissionais. Tento evitar mostrar-lhes que a coisa não é nem pouco mais ou menos tão divertida como parece. Ou glamorosa. São normalmente noites mal dormidas em hotéis a que se seguem pequenos encontros em livrarias, monólogos com estudantes ou passagens fugazes por feiras de livros. “Ah, mas o pequeno-almoço deve ser óptimo.” Nunca perceberei a fixação da maior parte das pessoas pelos pequenos-almoços de hotel.

Normalmente, é fazer quase as mesmas coisas longe de casa e dos amigos. Sim, a paisagem muda. Infelizmente, não disponho de órgãos sensíveis à beleza da paisagem, seja esta urbana ou rural. As grandes catedrais góticas da europa central não me comovem, o Sena não me emociona; a única coisa que de facto me estimula é a possibilidade – ao contrário dos pequenos-almoços continentais de hotel, todos eles muito semelhantes – de comer coisas diferentes. Até nos países onde a gastronomia não faz inveja a ninguém se descobre um restaurante chinês ou paquistanês digno de deixar memórias.

De vez em quando acontece de facto algo de novo. A última vez que me aconteceu foi na Holanda, numa daquelas cidades de nome dificilmente pronunciáveis. Estava hospedado num hostel simpático e regressava da apresentação de uma antologia de diversos autores europeus em diversas línguas onde eu estava incluído com um conto. Uma coisa moderadamente divertida e muito bem organizada cujo alcance, infelizmente, não ultrapassaria os limites da pequena sala onde teve lugar. A literatura contemporânea e a sua inexorável produção tornaram um céu pintalgado de luz num insuportável e incessante festival de pirotecnia onde se sucedem, incapazes de gerar atenção, todo o tipo de livros. A distracção gera indiferença. No melhor dos cenários, somos apenas tangentes.

Chegado ao quarto depois de meia dúzia de cervejas, tentei dormir. Não durmo bem nos hotéis. Ao contrário das muitas pessoas que deliram com lençóis lavados de frescos, duros e a cheira a goma, gosto da minha cama e da minha roupa de cama, de preferência um dia depois de a ter mudado.

Acordei cerca das nove horas da manhã a pensar no check out. Quando rodei sobre mim próprio, ainda na cama, dei de caras com um latagão desconhecido com pelo menos dois metros de altura. Tinha a recordação nítida de aquele corpo não estar ali quando finalmente me deixei dormir. Ergui ligeiramente o edredão. Ele estava inteiramente vestido e calçado. Não o quis acordar – ia dizer-lhe o quê? “Olá, muito gosto em conhecer-te.” E em que língua?

Levantei-me, vesti-me de fininho e sai do quarto. Na recepção, quando me perguntaram se a estadia fora do meu agrado e se tinha alguma sugestão a fazer, lembrei-me de lhes aconselhar uma sinalização mais eficaz dos quartos ou mesmo fecharem o bar do hostel mais cedo, mas apenas sorri e agradeci.

Já no avião, assaltou-me uma dúvida: e se o tipo estava morto quando acordei? Tomar-lhe o pulso para o medir não foi de facto o meu primeiro impulso. E se tenho a polícia à minha espera no aeroporto da Portela? “Senhor Romão, o nome Dirk Oomen diz-lhe alguma coisa?” Nesse dia e já em casa, não me foi fácil dormir. Devia ter-me apresentado ao senhor.

20 Set 2019

Como vai estar o dia

[dropcap]U[/dropcap]m breve olhar através da janela dá para ver como vai estar o dia. É um olhar de relance. Não é um olhar reflectido. E, contudo, não é como se nada fosse. Um lapso de tempo, num ápice, dá para ver como vai estar o dia todo. Não há nenhuma pronúncia de juízo.

Não se diz: “Hoje, o dia inteiro vai estar assim”. Há de algum modo uma formulação mental do que está a ver-se naquele momento exacto com consequências para o futuro mais ou menos duradouro para as horas do dia por que se distribuem as nossas incumbências, horário de expediente, ocupações, preocupações, ou lazer. Num breve instante, num olhar que se dá num segundo, vê-se para além do que se constitui nessa sincronização entre o tempo durante o qual se forma a nossa percepção e o que se passa na realidade durante um tempo que excede, é mais duradouro, o tempo da percepção. O momento da percepção, em que eu inspecciono, com um só olhar como se eu não quisesse a coisa, a meteorologia do dia, é ínfimo relativamente ao que se vai passar nas horas seguintes, no tempo do dia em que estarei acordado, pode até projectar-se em antecipação que o dia terá a mesma meteorologia até ao dia seguinte e que até amanhã vai estar bom ou vai estar mau tempo. Como é possível a avaliação ou juízo segundo o qual vai ser assim e não vai mudar ou está a assim e vai abrir ou fechar mais tarde? Há um acesso que extravasa para fora do momento da sincronização entre ver e o que é visto, entre o olhar e o que fica fixado na realidade por esse olhar. A variação ou não das condições climatéricas é o próprio conteúdo da interpretação hermenêutica, que tem uma qualidade que é diferente e excede o que efectivamente é visto. Podemos perceber as qualidades climatéricas de um sítio como sendo sempre as mesmas ao longo de um mês. Podemos perceber a variação dessas mesmas qualidades ao longo de um dia. Podemos perceber invernos frios e chuvosos como verões secos e muito quentes. Podemos perceber a instabilidade do tempo, temperatura, aberturas, climas, etc., etc., etc.. Como é possível. O nosso acesso à realidade é mais longo do que o tempo que achamos necessário para que se constitua. Achamos que os processos e eventos que se dão na realidade determinam a duração do acesso, a sua adequação e inadequação. Podemos perceber que uma sucessão de eventos é tão rápida a dar-se que não conseguimos acompanhar inteiramente o que sucede, o que está efectivamente a acontecer. Um lance de futebol pode ser tão rápido que não se tem tempo para perceber o que realmente aconteceu. O juízo pode basear-se na impressão que dá, com que ficamos da realidade: se está ou não fora de jogo um jogador, se a bola entra ou não na baliza, bate dentro ou fora do corte de ténis, etc., etc.. A realidade requer a filmagem, para que, a partir das imagens, se possa perceber ao repetir vezes sem conta a partir de diversos ângulos o que sucedeu. Podemos ver em câmara lenta, podemos, pela repetição, promover uma base fenomenológica mais consistente, muito mais consistente do que a que se produz quando vemos, ao vivo, o que sucede. O tempo da percepção é o tempo do conteúdo percepcionado. Mas o tempo da percepção pode ser muito curto para um acontecimento muito rápido. Já dei por mim num Estádio de futebol à espera do que que a câmara televisiva nos oferece sempre: repetições. Mas a realidade só se dá uma só vez no tempo que requer para acontecer. O tempo da assistência pode ser muito lento para acompanharmos o que está a suceder e não acompanhamos o que está a suceder. Já nem se fala dos acontecimentos que não acompanhamos que são a maior parte dos acontecimentos do mundo, nas vidas das outras pessoas, nos seus mundos. Mas pode também acontecer que a nossa percepção seja tão rápida que não acompanhamos o tempo em que as coisas aconteçam. Não vemos a relva crescer a fazer barulho a aumentar de tamanho. Não temos a percepção do envelhecimento dos nossos rostos, de cada vez que nos vemos no espelho. É preciso que passe tempo entre a infância, a adolescência, o começo da idade adulta, o nosso rosto velho. É por discontinuidade que percebemos o envelhecimento, não o vemos sempre a cada instante. Só nos apercebemos disso pelo contraste criado pela discontinuidade, quando vemos alguém que não víamos há décadas, quando nos vemos no espelho sem percebermos para onde foi o nosso rosto de crianças ou jovens adolescentes.

O nosso acesso não depende do tempo da realidade, constitui o próprio tempo da realidade. Durante o tempo em que estivermos vivos distende-se o nosso acesso, sempre finito, limitado, confinado. Desse plano de fundo do tempo da vida vemos o plano de fundo do mundo à nossa frente, vemo-nos inseridos no horizonte formado pela abóbada celeste, pelo tempo de vida dos anos que passaram. No interior da duração do tempo que tem passado, compreendemos as durações das coisas, pessoas, estados de coisas, processos, situações, conjunturas de tudo o que existe e de tudo o que é sonhado, imaginado.

