A beleza do Rio

[dropcap]R[/dropcap]ogério tinha 55 anos e era aposentado da companhia área Varig. Sem muitos luxos, mas vivia no bairro do Leblon a duas quadras da praia. Além de um bom papo acerca de samba e bossa nova, Rogério gostava da cidade do Rio e do time Fluminense, com a mesma paixão. Uma noite, um estrangeiro foi descuidado em dizer durante um jantar “Rogério, o Rio é lindo, mas para mim há outras cidades mais bonitas”. No dia seguinte, às 9 da manhã, Rogério estava à porta do hotel do cara, para fazer um tour privado pelo Rio, durante o dia todo.

Não aceitava que alguém pudesse pensar que existisse outra cidade mais bela do que a da sua paixão. O passeio começou pela Vista Chinesa, na floresta da Tijuca, de onde se avista, do cimo, grande parte da cidade: o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, a Baía de Guanabara, as praias de Ipanema e do Leblon, a Lagoa e Niterói. É realmente uma vista de tirar o fôlego. O estrangeiro agradeceu a Rogério e reiterou a sua posição: “A cidade é muito bonita, mas gosto mais de outras cidades”. Pra Rogério aquilo era o fim.

Pegou no cara e desceram até à Lagoa, até ao Leblon, Ipanema, Copacabana. Almoçaram no bar Veloso, onde Vinicius de Moraes escreveu “Garota de Ipanema” para João Gilberto tornar imortal com voz e violão, depois de verem passar a jovem Heloísa a caminho da praia. Rogério não desistia de tentar convencer o estrangeiro acerca da beleza ímpar do Rio e além de mostrar vários lugares emblemáticos e históricos da cidade, acabava-se em histórias sobre a cidade e suas personagens. O seu time acabava de ser campeão carioca, há poucos dias, derrotando na final o Volta Redonda, e ele comportava-se e conversava com os garçons e com os frequentadores do bar como se tivesse sido campeão da Copa dos Libertadores. Mas para Rogério era mais importante ser vencedor carioca do que de qualquer outra copa. E explicava: “Cara, aonde é que tu vai encontrar aqui no Rio um argentino ou um colombiano para tirar sarro dele, depois da vitória? Agora flamenguista, vascaíno, botafoguense é o que não falta!” E quando passava algum torcedor desses times, que ele conhecia, lá tirava ele sarro.

Depois do almoço atravessaram o túnel Zuzu Angel em direcção a São Conrado. No final do túnel, junto à entrada da Rocinha, dois bandidos com pistolas mandam-nos parar e sair do carro.

Com algumas coronhadas e gritos, exigiram que entrassem no porta-malas. Rogério tremia e disse que não entrava, que lhe dessem um tiro, mas que não entrava, tinha a certeza de que se o fizesse acabaria por morrer com falta de ar. Um dos bandidos não hesitou e disparou à queima-roupa no peito de Rogério. O estrangeiro, mais atónito do que com medo, como se estivesse a assistir ao que estava a acontecer e não a participar dos acontecimentos, entrou no porta-malas do carro. Fechado no escuro e na improbabilidade dos acontecimentos, pois de onde vinha isto só podia ser um filme, ouvia Rogério dizer que o Rio era a cidade mais bela do mundo. Pouco depois, escutava tiros, que deviam estar a ser trocados entre os bandidos e a polícia militar. O carro balançava mais que uma pequena embarcação em alto mar e não demorou a capotar. O estrangeiro acabou por desmaiar e só acordou num hospital, com poucos ferimentos, mas em estado de choque. Fizeram-lhe várias perguntas a que não conseguiu responder, não se lembrava do que tinha acontecido, nem como foi ali parar. Perguntou pelo seu amigo brasileiro, que lhe estava a mostrar a beleza da cidade do Rio.

15 Out 2019

A grande dama do chá

[dropcap]O[/dropcap] escritório de Ezequiel de Campos ficava em frente do edifício do Leal Senado. Dali via-se o poder. Ou, se alguém quisesse pensar de forma mais conspiradora, o local de onde o homem de poder, que escolhia trabalhar nas sombras, observava e esperava o momento certo para conseguir o que queria. Cândido Vilaça, olhando da janela do escritório para o largo em frente, pensou que se os chineses gostavam de jogar, Ezequiel aprendera com eles. Mas era um outro tipo de jogador. Analisava com antecedência as hipóteses de vitórias ou derrotas. Sabia que só a eficiência vencia. Virou-se para ele quando Ezequiel lhe perguntou:

– Quer um vodka? Ou prefere um uísque? Eu vou por este.

Cândido acenou com a cabeça e depois sentou-se na cadeira que estava defronte da secretária do português. Reparou que atrás desta estavam quadros com pinturas antigas. Ezequiel sorriu, depois de colocar os dois copos na mesa.

– Está curioso? São os retratos de dois homens que foram muito importantes a história de Macau.

Marcaram a vida política e comercial da cidade. Miguel de Arriaga, que foi Ouvidor no início do século XIX. E José Carlos da Maia, que foi Governador no início do século XX. Repare na vida que há nos seus olhos. Sobressaem nas pinturas. Os olhos, sempre o achei, são as luzes da alma. Percebe-se por eles se alguém tem algo que os move. Ou se a sua vida é inútil.

Falava com uma ponta de orgulho, como se se sentisse um sucessor de ambos. Cândido nunca tinha ouvido falar deles, mas os rostos dos retratados impressionavam, pela força de carácter.

Talvez Ezequiel fosse assim. Marina Kaplan tinha-lhe confidenciado que aquele que era agora o seu amante dormia pouco de noite. Era, para ele, um tempo de pesadelos. Sonhava com a noite em que os pais tinham sido mortos, numa rixa inexplicável à porta de um restaurante situado no Porto Interior. Quando acordava, desejoso de vingança, confrontava a escuridão da sua alma de uma simples maneira: aumentando o seu poder e riqueza. Isto era o que fazia com que a sua vida fizesse sentido. Cândido olhou para ele. Marina contara-lhe ainda que ele fora um homem que, primeiro, perdera tudo, quando os pais morreram. Depois ganhou tudo. E depois perdeu tudo.

Até aprender. Para ele a vida tornara-se uma competição. Vivia para ganhar.

– O que é que vai fazer em Macau, Cândido? Vai ser músico toda a vida?
– Não sei. A minha vida sempre foi feita de acasos.
– Eu sei. A minha também o foi. Mas, depois, encontrei um caminho.

Cândido sorriu.

– Aproximam-se tempos difíceis, mas empolgantes. O Cândido poderia ser um colaborador muito útil para mim.
– Para quem não sou?
– É verdade. Os japoneses acham que é útil a eles. Jin Shixin pensa o mesmo. E, já agora, o Cândido consegue ser útil a si próprio?

– Tento sobreviver no meio disso tudo. Mas, sabe, o amor mostra-me que caminho devo seguir.
– Acha mesmo que Jin Shixin vai ficar aqui em Macau, consigo, enquanto a sua China vai continuar em guerra nos próximos anos? Desculpe que lhe diga: você não é um jogador. É um sonhador que está num trapézio sem rede por baixo. Vai aleijar-se.
– Acha que Jin deixará Macau? Ela aqui é a Grande Dama do Chá. O que será na China, no meio de uma guerra sem fim?

– Uma guerreira com uma missão, não acha? Desiluda-se Cândido. Ela pode amá-lo, mas ama mais a China. E o seu mentor, Du Yuesheng. E este tem outros planos para ela.

Fez-se um silêncio desconfortável. Depois, Ezequiel, após beber um gole de uísque, disse:

– Navegamos num mar de inimigos. Lisboa não nos virá salvar. E os ingleses vão ter mais problemas do que julgam agora. Xangai caíu nas mãos dos japoneses. Nanquim está por horas.

Chiang Kai-shek não conseguiu que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha avançassem para sanções efectivas aos japoneses. E estes ficaram com liberdade para avançar na China. Nós vamos fiar-nos na neutralidade. O problema é que os chineses e os japoneses desconfiam de nós e qualquer movimento não equilibrado da nossa parte é claro e suspeito. Estamos entre as forças navais japonesas e a China.

– E onde é que isso nos leva?
– A nenhuma forma de divertimento. A nada que o jazz, apesar da sua beleza, consiga resolver.

Macau não tem recursos, víveres. É uma praça comercial. Compra e vende. Se for cortada a ligação ao sul, comeremos o quê? O ópio que aqui temos? Precisamos de arroz. E de carne e peixe. Nos próximos anos quem controlar isso, controlará a vida, mas também a política. Assim, quem vai vencer, Cândido?

– Não sei. Mas temos de alinhar por algum lado.
– Temos? Acha que os portugueses sobreviveram em Macau porque, ao longo de séculos, tomaram decisões radicais? Quando o fizémos, saiu asneira. O inimigo de hoje pode ser o aliado de amanhã, nunca o esqueçamos. Deveríamos aprender com os chineses a arte da caligrafia.

Como nos devemos conter de forma a controlarmos o pincel. Temos de aprender a controlar o corpo e a mão. É tudo uma questão de prática e repetição. E de vislumbrarmos o futuro.

Cândido olhou com atenção para Ezequiel de Campos. Estava no apogeu do seu poder e da sua capacidade sedutora. Os olhos azuis eram poderosos e combinavam perfeitamente com o ar maduro que lhe davam os cabelos brancos. Comjugava perfeitamente a gestão da advogacia e dos seus interesses comerciais. Não deixou de voltar a notar a cicatriz que lhe marcava o rosto entre a orelha esquerda e o pescoço. De vez em quando levava a mão lá para a acariciar. Para recordar. Ezequiel devolveu-lhe, por momentos, o olhar fixo.

– Não teme os japoneses, Ezequiel? A Marina contou-me que eles querem conquistar a noite de

Macau. Produzem heroína. E querem substituir o ópio por ela. Domesticando o povo. Esta cidade pode ficar sem parte da sua vida. E sem qualquer futuro.
– E quem vai chorar? Será tudo uma questão de quem ganhar dinheiro com isso. E quem tem dinheiro? Foge para a Indochina? É pouco. A guerra vai lá chegar. Repare, Cândido, cada um joga o seu jogo, com corpos a amontoarem-se à sua volta. E com a guerra de guerrilhas os comunistas sonham com a sua futura vitória. Não sejamos ingénuos. Cada um só pode contar consigo. Sabes, os ocidentais olham para um tanque e buscam o peixe que lidera. Os orientais vêem toda a cena. Temos de compreender que estamos na China. O ocidente é individualista. A antiga China era colectivista, onde se pertencia a uma larga comunidade agrícola. Sobreviver dependia mais do grupo do que do individual. Os ocidentais preocupam-se mais com a glória individual. Lembra-te dos Jogos Olímpicos. Há neles um ideal individualista de honra e glória. A competição individual. Isso ficou no sangue do Ocidente.

Ezequiel levantou-se e aproximou-se da janela. Tinha um charuto entre os dedos por acender. Depois de alguns momentos de silêncio, disse:

– É por isso que te estou a perguntar se queres trabalhar comigo. Vai haver muito para fazer nos próximos anos. E podes continuar a tocar, nas horas vagas. Mas pensa no futuro. E não apenas no amor. Sabes o que vejo daqui? Cavaleiros pálidos aproximam-se de Macau. Vão chegar assim que o vento começar a uivar.

Toda a suavidade desaparecera dele. Nas linhas do seu rosto, nas tensões do seu corpo, havia uma decisão letal. Ezequiel sabia qual o seu destino.

14 Out 2019

Embaixada de Gil de Góis

[dropcap]H[/dropcap]á divergências entre historiadores quanto a Diogo Pereira se encontrar em Macau quando a 24 de Agosto de 1562 aí entrou o navio de D. Pedro da Guerra, que “trazia a segunda embaixada de Diogo Pereira à China”. Por não aceitar o lugar de Embaixador, foi “nomeado para a missão um parente seu, Gil de Góis, que em 1562 partiu de Goa”, segundo Montalto de Jesus. Num barco de Diogo Pereira, não em 1562, mas no ano seguinte, a 29 de Julho de 1563 Gil de Góis chegou a Macau com os presentes para o Imperador da China e acompanhado por João de Escobar, escrivão da embaixada régia, os padres Francisco Perez e Manuel Teixeira, e o irmão André Pinto, sendo recebidos por Diogo Pereira, o seu irmão Guilherme e muitos dos moradores. Era o período mais concorrido no porto de Macau e aí estavam já novecentos portugueses adultos. Segundo Tien-Tsê Chang, o rápido aumento em 1563 “dever-se-á, em parte, ao facto dos colonos portugueses de Lang-pai-kao [Lampacau] terem abandonado as suas residências anteriores, para se juntarem aos seus compatriotas em Macau.”

Entregue a mercê régia a Diogo Pereira, que escolheu ser Capitão-mor, ficou, se já não vinha, Gil de Góis como embaixador.

Contactadas as autoridades chinesas de Macau, deu-se início às diligências para a realização de uma Embaixada a Beijing e Cantão enviou a Macau uma comitiva de mandarins a examinar os presentes para o Imperador Jiajing. Ainda da Índia esperava Gil de Góis o envio de dois elefantes para engrandecer o cortejo e tornar o presente mais majestoso.

O padre Francisco Perez escreveu em Janeiro de 1564: “Parece que vão começar a negociar as cousas de Embaixada com os Mandarins do porto”, refere Jordão de Freitas. No final desse mês “partiam, num barco chamado bancão do porto de Macau, para esta ilha e porto do Pinhal, os missionários jesuítas, padres Manuel Teixeira e Baltasar da Costa. Percorridas as dez ou doze léguas que separavam as duas localidades, em dois dias, encontraram os padres quatro juncos siameses e dois portugueses ancorados no porto. Ao outro dia que era domingo, celebraram missa, em terra; e à meia-noite, ergueram os marinheiros lusos uma igreja, na praia com tanta diligência que, quando amanheceu, amanheceu também a igreja, feita de enramada e embandeirada com o seu retábulo do orago, S. Miguel, Arcanjo. Imediatamente se organizaram aí todos os ministérios religiosos: missa, pregação, catequese aos meninos e escravos que nos navios estavam, baptismos, confissões, uma mui comprida procissão, comunhão geral de todos os setenta comerciantes, proclamação de um jubileu que lhes fora concedido pelo Papa S. Pio V, através do 1º Bispo de Malaca. A Missão durou uma semana inteira. Terminados os exercícios sagrados, os comerciantes portugueses levaram os dois missionários a ver uma grande varela ou templo de ídolos, que aqui está, no meio deste Pinhal – conta o mesmo padre Costa”, carta do Irmão André Pinto transcrita por Benjamim Videira Pires S.J., que refere ser Pinhal na parte norte da ilha de Lantao, porto antigamente chamado Hu Cham. Uma pequena viagem de missão e retiro a ensaiar a entrada na China dos missionários jesuítas.

O Vice-Rei da Índia Francisco Coutinho, em 1564 para além de não prover as coisas da embaixada, ainda enviou com mercê régia D. João Pereira como capitão-mor da Viagem ao Japão e durante a estadia em Macau tomar a capitania e depor Diogo Pereira. Segundo Montalto, a corte de Lisboa ficara desagradada “não só pela recusa do cargo de enviado por Diogo Pereira mas, também, pela sua eleição extra-oficial para o posto de capitão-de-terra e, em 1563, um decreto real tratou de abolir aquele posto.”

Revolta das tropas imperiais

Na costa da província de Guangdong, em Abril de 1564 ocorreu a rebelião da tripulação de uma armada imperial chinesa. Dezoito juncos, afora outras embarcações pequenas e ligeiras, chegaram a Cantão vitoriosos do combate contra a pirataria, sobretudo wokou japoneses, nas costas de Fujian. O Capitão-de-guerra dessa armada imperial reclamou aos mandarins grandes de Cantão os salários por receber de toda a equipagem, mas o Governo de província tentou empatar o pagamento e diminuir a quantidade de prata a pagar. Com receio de na espera durante as negociações uma revolta das forças imperiais ocorresse, alegando os serviços ainda não estarem integralmente feitos, deram ordem ao capitão para voltar às costas de Amoy [actual Xiamen] e deixar o irmão em Cantão, que de seguida levaria os vencimentos. Confiando na palavra, assim fez o capitão de guerra, que a seu cargo trazia uma grossa armada. Mas depois de partir, o seu irmão foi açoitado e sabendo da afronta, “o mandarim grande fez volta com sua armada, e em satisfação de tamanha ofensa e de não cumprirem com ele a prata que ficaram, desembarcou com sua gente na cidade, matando e assolando quanto nela achava, e roubando todos os despojos que ficavam.” Dizem ter feito “isto tão súbito e acidentalmente, que ao tempo que os principais e grandes com sua gente e mais povo se recolhiam pelas portas da cerca dentro, por escaparem dos ladrões, morreriam afogadas e atropeladas entre as ditas portas passante de duas mil almas”, relata João de Escobar, que continua, “os ladrões, pelo costume da guerra e abundância das armas e artilharia das suas embarcações, puderam fazer e saquear todo Cantão a seu salvo, não entrando da cerca para dentro, por ser muito forte e alta. E feito isto, logo se declararam por alevantados e públicos ladrões e corsários, trabalhando daí por diante de se fazerem mais fortes, aparelhando-se de muita mais artilharia e munições de guerra, para nenhuma força de outra armada os poder entrar. E para mais sua guarda e segurança, escolheram a cidade de Tancoão [hoje Dongguan] e a fortificaram, por ela em si ser muito forte e antiga, na qual se recreavam e refaziam dos trabalhos do mar.”

Quando os ladrões queriam dar assalto a Cantão recolhiam-se a dez léguas para Leste, uma jornada de um dia, em “Tancoão sem nenhuma resistência, pelo que os arrabaldes e a mor parte dos mercadores de Cantão a despovoavam e se metiam pela terra dentro, andando já todos tão atemorizados e desinquietados que deixavam as fazendas, por remir a vida.”

“As tropas revoltosas, depois de conseguirem derrotar várias expedições enviadas em sua perseguição, semearam a destruição por todo o litoral”, refere Rui Manuel Loureiro.

Entusiasmados pela vitória contra as forças imperiais, meteu-se-lhes “em cabeça que poderiam vir de noite a nosso porto e desembarcar nele e queimar a povoação e roubarem-na e matar os portugueses; e isto feito iriam esperar nossas naus e juncos, que da Índia e de todas as partes no tempo da monção vêm ao porto e as desbaratariam”, relato de João de Escobar, escrivão da embaixada régia, transcrito por Rui Manuel Loureiro no artigo Em Busca das Origens de Macau, onde refere, “Os mandarins de Cantão mandaram avisar o Capitão D. João Pereira das intenções dos ladrões”.

14 Out 2019

Uma recordação estival

[dropcap]N[/dropcap]ão me lembro da idade precisa que tinha quando descobri que havia uma diferença anatómica vincada entre homens e mulheres. Já tinha obviamente uma noção, embora vaga e indistinta, que por debaixo das roupas diferentes que cada um usava se escondia uma realidade capaz de afastar uns e outros tanto quanto aproximar. Aos seis, sete anos, tudo é ainda muito confuso (não se infira desta afirmação que a confusão se dissipa com o passar do tempo, apenas muda).

A minha mãe e o meu pai, no Verão, alistavam-se na apanha da cereja para compor o mealheiro familiar. Embora se ganhasse muito melhor em França do que no Portugal do início dos anos oitenta, o dinheiro nunca nos sobrava de tal modo que não precisássemos de pensar nele. Era uma actividade razoavelmente bem paga, por não haver assim tanta gente disposta a fazê-la. A maior parte dos trabalhadores eram imigrantes que aproveitavam os tempos mortos de Verão ou alguns dias de férias ocasionais para fazer uns trocos.

Por vezes, quando ia com eles e por ser demasiado jovem para contribuir activamente para economia familiar, ficava na casa dos donos da fazenda ou na casa dos caseiros, a brincar com os filhos de uns ou de outros. A maior parte das vezes, era apenas ignorado. Embora tivesse nascido em França e falasse um francês escorreito, era ainda assim filho de emigrantes, um estatuto que condicionava as pessoas a relacionarem-se comigo como se eu fosse apenas uma espécie de caricatura.

Era depois de almoço, cerca das três da tarde. A governanta tinha instruções para pôr a criançada toda a dormir – ou a fingir que dormia – pelo menos uma horinha. Era uma família grande; entre avós, pais, tios, primos e filhos deviam ser uns trinta e, ainda assim, o que não faltava naquele casarão era espaço. Eu não fazia a sesta há mais de três anos, mas a minha margem de manobra para discordar do que quer que fosse era ainda menor do que na minha própria casa. Fomos levados para um quarto enorme, repleto de beliches, uma espécie de incubadora de gaiatos com duas janelas minúsculas a uma altura à que nenhum de nós conseguia chegar.

Ser obrigado a dormir quando não se tem sono é o equivalente a ser obrigado a comer o terceiro prato de cozido à portuguesa na casa da avó quando já na segunda volta não se tinha fome. Eu não tinha qualquer vontade de dormir mas, para ser franco, nem os mais novos me pareciam ter sono. À distância que me encontro agora do local e tempo em que vivi esta vida – que a maior parte das vezes não me parece ser sequer minha –, acho que a obrigação de pôr aquela gaiatada toda a dormir era apenas uma forma de garantir que a governanta tinha tempo para organizar o jantar.

Lembro-me de partilhar a cama com uma das miúdas mais velhas, que devia ter os seus oito, nove anos. Mal trocáramos umas palavras antes de a governanta achar por bem nos arrumar lado a lado no tetris das camas. A menina queixava-se também de não ter sono. Mas fazia-o como se eu não estivesse ali e a conversa dela se dirigisse a um amigo imaginário ou mesmo ao tecto. A certa altura pegou-me na mão e meteu-ma por baixo dos calções dela e das cuecas. Eu não sabia o que fazer. Mais: não sabia sequer se tinha de fazer alguma coisa. Em boa verdade, acho que nem ela sabia. Limitou-se a mexer-me a mão como se guiasse os braços desajeitados de uma marioneta.

Quando finalmente nos deixaram sair do quarto, eu não fazia ainda ideia de que o constrangimento podia ser a pontuação possível da intimidade. Lá fora a chuva de Verão aproximava-se como se de uma parede móvel se tratasse.

11 Out 2019

Terramoto e sequelas

[dropcap]O[/dropcap]s modos e as inteligências mudam menos do que calcula a noção controversa e volúvel de progresso ou a noção espúria embora mais comum de evolução, inapropriada a um primata que se vem equilibrando nos membros traseiros há não mais do que 400.000 anos. Uma piscadela de olho na fita do tempo de vida do planeta.

Tamanho foi o pavor, que depois de ter fugido até lugar onde a retina, os tímpanos e a pituitária já não recolhiam sinais da hecatombe, jurou D. José nunca mais dormir em edifício de alvenaria capaz de à primeira sacudidela lhe desabar na fidelíssima e majestática cerviz. Até ao fim dos seus dias viveu e despachou na Real Barraca da Ajuda também com outra e eufemística solenidade denominado de Real Paço de Madeira onde mais tarde se ergueria o subsequente palácio.

Em abono da régia poltronaria seria injusto não comparar o abalo de 1755 às mais negras descrições bíblicas da cólera de Deus. Uma cidade sumamente poderosa e capital da cristandade pulverizou-se inumando os seus fiéis habitantes do modo mais torpe, súbito e brusco, sem lhes dar azo a unção ou prece que resgatasse os seus pecados e lhes salvasse a alma, reduzindo-os a cadáveres insepultos abandonados à imundície e ao relento. Mais angustiante ainda foi que tão implacável devastação haja ocorrido no dia de Todos-os-Santos e à hora em que tanto o povo simples como os seus maiores se congregavam nas igrejas louvando a Deus

O instrumento, o momento e a dimensão do cataclismo claro que levantaria questões. E das essenciais.

Se a virtude de um retrato é a captura da índole profunda, e portanto volátil, do seu objecto poucos haverá tão fulgurantes – mesmo que pictoricamente sofrível – como o de Voltaire por Jean Hubert. Nele se flagra o fundibulário e filósofo mal saído da cama, de camisa de noite arregaçada, apenas enfiando uma perna no calção e já a ditar uma das suas controversas lettres ao secretário. É pitoresca a cena, porém credível.

Um ano não era passado – tempo curto à velocidade de então – e capturando a mórbida mas suculenta tragédia para a sua causa da Luz sobre ela debitou cerca de 500 versos que fez publicar no opúsculo “Poemes sur le Desastre de Lisbonne et Sur la Loi Naturelle.” Eis o ponto fulcral:

“Direis vós, perante tal amontoado de vítimas: / «Deus vingou-se, a morte deles é o preço de seus crimes»? / Que crime, que falta comentaram estes infantes / Sobre o seio materno esmagados e sangrantes? / Lisboa, que não é mais, teve ela mais vícios / Que Londres, que Paris, mergulhadas nas delícias? / Lisboa está arruinada e dança-se em Paris.”

Hoje é um dado adquirido o mérito do pragmatismo de Sebastião José na ocasião apenas Secretário de Estado dos Negócios Interiores ainda longe do título de Conde de Oeiras e longuíssimo do marquesado de Pombal.

Sem querer saber das causas da catástrofe, repugnando o proverbial “parar para pensar”, não menos concomitante à inteligência lusa do que o “ir ao fundo do problema,” mouco às vozes de peritos que discutiam as verdadeiras e estabelecidas doutrinas acerca do fenómeno e das urgentes medidas a tomar no sentido de asseverar estremecida e incansavelmente a nossa fé na glória do Altíssimo para que ele não se voltasse a zangar connosco, o que Sebastião José fez foi “enterrar os mortos e salvar os vivos”, aforismo quase de certeza fictício, mas, como é frequente nas lendas, bastante acurado e explicativo.

A opinião pública da época, que dela só sabemos pela publicada, amedrontou-se muito com a impiedade e a desenvergonhada impenitência de Sebastião José. Assim se congregou ela em torno das popularíssimas prédicas do Jesuíta italiano Gabriel Malagrida provedoras de bálsamo às almas inquietas. Um santo, exclamava o povo.

No mesmo ano em que Voltaire contendia pelas “causas naturais” Malagrida distribuía pelas igrejas o folheto “Juízo da verdadeira causa do terremoto, que padeceo a corte de Lisboa.” Em resumo dizia ele isto: “Sabe pois, oh Lisboa, que os únicos destruidores de tantas casas e palácios, os assoladores de tantos templos e conventos, homicidas de tantos seus habitadores, os incêndios devoradores de tantos thesouros,(…) não são contingências ou causas naturaes; mas são unicamente os nossos intoleráveis pecados.”

Rir-se-á deste argumento quem não entender que a sua racionalidade não envelheceu uma letra. Fazer das vítimas os perpetradores primeiros da sua própria desgraça é ponderação que não só tem feito o seu curso como parece ter recrudescido. Seja a gaja que estava a pedi-las porque veio à rua de mini-saia justa, seja a sociedade hétero-parental dominada pelo homem branco a produtora do terrorismo bombista, o que não falta por aí são enunciados dignos de Malagrida.

11 Out 2019

A psicanálise da mulher vista por trás

[dropcap]N[/dropcap]um curioso artigo intitulado ‘The 10 Coolest Foreign Words The English Language Needs’*, R. Aston revelou dez palavras de diferentes línguas que não têm correspondência em Inglês. Isto significa que estamos perante dez conteúdos para os quais não há termos em Inglês que os consigam traduzir cabalmente. Faço desde já, notar que nenhuma deles é “Brexit”.

Entre essas dez palavras consta uma portuguesa: “desenrascanço”. De referir que o conteúdo associado a ‘desenrascanço’, que equivale a ‘sair de situações complicadas através de repentismos não calculados e geralmente improvisados’, tem na nossa língua variados sinónimos (quase todos reflexivos), entre outros, ‘desembaraçar-se’, ‘safar-se’ ou ‘livrar-se’ de perigos ou de apuros.

Esta riqueza justifica-se pela mesma razão que, em Árabe, existe uma dezena de palavras diferentes para exprimir o conteúdo associado a ‘falcão’. Na realidade, uma língua tende a desenvolver e a enriquecer no seu acervo expressivo aqueles conteúdos com que mais lida, devido, entre outras possibilidades, às configurações da natureza envolvente ou ao usos e tradições dos seus falantes. Razão pela qual existe uma enorme escolha de palavras para dizer ‘falcão’ em Árabe (uma das consoantes do alfabeto até imita a sonoridade e a forma da ave de rapina) e razão, também, pela qual o conteúdo ‘desenrascar’ tem tanta saída expressiva na língua portuguesa.

Deixo aqui as restantes nove palavras referidas por R. Aston que veiculam conteúdos que não são propriamente da intimidade dos britânicos:

a) “Shlimazl” (‘Yiddish’) – Alguém permanentemente sem sorte.

b) “Tatemae” e “Honne” (Japonês) – O que alguém deseja acreditar e aquilo em que realmente acredita.

c) “Sgiomlaireachd” (Gaélico Escocês) – Referência a alguém que interrompe uma pessoa que está a comer.

d) “Tingo” (Pascoense) – Aquele que pede emprestado bens ou dinheiro a um amigo até o deixar sem absolutamente nada.

e) “Bakku-shan” (Japonês) – Uma rapariga lindíssima, desde que vista apenas por trás.

f) “Espirit d’escalier” (Francês) – Sempre que a palavra ideal ou apropriada é descoberta, já é demasiado tarde para a usar.

g) “Mamihlapinatapai” (‘Yaghan’) – Encontro entre duas pessoas que suscita a partilha de um desejo indizível e inexplicável.

h) “Backpfeifengesicht” (Alemão) – Um rosto que precisaria de ser trocado por outro novo.

i) “Nunchi” (Coreano) – Pessoa que age sem ter ideia alguma da situação social em que está envolvida.