Num breve olhar inspecionamos através da janela como vai estar o dia: escuro, cinzento, chuvoso, farrusco. Num só instante vemos esses conteúdos, a temperatura, a humidade, a luminosidade. Tudo é visto intrincado, entrelaçado, a ensopar o dia. Dizer que o dia vai ser assim ou de outro modo requer uma avaliação que excede o tempo da duração da percepção em que vemos o que vemos, mas implica também uma qualidade de significado muito mais complexa do que a que dá apenas para conteúdos reais objectivos aí.

20 Set 2019

Design e a pele da cultura

[dropcap]H[/dropcap]á pouco mais de duas décadas D. Kerckhove caracterizou o design como a “pele da cultura”. A sua tese era simples: mais do que ser uma espécie de relações públicas da tecnologia (“embelezando os produtos e apurando a sua imagem no mercado”), o design teria essencialmente uma finalidade metafórica, traduzindo “benefícios funcionais em modalidades cognitivas e sensoriais”.

Deste modo, o design contribuiria para a forma exterior visível, audível e “texturada” dos artefactos culturais, mas reflectindo sempre os sinais dos tempos e o eco dos valores em voga (ecologia, mobilidade, ubiquidade, etc.). Ou seja: de um lado, um devir de marketing, posicionando pela forma e também pelo aceno estético o produto no mercado; do outro lado, um devir que faria do produto um denominador comum da respiração global. Eis, em suma, a tese que harmoniza a funcionalidade com a feliz designação de “pele da cultura”

Em 1997, os exemplos a que o autor canadiano se socorria para ilustrar esta sua tese eram tão plausíveis como os que hoje poderíamos seleccionar, nomeadamente o aerodinamismo dos meios de transporte introduzido por Raymond Loewy (que se estendeu a uma vasta gama de produtos, incluindo frigoríficos, torradeiras e o design clássico da garrafa de Coca-Cola), a chamada ‘nouvelle cuisine’ francesa (que estendeu o efeito Bauhaus à textura e à ‘frescura’ da comida) ou ainda o funcionalismo de Dieter Rams para a linha Braun.

Esta tese de D. Kerckhove reata alguns aspectos do Barthes de Mithologies do fim dos anos cinquenta, embora substitua a obsessão ideológica pela especularidade da cultura. Seja como for, creio que o design é bem mais do que um barómetro antropológico. A razão é simples: sinalizar o estado de coisas é condição de todo o signo, ou seja, de todo o uso a que recorremos para comunicar, para significar ou para marcar o tempo. O design, tal como um bom mundial de futebol, não escapa a este fatum. Mas o que o torna diferente – e aquilo que o faz aparecer em todas as actividades e produtos no globo – é a sua capacidade de aliar a herança estética à eficácia pragmática, restaurando no quotidiano aquilo que, na Idade Média, era traduzido pela “Graça de Deus”: um ‘além’ – agora com letra pequena –, profundo, cativante e misterioso, que se mistura nas coisas do dia-a-dia.

Em era de simulações e ilusões, este ‘além’ (este ‘espírito santo techno’) vive nas malhas – ou na “pele” – da cultura, é certo. Mas, por outro lado, releva uma herança que está muito para além do contingente, na medida em que recupera, na sua morfologia e reconhecimento, aquilo que foi a senha primeira da arte e da estética, quando foram teorizadas de meados do século XVIII para cá: a sublimação do sagrado (aparentemente) perdido.

Esta herança – que foi específica da arte e da estética ao longo de oitocentos e de grande parte de novecentos – foi sendo lentamente absorvida pelo design, sobretudo devido ao modo como se foi distanciando do seu uso instrumental para passar a afirmar-se, cada vez mais, com uma autonomia própria. Hoje em dia, o importante é reconhecer que o design ‘está lá’. O importante é que o design saiba afirmar a sua própria presença e assim tornar-se reconhecível de forma imediata, como se fosse uma esperada aparição (na roupa, nos interiores, na comida, na tecnologia, na rede, nos jornais, nos objectos, nos passeios públicos, etc., etc.).

Como se o design tivesse passado a ser uma ‘referência central’ da vida, numa época que é justamente caracterizada pela ausência de valores ou de referências centrais. Neste sentido, creio que a tese de D. Kerckhove, apenas com 22 anos de vida, já é uma tese muito clássica.

19 Set 2019

Combater a insónia

10/09/2019

 

[dropcap]S[/dropcap]alvaguardei-me da insónia desta noite com dois dos meus hits, Nabokov e Cioran. Do romancista, o impagável «Pnin», que me devolveu uma palavra: «rododendro» – dá-me cem gramas de rododendro mal passado, por favor? – e me fulminou com um adjectivo: «toucinho opalescente.»

Mas depois de excursionar cinquenta páginas pelo russo-americano fui navegar nas águas do franco-romeno Emil Cioran. Um pequeno livro de aforismos, de título Sillogismes de l’amerture/Silogismos da amargura. Normalmente passamos pelas palavras numa pressa atabalhoada, com o Cioran isso não é possível, e vai-se sentindo o terreno como o cego apostado numa corrida de cem metros obstáculos: sentindo o risco não só em certas partes mas em todas as partes, e sofrendo o embate dos seus aforismos lapidares.

«Que não nos falem mais de povos submetidos, nem de seu gosto pela liberdade; os tiranos são sempre assassinados demasiado tarde: essa é a sua grande desculpa.», ou:

«Dizer: “prefiro este regime a tal outro” é flutuar no vago; seria mais exacto dizer “prefiro esta polícia à outra”. Pois a história, com efeito, reduz-se a uma classificação de polícias; pois de que trata o historiador se não da concepção do policiamento que o homem foi perpetrando através dos tempos?».

E às tantas, dou de caras com o capítulo Sobre a Música. Como também eu, apesar de intermitente, sou um melómano opalescente (hum, será que funciona?) entretive-me a traduzir:

SOBRE A MÚSICA

Nascido com uma alma normal, pedi outra à música: foi o começo do desconcerto, de desastres maravilhosos…

Sem o imperialismo do conceito, a música teria substituído a filosofia: teria sido então o paraíso da evidência inexpressável, uma epidemia de êxtase.

Beethoven viciou a música: introduziu nela as mudanças de humor, deixou que nela penetrasse a cólera.

Sem Bach, a teologia careceria de objecto, a Criação seria fictícia, o Nada peremptório.
Se alguém deve tudo a Bach é sem dúvida Deus.

Que são todas as melodias ao lado da que afoga em nós a dupla impossibilidade de viver e morrer?

Para quê reler Platão quando um saxofone pode igualmente fazer-nos entrever outro mundo?

Sem meios de defesa contra a música, estou obrigado a sofrer o seu despotismo e, segundo o seu capricho, a ser deus ou maltrapilho.

Houve um tempo em que, não logrando conceber uma eternidade que pudesse separar-me de Mozart não temia a morte. O mesmo me sucedeu com cada música, com toda a música.

Chopin elevou o piano ao esplendor da tísica.

O universo sonoro: onomatopeia do inefável, enigma desdobrado, infinito percebido e inacessível… Quando se sofre a sua sedução, já só se concebe o projecto de fazer-se embalsamar num suspiro.

A música é o refúgio das almas ulceradas pela dita.

Toda a música verdadeira nos faz palpar o tempo.

O infinito actual, paródia para a filosofia, é a realidade, a essência mesma da música.

Se tivesse sucumbido às meiguices da música, às suas chamadas, a todos os lugares que ela suscitou e destruiu em mim, há muito tempo que, por orgulho, teria perdido a razão.

A propensão do Norte para idear outro céu engendrou a música alemã – geometria de Outonos, álcool de conceitos, ebriedade metafísica.

À Itália do século passado – um bazar de sons – faltou-lhe a dimensão da noite, a arte de exprimir as sombras para extrair a sua essência.
Há que escolher entre Brahms ou o Sol…

A música, sistema de adeuses, evoca uma física cujo ponto de partida não seriam os átomos mas as lágrimas.