Se dermos um passeio, em Português, pelos conteúdos que estas palavras veiculam, encontraremos quase sempre solução, facto que revela a nossa língua como uma boa viajante ao longo de quase todas as latitudes e longitudes do globo. No entanto, pensando em “Shlimazl” (‘Yiddish’), refira-se não há em Português um claro antónimo para “sortudo”, apesar de palavras interessantes tais como “desventuroso” ou “azarento”.

É claro que “Shlimazl” (‘Yiddish’) se aplica a qualquer fadista, forcado ou àqueles partidos políticos que, década atrás de década, se atrelam a 0,5% das intenções de voto. Já “Tatemae” e “Honne” (Japonês) andam nas proximidades do par ‘fezada vs. saudade’ ou ‘saudade vs. fezada’, sendo a respectiva ordem puramente arbitrária. A expressão “Sgiomlaireachd” (Gaélico Escocês) corresponderá, por sua vez, ao lusitaníssimo “empata”, seja o comprazimento gastronómico ou de outra natureza mais vivamente carnal.

Continuando a nossa visita guiada, “Tingo” (Pascoense) pisca o olho a ‘amigo da onça’, do mesmo modo que “Espirit d’escalier” (Francês) remete para a ideia de oportunidade perdida ou de fora de jogo existencial, embora sem grande solução portuguesa à altura. Para terminar: “Mamihlapinatapai” (‘Yaghan’) cheira a bloco central, “Backpfeifengesicht” (Alemão) acena a ‘cara de cu’, passe o plebeísmo metafísico, ao passo que “Nunchi” (Coreano) não anda longe de ‘patobravismo’.

A única palavra que não faz de todo jus ao Português é “Bakku-shan” (Japonês), a tal mulher linda de morrer, embora apenas percepcionada pelo lado de trás. Poderíamos alegar o reverso do ‘espírito de fachada’, mas estaríamos ainda muito longe.

O que faltará em Português liga-se, pois, ao tempo e ao espaço: por um lado, negligência face ao atraso da palavra certa a usar no momento também certo (embora, neste caso, se possa confirmar que os portugueses a têm sempre, fonte, naturalmente, do seu genuíno “desenrascanço”); por outro lado, negligência face à retaguarda da beleza feminina. É este último caso que mais deveria preocupar a psicanálise portuguesa.

Haverá uma razão para os portugueses terem educado sobretudo o ‘olhar para a frente’ em detrimento do ‘olhar para trás’. Repare-se que o território do nosso país é uma das finisterras que fecha a Eurásia e por isso aqui se foram acamando os povos mais diversos, durante milénios e milénios. Quem aqui ia chegando, esbarrava sempre no litoral e não podia perseguir a sua viagem, a não ser de barco. Foi por isso que os povos portucalenses se esmeraram em ficar pasmados a olhar para o mar, ou seja, para o lado da frente. Para trás ficava a saudade, esse espaço transbordante para o qual, ao modo de Orfeu, não se olha. Antes se imagina e percorre trágica e poeticamente.

Ao invés, com o imenso pacífico a leste, o Japão tem pela frente todos os continentes. Daí o hábito de olhar o mundo por trás, seguindo, aliás, o sentido do sol que, no seu itinerário de oriente para o ocidente, passa por lá todos os dias em primeiro lugar. Quem diz o mundo, diz o melhor que nele habita.

*R. Aston. ‘The 10 Coolest Foreign Words The English Language Needs’ [Em linha] April, 13 2009. Disponível em https://www.cracked.com/article_17251_the-10-coolest-foreign-words-english-language-needs.html [Consult. 28 de Fev. 2019]

Imagem: Pintura de Vilhelm Hammershøi

10 Out 2019

A presença e o sentido

[dropcap]A[/dropcap] gente lê a ameaça e não acredita: “Como disse antes, e apenas para reiterar, caso a Turquia faça algo que eu, na minha grande e inigualável sabedoria, considere que está fora dos limites, destruirei e aniquilarei totalmente a economia da Turquia”.

Quem fala é Mao Tsé Tung, Deng Xiaoping, Kim Jong-un? Não, foi um republicano, Donald Trump, e um imemorial cansaço abate-se sobre qualquer linha de discernimento, na tentativa de reconhecer a partir de que momento se aceitou esta retórica política como legítima e indelével.

É o mesmo senhor que está destrambelhado e numa fuga para a frente, em jeito de paródia, já pede publicamente às outras nações que investiguem os seus adversários políticos.

Há uma ténia que rói a democracia, que a enfraquece por dentro e me faz lembrar um poema do mexicano José Emílo Pacheco, que incide sobre a bicha Solitária: «No jardim-de-infância nenhuma história /me impressionou como o relato de Pedro./ Durante anos / levou no seu ventre Pedro uma ténia, / uma serpente branca, uma solitária,/ albina e cega — a qual também era Pedro. /

Assim levamos todos muito cá dentro a morte / sem lhe conhecermos a forma até que um dia /ela sai do seu esconderijo e diz: vamo-nos?».

O drama é que quem aceita que os líderes políticos cheguem a este nível de auto-maravilhamento sedativo esquece o que outro poema do Pacheco prenuncia, Às térmitas: «Às térmitas, diz o seu Senhor:/ Derrubai essa casa! /E esfalfam-se não sei quantas gerações/ a perfurar, a verrumar sem sossego. /Formigas brancas como o Mal inocente,/escravas cegas e de sombra incógnita,/dá-lhe que dá-lhe em nome do dever,/ muito por baixo da alfombra /sem exigir aplauso nem recompensa /e cada qual conforme o seu minúsculo troço. /Milhões de térmitas que se afanarão/até que chegue o dia em que de repente/caia o edifício, feito pó./ Então as térmitas perecerão /sepultadas na obra da sua vida.»

Não serve de consolo verificar que hoje os media expõem tudo e que, como na pornografia, a partir do instante em que se mete o pau na boca não, há como querer enganar a vista a dizer que é o de selfie – não há consolo.

O pior é que não tenho nenhum aluno que faça a menor menção a esta anormalidade, que mostre sinal de ter entendido como a cavilosa afirmação de Trump, que aqui tenta forçar os limites do seu poder hipnótico, é uma colher envenenada a mexer o caldeirão do seu futuro; perdidos entre o rap e a miséria do seu quotidianozinho alheiam-se. Estamos lixados.

Alheiam-se dos assuntos de fora e de dentro: nenhum aluno me comenta o assassinato de Anastácio Matavel, director executivo do Fórum das Organizações da Sociedade Civil na Província de Gaza e como esta acção macabra confirma as ameaças de que são alvos os observadores eleitorais nacionais, em Moçambique; crime cuja contundência (dez tiros), no dizer de Carlos Mhula, da Liga dos Direitos Humanos em Gaza, “é uma clara intimidação à participação na vida política em Moçambique e também uma ameaça à democracia”. O medo está instalado e com isso esvaída a possibilidade de que os meus alunos queiram debater assertivamente eleições livres, justas e transparentes: é um balão furado.

Hoje, quarta-feira nove, darei uma palestra com o tema Culturas do Sentido/ Culturas da Presença, onde apresentarei a tipologia que, para esse lugar transfronteiriço, traçou o alemão Hans Ulrich Gumbrecht, um filósofo que soube contornar o beco para onde fomos atirados pelo demónio da interpretação e da febre analítica. Sem negar nada da pertinência das suas habilidades, Gumbrecht apenas nos lembra que há outros modos da experiência; que há culturas em que os exercícios intelectuais ganharam preponderância e outras em que a tónica foi colocada no corpo, no jogo, na performance, e em que nem todos os “discursos” se reduzem à tirania do texto interpretativo; mais, que, em havendo formas de inteligência, de fluxos, e de relação cujos processos passam antes pelo corpo e as suas interacções, há ainda esperança para o mundo como presença tangível ser tocado por nós e não meramente interpretado.

Tudo isto é complicado para explicar em dez linhas, mas, do ponto de vista das consequências sociais, numa cultura de sentido sucedem-se as permanentes e constantes tentativas de transformar o mundo, pois esta tem por base a interpretação (crítica) das coisas e a projecção dos desejos humanos no futuro; enquanto, este impulso no sentido da mudança e da transformação está arredado nas culturas da presença, nas quais os seres humanos propendem a inscrever o seu comportamento no que consideram ser as estruturas e regras de uma dada cosmologia ou tradição social.

E esta diferença pode às vezes ser fulcral, por exemplo, em nenhuma cultura de sentido se aceitaria como aceitável que um partido político continuasse a apresentar o mesmo cartaz em todos os pleitos eleitorais durante trinta anos, tal como acontece com a Frelimo com os seus eternos tambores e maçarocas, porque pareceriam símbolos já deslocados da realidade nem se consideraria sério que um partido apenas quisesse transmitir que sejam quais forem as circunstâncias e o tempo histórico tudo permanece igual. O que em Moçambique valida um “reforço da presença”, noutra cultura de maior pendor crítico este cartaz seria interpretado como um sinal de absoluta indiferença às marcas e aos desafios da actualidade.

10 Out 2019

Beleza Feia

[dropcap]H[/dropcap]á um ano, numa visita a Sintra para visitar a vernissage de uma amiga pintora, a que estava comigo perguntou, enquanto eu tentava fotografá-la e lhe dava dicas para se embrenhar mais no meio de umas flores brancas que encontrámos pelo caminho: “Gisela, o que fazes com as tuas estrias?” Respondi: “Aceito-as. Digo bom dia e boa noite.” Recentemente, uma das minhas amigas, que é professora de yoga e, claro, super fit, posou para uma marca e acho que ainda não lhe disse o quanto gostei do facto de em nada ter coberto as cicatrizes de uma operação para lhe salvar a vida, ainda bebé. O instagram pulula de posts de Kim Kardashian (conhecida por mil coisas mas a mais divertida, sem dúvida, a sua cara feia de choro) a promover produtos e serviços de marca própria, familiar ou alheia. Mais recentemente porém, Kim tem divulgado a sua maquilhagem de corpo, que usa para cobrir a psoríase, mas da qual vemos também um vídeo atenuando as veias azuladas e a pele rugosa de sua avó. A modelo Salem Mitchell é dona de um dos memes mais engraçados de sempre: segurando um cacho de bananas pintalgadas junto do seu rosto pejado de sardas. Do pesado gozo da comunidade online surgiu uma carreira de sucesso em tenra idade. Outra modelo negra, Winnie Harlow, que aliás colaborou recentemente com Kim numa linha de maquilhagem de rosto, é conhecida por ter vitiligo, e tem vindo a desafiar positivamente todas as ideias de beleza convencionais de que pelo menos alguns de nós já se cansaram.

Uma das minhas fotos preferidas do instagram, de sempre, foi postada no dia dezoito de Agosto deste ano, pela famosa modelo plus-size Ashley Graham. Um foto nua, de lado, mão de manicure vermelha impecável e aliança a tapar o mamilo. Vemos dobras, peito, estrias e marcas de quem está sentada de lado, perna encostada à barriga. Uma foto de quem está, também grávida, antes de a barriga arredondar e ganhar espaço, ou seja, antes de Graham ficar ainda mais bonita. A foto soma até agora mais de um milhão e setecentos mil gostos, inclusive o meu, que já a revisitei inúmeras vezes até me decidir tirar e postar uma igual, de um lado e de outro. Ashley é uma das mais conhecidas modelos plus-size, e tem agraciado as capas e passarelas de revistas e marcas notórias em todo o mundo, inclusive a da edição de fatos de banho da Sports Illustrated ou da Vogue. Ashley é uma daquelas raparigas que deve, ao longo da vida, ter ouvido comentários sobre como tinha tanto estilo e um rosto tão lindo… para uma rapariga gorda, isto é. Deve, até, ter ouvido que, se emagrecesse, poderia ser modelo. Eu sou só uma rapariga comum que uma vez engordou 60kg e depois aprendeu muitas lições, sobretudo sobre si mesma. Um dia somos adolescentes e perguntam-nos se nunca pensámos ser modelos. Outro dia estamos na lista de espera para uma cirurgia bariátrica. Anos depois, alguém nos pergunta se não queremos posar para uma marca de bikinis sustentáveis e depois de muito hesitarmos e nos torturarmos, aceitamos. A pessoa que eu mais quero influenciar ainda sou eu própria e este mês, um ano depois de ter parado, voltei ao ginásio. No entanto, é irónico como certa vez convenci uns seis colegas de trabalho a inscreverem-se e que todos tenham continuado até agora. Lutas.

Outra celebridade que tem ganhado fãs em todo o lado é a já mítica Lizzo. Num dos seus singles do último álbum colabora com uma Missy Elliot visivelmente mais magra, olhos amendoados sobressaindo, sempre fiel às roupas desportivas, sempre dançante, sempre uma rapper maravilhosa. A Supa Dupa Fly tem lutado com o peso ao longo dos anos, e pergunto-me o que pensará sobre esta fase em que as coisas parecem estar, lentamente, a mudar. O meu instagram reflecte alguma aceitação e celebração, no entanto as partilhas são pouco as de cada uma e das mulheres reais da sua vida e mais de estranhas e famosas. Ou seja, aceitamos apenas quem já foi aceite e validado pela internet? Porque é que não celebramos a mãe, amiga, irmã, vizinha, colega de trabalho mesmo ali ao lado? Porque podemos cruzar-nos connosco num espelho perto delas? A aceitação é para quem, afinal?

Desde a estreia de Euphoria, a série do momento sobre adolescentes, Barbie Ferreira é a porta-estandarte da geração mais jovem, sendo, a par de Lizzo, talvez a mais cool desta onda, não houvesse uma cena, na série, em que a sua personagem dança sensualmente em modo twerk ao som de, precisamente, “Tempo” e do verso Slow songs ain’t for skinny hoes. Thelonius Monk talvez concordasse.

Finalmente, volto aos meus primeiros amores plus-size: Nadia Aboulhosn e Gaby Fresh, divas e amigas: bloggers, modelos, designers, entusiastas do exercício. Porque, sim, todas estas moças plus-size passam, aparentemente, tantas horas no ginásio como a própria Kim Kardashian que, como Hemingway fazia, se pesa todos os dias. A diferença estará, talvez, na alimentação. A semelhança maior? No amor. Algumas raparigas são maiores que outras, diziam os Smiths. Não vejo mal nenhum nisso.