Talvez tivesse esperado demasiado da música e não tomei as precauções necessárias contra as acrobacias do sublime, contra o charlatanismo do inefável…

De alguns andamentos de Mozart desprende-se uma desolação etérea, como um sonho de funerais na outra vida.

Quando nem sequer a música é capaz de salvar-nos, um punhal brilha nos nossos olhos; já nada nos sustém, a não ser a fascinação do crime.

Como gostaria de morrer pela música, como castigo por haver duvidado da soberania dos seus feitiços.

12/09/2019

De novo insone, releio. Não apenas para ficar surpreendido pelo que sublinhei então, à vista de outras passagens que ganharam com o tempo, mas também pelo que anotei nas margens. Aqui deixo algumas três notas:

Conta Joni Mitchell: um dia na primária copiei uma casota de cachorro mais direitinha do que a dos meus colegas e então pensei vou ser artista. Eu sempre me julguei o cão de uma casota demasiado perfeitinha, que só desarrumada poderia salvar uma alma.

E só aceitei que era escritor aos quarenta e cinco quando intui que me condenara à pobreza e que aí mais valia enveredar por alguma forma de dignidade.

Desde então não minto e à noite apedrejo os semáforos.

Kafka desejava saber em que momento e quantas vezes, estando oito pessoas a conversar, convém tomar a palavra para não passar por calado. E estando trinta pessoas a conversar? Ou oitocentas na palheta? E estando um tigre e um galo?

“Todo o decoro que sustém o turbilhão”, escreveu Sílvia Plath – e mais nenhuma ramagem precisaria de assombrar para adivinharmos a sua silhueta, invisível, no meio dos flamingos que grasnam, garimpando o branco, na líquida púrpura do poente.

Entretanto, lastima-se uma rouca voz feminina atrás de mim (“à minha atrás”, se diria em escorreito moçambicanês): “O meu telefone inventou de tomar banho!”. Melhor, só se alguém entrasse para anunciar, Foda-se, numas escavações do Peloponeso, achou-se a gravata do Aristóteles.

19 Set 2019

Sem título

[dropcap]O[/dropcap]ntem não houve nada que não me acontecesse”, afirma uma mulher. Desço do autocarro sem saber do seu passado recente, que poderia bem descrever a minha vida, em todos os seus tempos. Passo pelo Profeta do Cais, que continua a apregoar não a sua opinião, mas a palavra de Cristo. Repete, incessantemente, que vem em nome de Jesus, em poder e autoridade gentilmente cedidos por Ele. “Para que ninguém nos engane”. Desperta curiosidade e gáudio, este jovem moreno, magro, de barba e cabelo desgrenhados, munido de Evangelho e mochila. Quer saiba ou não, irá certamente parar a uma qualquer rede social, como meme ou vídeo viral. Eu penso em Bashô.

no lugar sagrado
as pessoas não param
de se empurrar

No trabalho, um colega partilhou estes dias a sua alegria por ter descoberto uma igreja onde a missa é em inglês, útil para a sua família sul-africana em que nem todos falam português. Quanto ao jovem, o seu pregão não parece ter fim, nem a sua fé, o trânsito, a multidão, o barulho ou a música. Pergunto-me o que faz quando não está ali, do mesmo modo que me pergunto o que fazem os vendedores de castanhas quando acaba o Outono, se bem que actualmente, como o clima anda, já ninguém estranhe que se vendam castanhas e gelados, harmoniosa e simultaneamente. Espero que caminhe na luz em que se vê.

ninguém diz
como molhou as mangas
nesta retrete

Caminho umas poucas centenas de metros até onde me esperam. No primeiro dia, sentei-me com eles à espera uns bons dez minutos, até fazer a pergunta certa. Saber quem gosta de grão, quem prefere uma certa sopa ou não come sopa, de todo, tem miúdos ou é intolerante à lactose. Prestar atenção a rostos, números, caixas, datas. Voltar a usar avental. Enganar-me a registar coisas. Saber quem vem hoje e quem quase nunca vem e que, por isso, precisa de um pouco mais. Saber quem vem todos os dias e, ainda assim, parece acreditar que o pão nosso de cada dia não é suficiente. Sei bem como é, o medo e o não confiar que existe essa abundância em tudo. Ironicamente, é em parte devido a essa abundância, esse excesso, até ao nível do desperdício, que aqui estamos.

o meu amigo
trouxe arroz
e a lua

Saber quem tem luz, água, casa. Cometer mais erros. Recordar quem se queixou com uma careta, na semana passada, de que não gostava de beterraba, e que parece vir quando lhe apetece ou melhor, age sempre como se não fosse aparecer. É preciso lavar as mãos e limpar a bancada muitas vezes. Não misturar utensílios. Usar uma touca na qual o meu cabelo claramente não quer caber. Dar conta da loiça que se acumula tão rapidamente. O pão mais requisitado é o de fibra, com sementes e passas, logo o que há em menor quantidade. Adoro esse pão, mas ainda não consigo associar os nomes aos rostos ou ambos aos números. Rejo-me por listas e perguntas, por apresentações. Sinto que estou numa cozinha mas não cozinhei, num restaurante mas não existem mesas, só cadeiras e fila e uma sala de espera, que estou numa padaria mas ninguém pede a conta, num supermercado em que toda a gente traz o seu saco, leva e devolve recipientes de cada vez, sem IVA, factura ou cartões de desconto.

enrola bolos de arroz
só com uma mão
com a outra afasta o cabelo

Um homem, cuja comida vou ajudando a colocar dentro do saco (entre carne, arroz, bolos, iogurtes, salada de frutas) pergunta-me se sou de Cabo Verde. Um sinal? Não que precisasse de um para saber que estou precisamente onde devo estar. Rio-me, respondo que é a pergunta que mais me fazem, talvez mais do que como é que me chamo. Estende-me a mão, cumprimentamo-nos. Digo-lhe de onde vim. Ele é angolano mas, pelos vistos, é frequentemente confundido com um cigano. “Então se estiver de preto e com um chapéu… os próprios ciganos já nem perguntam, assumem que sou um deles.” Somos todos tudo, nenhum lugar é garantido e todos podem ser invertidos, mas duvido que este homem precisasse da invenção das hashtags para saber de algo tão básico.

1686 ANO NOVO

Comendo o que me dão e o que mendigo, sobreviverei
sem fome até ao fim do ano.

talvez eu seja
uma dessas pessoas felizes
que vão chegar ao fim do ano

Servem-me café num conjunto antigo de chávena e pires delicados, com arabescos florais, do qual me esqueço, como vem acontecendo muitas vezes. Tomo-o já frio, não me demoro porque, afinal, duas horas passam demasiado depressa, mesmo se bem passadas. Oferecem-me um saco carregado de fragrantes maçãs colhidas no fim de semana, de quem tinha toneladas e toneladas de excedentes para doar, desde que alguém fosse buscá-las. Garantimos que toda a gente leva alguma. Há, ainda, pêras. Sinto sempre que poderia, facilmente, ficar mais tempo, como os meus colegas voluntários. Tempo para os outros, quando não nos são nada de instituído social ou biologicamente, tempo para nos fazemos úteis a alguém é tempo para recuperarmos algum silêncio, alguma humanidade. Para a semana, para mim, há mais, espero que por muito tempo, agora que voltei a isto. Para outros, todos os dias são dias assim, vulgo a sua vida. Espero que não para sempre.

19 Set 2019

Travessa do Fala-Só

[dropcap]E[/dropcap]ra inevitável. Um acidente à espera de acontecer, um crime à espera de ser testemunhado. Até agora a coisa tinha-me corrido bem, porque sempre estive consciente dos olhares e antes de perpetrar a infracção os alarmes interiores soavam e suspendia o que iria fazer.

Mas desta vez não. Estava demasiado distraído, defesas em baixo. Estava até, confesso, a precisar de fazer o que fiz. E não consegui evitá-lo. Sim, amigos: fui apanhado a falar alto e comigo mesmo no meio da rua.

Corrija-se, a bem do rigor jornalístico: não foi na rua, foi numa estação de metropolitano. Mas aconteceu. Não me lembro do assunto da conversa que me estava a ocupar; apenas de que falava alto, gesticulava e tinha reacções histriónicas ao que ia dizendo. Só parei quando uma simpática idosa, com o olhar a transbordar de compaixão, se aproximou de mim e perguntou se eu precisava de ajuda e se estava perdido.

Podia ter respondido filosoficamente que sim a ambas as perguntas mas percebi que não era a isso que a generosa anciã se referia. Ali estava um marmanjo, no meio de um cais de estação de metro, a ter uma acesa discussão com um amigo imaginário. Mesmo tendo um ar inofensivo e felizmente longe de parecer um sem-abrigo, acredito que a visão possa assustar quem a presencie. Mas eis a verdade: eu pratico estes diálogos desde pequeno. Talvez por ser filho único habituei-me a longas cavaqueiras comigo como interlocutor. Às vezes redundavam em acesas discussões e deixava de me falar por umas horas, zangado com os meus argumentos.

Continuei a praticar a modalidade em público e ainda o faço. Não tenho vergonha. Apenas não me esqueço da célebre frase do poeta Dylan Thomas, ele próprio um grande fazedor de enormes diatribes contra ele próprio: “Alguém me está a maçar. Acho que sou eu”. Nessa altura calo-me.

Ou então falo mais baixo, não me lembro. É normal para mim passear na rua imaginando-me um Demóstenes ou um Churchill discursando para a House of Commons. Só que neste caso o parlamento sou eu e nem sempre aplaudo o discurso.

Acredito que haja mais gente como eu, sem grandes perturbações psiquiátricas, que faça o que eu faço. Deveríamos formar um sindicato, um clube, uma agremiação, uma banda, qualquer coisa.

Reparem, meus irmãos do solilóquio: agora até temos os “estudos” que provam que falar sozinho é sinal de génio. Pela minha parte ainda não dei por nada mas a esperança mantém-se.

Há pouco tempo vi na rua o que me pareceu ser um destes companheiros. Falava sozinho sem complexos e até sorria, caminhando com uma segurança inaudita e digna da minha admiração.

Apeteceu-me abraçá-lo e aproximei-me: afinal estava a falar ao telemóvel, com um aparelho instalado no ouvido. Não nego que fiquei desiludido. Mas por outro lado e por um instante reconciliei-me com as novas tecnologias de comunicação que permitem que tipos como eu possam passar mais despercebidos na via pública.

Olhem, amigos: eu até contava mais episódios mas infelizmente não posso. Tenho de sair e há uma conversa longa que preciso de ter comigo mesmo.

18 Set 2019

Volúpia de grafite

Galeria do 11, Setúbal, 31 Agosto

 

[dropcap]P[/dropcap]or razões de mera logística, acabei perdendo um daqueles momentos de fruição, o lançamento de obra aparelhada em magnífico cenário, novo e maduro fruto da paixão do Jorge [Silva]: «M. Lapa – Ilustração». Para já, vai deslumbrando, e com isso apaga, nem que seja por instantes, a longa travessia da instável ponte dos orçamentos apertados, das burocracias ameaçadoras, dos perigos constantes, como se dançássemos na ponte bamba sobre desfiladeiro vertiginoso em plena selva, na ilustração expressionista de Lapa, pejada de animais selvagens do mais variado tipo. O grande gozo está na partilha, no desocultar, afastando pesada cortina, do trabalho prolongado e discreto, daqueles que foram fazendo chão, cenário sem importância do que por nós passa. Não me custa, gordo-burguês que aprendi a ser, afastar as questões ideológicas, para desfrutar apenas das imagens. Há muito folheio as páginas da revista «Atlântico», em qualquer afã instrumental, ou apenas para me deixar levar na cadência gráfica da tipografia e do desenho, arremedo da arte antiga da iluminura a seduzir olhar e gesto, o do manuscrito e o dos que queiram entender a disposição da linha, a sempiterna enigmática ocupação da folha. Tenho para mim que um dos momentos de maior fulgor da civilização encontra-se na definição da página como horizonte maior da leitura, terreno de saber e imaginação. Não páram de se suceder os deslumbramentos, alguns menos óbvios, tal os esboços.

Tenho que me controlar para regressar a este texto, desobedecendo ao apetite de continuar a folhear. O inacabado abre uma janela para o processo, para o pensamento em acção, como papel e o lápis ou o marcador, enfim, os materiais, também eles a dizer do gosto, do equilíbrio e do seu contrário. Aprecio o incerto, como fresquidão da cerveja na garganta, pelo que me perco com facilidade nos bastidores do inacabado. Com a inteligente simplicidade que colocou na arrumação de mais este volume, o Jorge alimentou este meu vício com secção ocupada com indicações de futuras paginações de vários livros e revistas, como a Prelo, da Imprensa Nacional Casa da Moeda, mas denunciando nesse caso um interesse pela fotomecânica que afecta a costela romântica do desenho, aquela a sujo de grafite.

Bela, Lisboa, 3 Setembro

Na pauta do verso dito nas colinas da cidade, as «Primas Terças», do mano André [Gago], soam a veterania. [Georg] Trakl foi a floresta escolhida para se erguer na noite, ventosa como convém aos expressionismos chiaroscuro. A celebração de Baco começou antes, no Santa Clara Mix Café, do Jacinto [Gameiro] e da Cila, anfitriões de rara qualidade, que resolveram assentar arraiais ali na beira-panteão. A incorrecção política será castigada, mais tarde ou mais cedo, pelos polícias do gosto, mas interessa sobretudo o bem servir e melhor acolher. Para a função estavam convocados o Carlos [Barretto], que rasgou paisagens no espaço acanhado, o [José] Anjos, na voz cava, e, além do anfitrião-orquestrador, o tradutor e ressuscitador-mor das línguas-mortas, António [de Castro Caeiro]. Brilharam intensidades, em certos casos, no extremo da comoção. Com ponta de estranheza, o poeta aconchegou-se aos meus dias. «Sobre o canto negro, precipitam-se,/ À tarde, os corvos com um forte grasnar./ As suas sombras tocam, ao de leve, nas corças,/ E, às vezes, são vistos a descansar de mau humor.// Oh! como eles perturbam o castanho sossego,/ No qual um campo se exalta / Como uma mulher que um grave pressentimento enfeitiça,/ E, às vezes, podem ouvir-se crocitar.// Por causa de uma carcaça cujo cheiro algures sentiram./ E, de repente, dirigem o voo para norte/ E desaparecem como um cortejo fúnebre/ Na atmosfera que estremece de volúpia.»

Horta Seca, Lisboa, 10 Setembro

A visão de Robert Frank (1924-2019) não acenderá mais nenhuma câmara. As redes encheram-se das suas imagens, das poucas que resistem ferozmente ao desgaste da incessante multiplicação de imagens. Até ao zero absoluto, o do banal indistinto em nos vemos mergulhados. Milhares de imagens serão ainda mais traficadas por estes dias, meia dúzia de bytes, que não valem uma ampliação sem distorção, mas pouco afectando o seu carácter esmagador que nem cavalo erguido sobre as patas traseiras. Cavalgando as regras, todas e cada uma, as imagens de Frank são momentos de real, abrem a cortina para o teatro que aconteceu naquele exacto lugar, com aquelas pessoas de nome próprio, em conjunto crescendo por inteiro e excessivo, carnal e bruto, etéreo e luminoso, enfim, humano. Era um raptor de histórias. Não sabíamos do tecido do humano até lhe vermos as fotografias. E por isso colecciono para os dias de Inverno e Setembro os seus auto-retratos, mesmo aqueles nos quais inclui outros, por exemplo o da companheira, suprema ternura. Que tem isto a ver com a frieza da banalidade omnipresente nas selfies destes dias? Nele, o humano ergue-se e desafia a escultura: vês que esta ruga não se fez monumento?, sentes o sangue nesta mão?, percebes que existo por causa destes olhos? Somos mais quando somos capazes de ir ao teatro vermo-nos nos outros, corvos saltitantes nos pastos da dor e da alegria. Não sabíamos quem éramos, que corpo tínhamos, de que alma viemos ou iremos, até entrarmos nas fotos de Robert Frank.