10 Out 2019

Tropa do vento que passa

[dropcap]C[/dropcap]ontinuo à espera. A última mensagem que recebi foi de que não tinha conseguido apanhar o hidrofólio a jacto. E pior: que aquele era o último, porque os barcos tinham ido todos ao fundo. Não acreditei. Julguei que estava a usar linguagem literária, que “fundo” era metáfora para a situação que se tem vivido. Como beco sem saída ou a penúria de um poço. Lugar onde o retorno não é possível face ao tumulto em pleno andamento. Antes, faláramos e informou-me de que as tropas tinham entrado. Vinham carregadas de fuzis balísticos de exagerada dimensão, “só para mostrar força e poderio”, explicara. Aparelhos colossais que patenteavam suprema inovação tecnológica, até ali, inexistente em lado algum. Entraram, sem sobreaviso, como quem vem para uma parada de Domingo, aperaltados de fulgor e mudança. Assim que chegaram à Avenida, os manifestantes que até aí estavam a gritar as suas deixas de mundo ideal e pacífico, enervaram-se e quiseram enfrentá-los, pondo-se à frente dos primeiros blindados, gritando: “Saiam daqui, esta não é a vossa terra!” Umas formiguinhas com catarro, terão notificado as unidades no terreno aos seus oficiais. Aos magotes: “Isto é nosso!”

Contou-me os acontecimentos ao pormenor, mas escutava sem crer no que estava a entrar-me pelos ouvidos, ao não conseguir unir factos. “Sim, sim…”, concordava, só para manter a conversa acesa, tentando conjecturar o relato. Ainda no sofá, ligara a televisão para testemunhar as lagartas metálicas a pisar o alcatrão, imaginando outra época, que à luz daqueles novos acontecimentos tinha avançado para distância mínima. Mas não estava lá nada. O trânsito rolava incólume. Os canais continuavam com a programação corrente, nenhum rodapé a relatar o sucedido. Nem directos nas redes sociais ou comentários exasperados, não existia palavra sobre o assunto fosse em que lado fosse. Aparentemente, os negócios decorriam da forma usual. Como sempre.

Só por via das dúvidas, dirigi-me ao Terminal, onde ainda me encontro. Vi barcos atracados, mas nenhum a aproximar-se. Perguntei a razão e garantiram que por vezes acontecia. Não foi preciso apertar-lhes o pescoço. Que não tinham chegado à hora marcada, podiam ter-se atrasado, uma corrente mais forte, julgaram, mas não tentaram obter mais informações, continuaram ali de cócoras à espera que a Lua curvasse no céu. Fora isso, sentia-se a tranquilidade a desprender-se para o estado de decomposição. Ali, nada sabiam.

O burburinho electrizante das luzes sussurrava por entre a névoa do costume, que trazia a amnésia do fundo do rio apinhado de pérolas, como uma orquestra de grunhidos desafinados. Bagagens por embarcar. Os solavancos da água do mar a fazerem-se sentir em terra como se o mundo estivesse todo a abanar e em convulsão. A esfera rolante a querer fugir debaixo dos pés para outra galáxia qualquer, deixando as pessoas na mesma posição geográfica, entregues a si próprias. No imediato, sem desculpa, o planeta já não estava cá. Evaporizara-se. Deixando o vácuo e o abalo. Mais coisa, menos coisa, essa era a sensação. Mas a mordaça imperava.

Poderá acontecer algo assim, um controle total da informação que se dissipa pelo éter sem deixar rasto? Põe-se a mão e tapa-se para a posteridade a fisionomia das tropas que avançam de forma inédita pelo território contíguo, vaticinando o futuro de todos os seus habitantes, transpondo para a realidade, ao invés, anúncios de desodorizantes e paraísos turísticos. Para que o público em terminais próprios continue a regozijar-se na sua abundância paralela.

“Sim, sim…”, persistimos deste lado, incrédulos. Barcos desocupados presos às vagas dos paredões, tentando acompanhar o ritmo da superfície onde estão pousados. Marujos em terra, salpicados com a hidrosfera das suas amantes, num mundo que flui impávido. Vendedores que delongam folhetos apinhados de sonhos adulterados. A figura risível do vento que passa a transportar a imaginação das trevas da outra margem. Hinos emparelhados nas botas cardadas que se puseram a marchar, cheias de satisfação. Veia seca sem fios. A ilusão marcha. Zangões armados até à lufa a impelir a desordem. Marcham! A brisa que emudece a desgraça. Será tudo fantasia?

As comunicações interrompidas. Já não sou o único no pavimento esquivo do Terminal. Outros seguiram as suas preces crendo que os seus entes regressavam. No tempo, a saudade inebria o juízo e nem a sombra da mais ignóbil miragem os acode. Acocoramo-nos em sintonia de olhos postos nos simbióticos ecrãs que auscultamos entre os dedos. O jornalismo emudeceu. Afrontamos o baço do horizonte que não devolve reflexo. Ou ponta de eco. Os homens, onde estão os homens? O tino a esfarelar-se, a deixar-nos cegos e a respirar por máscaras.

Diz-se que entraram. “Entraram, eles entraram!”, repetem, tentando dedilhar nos aparelhos a ocorrência escondida, como se a realidade fosse uma aplicação. Não se fala em ofensiva, nem invasão. Alguns usam restabelecimento, como se o termo fosse um analgésico. Toma-se e o efeito é imediato. Também segredam – sem acreditar – que os barcos se afundaram. Que a calamidade é extrema. E que o escurecimento é integral. Mas a sonolência da informação não certifica nenhuma vírgula do discurso. O que nos chega é a normalidade clara de um mundo abaulado, na sela híbrida do telemarketing. A tecnologia celular perdeu as funções vitais e deixou de transmitir esclarecimento à geração seguinte, talvez abalroada por doença degenerativa.

Sem cenário do destino, a imaginação corre desenfreada. Confundidos entre filmes de guerra e ficção científica, protagonizados por Jeff Goldblum a fazer de Karate Kid, remexe-se a memória para a prospecção de tais actos. O visto e o previsto. Cilindros e betoneiras a remoer as estradas, levando tudo à frente, deixando o mundo fininho como um boneco animado. Filmes mudos que avançam na rotação errada numa tempestade de postais deslustrados. A cidade murada a expandir-se das suas ruínas. Mais miséria do que opulência. Como se recoloca a ordem na virtude venérea do livre arbítrio a não ser pela sua derrocada?

Mas o bolso volta a tremelicar. Acordo da alucinação e atendo. “O que aconteceu?”, grito exasperado. Alegro-me pela linha restabelecida. E não invadida ou ofensiva. Todos se levantam, apinhados no confim escorregadio do Terminal, alguns escorregam e tombam no reboliço das águas. Perscrutam. Tentam captar o sopro da certeza. Os silvos enternecem a realidade, prenunciando as luzes das embarcações que se avistam. Espantamo-nos com os relatos de desodorizantes e paraísos turísticos que descem dos auscultadores. A descrição da figura robusta que desaponta os iludidos dos naufrágios e perdições de toda a sorte. “Não entraram!”, ralham. Frustrados pelo volte de face da moeda, como se a máquina tivesse ficado com o troco. Não há como abaná-la, pensam ainda. Passado que foi o cabo das tormentas, a vida continua. De hidrofólio a jacto.


IMAGEM © Randy Lewis
10 Out 2019

Brevíssimo tratado da alegria

[dropcap]P[/dropcap]ara quem se compraz com o familiar, como este vosso criado, a vida no bairro tem corrido a uma velocidade vertiginosa e inalcançável. Conto: primeiro foi a partida da menina Marina, a sábia que tantas vezes protagonizou estas crónicas. Foi substituída no seu posto por uma jovem rapariga. Mas com o regresso da época lectiva a adolescente foi fazer o que fazem os adolescentes. No seu lugar está agora uma mulher competente e de extrema simpatia, oriunda da China e com o mais extraordinário nome: Nasa (juro). Alguma da clientela habitual deste retiro não consegue impedir o trocadilho inofensivo: “Vou pedir um café à Nasa” ou “Será que a Nasa sabe fazer abatanados” são apenas dois exemplos. Toda a gente sorri e ninguém leva a mal, a começar pela própria.

A simpática Nasa está numa fase de aprendizagem, conhecendo devagar as manias dos clientes, os temas de conversa, os caprichos de alguns pedidos. E ainda tropeça na nossa língua. Um desses tropeções aconteceu comigo e levou-me mais longe do que esperaria. A estas palavras, por exemplo. Disse-me ela, vendo-me trocar graçolas com o dono do estabelecimento: “O senhor Nuno hoje é alegre”. Queria naturalmente dizer “está alegre”. Mas o engano revelou-lhe a linda (e incompreensível para estrangeiros) bifurcação ontológica entre o verbo “ser” e o verbo “estar”. Quando isso se conjuga com a palavra “alegre” e me diz respeito dá-me logo que pensar e escrever.

Bicho estranho, esse da alegria. Não se trata de ser feliz, não se trata de ter sentido de humor. Não é um riso sobre o mundo – é estar contente com ele, nem que seja por indesejados instantes. A língua portuguesa ainda complica a coisa de forma maravilhosa: somos alegres ou estamos alegres ou ambos?

«Não há ninguém capaz de me dar alegria», dizia um esplêndido refrão dos Heróis do Mar. Mas aqui a alegria é antónimo de tristeza e isso não chega nem serve e nem sequer é verdade. O que é ser alegre, estado existencial que confesso não conheço nem em mim nem aos que me rodeiam?

Apenas o estar alegre: um desprezo temporário das agruras da vida, um estar em casa com o que os dias têm para oferecer. Não se trata de felicidade ou de “ser feliz”: todos sabemos que ninguém com alguma vida e sensatez pode ousar dizer que é ou foi feliz. É uma utopia eufórica que normalmente se confunde com um momento. Não quer dizer que não se possa almejar a esse castelo de areia. Mas é difícil levar a coisa a sério. Por exemplo, se eu disser que tive uma infância “feliz” quero dizer que fui protegido, porque tive sorte e pais dedicados, das desgraças que me poderiam ter atingido. Mas o crescimento trouxe várias angústias e momentos de extrema solidão, como aliás penso que acontece a toda a gente que partilhou a mesma condição. Ou seja: apesar de tudo houve momentos de infelicidade, de dúvida, de tristeza.

Mas divago, como de costume. O leitor é paciente e compreende. E mais entenderia se alguém se apresentasse, como me aconteceu variadas vezes, como uma “pessoa alegre”. O que diabo isto quer dizer? Eu respondo: é o sinal para fugir a sete pés. Se alguém acredita que a vida é a sua sala de estar, que está sempre com um sorriso ou disposição luminosa está a mentir. Ou pior, está nas bermas da vida ou da inimputabilidade ou ambas.

Há um episódio verídico que o humorista Ricardo Araújo Pereira costuma dar como exemplo. Trata-se de um homem deprimido e descontente com o mundo que procura a ajuda de um psiquiatra. O clínico ouve-o, regista a sua tristeza e aconselha: “Deveria ir assistir ao espectáculo do famoso palhaço Grimaldi. É de uma alegria extraordinária. Isso ajudá-lo-ia”. A resposta do paciente é famosa: “Mas doutor, eu sou Grimaldi”.

A alegria é um estado transitório como todos, a começar pela própria vida. O que mais se pode aspirar é ser Grimaldi de quando em vez. Perguntem à Nasa.

9 Out 2019

Às vezes, a Lua

Horta Seca, Lisboa, 24 Setembro

 

[dropcap]Q[/dropcap]ue raio aconteceu? Uns fiscais da ASAE entraram pela Biblioteca dos Olivais, que ainda abriga os restos mortais da Bedeteca de Lisboa, para confiscar «As Gémeas Marotas», paródia à celebérrima Miffy, de Dick Bruna. A sinistra figura, Gonçalo Portocarrero de Almada, vangloria-se no facebook de ser o denunciante de tão infame crime à editora original, a holandesa Mercis, que reagiu com veemência: «foram ultrapassados os limites aceitáveis para uma paródia e ficaram preocupados com a possibilidade desse livro cair nas mãos de crianças, uma vez que estas o podem considerar um original de Dick Bruna, por não conseguirem discernir entre uma paródia e um original.» Atalhando, conseguiram a colaboração das autoridades portuguesas para começar investigação que teve aqui o seu momento mais visível, com a entrada em espaço público, lugar supostamente protegido de preservação da memória, toda a memória, para retirar o livrinho das mãos das pobres crianças. E com requintes ridículos, pois, ao que parece, os agentes de autoridade foram de luvas e grande aparato de segurança, como se se tratasse de ameaça sanitária ou securitária. Terão expurgado também a Biblioteca Nacional? E a sanha vai continuar pelo país todo? Imaginemos que um qualquer imã se sente ofendido com o «Genesis», de Robert Crumb, e pede às autoridades para tratar de os recolher das bibliotecas. Poderá tal acontecer perante a nossa indiferença? Os argumentos que justificam a censura são os mesmos há séculos e séculos: a protecção dos pobres inocentes contra o vício e a violência. Vale a pena ler alguns dos inúmeros relatórios dos censores que nos querem protegem para perceber por onde anda o vício, a violência e a estupidez. A obra em questão, como tantas vezes acontece, não justifica que se ergam bandeiras ao seu redor, mas se a paródia basta para justificar este acto infame, então há que reagir. E preparamo-nos para o pior. As bibliotecas sempre se ergueram belos castelos contra a insanidade. E sempre contiveram infernos.

Horta Seca, Lisboa, 25 Setembro

Coincidindo com a edição francesa, nas Editions Chandeigne, de «Les Eaux de Joana», com fortuna crítica assinalável, chega-nos a segunda edição de «O da Joana», do Valério [Romão]. Continua, para mim, o mais violento da trilogia, com um extraordinário arranque, o primeiro de muitos fôlegos a serem-nos retirados ao longo da leitura. Acompanhar pela mão um livro faz-se disto, de constatar que a sua vida pode ser mais lenta que a de outros, que não funcionará a contaminação entusiasta, mas um lento semear de leituras que se desmultiplicam, que se partilham, por vezes também de silêncios. Foi sendo testemunha de reacções curiosas, de psiquiatras e analistas, entusiasmados com o retrato de um sem número de actos médicos e da profundidade psicológica das personagens, ou de leitoras pesarosas a oferecerem o pequeno volume por junto com um sem número de avisos à navegação, de cautelas carinhosas. Aliás, também entre nós a crítica foi generosa, ainda que lançando avisos às mulheres, logo eleitas como óbvias destinatárias. Esquecendo quase sempre o mais notável, o tour de force que acaba por ser um homem-escritor meter-se na pele de uma mulher. E de uma mulher a perder-se no labirinto do feminino.