Horta Seca, Lisboa, 10 Setembro

Deixam de ser, para o nosso sempre, íntimo e talvez intransmissível, dias iguais. O calendário de Setembro está picado pelos corvos, umas vezes poisam na pedra do mau humor, noutros grasnam ao desafio pontuando os céus. Há uma estranheza de verso na circunstância de assinalarem tantos e tão queridos. O negro dos corvos brilha de tão definitivo e não sei bem como o interpretar.

Horta Seca, Lisboa, 16 Setembro

Sabemo-lo, coisa crónica na dita, refrão acompanhado à guitarra pela morte: as segundas-feiras são um concentrado de ansiedade, um nó cego de urgências e desatinos. No meio de mais esta fruste tentativa de, através da palavra, encontrar sentido no que faço – na bisga, sempre na bisga – vejo-me entalado entre inventar tentativa para dar cor à palidez da presença no pavilhão 61, da Feira do Livro do Porto, e rever em definitivo a nossa participação no Fólio deste ano, em torno de «O Tempo e o Medo», e no qual o Hoje Macau deixará também a sua marca. Isto para dizer o mínimo do «instantece» agora mesmo. Já agora, o programa promete, sobretudo nas entrelinhas do que se escreve com holofotes.

18 Set 2019

A indiscernibilidade humana

[dropcap]L[/dropcap]eonardo era um “habitué” do bar Academia da Cachaça, na Barra da Tijuca e fazia parte da equipa de roteiristas da Globo. Apesar de ter cursado engenharia mecânica, era apaixonado por filosofia e cachaça, e entre vários assuntos que dominava verbalmente com prazer, costumava discursar acerca da natureza humana. Começava quase sempre por contar a mesma estória de um homem que não distinguia um “doberman” de um “rothweiler”, mas gostava de cães, que não distinguia um acorde menor de um acorde maior, mas gostava de música, que ao comer, ou quando ia ao mercado de peixe, não distinguia um dourado de um namorado, mas gostava de peixe. Por fim, rematava: “Nós não precisamos de saber para gostar. Se para gostar fosse necessário conhecimento, ninguém gostava de ninguém. E o amor só existe porque se sabe muito pouco de nós e do mundo. É uma espécie de compensação. Já que não se sabe, pega-se no gosto.” E pedia mais um chopp e uma “Boazinha”. A cachaça era um dos assuntos preferidos e que dominava, mostrando com orgulho o cartão de “Notório Cachaceiro”, atribuído pela Academia da Cachaça a quem se destacava na apreciação dessa aguardente de cana, a quem conseguia distinguir as diferentes proveniências desse líquido e não a quem mais o bebia. Ao tempo, em 2005, o número do seu cartão era o 241, num universo de apenas 350 já entregues. Ter esse cartão, além de ser uma distinção, dava-lhe direito a um caldinho de feijão e uma cachaça à sua escolha – desde que não fosse a Anísio Santiago – todos os dias, gratuitamente. Acerca do assunto, dizia que havia duas famílias distintas de cachaça: “As que têm entre 38 e 39º de álcool e as de 42º a 45º de álcool. A diferença alcoólica faz com que sejam quase duas bebidas diferentes. Contrariamente ao que as pessoas julgam, as madeiras onde são envelhecidas não tem muita influência nesta diferença, embora de modo geral as cachaças com menos álcool sejam envelhecidas em carvalho, como as de Friburgo (Rio de Janeiro), e as com mais álcool sejam envelhecidas em jaquitebá e em bálsamo, principalmente em Salinas (Minas Gerais).” Ouvi-lo falar e mostrar as diferentes cachaças era um modo delicioso de ouvi-lo contradizer-se. Pois acabava sempre por acrescentar: “Quanto mais se sabe de cachaça, mais se aprecia”. O que levava sempre os seus camaradas de mesa a contrapor que isso era o que acontecia também com a música e com tudo o resto, que quanto mais se conhecia o assunto mais se apreciava. Mas Leonardo tinha resposta para tudo: “É claro que quanto mais se sabe, mais se aprecia, mas não é necessário saber para apreciar. E é isso que contrapõe a natureza humana à ciência. A vida não só não precisa de leis como elas atrapalham uma boa gestão da mesma. Saber de música ou de cachaça é a ciência que se pode ter na vida, é uma imitação de ciência, necessária para nos esquecermos de que não sabemos o que realmente importa: porque estamos aqui, quem somos, o que é esse tal de universo.” O que o atraía na cachaça, para além do sabor, era a natureza humana que encontrava em cada garrafa. Depois de uma pausa e enquanto terminava a “Boazinha”, dizia: “Nada é mais parecido com a incongruência do que uma boa cachaça!”

Leonardo era um bom camarada de mesa, ninguém contestava e todos apreciavam a sua companhia e os seus dislates. Aliás, ele mesmo não discordaria que uma boa mesa precisa mais de dislates do que de ciência. Chegava a uma hora da noite que se despedia, dizendo: “Galera, vão ter de me desculpar, mas agora vou para casa fazer o ódio com a minha mulher.” E lá ia, voltando sempre ao final do dia seguinte, religiosamente, para as suas cachaças e os seus dislates, que dizia darem-lhe mais saúde do que ir para o paredão ou para a academia.

17 Set 2019

Pärt, o expoente máximo da avant-garde soviética

[dropcap]A[/dropcap]rvo Pärt, nascido no dia 11 de Setembro de 1935 em Paide, na Estónia, é um dos representantes mais radicais da chamada “avant-garde soviética” e um dos compositores cujo output criativo, que passou por um profundo processo de evolução, alterou significativamente a forma como compreendemos a natureza da música.

Em 1944, com 9 anos de idade, Arvo Pärt presencia a ocupação da Estónia pela União Soviética, ocupação que duraria 50 anos, e deixaria profundas impressões sobre si. Em 1954, ingressa na escola secundária de música de Tallinn, a capital do país. Durante e após estudos de composição na classe de Heino Eller no Conservatório de Tallinn, onde se formou em 1963, trabalhou como engenheiro de som na Rádio da Estónia até 1967. Em 1962, uma das suas composições, para coro infantil e orquestra, O Nosso Jardim (1959), rende-lhe o primeiro prémio de jovens compositores da URSS.

O seu primeiro período criativo começou com música de piano neoclássica. Seguiram-se dez anos nos quais fez o seu próprio uso individual das técnicas composicionais avant-garde mais importantes: dodecafonia, composição com massas sonoras, aleatoricismo, técnica de colagem.

Nekrolog (1960), a primeira peça de música dodecafónica escrita na Estónia, e Perpetuum mobile (1963) proporcionaram ao compositor o seu primeiro reconhecimento no Ocidente. Ainda no início dos anos 60, inicia-se na composição serial, com as suas duas primeiras sinfonias. Isto provoca inimizades, dado que a música serial era considerada um produto da decadência burguesa ocidental. Nessas circunstâncias, a sua obra seria severamente limitada. Ambos o espírito avant-garde das suas obras iniciais, assim como o aspecto religioso da música que compôs nos anos 70, levaram a críticas controversas e a confrontos com as autoridades soviéticas.

Também incorretas politicamente, no contexto soviético, eram as suas composições de inspiração religiosa e a técnica de colagem que adoptou por algum tempo. Nas suas obras de colagem, o avant-garde e a música antiga confrontam-se ousada e irreconciliavelmente, um confronto que atinge a sua expressão mais extrema na sua última peça de colagem Credo (1968), um ponto de viragem na sua obra e na sua vida. Nessa altura, todos os dispositivos de composição que Pärt havia empregue até ao momento haviam perdido o seu fascínio anterior e começaram a parecer inúteis para ele, renunciando às técnicas e meios de expressão usados até então.

Em 1976, após um período de silêncio de quase oito anos, durante os quais se envolveu no estudo do canto gregoriano, da escola de Notre Dame e da polifonia vocal clássica, em busca da sua própria voz, criou uma linguagem musical única chamada tintinnabuli (do latim: ‘pequenos sinos’), que alcançou um público vasto e que definiu o seu trabalho até hoje. O compositor explica: “Eu trabalho com muito poucos elementos – somente uma ou duas vozes. Construo a partir de um material primitivo – com o acorde perfeito, com uma tonalidade específica. As três notas de um acorde perfeito são como sinos. Por isso eu o chamei tintinnabulação”. Não há nenhuma escola de composição que siga Pärt, nem este ensina; no entanto, uma grande parte da música contemporânea foi influenciada pelas suas composições tintinnabuli. A primeira obra desse período foi a pequena peça para piano Für Alina (1976), rapidamente seguida por obras como Cantus in Memory of Benjamin Britten (1977), Fratres (1977), Tabula rasa (1977), Spiegel im Spiegel (1978) e muitas outras. É óbvio que, com esse trabalho, Pärt descobriu o seu próprio caminho. O “princípio tintinnabuli” não busca um aumento progressivo da complexidade, mas sim uma redução extrema dos materiais sonoros e uma limitação ao essencial. Em 1980, os problemas constantes com a censura soviética levam o compositor e a sua família a emigrar, primeiro para Viena e a seguir para Berlim, com uma bolsa DAAD (Serviço Alemão de Intercâmbio Académico), onde ficaram mais de 30 anos.

O ano de 1984 marca o início da sua colaboração criativa com a distinta editora ECM Records e com o produtor Manfred Eicher, e a primeira gravação de Tabula rasa. Desde então a sua música foi apresentada e gravada pelas melhores orquestras dos nossos tempos. Em 1996, torna-se membro da American Academy of Arts and Letters. Em 2010, regressou à Estónia onde reside hoje em dia. A obra de Pärt é rica e versátil, incluindo muitas composições de grande escala para orquestra, quatro sinfonias e obras para solistas e orquestra, assim como numerosas peças corais e de câmara. A maior parte das suas obras mais recentes são baseadas em textos e orações litúrgicas, como Passio (1982), Te Deum (1985), Miserere (1989/92), Kanon pokajanen (1997), e Adam’s Lament (2010), para mencionar apenas algumas. Actualmente o compositor continua a aperfeiçoar o seu estilo tintinnabulum. As suas obras foram executadas em todo o mundo e foram objeto de mais de 80 gravações, além de terem sido muito usadas em bandas sonoras de filmes e em espetáculos de dança.

 

Sugestão de audição:
Arvo Pärt: Für Alina
Alexander Malter (piano) – ECM New Series Classics, 2008

17 Set 2019

Determinismo

[dropcap]N[/dropcap]uma desses depoimentos desabridos que o à-vontade e a espontaneidade do Facebook permitem desafogar alguém disse en passant: “…as pessoas cuja identidade de género não corresponde ao sexo que a sociedade lhes atribuiu à nascença…”

Não é forçoso que quem isto proferiu requeira como corolário epistemológico da sua afirmação que a diferença entre os espermatozóides xx e xy não passe de uma burla engendrada por uma ciência hetero-patriarcal (já agora branca e capitalista, para se completar de razões). Mas tudo na afirmação implica que o xx e o xy terá contribuído muito menos para a atribuição do sexo dos nascituros do que a sociedade em que eles vieram ao mundo.

Claro que se pode aludir que esta frase vale o que vale a maior parte dos dizeres pespegados nas redes sociais, por norma superficiais e preconceituosos, na medida em que são segregados sem reflexão e por mera adesão sentimental às ideias mais cintilantes que “andam por aí”; e decorrentes de um fervoroso – embora denegado – moralismo, porque buscam o consolo dado por uma lei justa, geral e universal, que ao identificar e denunciar os “culpados” julga ter encontrado a “resposta.”

Mas porque procede de uma convicção validada nalguns círculos, mesmo se tomada como embuste a frase não deixa de ser sintomática. Não só porque deriva de um ethos que se vai trivializando e condensando em certas meninges e se vai tornado dominante, como essas tais meninges se têm na conta de indubitavelmente cultas e privilegiadamente inteligentes – como podia ser de outro modo pois se ao contrário da massa de alienados, já são detentoras das chaves epistemológicas que determinam a vida humana?

A frase é sobretudo reveladora do estado de alienação inerente – dizer “genético” seria demasiado sarcástico – aos apaniguados do determinismo social, pois acarreta uma contradição que eles não detectam. Ou melhor: que esqueceram, pois em tempos ela foi “resolvida” pelas investigações de Lisenko, as quais acabaram no caixote de lixo da ciência após a proverbial pilha de vítimas mortais do dogmatismo soviético.

O determinismo social é uma espécie de Frankenstein composto pela certeza “científica” do “materialismo histórico” e pela persuasão “científica” do positivismo comtiano que aglutinados e sujeitos a uma série de descargas eléctricas políticas e filosóficas aparentam ter vida própria.

Há um dito que virá aqui a propósito: quando se tem um martelo todos os problemas são pregos. Se até o sexo dos nascituros é determinado socialmente então o determinismo biológico (e o físico, e o químico) é irrelevante. Ora a biologia, a física e a química, foram as áreas em que o conhecimento humano penetrou na natureza; por via desse formidável instrumento mental que é a razão elas constituíram-se como ciências e esta, segundo os seus rigores de observação e análise, estabeleceu as leis que determinam os eventos naturais. Portanto, se é a biologia que comprovada e cientificamente determina o sexo dos nascituros como pode arrogar-se de científico e determinante o “determinismo social” que suspeita da sua validade?

Uma das mais efervescentes e criativas regiões da filosofia que ainda se vai fazendo é que discute com a ciência a complexa, enigmática e buliçosa fronteira entre o determinismo da neurociência e o livre-arbítrio, ou seja, a liberdade do ser humano, o único animal que produz semântica e demonstra intencionalidade. Para esta controvérsia pouco têm contribuído os expertos “continentais” do determinismo social, impantes nas suas convicções epistemológicas, afinal estanques a qualquer discussão científica dado serem sistematicamente carentes de prova matemática ou empírica, na melhor das hipóteses argumentando com a falaciosa prova testemunhal.

Este ensimesmamento do determinismo social tende desgraçadamente a gerar nos seus adeptos uma consequência que contradiz a sua suposta índole científica. Dado que se protegem e defendem com recurso a uma desconfiança inamovível e infundada – mas nada cartesiana – contra tudo que resiste a ser “prego”, amiúde fazem incidir esta atitude de suspeita apelidada de “crítica” sobre os enunciados da ciência. Aquilo que designam com alacridade de “saberes alternativos” acaba por degenerar na legitimação e ratificação de modelos de pensamento pré- ou anti- Razão ou seja na visão do mundo característica da era medieval. “Obscurantismo” é a palavra justa para a qualificar.

15 Set 2019

A Grande Dama do Chá

 

[CAPÍTULO ANTERIOR]

 

[dropcap]O[/dropcap] jazz absorvia todos os pecados do mundo. E depois distribuía-os, em forma de música, para absolver as almas. Enquanto dançavam alguns representavam um papel. Outros, sentados, fumavam e conspiravam só com o seu olhar, que percorria incessantemente o salão principal do hotel Riviera. Algumas mulheres observavam os seus maridos, homens influentes da sociedade de Macau, e outros homens que não conheciam. A cidade era pequena e os segredos de cada um não estavam fechados a sete chaves. Surgiam por ali alguns estrangeiros, alguns deles espiões ingleses ou americanos, e homens de negócios chineses. Só o som da Benny Spade Orchestra suavizava todas as tensões naquele fim de tarde. Estava muito calor nas ruas. Entre os que ali estavam, alguns tinham lido a edição do “South China Morning Post” com as últimas das batalhas cada vez mais sangrentas entre japoneses e chineses e das lutas entre os diferentes senhores da guerra da China. Ninguém ali presenciara uma guerra, com os seus corpos caídos sem vida, as cearas queimadas e os animais mortos. A guerra preocupava, mas estava distante. Vivia-se e dançava-se ao som do jazz.