Horta Seca, Lisboa, 26 Setembro

Como interpretar este enorme pedregulho que nos atiraram à vidraça e que só a portada de madeira, embora ferida, evitou que entrasse galeria adentro. O estrondo despertou a vizinhança, mas nada aconteceu, nem identificação do magro meliante, nem travão ao gesto. Não terá, estou certo, significado por aí além. Na rua seca, de tão calma, o velho compincha absurdo passou e abusou.

Horta Seca, Lisboa, 28 Setembro

Em gesto raro por tão madrugador, o Jorge [Silva], companheiro de tantas aventuras, será homenageado este ano, no âmbito da Bienal de Ilustração de Guimarães. Calhou-me em sorte mais um texto sobre o seu trabalho, que me interpela e desafia há muito. Este sabor a avaliação de uma vida, do qual tentei fugir, complicou-me os ritmos e, por pouco, não atrasávamos o catálogo além de todos os limites. Partilhamos uma relação estranha com prazos, afinal. (Algures na página, temos uma velha ilustração sua para artigo no jornal «Combate»). São sete as vidas que em exposição, de colecionador a ilustrador, de designer a director de arte, mas surpreendeu-me o óbvio: pertence-lhe o desenho da minha cidade.

«Para afiançar da sua importância no esculpir do perfil da capital nas décadas que a fizeram, com vantagens e desvantagens, atravessar séculos de modo a regressar à luz e ao lugar no tempo que lhe pertenciam, podia aduzir outros casos de fauna e flora, mas chegam-me estas duas publicações, uma campanha e o supremo símbolo. A Lx Metrópole foi revista de grande formato, suscitada pelo Parque das Nações, e dirigida por José Sarmento Matos, e que revelou a urbe de modo único, desafiador, com ideias a estoirar a cada página, gigantesca atenção ao detalhe, viagens certeiras ao passado. Lisboa nunca se tinha visto assim ao espelho. E o espelho era uma página definida com lâminas. A campanha criada a pretexto dos 100 anos do Museu da Cidade (2010), alguns anos mais tarde, aconteceu com extrema fulgurância, com dezenas de grandes cartazes a assinalar carismáticos lugares da cidade. «Lisboa tem histórias» incluía dinâmico retrato, assinado por João Fazenda, e a apresentação da personagem histórica que, ao longo dos séculos, havia erguido a cidade, por função ou apenas sendo. Um conceito simples fazia da cidade museu vivo. Entretanto, já a Agenda Cultural, com edição mensal, dizia em voz alta que o lugar fervilhava.

A pequena e longeva publicação não se limitava à listagem do sem-número de eventos que tatuavam a pele da cidade. Cada vez mais se fez revista, produzindo matéria, alinhando temas, promovendo olhares, apresentando os agentes da mudança ou da constância. A arrumação pode ser dinâmica e será sempre uma interpretação do mundo. E o ponto final teria de ser a sardinha.

«Bicho mudo e quedo», assim a chamou Silva, empurrou o santo e o menino, destronou a esquecida alface, e tornou-se em meia dúzia de anos o signo universal de Lisboa. A pretexto das Festas da Cidade, começou por deitar-se em scanner na vez de assador, em versão quase abstracta, de cores básicas e berrantes, para depois passar pela mão de ilustradores de renome, sempre obedecendo a uma ideia, até acabar em concurso aberto a quem queira nela inscrever uma marca. O resultado foi de tal ordem que a colecção das sardinhas revela o mais notável vocabulário alguma vez feito sobre uma cidade. A forma, que brilha por si, soube conter milhares de visões e experiências. Formas universais, capazes de transportar conceitos e produzir pela imagem sensações, pensamentos: a que mais deve aspirar um criador que usa as mãos?»

Horta Seca, Lisboa, 2 Outubro

Não páro de folhear, de me envolver, no convite para a festa da maioridade do Lux. O [Pedro] Fradique desafiou o André da Loba a conversar com Bruno Munari e o resultado vibra nesta peça única e delirante, celebração da cor e da dança, do encontro e da festa. Ambos acharam que as palavras acrescentariam e fui atrás. Nada me poderia dar mais gozo, puro gozo. Por milhentas razões. «Cada um desembaraça seus nós, faz do chapéu navio, para o mais longe do possível.

Desfaz-te do cais comigo, troca de corpo e faz de antena, raízes na madrugada abrindo a cada gesto teu, copa depositada pelos olhos no colo do céu. Leva-me a casa. A saída descobre-se pelo sorriso, maneira de tocar o rio. Às vezes, a Lua.”

9 Out 2019

A discussão política

[dropcap]A[/dropcap] discussão estava acesa no Gaivota, botequim junto à praia do Campeche. Joel, guitarrista e vocalista de várias bandas na ilha de Florianópolis, teimava que “País Tropical” de Jorge Ben Jor era provavelmente o expoente da música brasileira. Aliás, dizia, toda a obra de Jorge Ben Jor é o Brasil traduzido em música. Nem Cartola, nem Adoniran Barbosa, nem Milton Nascimento, nem João Gilberto chegaram a esse nível, o de serem o Brasil. Virou a “jola”, pegou no violão e começou a tocar a maravilhosa entrada de “Chove Chuva”, continuando depois a cantar os primeiros versos da canção: “Chove Chuva / Chove sem parar” e foi por ali fora até “Por favor chuva ruim não molhe mais meu amor assim”. Fez uma pausa, pediu mais uma “jola” ao Caio e começou a tocar e a cantar “Mais que Nada”. À volta da mesa todos aplaudiram. Carlinhos, outro músico da ilha, que tocava vários instrumentos, teimava que Caetano era o músico mais brasileiro, porque a música do Brasil é feita de todo o estrangeiro, a música brasileira não é só a herança negra. Para ele, o disco “Cores, Nomes” era a pedra preciosa da música brasileira. Não era só a composição, a melodia, as letras, eram também os arranjos, onde o Brasil se encontra com o resto do mundo. “E nas letras, não precisamos de dizer Brasil, tropical, negro, para sermos brasileiros. A primeira música do disco é uma bomba total, mas a segunda – “Ele Me Deu Um Beijo Na Boca” – é um hino!” E pegou no violão do Joel e começou a tocar e a cantar, com a ajuda de todos nas precursões, com o que havia à mão. A meio da música Carlinhos cantava “Política é o fim // E a crítica que não toque na poesia / O Time Magazine quer dizer que os Rolling Stones / Já não cabem no mundo do Time Magazine / Mas eu digo (ele disse) / Que o que já não cabe é o Time Magazine / No mundo dos Rolling Stones / Forever Rockin’ / And Rolling // Por que forjar desprezo pelos vivos / Fomentar desejos reactivos?” Então parou e disse: “Estes versos valem uma literatura, por que forjar desprezo pelos vivos, fomentar desejos reactivos? Isto é política séria. E só por isso, tenho de dizer que a nossa discussão só faz sentido por estarmos a elogiar ambos os músicos, independentemente das nossas preferências. A grande música não tem segundos lugares, só primeiros. Jorge Ben Jor, Caetano, Cartola, Adoniran Barbosa são todos primeiros, independentemente da maior ou menor brasilidade.”

Estavam todos de acordo, evidentemente. Era quase tudo músicos, naquele boteco. Joel, que enrolava um baseado, disse: “Cara tu tocou na ferida, Caetano é muito político, a começar pelo ‘ele me deu um beijo na boca’ e o Jorge Ben Jor é mais religioso, mais total.” Carlinhos não acrescentou nada, partilhou o baseado com Joel e ficaram a ouvir a música de Milton Nascimento, “Maria, Maria”, que Caio pôs a passar, como que a dizer que na música há mais marés que marinheiros. E Milton cantava: “Maria, Maria / É o som, é a cor, é o suor / É a dose mais forte e lenta / De uma gente que ri / Quando deve chorar / E não vive, apenas aguenta”.

No final da música, e do baseado, deram ambos um gole na “Antarctica” e ficaram com aquele ar de quem entende que no Brasil não há música que não seja política, e que as preferências pessoais pelos músicos têm tanto do modo de pensar a cidade e o mundo. Olharam à volta, vendo a galera cantando e dançando com a música do Milton, e perguntaram, quem é que naquele boteco gostava mesmo de bossa nova? Provavelmente ninguém, ainda que pudessem gostar da melodia e respeitar a harmonia. Hoje, Carlinhos continua a ir ao boteco Gaivota e junto com Joel e Caio escutam, entristecidos, Chico Buarque cantar “Cálice”: “Pai, afasta de mim esse cálice / De vinho tinto de sangue”. Esta canção da década de 70 parece tão miseravelmente actual que acaba com a discussão sobre quem é mais brasileiro, se Jorge Ben Jor ou se Caetano Veloso.

8 Out 2019

Das coisas começadas

[dropcap]A[/dropcap] matéria de que somos feitos é um defeito.
A matéria é um animal que mal sustenta os seus cascos.
Poder do Demo quando bem empregue, bom, ao lado das coisas que são sombras.

Quando a torturamos mais do que pode suportar somos possuídos por trevas sem fim.
O Demo em nós é por vezes o único amigo quando bem compreendido.
Tenhamos também por ele compaixão, é que neste chão um secreto amor lhe foi também preciso.
O nada disto entender é ser esquecido.

Pois que Demo e esta matéria já não são os mesmos, somos então um novo crescendo.
A anima que aguenta e levanta a forma pesada, também muda, e volta sem nada.
Há simulacros ditando os nortes vários mas a vitória é virá-los.
Não são demónios, são anjos, caídos na robustez, nós vemo-los por vezes passar sem lhes descobrirmos a tez.

Podem ser belos também – Lúcifer em vaga e lava- e podem ser feros sem ver onde projectam a alma.
Nós já fomos os vulcanos das terras de todos os amos, e tentamos, tentamos, esconjurar esses danos.
Toda a matéria flutua no vazo híbrido das coisas, e coisa sem forma é sentida como o marulhar dos tormentos.

Se com eles se fizerem os assentos, e com os marulhares os incêndios, perderemos de vez o entendimento de quem nos fere no tempo.
Deus emigrou e está no alto do planisfério, por vezes sentimos que dorme do lado de lá do Universo, e que em poema nos dá o luto para cobrirmos as lendas.
Mata um samurai, e sai. Depois vem peregrino, e Demo e Deus vão sozinhos na construção dos acasos.

Redobram de forças quando as nossas já falecem, e se lhe sentirmos as sebes transportamos nós as vestes, que ventos, degelos, e fogo, terão um dia o encontro dos encantos que nos despem.
Lúcifer, o que fere e cura, que luz e fera em si mesmo se procura; vem!
Hoje de negro cobalto, negros de luz e olfacto, vem a este teu Fado.

Somos o vaguear de uma coluna de fogo, somos milhões e não parece haver de novo o novo que será
o seu maior evento. Cobrindo então de cinzento a Terra inteira vestido de vento, vem do lado de todo o firmamento.
Que se perde na noite longa da Fogueira.
Depois disto tudo que vislumbrámos nas acácias do Verão, os solos viram-se então…

Já são tectos glaciares e vozes vêm dos mares- náufragos da terra perdida- pois vós ireis avançar:
Quem nos segue está escondido!
Manchas e sulfatos de cobre despem as ilhas do meio, e sem medo marinheiro,
rema para lá.

Os dias vão ficar na nuvem e só haverá sol para além da bruma…
Dias sem sol e sons de fora fazem no painel da Hora um recanto de silêncio.
A bolha de cristal de fios de tule e vagas imperiosas vagueia entre todas as terras povoadas.
Com receios de auroras e já sem Demo nem Deus, encobertos p´la. fuligem, as nossas vidas
que passam são a suspeita de que ficámos sós na parte sagrada que não nos dirá mais nada.
Vamos percorrer esta estrada, para quem nos encontrar seremos um quase nada, materializados nas

Sombras que se arquearam em dobras… O nosso tempo vai-se embora!
O tempo já não está. Feridos de tempo e sem Deus, a vida prosseguirá, não encontrando seu Demo que nos fizera companhia nos tempos da longa vigília.
Derrete Inferno de esmalte, contorce-te em tua sina de fera gleba sem guia, e senta-te a contar as estrelas.

Não haverá grutas, nem saudades de fazê-las. Há lilases, flores que irás refloresce-las para os olhos nascerem nas órbitas do velho iceberg que no olho da cratera será o ciclope que te vela.
Teremos saudades de ti, um dia que a saudade venha, mas de ti não quero que tenhas a vida que aqui nasceu. Voamos, somos mais anjos, soltos somos melhorados, e todos seremos enfim, o maior acto sonhado de quem ainda segue e ri na vaga definição deste ocaso.
São satélites de vida todos guardados nesses dias, podem cair, desdobrar-se, tudo a sonda sondará, e quem já foi encontrado pode sair por esse lado de lá. Quem não for encontrado é porque não estava marcado, marcas que o Demo nos dá. Corre outra essência, rios mais fundos, pois que vai e reencontra, são estes os desígnios dos mundos.

Está prostrada a matéria e as fomes foram vencidas, e há alimento que sobra desses manjares da antiga vida. Comem-se os elementos brandamente numa outra Era- Estação… quando o tempo voltar e a voz recomeçar, talvez a mesma do Verbo Inaugural, que carne e verbo foram semente de todas as formas do mal.

Quando estivermos distantes mesmo assim teremos lembranças, das núpcias que fizeram as belas alianças e alcançaram o dom da forma perfeita, que um Homem, mesmo derrotado, é saudade que nunca será desfeita.

Está vento, calor, derretimento, fogo, e muito lento o vapor. Está um sabre junto a esta encruzilhada que guia os passos proscritos e todas as naturezas mortas das mesas dos aflitos. O necrófilo emanado do seu estado vegetativo engoliu as coisas, está exangue.

É tempo de partir de forma conseguida, que a fome não se sente, e o quebrar das coisas enfeita os graus da consciência. A eternidade não pode mais com o ciclo que sucumbe e tenta virar a noção do espaço que ocupa, nós já não somos iguais, e onde não há igualdade são duros os sinais.

Acabo aqui. Vim para ficar e desobedeci. Também aqui, não quero estar.
Duro trabalho foi este do retorno ao lar.
E um Ámen se escutou na Galáxia muito para além dos sois e seus planetas habitados.
Tudo se transfigurou. E na senda, fomos mudados.

8 Out 2019

Do consolo

[dropcap]E[/dropcap]u diria que tudo pode vir de um acaso». Assim começa um poema de Nuno Júdice, À Porta do Cinema. E sobre a certeza do acaso já aqui conversámos, amigos. Escrevi-vos na altura que é preciso resistir aos dias mecânicos, criar tempo e lugar para que o acaso nos comande, para que a incerteza exista e nos espante. De forma que, outra vez, tudo aqui veio de um acaso – desta vez chegou para me levar a territórios menos luminosos mas também necessários de enfrentar.