Enquanto estava em cima do palco, com a Benny Spade Orchestra, Cândido Vilaça pensava que, um dia, poderia ambicionar a tocar sozinho. E contar histórias próprias com o seu saxofone. Ele poderia ser a sua forma de gritar. Indiferentes aos seus pensamentos e ao mundo que caía à sua volta, as pessoas dançavam e transpiravam. Talvez essa fosse a atitude mais sensata, pensou. No meio do fumo reparou que Jin Shixin deixara o salão e fora até à varanda do hotel. Quando, largos minutos depois, deixou o palco, encontrou-a ali. Quando o viram, os olhos amendoados de Jin semicerraram-se, dando ainda mais realce à franja do seu cabelo preto, que lhe caia até junto das sobrancelhas. Quando estava assim, Jin parecia ainda mais bela e misteriosa. Cândido sentou-se a seu lado e um estranho silêncio estabeleceu-se. Por fim ela disse:

– Será isto aquilo a que chamam paz?
– Talvez. Não sei.
– É capaz de ser. Afinal temos de poder confiar em alguém ou em algo, para podermos dormir sossegados à noite.

Durante quase meia hora estiveram ali, falando calmamente, com o coração a responder ao coração, os olhos de um a lerem os do outro, as mãos juntas, até que finalmente Jin se levantou e disse:

– É tarde. Vamos até à minha casa?

Ele fez um ar enigmático e ela respondeu:
– Esta noite não tenhas medo de nada. Os deuses estão connosco.

Saíram do hotel Riviera, passando pelo salão onde ainda estavam alguns portugueses com as suas mulheres e amigos. Alguns jantariam ali, numa socialização quase ritual e preguiçosa. À porta estava Potapoff e um condutor, que os conduziram, em silêncio, até casa de Jin. Quando chegaram esta disse:

– Podes ir descansar esta noite, Potapoff. Estou segura.
– Está, senhora?
– Tomei as minhas precauções.

Não disse mais nada, mas o russo pareceu perceber o que ela queria dizer. Depois de entrarem em casa dela, beijaram-se e as suas mãos procuraram o corpo do outro. Despiram-se e foram até à cama. Os seus corpos embateram um no outro, numa estranha batalha de amor onde ambos queriam ficar sem forças. Para, depois, repousarem, inertes pela energia gasta e sem capacidade para pensarem em mais nada a não ser no corpo um do outro. Só mais tarde Jin soergueu-se na cama e dobrou as pernas, encostando os joelhos aos seus seios. Cândido ficou estendido, com os olhos fechados, escutando a voz da chinesa:

– Só estes momentos me relaxam. Preciso cada vez mais deles. Antes de voltar à minha missão. Compreendes, não é verdade? É preciso estares disposto a morrer no intento de a cumprir. A morrer. Sem metáforas.

Combates ou morres. Fazes frente ao inimigo ou o inimigo mata-te. Tu tens outra coisa a defender, e não é a vida. É o teu saxofone. É a tua música. O teu sonho de vida.
Cândido agarrou-lhe na mão e, depois, soergueu-se. Beijou Jin nos lábios.
– Precisas de amor na tua vida.
– O mundo que amava desapareceu. Agora não há paraísos por descobrir. Tudo são infernos, com máscara agradável ou não. O inferno está a subir até onde estamos a arder.
Jin passou a mão pelo cabelo de Cândido e depois encostou a cabeça dele a um dos seus seios. Ficaram assim durante algum tempo, antes dela dizer:
– Posso contar-te uma história?

Perante o silêncio dele, ela continuou:
– Em finais do século Nove, nas últimas décadas da dinastia Tang, os melhores alquimistas chineses criaram a medicina do fogo, como lhe chamaram. Buscavam a fórmula da mortalidade mas encontraram uma receita mortal. As suas virtudes curativas foram depressa superadas pelas suas utilidades bélicas. Começaram a fazer-se batalhas com flechas de fogo, mas esta pólvora mortal só voltou a ser mesmo efectiva quando chegaram os ocidentais. Porque, na Europa, desenvolveram as suas qualidades, não para curar, mas para criar armas de fogo cada vez mais mortais. E foi com elas que subjugaram a China. É com isso que os japoneses estão a matar-nos. É contra isso que luto e lutarei, até morrer.

Cândido beijou-lhe o seio e olhou para ela e para os seus olhos estranhamente tristes. Jin disse:
– És tão perfeito e, às vezes, inocente. Às vezes penso que és uma espécie de uma fada de que vocês falam, foi enviada para viver no meio dos mortais e descobrir quais são os nossos pecados. A diferença é que te tornaste um de nós. E vais perdendo o que tens de fada.
Riu com o que dissera. Cândido disse:
– Qual é o verdadeiro jogo, Jin?
– O meu jogo não sou eu que o faço. Estou só, acreditando apenas no que sei e rindo defronte dos meus inimigos. Conheço as leis dos ocidentais, porque são fundamentais para que eu conheça os homens. Vou contar-te um segredo. Deixei, em Xangai, que os padres me ensinassem a religião porque é através dela que eles comandam as pessoas. Muitas vezes, eles são mais loucos do que as almas que eles assustam. Mas os padres têm poder. Muitos têm medo deles. Por isso lhes fazem ofertas, para que engordem e sosseguem.

Cândido esboçou um sorriso. Beijou a mão de Jin e virou-a, olhando para a sua linha da vida. Era longa. Depois disse:
– Não desconfias da Marina?
– Não. Desde que ela me ame, guardará os meus segredos, e ela amar-me-á por causa dos segredos que partilhámos durante anos em Xangai.
– Sabes muito sobre ela. Mas, sabes, há sempre as sementes da ambição que muitas vezes toldam o raciocínio.
– O veneno da ambição cegam os que o bebem, Cândido. Julgam estar a beber a poção da imortalidade e enganam-se. O mundo está cheio de invencíveis que foram vencidos. Temos de pensar, se tivermos valores, sobre o que queremos deixar como memória. Podemos deixar um vazio, mas nunca um deserto. Há vida para além de nós.
– E agora?
– Agora estamos a chegar ao momento em que tudo se decide.
– Ou quase tudo. Há uma guerra à nossa volta.

Jin olhou para ele e sussurrou:
– A única guerra que importa é a que agora se trava aqui.
– E Du Yuesheng?
– A diferença entre mim e Du é uma: ele não confia em ninguém e eu sei em quem confiar. Fora isso, ele é o meu mestre. Nunca queiras pôr isso em causa.
Dizendo isto, Jin colocou-lhe o dedo nos lábios, calando-o. Depois beijou-o longamente.

 

[CONTINUAÇÃO]

 

15 Set 2019

Será a poesia feita de gnaisse puro?

[dropcap]N[/dropcap]em sempre Afrodite terá estado na disposição de dar vida a uma escultura para gáudio dos pigmaliões. Na ausência desse milagre e tal como afirmou Richard Rorty, no início dos anos oitenta, “há pessoas que escrevem como se só existissem textos”, imaginando-se abraçados ao monte de vénus de uma Galateia de mármore. Pobres nenúfares.

A noção de texto que Rorty evoca aproxima-se da dos dogmas das religiões do ‘Livro’ que fez do mundo, durante séculos e séculos, uma iluminura escrita. Para o homem medieval, todo o sentido do universo dependia de uma harmoniosa refracção entre textos. Os modernos alteraram a pulsação das coisas, sondaram territórios, interrogaram o que é (e o que não é) o homem, mas não resistiram à tentação de voltar a transformar a palavra em mandamento. Tanto estalinezinho que se pavoneou por essa Europa e por essa Ásia fora nos últimos dois séculos, tendo como refém verbetes limados, frases redondas e suratas definitivas.

Esta obstinação de escrever e de ler o mundo como se só existissem textos tem, de facto, marca categórica, fosse a sua origem escolástica, ideológica ou académica. A plenitude que cremos herdar (obsessivamente) do império da escrita sempre trouxe consigo esquadrias rígidas. Autores como Sade, Bukowski, Genet ou Céline, que misturaram registos elevados e ditos consagradamente levianos, viram-se amiúde como filhos de uma penitência menor.

No penúltimo Livro de A República de Platão, Gláucon reconheceu que a cidade ideal, longamente descrita ao longo dos diálogos da obra, era coisa ‘só de palavras’ (“Referes-te à cidade que edificámos há pouco na nossa exposição, àquela que está fundada só em palavras, pois creio bem que não se encontra em parte alguma da terra” – 592b/ p. 447). O fundamental estaria fora das palavras, seria até anterior a elas e, seguramente, jamais por elas fundado.