Primeiro, foi a redescoberta de uma crónica que escrevi há quase uma década na ressaca da morte de um amigo. Chamava-se A Vida Tem Morte A Mais. Fiquei espantado com o desamparo que aquelas palavras mostravam e que era o que realmente sentia. Não sabia o que fazer, não encontrava resposta ou solução. Pouco tempo depois de ter regressado ao que tinha escrito vi alguém que amo chorar a memória de alguém que amou e que, apesar de ter desaparecido há já alguns meses ainda a assombra. É uma ausência presente, uma sombra que tanto pode levar a sorrir como a verter lágrimas. E o que assisti foi novamente a esse desamparo, a essa vertiginosa solidão no meio da floresta, mesmo no meio de quem nos é mais próximo. E desta vez, outra vez, fui incapaz de estancar aquela dor, por muito que desejasse, apenas porque é uma dor subterrânea e perene. Podemos aprender a domesticá-la mas ela nunca sairá de nós.

Shakespeare, o homem que nos inventou, dizia que todos podem suportar um desgosto com a excepção daqueles que o sofrem. É verdade. Não há gesto, não há jeito, não há olhar que nos liberte, por mais gratos que possamos estar. Mas foi para estes momentos extremos que foi inventada uma das mais bonitas palavras da língua portuguesa: consolo.

É a mais doce medicina que a humanidade pode praticar. Mesmo que na essência não resolva o que nos aperta o coração, é uma prática necessária, urgente, imprescindível. É algo que toda a gente necessita, um bem maior que existe para ser partilhado em vez de acumulado. Noutro tempo, quando o tempo que existia era outro e mais longo, consolar alguém poderia demorar todo o tempo necessário. Agora não: talvez um abraço, frases tímidas de circunstância e pouco mais. Apesar da nossa necessidade de consolo ser enorme, para parafrasear um título feliz de um livro, deixámos de nos entregar, de entregar ao outro o melhor de nós. Porque o consolo implica também o abandono total de quem consola, a entrega irreversível de uma força e bondade que tem de nascer das profundezas da alma.

Sei que quando o desgosto nos assola muitas vezes o consolo pode residir na mais desejada das solidões. E se sei é porque assim me acontece. Mas é preciso resistir, deixar que o outro nos guie devagar, a pequenos passos para longe dessa floresta que sabemos – oh, se sabemos! – que nunca mais iremos abandonar. Mas pelo menos, com o consolo certo e demorado, iremos aprender a reparar na beleza das árvores.

4 Out 2019

A Grande Dama do Chá

[dropcap]A[/dropcap]s chávenas e os bules de chá que existiam na loja “O Jardim Celestial” de Jin Shixin eram da dinastia Qing e estavam decoradas com requinte. Compreendia-se: Jin era a Grande Dama do Chá. Não deixava nada ao acaso, ela que criara a mais afamada loja de chá de Macau. Enquanto ela atendia uma cliente portuguesa, Marina Kaplan ia passando os dedos pela fina porcelana das chávenas que estavam num móvel de madeira de cerejeira. Depois sentou-se e inspirou o aroma do chá verde de Anhui que tinha defronte dela. Levou a chávena aos lábios e deu um pequeno gole. Era maravilhoso. Como os chineses Han, Jin não se convertera ao gosto do chá preto que a dinastia Qing, manchu, preferia. Não por acaso, na Cidade Proibida, existiam duas cozinhas para preparar a bebida. Uma para fazer o chá preto com leite para a corte manchu e outra para o chá verde preferido pelos Han. Esse mundo dividido ao meio pelo chá acabara com a chegada da República.

Marina sentiu que Jin, impecavelmente vestida num cheongsam verde bordado com uma flor de lótus, se aproximava. Levantou a cabeça e esboçou um sorriso. A pose de Jin era exemplar. O seu sorriso era convidativo e o olhar doce. Qualquer cliente era seduzida por ele. Os seus olhos cintilavam. Sentou-se defronte da russa e perguntou:

– O chá está ao teu gosto?
– Está maravilhoso.

Jin sentou-se e agarrou no bule, despejando um pouco de chá para a chávena que estava à sua frente.

– O Cândido este ontem à noite no Bambu Vermelho?
– Chegou lá muito abalado.
– Imagino. Viu o corpo do russo morto à porta do restaurante.
– Como sabes?

Jin fez um sorriso enigmático, que Marina compreendeu. Desde que chegara a Macau, Jin criara uma vasta teia de contactos. Sabia o que se passava nas ruas e nos becos e, nalguns casos, no meio da administração portuguesa. Muitas das suas clientes eram casadas com funcionários públicos portugueses. Falavam de coisas triviais. E de outras mais importantes. Jin sabia ouvir.

– Cândido percebeu agora onde tu o colocaste. Ele ama-te. Mas ontem ficou na dúvida se não o estás apenas a utilizar para teu benefício. Porque voltou a ver a morte defronte dos olhos.
– Ele terá pensado no que sucedeu à sua namorada em Xangai, a Qin Xuan?
Marina franziu a testa, como se estivesse a tentar recordar o passado, antes de dizer:

– Acho que sim. Lembras-te do que sucedeu? Foi logo a seguir ao suicídio daquela actriz famosa, a Ruan Lingyu. Era tão nova! Mas a Qin foi morta. Num daqueles ajustes de contas entre bandos. Ela estava perto do homem que queriam matar e também foi baleada. Vinha a sair dos estúdios da estação de rádio que tinha o Lucky Strike Radio Hour e que passava jazz. Cigarros e dançar eram a mistura perfeita, diziam eles. E ela, que vendia cigarros no Canídromo, tinha ido lá levar maços de tabaco para os locutores. Uma gentileza que lhe saiu cara demais. Cândido demorou tempo a recuperar, como sabes. Passou a tocar e a beber para esquecer. E viciou-se no ópio. Ainda bem que veio para Macau.

Jin tentou parecer imperturbável.
– Ela alguma vez soube quem disparou?
– Nunca lhe disse. É bom que fique na ignorância. Sabe apenas que algo correu mal e que a polícia nunca conseguiu averiguar nada.

Os olhos de Marina denotaram alguma nostalgia.
– Nunca mais vai haver uma Xangai assim. Com corridas de cães no Canídromo e cabarets, homens a apostar nos cães como se estivessem a jogar a sua própria vida, noites loucas a dançar cheias de homens e mulheres desejáveis, sem ninguém saber que horas eram. Com todo o tempo do mundo para viver. Para mim, que vinha fugida da Rússia, esse era o paraíso.

Jin sussurrou e disse, mordaz:
– Fumavas Lucky Strike ou Da Ying?
– Os verdadeiros cigarros americanos. Em tempos de perdição, para quê escolher cigarros que fingiam ser chineses e eram também americanos, como os Da Ying? Mas, diz-me, Jin, que queres fazer com Cândido?

– Dar-lhe apenas uma missão que faça com que se sinta vivo. E amor.
Jin parou por um momento e bebeu um pouco mais de chá.
– De que lado estás, Marina?
– De nenhum.
– Os japoneses acabarão com o jazz. E com a paz. E com Macau. E mesmo com o teu amor, Ezequiel.
– E vocês, se ganharem, não o farão?
– Ainda vives numa ilusão, Marina. És inteligente, mas só vês o que queres. Lembra-te, Xangai era a cidade das concessões estrangeiras. Com os comunistas a corroerem-na por dentro. A cidade só parecia livre para os estrangeiros. Xangai não era uma cidade. Era uma ilusão feita com pessoas reais. Tudo ao serviço do prazer. E dos sonhos para os ocidentais. Era a paz perfeita: uns divertiam-se, os outros ganhavam dinheiro. Depois vieram os japoneses. E a ilusão foi como uma bola de cristal: quebrou-se.

– Eu sei o que passei, Jin. Comecei como acompanhante no Ciro’s. Tive a sorte de Du Yuesheng e de ti própria terem gostado de mim. Não o esqueço. Mas quero viver a minha vida.
– E se os japoneses ganharem?
– Descobrirei qual é o ritmo da dança. Aprendi que neste mundo de enganos, cada um cria o seu próprio jogo de sombras e de ilusões.
– Esse é também o jogo do Ezequiel? Ou tem também um acordo com os japoneses?
Marina fez um ar sério. Sondou o olhar de Jin. E depois disse:
– Ele é um homem com valores. É um negociante, mas tem ética. Não se vende por tudo. Porquê?
– Há cerca de dois anos os japoneses começaram por querer tomar conta da vida noctura de Xangai na barba dos franceses. Queriam substituir o ópio pela heroina, que se injecta com agulhas. Extrai-se do ópio, por isso eram negócios concorrentes. Queriam os clubes nocturnos para controlarem a noite e afastar o Bando Verde. Sem o dinheiro do ópio, deixaria de ter tanta força. É uma boa forma de se ocupar uma cidade sem ninguém reparar.

Parou um pouco para ver que reacção causava o que estava a dizer em Marina. Esta ripostou:
– Também querem fazer isso em Macau. Nomura propôs comprar-me o Bambu Vermelho há umas semanas. Mas aqui gosta-se mais de ópio. E não há uma vida nocturna como a de Xangai. O seu objectivo, aqui, cairá por terra. Talvez conquistem a noite de Manila. E a de Hong Kong. Aqui não.
– Sabes, Marina, tudo isto faz-me lembrar uma velha fábula chinesa. Nela, uma coruja encontra uma codorniz e esta pergunta-lhe: “para onde vais, coruja?” E esta responde: “Vou para oeste, pois as pessoas da aldeia reclaram muito do meu piar.” Diz então a codorniz: “aceita uma sugestão minha: muda o teu piado, ou vão odiar-te onde quer que vás”.

– Eu seu mudar de piar, Jin.
Marina deu uma gargahada. Apesar das diferenças, conheciam-se há demasiado anos. E partilhavam demasiados segredos. A conversa foi interrompida pela chegada de um casal. Falavam inglês, com sotaque. Eram americanos. Jin levantou-se e colocou o seu sorriso de vendedora.
– Continuaremos esta conversa depois.
– Diz-me só mais uma coisa. Foste tu que mataste o russo?
Jin olhou para ela, mas não respondeu. O seu olhar dizia tudo. Marina Kaplan agarrou na chávena e depois levou-a à boca. Aquele chá delicioso não deveria ser desperdiçado.

4 Out 2019

Esperar

[dropcap]E[/dropcap]sperar” é uma relação intencional, admite um espectro de possibilidades de comportamentos relativamente a uma multiplicidade de objectos. Esperamos por A, B ou C, X, Y e Z. A relação que se estabelece entre nós e cada objecto implica estarmos depostos num futuro, mais ou menos imediato ou até tão remoto que nem parece estarmos à espera do que quer que seja. Há várias possibilidades de projectarmos futuro na espera. Há a espera accionada com a expectativa de qualquer coisa que está aí a rebentar, uma pessoa que, não tarda, chega, o início de um espectáculo, a vinda de um meio de transporte. O campo perceptivo não fica apagado, mas não está em sossego, não importa verdadeiramente na sua contemporaneidade, enquanto sincroniza sujeito de percepção, eu a ver, e objecto de percepção, a rua a ser vista. Quando esperamos por um meio de transporte, de chegada iminente, vemos a Av. de Lisboa, onde estamos, com os seus prédios de cada lado do passeio, carros que passam, nas duas direcções, se há ou não tráfego, os transeuntes, árvores, o céu que serve de plano de fundo. A espera não é, contudo, um aspecto assistencial da realidade. Não o é no seu sentido mais próprio. Se estamos à espera de um meio de transporte, se soubermos de onde se dá a sua aproximação espacial, olhamos nessa direcção. Não olhamos, portanto, com interesse ao que está a desenrolar. Tudo o que se está a desenrolar é um conteúdo sem o objecto da espera. Olhamos para tentar ver o que não pode ser visto nunca do ponto de vista da espera. Se estou à espera de um Uber olho para a aplicação, vejo a representação digital do carro no seu percurso, olho para a rua para ver se já está disponível na percepção. Enquanto não estiver estou “virado” para um espaço físico mas representado: as ruas pelas quais o carro passa, não está a ser efectivamente vistas por mim. Há bairros de prédios a esconder essas ruas, há a distância a que me encontro delas. Além disso, estou virado para o ponto que define a esquina que será dobrada pelo carro, depois de dobrada, sei que o carro se configurará em percepção. Se olho na Av. de Berna para o Campo Pequeno, é porque acho que sei que o carro aparecerá daí. Não olho para o lado da Gulbenkian, se estiver na NOVA FCSH. Se estiver do outro lado do passeio e quiser ir na direcção do Areeiro, então olho na direcção da Praça de Espanha. É daí que virá o meio de transporte. Tudo o mais perde a importância ou antes é compreendido como o plano atrás das minhas costas, na direcção do qual quero ir, que me orienta espacialmente a espera, mas não está a ser visto. Quando vejo o Uber aproximar-se, está já no campo perceptivo, mas está ao serviço do funcionamento da espera. O carro tem de se aproximar a tal ponto que eu consiga, ao esticar o braço, agarrar o trinco da porta, abrir, aproximar-me do carro para entrar, primeiro perna esquerda, depois direita, baixo-me, sento-me, espero pelo arranque, início da viagem, etc., etc.. Quando entramos para dentro de um carro a espera não se dissipa. Há uma fase da espera que fica preenchida. O carro demorou a chegar ou veio de rapidamente. Depois, é necessário fazer o caminho que leva até ao ponto de chegada. O ponto de chegada, uma vez lá, não é o preenchimento, a não ser de uma fase do que estamos a fazer, do que temos de fazer. Vamos a um sítio sempre para tratar de alguma coisa em agenda, para ir por ter de ir ou para ir para qualquer coisa específica. O que se passa para a espera por um meio de transporte, de forma evidente, passa-se para todos os objectos nos quais estamos depostos. Achamos que esses objectos de espera, os objectos por que esperamos, estão já disponíveis na nossa percepção momentânea em que presente e conteúdos apresentados parecem coincidir. Mas se parecem não são coincidentes. Se quero ir de uma divisão da casa para outra, a biblioteca não está na sala de jantar, eu sei que as duas divisões estão contíguas espacialmente, mas uma está à distância temporal do percurso que tem de, necessariamente, ser feito até lá chegar. As divisões de uma casa estão justapostas ou são contíguas espacialmente, mas estão descontinuadas temporalmente. Agora que me levanto do sofá da sala de jantar, a biblioteca onde está o livro encontra-se “depois”, “mais tarde”, mesmo que seja a instantes de uma qualidade tão breve que esse simples facto, de que há uma distância temporal entre as duas divisões, não é percebido cabalmente. Mas se estivermos numa mesma divisão, a espera está a constituir-se eficazmente relativamente a conteúdos que não se destacam nem perfilam na sua individualidade dinâmica. O meio de transporte por que esperamos ou a espera pelo meio de transporte é o sentido da situação em que nos encontramos. Não estamos à janela do mundo apenas para assistir como espectadores desinteressados ao que se está a passar. Todo o campo da percepção está situado pela espera. O livro que precisamos de consultar não está no campo de visão da sala de jantar, mas erige-se, sem uma apresentação visual forçosamente, pela ideia que tenho de que está na biblioteca. Eu vou até ele, passando pelo corredor, depois de ter saído da sala de jantar. Quando estamos a viver o campo perceptivo, quando aparentemente não se espera por nada de concreto que se destaque ou perfile de todos os objectos que aí se encontram, há ainda assim, espera. Achamos que, por defeito, nos encontramos num campo perceptivo, sem estarmos à espera de nenhum objecto, pessoa ou coisa, concretos. Mas é inversamente o caso.