Se contarmos para trás a mesma distância que vai de Platão até ao nosso tempo, chegamos à Epopeia de Gilgamesh. Trata-se de um texto inscrito em argilas refundidas com origem na actual região do Iraque que data de antes de meados do terceiro milénio a.C., embora existam compilações conhecidas já do final do segundo milénio a.C..

O relato é um dos primeiros registos escritos da espécie humana. Não lhe pré-existindo uma matriz rígida para replicar (haveria matrizes mitológicas orais, como a de Afrodite que deu vida a Galateia para gozo supremo de Pigmaleão, mas essas sempre foram maleáveis e, portanto, sempre se alteraram no correr dos tempos ao contrário do dogma), o texto ocupa-se das coisas essenciais e não ainda de outros textos ou de idealidades contaminadas.

É por isso que a Epopeia de Gilgamesh é uma história de heróis e de deuses com os sonhos a funcionarem como ignição primordial. O tema de fundo é o da imortalidade, claro está: Gilgamesh bem tenta aceder ao dom da vida eterna, passa por mil obstáculos para o conseguir, mas acaba por se confrontar com o nosso denominador comum mais escandaloso: a mortalidade.

O que se torna fascinante, ao longo da leitura, é pressentir a respiração genuína dos humanos de há quase cinco milénios e perceber que o essencial que está em causa é o mesmo que, hoje em dia, ainda nos permite confiar (dir-se-ia mesmo ‘acreditar’) na poesia, porventura o único tipo de texto contemporâneo que, de vez em quando, tenta escapar a outros textos refundando-se radicalmente enquanto se forma e enuncia. A grande poesia restitui à fonte o leme perdido pela palavra. Pelo menos é neste tipo de transparência glosada que eu entendo a grande poesia, mesmo quando ela parafraseia as suas merdas, pois, ao fim e ao cabo, somos todos humanos e não génios a apalpar corpos perfeitos esculpidos em gnaisse puro.

Para uma boa leitura da Epopeia de Gilgamesh, aconselho a tradução/versão assinada por Pedro Tamen (Edições António Ramos, Lisboa, 1979).

12 Set 2019

O Homem Novo

[dropcap]O[/dropcap] Papa esteve em Moçambique. No seu discurso evocou Eusébio e Lourdes Mutola como dois resilientes e apontou-os como exemplo a ser seguido pelos jovens. Há uma ironia que verruma aqui, embora involuntária, pois o Papa não o saberia: o poder moçambicano gostaria muito de rasurar a memória desses dois “heróis evocados”, na leitura instrumentalista que faz da história, a Eusébio por ser um “traidor-não declarado”, ao preferir continuar a ser português, a Lourdes Mutola porque, de olhos abertos, lhes chamou ingratos e foi viver para a África do Sul com a sua “esposa”. Embora de grande notoriedade, e são uma história de sucesso popular, politicamente são bastardos.

Dois anos depois de ter chegado a Maputo, mudei de casa e no outro lado da rua havia um bar que passei a frequentar. Eu e o Mário Coluna, o mítico médio do Benfica no tempo do Eusébio, que fez a escolha contrária à do atacante e voltou para Moçambique depois da carreira, abraçando o país novo. E foi treinador de clubes, e da selecção. Após o que, pela surra, foi colocado na prateleira e passou a ser um reformado de luxo. Quando o conheci, invariavelmente pelas cinco da tarde, estacionava o seu Mercedes diante do bar e aí se sentava emborcando uns sobre os outros, uísques, em conversas que não me pareciam defensivas nem ofensivas.

Um dia recebo a encomenda para fazer uma sinopse para um possível filme sobre o Coluna, que teria, diziam-me, um empurrão para a produção do Carlos Queirós, e para apoio deram-me um álbum sobre o futebolista, em que se contava a história da sua vida, e que se chamava O Colosso. Soube então que era assim que ele era chamado em Moçambique: O Colosso.

Entreguei o trabalhinho sobre o qual não obtive nem uma palavrinha nem a prebenda, como se nada me tivesse sido encomendado – experiência que, aliás se repetiu. E continuei a ver O Colosso por ali, eu no meu canto com os livrinhos e um uísquinho para duas horas, ele na sua sede escancarada.

Um dia sentei-me na mesa ao lado da dele e ao cabo de uma hora de me ver concentrado em letras miúdas não resistiu a meter conversa comigo. E diz-me O Colosso: “Estes pobres, se não fossem os portugueses ainda estavam nas árvores!”, e ao mesmo tempo metia o cartão dele num canto da mesa. Era um ataque forte e pedia contenção na defesa. “Como?”. “…deram cabo de tudo e esqueceram que se não fossem os portugueses ainda viviam nas árvores! O Salazar é que…etc.” Vi-me no papel de fazer a defesa do diabo, “Olhe que os portugueses deixaram noventa por cento de analfabetos…”, ripostei, tentando amenizar-lhe o tom azedo, mesmo que sussurrado. Quando viu que defendia o seu objecto de desgosto, retirou o cartão da mesa, devolvendo-o ao seu bolso, e remeteu-se ao calado de mais um duplo.

Eu fiquei desconcertado, por desconhecimento. O Colosso, afinal, sentira-se usado, descartado e de expectativas desiludidas, e até apesar da excelente reforma que lhe dava o estado moçambicano, de ter visto o seu nome atribuído a uma rua e da Fifa ter apoiado financeiramente a sua Academia de Futebol na vila da Namaacha, a sessenta km de Maputo.

Não sei o que se teria passado para que ele – que fora um colaborador das forças que lutavam pela independência do país, antes do 25 de Abril, dando cobertura e tecto a clandestinos que passavam por Portugal no desforço da luta -, trinta anos depois da independência, à primeira oportunidade denunciasse uma tão entranhada nostalgia.

A dignidade de O Colosso, que agiu correctamente no seu devido tempo, não fica beliscada, da situação só ressalta a tremenda contradição entre as expectativas individuais e aquilo que o omnívoro processo dos Estados arma – é inevitável que o Estado se sirva das “suas” figuras; depois ou corrompe-as (não terá sido o caso de nenhum deles) ou as desilude porque rapidamente as faz sentir que foram úteis no “seu” momento mas não providenciais. Pode a “frustração narcísica” – para mais num país que pugnava pelo “Homem Novo” – ser acompanhada de uma declarada rejeição moral sobre os processos políticos, mas, até pela desproporção de forças, é mais raro, sendo mais comum uma conversão religiosa ou a defesa do álcool. O Colosso, nos derradeiros anos da sua vida, passara de médio atacante a defesa central.

Recentemente, assisti a alguns filmes realizados por moçambicanos que foram alunos da Escuela Internacional de Cine y Televisión (EICTV), entre os quais um ironicamente chamado El Hombre Nuevo, de Lara de Sousa. O “Homem Novo” foi um conceito doutrinário comum aos países socialistas, para significar o “segundo nascimento” dos que são membros e co-criadores da nova sociedade socialista. Nesse filme que se passa numa barbearia cubana, el “hombre nuevo” aplica-se a um novo tipo de penteado que apraz muito aos jovens, que nas conversas argumentavam pela “naturalidade” do machismo e do papel viril do homem – apesar do penteado, aquilo pareceu-me muito velho, para lá de idoso, e consterna pensar que depois de 60 anos de revolução cubana e de uma “nueva educacion” tudo está apenas mais “castiço”, tal como constrange constatar que, trinta anos depois da independência, o Papa não teve outros valores moçambicanos para referenciar que o de dois desportistas – um impulsionado pelo Estado Novo e outro fruto da carolice individual. São demasiadas gerações desbaratadas para tão pouco.

Fazia parte das premissas das sociedades que promoviam o “Homem Novo” um “Esquecimento Consecutivo”, o que justificará o rol de omissões e o esforço para abafamento dos meritórios que continua a vingar nos países que abraçaram o “socialismo”, onde só o colectivo importa e as personalidades, num momento ou noutro, se tornam incómodas, personas non gratas. Neste sentido, a visita do Papa acabou por ser salutar, mesmo que involuntariamente.

12 Set 2019