Estamos continuamente e sempre à espera de poder continuar a estar na Av. de Berna, ir ao Campo Pequeno, à Gulbenkian, à Pr. de Espanha. Estamos continuamente à espera de poder continuar sentados na sala de jantar ou a ler um livro na biblioteca. Por defeito, encontramo-nos na espera de continuar no horizonte de percepção que é tão pouco só a sintonia entre ver e visto, a sincronização presente, num instante ou numa duração considerável, de agentes de percepção e objectos de percepção, que a possibilidade de não continuar, de a percepção se desfazer, constitui problema. Não nos apercebemos, a não ser quando estamos “acesos” por um conteúdo específico de espera, que estamos sempre depostos num horizonte de espera que dá identidade de sentido e permite o reconhecimento da mudança no imutável, da sucessão na permanência. O que nada muda tem também o seu apelo.

4 Out 2019

A computação quântica de Séneca

[dropcap]H[/dropcap]oje em dia idealizamos o passado através do culto do património e removemo-lo através da ostensão da tecnologia. Pelo meio, em jeito de retrovisor avariado, fica a angústia climática. É este o tríptico que nos é dado respirar, espécie de ‘boomerang’ no seio do qual o presente surge, ao mesmo tempo, como divindade e como derradeiro sem-abrigo da história.

As recentes referências à computação quântica ilustram estas excitações contemporâneas e confirmam-nos, se ainda fosse preciso confirmar, que a promessa do futuro reside na velocidade e não nos leitosos magmas dos programas de tipo ideológico (ou similares).

Uma das directoras de Microsoft, Julie Love, explicou há dias porquê: “Um computador quântico é capaz de fazer em 100 segundos o que o mais potente dos supercomputadores da actualidade faria em mil milhões de anos”. Por outras palavras: num computador tradicional a informação é processada em 0 e 1 (bits), enquanto num computador quântico a informação pode ser 0 e 1 ao mesmo tempo (bits quânticos ou qubits), o que aumenta de forma exponencial a capacidade de processamento.

Pode haver melancolia, miséria, degredos, degelos, supressão de direitos, migrações desesperadas, seja o que for, mas a velocidade, essa, conduzir-nos-á inevitavelmente ao trono de deus, tal como já se fazia constar nos rolos do Apocalipse de ‘Baruch’, do ‘Enoch’ Eslavo ou mesmo de Daniel. Por outro lado, o olhar para o passado será cada vez mais o da sobranceria, fazendo contrastar a ‘nossa’ celeridade quântica com o tempo da televisão linear, das cassetes de vídeo e dos jornais em papel.

Mas não se pense que esta capacidade de rir do que já foi é um exclusivo das muitas variantes do mundo moderno. Nas ‘Cartas a Lucílio’ de Séneca, mais concretamente na Carta 86, o autor informa o seu interlocutor de que se encontra instalado em vilegiatura na ‘villa’ de Cipião Africano.

Para que se contextualize a época, deve referir-se que Séneca está a escrever no início dos anos sessenta da nossa era (séc. I d.C.), enquanto Cipião Africano, o herói da última guerra púnica, viveu entre 236 e 183 a.C. (séculos III e II a.C.). A distância entre ambos é a mesma que vai de 2019 a 1769, vinte anos antes da revolução francesa.

A prosa de Séneca sobre o tempo de Cipião é pautada por uma sobranceria idêntica à que recorremos hoje, embora aliada a uma certa nostalgia que servirá de ponte para denunciar os novo-riquismos do seu tempo. Nada que não nos seja familiar, se pensarmos nas convulsões cinéticas das torres Trump.

O filósofo estóico começa por dar conta da “cisterna que daria para dessedentar um exército” e do “pequeno balneário escuro segundo a moda de antigamente”. E continua: “No balneário de Cipião não há propriamente janelas, mas apenas umas fendas estreitas que deixam entrar a luz sem pôr em causa a solidez da construção. Hoje dá-se o nome de banhos para traças aos balneários cuja construção não permite receber luz durante o dia todo por janelas enormes”. Nos tempos de Cipião, “não havia água corrente como que brotando continuamente de uma fonte quente, nem os antigos do seu tempo se preocupavam com a iluminação do espaço onde iam libertar-se da sujidade” (…) “Lavavam todos os dias as pernas e os braços, mas só tomavam banho de nove em nove dias. Nesta altura haverá certamente quem diga: que porcos eles andavam!”

Sobre o seu próprio tempo, escreve depois Séneca: “Abunda hoje quem acuse Cipião de perfeito provinciano por não ter nos seus banhos quentes largas vidraças para deixar entrar o sol, e não se deixar destilar no meio da luz à espera de fazer a digestão. Cipião não se lavava com água filtrada, frequentemente estava turva, suja”. Num passo seguinte, Séneca vai mais longe, questionando:

“Quem hoje se resignaria a tomar banho em condições semelhantes? Qualquer um se considera pobre e mesquinho se as suas paredes não resplandecerem com grandes e preciosas incrustações, se os seus mármores de Alexandria não forem decorados com mosaicos da Numídia, trabalhosamente recobertos de verniz como se de pintura se tratasse, se não tiverem uma cúpula recoberta de vidro, se o mármore de Tasos não revestir as piscinas onde metemos o corpo emaciado pelo banho de vapor, se, enfim, se a água não correr em torneiras de prata…” (…) “Que multidão de estátuas, que sem número de colunas que nada sustentam, apenas decorativa, só para exibição de riqueza! Que abundância de águas caindo ruidosamente em cascatas!”.

Percebe-se que, à computação quântica do nosso tempo, correspondia, na época de Séneca, o domínio de uma minuciosa arquitectura da luz, do vidro e do mármore.

Percebe-se ainda que os argumentos de fundo que separam as eras são, do lado de Séneca, a higiene e, do lado dos nossos contemporâneos, a velocidade.

Em comum, ressalvemos a incapacidade de o olhar flutuar para além das contingências e de se deixar pasmar com as diferenças, apesar da inevitável inquietação existencial suscitada pelo presente. Mas como diria o próprio Séneca, o presente é o território que nos assegura que jamais seremos imortais. Daí ele se nos apresentar, não apenas hoje, quer como a grande divindade (o tempo presente é tudo do que dispomos), quer como o tal derradeiro sem-abrigo – ou “escravo” na linguagem de Séneca – da história.

3 Out 2019

Greta

[dropcap]F[/dropcap]iquei espantado com o fácies de Greta Thurnberg no seu discurso na ONU, porém em vez de tirar conclusões precipitadas reflecti.

Lembrei-me da primeira vez que fui à televisão, a um programa da Clara Ferreira Alves, e como a minha prestação foi um desastre tão grande que nunca mais me convidaram. De repente pensei, estão quinhentos mil gajos a olhar para mim, e, sendo tímido, entrei em pane e a minha tendência para a hiperidrose disparou, dobrando-me o embaraço; foi um pesadelo estratosférico. Topou-o o Henrique Fialho, que no seu blogue se apiedou da minha triste figurinha. Quem me viu só pôde concluir que eu era um verdadeiro idiota. Foi preciso, dez anos depois, numa entrevista televisiva no Brasil, que um câmara viesse ter comigo e me segredasse estas palavrinhas tranquilizadoras,

«Não se esqueça de que atrás da câmara só está um homem!» (que era ele), para a pressão se dissipar e eu hoje encarar as câmaras descontraidamente.

Imagino a pressão sobre aquela miúda de dezasseis anos, na ONU ao dar-se conta de que o mundo inteiro, literalmente, olhava para ela. Aí cedeu e, numa fuga para a frente, como ela não transpirava, só fez o que lhe era possível: actuar em overacting.

Um outro flagrante das câmaras com Greta ajudou-me a compreender: o momento em que o rosto da jovem se transfigura quando ela vê Trump e o asco transparece nela. Presumo que a síndrome de Asperger a deixe sem filtro e as emoções lhe aflorem ao rosto sem a atenuação de uma máscara conveniente. O que só a torna mais confiável.

Depois, vi uma maravilhosa entrevista dela no Intercept que me dissipou todas as dúvidas. Tratava-se menos do que ela dizia, mas do seu modo sereno. Postei-a no fb e houve um amigo meu, um conservador confesso, que lhe chamou todos os nomes e que esgrimiu: «O que se está a passar em relação ao clima é uma histeria. Não há urgência nenhuma.», e adiante, «A Greta Thurnberg daquela entrevista pareceu-me uma miúda frágil a debitar mentiras, o que só confirma a minha opinião: ela não devia estar ali.»

Ao contrário do que argumenta o meu amigo, ali Greta não está nada frágil, é o avesso da tensão na ONU.

Entretanto, o mundo está povoado de Vascos, que proferem, «Era bem feito que o planeta explodisse e atirasse com a menina Greta para Saturno a ver se ela aprendia a não faltar à escola.»

Se o planeta explodisse, também Vasco Pulido Valente seria atirado para o éter, voltava a ser um estudante aplicado e investigaria finalmente sobre a influência da tauromaquia e o alvor cornúpeto no bigode de D. Carlos I. Cuspindo contra o vento, Pulido Valente não sobrevive ao fulgor da sua elucubração. Há uma espécie de terrorismo suicida nos iluminados de direita, que foram rebeldes e faltaram à escola no seu tempo, para quem o mundo é apenas o palco para a oportunidade de rogarem o direito à eutanásia, que combatem. É um mundo de hipocrisias e contradições.

Verificou-se nestas últimas semanas uma fractura no mundo entre os que aceitam Greta como arauto de uma emergência ecológica e os que colocam em dúvida os dados científicos que ela veicula e lhe condenam o papel de Cassandra; levantando lebres sobre uma suposta manipulação de que a jovem seja alvo.

Não tenho informações para rebater tais suspeitas, contudo não creio que o assunto deva colocar-se como uma disputa entre crenças. Além disso, numa coincidência danada, deram-se hoje, dia 26 de Setembro, dois acontecimentos funestos que foram noticiados e nos deviam fazer reflectir.

O primeiro reporta à foto desta crónica e aos 163 golfinhos que encalharam na terça-feira na ilha da Boa Vista, em Cabo Verde, e morreram na praia. Segundo o ambientalista Samir Martins este será o caso do género mais grave em Cabo Verde desde 2007, quando mais de 200 golfinhos da mesma espécie encalhou na praia de Chaves, também na Boa Vista.

Não consta que ao longo dos séculos bandos de golfinhos, periodicamente, resolvam ir suicidar-se a Cabo Verde – só ultimamente é que esta anomalia tem acontecido. Uma explicação mágica seria a de que isto acontece porque Greta não tem ido à escola.

A segunda notícia, no mesmo dia, relata que o Monte Branco, a montanha mais alta da Europa, está em risco de desabar e as estradas foram fechadas e as casas evacuadas nesta região dos Alpes italianos. «O glaciar», lê-se, «é o Planpincieux, que fica no lado italiano do Monte Branco, e o iminente colapso tem a ver com o aquecimento global, alertam os especialistas. Os cientistas, que pertencem à Fundação Montanha Segura, adiantam que são cerca de 250 mil metros cúbicos do glaciar que estão em perigo e derretem entre 50 a 60 centímetros de gelo por dia.»

Será isto apenas histeria, como diz o meu amigo, ou ele, comporta-se como um negacionista? É tão legítima esta pergunta como o reparo (que ele me faria) sobre o vício de sobrinterpretar as coincidências. Só que me parece tão grave o tique de relacionar demais como o de abstermo-nos de todo de relacionar x com z, quando afinal pertencem ao mesmo sistema alfabético.

Em tudo isto impõe-se uma terceira equação, e mais ainda depois de Putin ter aderido ao Acordo de Paris: estamos do lado de Trump e Bolsonaro ou de Greta. Podem dois vigaristas ter razão científica? É muito difícil escapar à presunção da aparência e estar com eles num aspecto para rejeitar os outros, pois tanto pragmatismo é inconciliável com o mais elementar trajecto ético. Não há dicotomia quando um dos lados da polarização joga na mesa, e invariavelmente, toda a sujidade dos seus interesses egoístas (veja-se o caso agora de Trump com o seu homólogo ucraniano), o que torna a diabolização de Greta uma cruzada ainda mais absurda.

3 Out 2019

Eu sou ela

“and he said: you pretty full of yourself ain’t chu
so she replied: show me someone not full of herself
and i’ll show you a hungry person”
Nikki Giovanni

[dropcap]A[/dropcap]s redes sociais mundiais estão obcecadas com Greta Thunberg e coube às redes sociais portuguesas duas obsessões extra: o último video do rapper Valete e a gaguez de Joacine Katar Moreira. Não sei quase nada sobre Valete, a sua carreira, as suas origens, o seu percurso pessoal e profissional. Ouvi muitas vezes uma canção de há uns anos, em que colabora com Capicua, rapper, feminista e activista extraordinaire. Essa canção, Medusa, é precisamente sobre abusos, igualdade de género, é o denunciar de situações criminosas e misóginas que vemos, ainda, repetirem-se demasiadas vezes. Na semana em que o Theatro Circo de Braga se encontra de luto profundo por um elemento fundamental da sua equipa, Gabriela Monteiro, ter falecido, vítima de violência doméstica, a reflexão e a acção tornam-se mais urgentes ainda. Não entendo o que aconteceu nos últimos anos para que a mensagem de Valete tenha, aparentemente, mudado. Sei que enquanto rappers, feministas, plantas e animais de estimação debatem no twitter e no Youtube, essas mulheres continuam a precisar, elas sim, de atenção, que tem ido para tudo e todos excepto as mesmas. Passamos tristemente do oitenta ao menos oito, quando as argumentações e defesas revisitam os esqueletos no armário de cada um dos envolvidos, abordando situações totalmente alheias a esta. Mediatismo à parte, não é diferente ver o video de Valete (que não aprecio, nem à letra, nem à defesa que dele faz) ou ver videos virais, brasileiros, verdadeiros, de mulheres que maltratam outras mulheres violentamente, em situações de adultério, com armas e cortes de cabelo, exactamente ao nível do que os gangues fazem. E se recordarmos a carreira musical de Rihanna, talvez fiquemos um pouco confusos com Love the way you lie ou Bitch better have my money e a mensagem que passam, depois da sua famigerada relação com Chris Brown, resultante em violência. Apenas me pergunto se não deveríamos, como diz Capicua, colocar a minha ira, a nossa ira, a ira…ao serviço de cada vítima acusada / e transformada em monstro.

No cartaz de um evento está a minha foto e a de mais três mulheres, uma delas negra. Por engano, escrevem o meu nome duas vezes: por baixo da minha e da foto de uma delas, a escritora Yara Monteiro, que se apercebe do erro e pede a correcção. Concordamos, rindo, que é um elogio mútuo, erros à parte. Seria porque ambas temos uma mega cabeleira solta e volumosa, fácil de confundir? Estas coisas acontecem com alguma frequência, seja com nomes, fotos ou até descrições. Por vezes até através do tempo e do espaço, como descreve a Djaimilia Pereira de Almeida em Esse Cabelo, quando se reconhece na mítica foto de Elizabeth Eckford, tirada em 1957. Eu mesma tiro uma foto de rosto encostado à capa deste romance, ao melhor jeito “podia ser eu”. É que podia mesmo. Dias mais tarde, ao jantar numa associação, um jovem dirige-se-nos.

Sim, estou agora com essa amiga, já fora do cartaz e com muito menos cabelo do que na foto. O jovem apresenta-se e, quando dou por mim, está a segurar-me as mãos, embevecido. Pede-me um autocolante, respondo que só tenho um, a minha amiga também, mas cede o seu. Ele continua, embevecido, a segurar-me a mãos e a dizer coisas que não percebo, mas a minha amiga sim, e clarifica: “Ela não é a do autocolante.” É então que eu e o jovem ficamos perplexos, ele por perceber que eu não sou eu ou, pelo menos, aquela que ele julgava que eu era, e eu por perceber finalmente de onde vinha tudo aquilo. Mais um dia na minha vida. A minha amiga continua “Ela está lá fora.” Sei um bocadinho mais sobre ela do que sobre o Valete. Ela, neste caso, também conhecida por aquela com quem eu fui confundida, era Joacine Katar Moreira, a outra mulher do momento. Sim, aquela que gagueja e depois fecha os olhos e faz sons estranhos e tudo isso.

Ocorre-me um trocadilho entre o romance de Yara e a gaguez de Joacine, em vez de Essa dama bate bué, poderia ser Essa dama gagueja bué. Continuaria a ser uma história sobre mulheres e luta. Tento negociar com esta minha nova função de sósia, que representa uma grande vantagem para ela, a da ubiquidade. Mas onde é que ela não está? Outro dia vi tantos dos seus cartazes espalhados, a maioria intactos, um ou outro vandalizados, como todo o bom cartaz, no bairro com maior diversidade cultural de Lisboa. Recordei as suas palavras numa entrevista recente: “Eu sou uma mulher negra para poupar o esforço a muita gente.” Tenho de lhe perguntar, a ela e a todas as mulheres, vítimas ou não de alguma coisa, certamente sobreviventes de muitas mais, se conhecem a poesia de Nikki Giovanni (em cuja foto de cerca de 1980 me espelho, cheia de saudades de ter o cabelo maior) e aqueles seus versos: “I cannot be comprehended / except by my permission.” Urgem a permissão, a compreensão, o respeito e a paz.

3 Out 2019

Diogo Pereira ou Gil de Góis Embaixador à China

[dropcap]A[/dropcap]pós a morte de D. João III em 1557, o neto D. Sebastião (1554-1580) tornou-se Rei de Portugal, mas devido à sua menor idade ficou a avó D. Catarina de Áustria (1507-1578) como regente de 1557 a 1562 e em 1568, considerado maior, passou a exercer o poder. Nascido em Lisboa a 20 de Janeiro de 1554 do casamento de D. João, filho do Rei, e D. Joana de Áustria (filha de Carlos V), D. Sebastião subiu ao trono a 11 de Junho de 1557. No ano seguinte, Constantino de Bragança, filho de D. Jaime, IV Duque de Bragança, partia para a Índia como Vice-Rei, exercendo o cargo até 1561.

No Porto de Amacau desde 1558 encontrava-se o mercador Diogo Pereira como Capitão de terra nomeado pela população, substituído na governação pelo Capitão da Viagem ao Japão enquanto este aqui permanecia; todos sob a dependência do Vice-Rei da Índia. No ano de 1558 foi o algarvio Leonel de Sousa quem como Capitão-mor da Nau do Trato realizou a viagem ao Japão na companhia de um navio de Guilherme Pereira. Em Hiraldo os negócios foram excepcionais, levando-o mais tarde a desabafar do enfado de ser rico, pelos 50 mil cruzados do lucro alcançado, segundo Rui Manuel Loureiro, que refere, naufragou no meio do golfão da China entre portos chineses quando já seguia a caminho de Malaca, mas conseguiu salvar-se e em 1560 estava na Índia.

Ainda em 1558 o Bispado de Goa foi elevado à categoria de Arcebispado, sendo criados dois bispados sufragâneos, o de Cochim e o de Malaca, onde até 1575 ficou integrado Macau.
Diogo Pereira desde os anos 40 do século XVI comercializava pelo mar do Sul da China. “A sua experiência e espírito de liderança gera o clã Pereira que, não muito mais tarde, opera em Macau”, segundo Jorge dos Santos Alves e Beatriz Basto da Silva complementa, no período de 1550 a 1564, “sensivelmente, o poder português em Macau é alvo de uma luta ‘civil’ entre moradores e mercadores, sendo que a ‘família-empresa’, como lhe chama L. F. Barreto, de Diogo Pereira se encarrega de organizar o sistema de pagamento alfandegário que Guangdong aceita. É a família Pereira que aproveita o assentamento de Leonel de Sousa e o faz evoluir no quadro do triângulo mercantil Ocidente-China-Japão.” Reinava na China a Dinastia Ming com o Imperador Jiajing (1522-1566).

O estabelecimento dos comerciantes portugueses em Macau e a grande actividade dos missionários pelo Oriente levou a ser relembrada a importância de se realizar uma nova embaixada à China. Na memória restava a frustrada terceira tentativa de embaixada régia, demandada então pelo padre Francisco Xavier e a expensas de Diogo Pereira, mas desfeita em 1552 pelo Governador de Malaca. Já os objectivos do jesuíta Belchior Barreto em 1555, de libertar portugueses presos em Cantão (dez mil em 1561, segundo Amaro Pereira), permaneceram quando em 1558/59 uma nova embaixada à China foi preparada com redobrado cuidado para não haver as confusões que perturbaram o desenlace de todas as anteriores.

Diogo Pereira capitão-mor

O Vice-Rei da Índia Francisco Coutinho (1561-64), 3º Conde de Redondo, nas instruções que do reino levava para a Índia constava a de mandar Diogo Pereira por Embaixador e Capitão da China, com o presente necessário à embaixada pela qual trazia de Portugal algumas peças de muita estima. Enviada para tentar regularizar as relações luso-chinesas, a comitiva deveria incluir padres jesuítas pois pretendia-se conseguir autorização para a Companhia de Jesus entrar na China.

Chegado a Goa em Setembro de 1561, o Vice-Rei verificou estar Diogo Pereira na China e na monção seguinte, em Abril pelo navio de D. Pedro da Guerra, onde seguiam com destino ao Japão os padres jesuítas, Luís Fróis e João Baptista del Monte, mandou-lhe a nomeação, por dois anos até 1564, para como Capitão de Terra governar a povoação em lugar dos Capitães-mores da viagem ao Japão. Devia preparar terreno à embaixada e acautelar desordens como as ocorridas com Simão Peres de Andrade, pelas quais as duas primeiras embaixadas portuguesas à China fracassaram. De Malaca saíram a 8 de Julho e entraram em Macau a 24 de Agosto de 1562, dia de S. Bartolomeu, sendo recebidos por Diogo Pereira, a exercer já funções de capitão-mor de Macau, escolhido pelo povo por gozar de muita confiança e popularidade. [Posto abolido por decreto real de 1563, mas aí se manteve até 1587]. A ele se deve a organização e transformação rápida da povoação numa cidade e “os chineses seguiam com alguma perplexidade este crescimento, dentro dos limites do seu território, o que, de certo, explica o ‘irregular tratamento’ – ora generoso, ora de suspeição – para com os portugueses”, segundo Tien-Tsê Chang, que refere, Macau em 1563 contava “com 900 pessoas, sem incluir as crianças. Para lá destes residentes, havia vários milhares de estrangeiros comerciantes, criados e escravos (de Malaca, da Índia e de África).”

Embaixador Gil de Góis

Por Despacho Real, Gil de Góis partiu de Goa a 27 de Abril de 1563 para Macau na nau de Diogo Pereira, seu cunhado, e além do presente para o Imperador levava a função de ele ou Diogo Pereira, se este quisesse, ir como embaixador à China; ordenava nessa embaixada seguirem padres da Companhia de Jesus para pela quarta vez se tentar introduzir o catolicismo no Celeste Império, depois das tentativas de Francisco Xavier, Belchior Nunes Barreto e Luís de Fróis.

De Goa seguiram com Gil de Góis, João de Escobar, escrivão da embaixada régia e os padres Francisco Perez (1514-1583) e Manuel Teixeira (1536-1590). Em Malaca a 13 de Junho, voltaram ao mar a 8 de Julho já na companhia do irmão André Pinto (1538-1588). A 29 de Julho de 1563, no porto de Amacau foram recebidos por Diogo Pereira, o irmão Guilherme e um grande número de moradores.

A mercê régia logo entregue a Diogo Pereira dava-lhe a escolha de ser embaixador à China, ou ficar em Macau com o cargo de capitão-de-terra, independente do capitão-mor da viagem.

Escolheu governar Macau, que em 1562 tinha 800 a 900 portugueses moradores e problemas a exigir juiz permanente, segundo Beatriz Basto da Silva, que refere, com o “cargo de capitão-de-terra, o primeiro tipo de governo autónomo de Macau, Diogo Pereira, seu inicial ocupante (a 23-VIII-1562), continuou em exercício até 1587. As relações económicas com a China e com a Carreira das Índias passavam por este ofício que punha os lucros das viagens ao serviço da política.”

Assim Gil de Góis ficou Embaixador, sendo “Iniciadas imediatamente as diligências para a apresentação da embaixada, naturalmente junto dos Mandarins grandes de Cantão, e do vice-rei, vieram a Macau várias autoridades chinesas para examinar os presentes e retiraram-se satisfeitos e peitados, prometendo encaminhar o assunto favoravelmente para Pequim”, segundo Gonçalo Mesquitela, “A aceitação da embaixada, e do presente em cerimonial próprio em Pequim, tomava o valor do reconhecimento oficial das relações com o país ofertante.”
Importante era manter a paciência durante a espera da permissão.

30 Set 2019

Olá mãe!

[dropcap]T[/dropcap]alvez esteja quase a entrar no chamado inferno astral, como todos os bons aniversariantes, cerca de um mês antes da dita efeméride, talvez seja deste tempo que no mesmo dia muda várias vezes do azul para o cinzento, talvez seja do adiantado da hora e de Setembro. O ano termina daqui a três meses, Junho despediu-se sem que mal o tenhamos vislumbrado (num ano em que voltámos a ter frio nos Santos Populares) e não estou certa de que Maio, até agora o meu mês preferido, tenha chegado a terminar. Os dias 25 parecem, em geral, bons para a independência.

Tendo vivido algum tempo com duas pessoas cuja formação de base é da área da psicologia, habituei-me a ouvir as suas histórias caricatas dos tempos lá passados, mas sobretudo a usar a expressão “Fazer as malas e bazar para Moçambique”, usada por uma dessas amigas para descrever a sua hilariante fuga para longe de uma relação.

É a primeira vez que volto a um país onde não faço parte da minoria, um sentimento indescritível a não ser pelo meu sorriso. Nunca aqui estive mas, como denota um amigo, sinto-me em casa tão imediatamente que nem consigo tirar fotografias. As primeiras, envio à minha irmã, precisamente por saber que ela vai reconhecer a descrição que faço, não se parecessem estes bairros com os da cidade em que crescemos. Quando aqui chego, e durante os próximos dias, observo sempre, em algum momento, borboletas à minha volta. Não me transformo nelas, nem são amarelas, mas alegram-me. Tudo faz sentido neste sortido de cores vibrantes e escritos curiosos, desde os avisos para não fazer xixi (o equivalente aos não escarrar para o chão de Macau) ao conselho Moçambicanos, não troquem o pão por doces, ao meu novo mantra, encontrado no Mafalala: Caiu mas vai levantar.

É a primeira vez que me chamam mãe, embora não a primeira em que me confundem com a de alguém. É, também, o dia da mãe. No segundo dia, saio do hotel assim que o cansaço da viagem permite, e deambulo durante cinco horas pelas ruas de Maputo. Os moçambicanos são conversadores, simpáticos, práticos, curiosos, prestáveis. São campeões de vendas: de manhã à noite, estão em constante negociação. Caju, amendoim, brincos, estátuas, flores. Muitas flores, porque são um povo absolutamente romântico. Enquanto espero para almoçar, aparece mais um.

Tem um produto verdadeiramente único, em madeira, quase do seu tamanho, para me apresentar: África. A vida dispensa metáforas.

Na Avenida Marginal, faço amizade com dois polícias, homem e mulher. Um desportista alerta-me de que nem todos os que por ali caminham são bem-intencionados. Por falar em desportistas, quase me junto a uma aula ao ar livre. O sol nasce e põe-se tão cedo aqui que pelas dez já me sinto como se fosse uma da tarde. O ninho do tecelão parece um coração invertido. Não muito longe de onde o Carlos apanha um para me mostrar, numa loja, na praia, assistimos a um concerto de tear, tocado por um rapaz que mal o larga para nos vender inconfundíveis sacos coloridos. Ao regressar pela reserva, os animais que não se manifestaram durante a vinda proporcionam-nos o melhor momento do dia: macacos, gazelas, girafas. É outra vez sábado. Só estou aqui há uma semana? Ficaram-me a Vanessa, a Ana Mafalda, a Estela, o Mbate, o Ondjaki, o Valter, a Carmen, o Patraquim, o Mendonça, o Pignatelli, o Carlos, a Énia e tantos outros resilientes.

Ficou-me a Teresa vestida de branco, naquela última manhã de domingo. A foto da Luna de que só se lhe vê o cabelo luminoso, no banco de trás do carro, no dia em que fomos dar um mergulho à Ponta do Ouro. Uma outra, da Jade, deitada ao comprido no sofá, descalça, pé direito enroscado no esquerdo, livro na mão como tantas vezes esta família parece andar. Jade com a gata ao colo, Jade a comer queijo deliciada, Jade a explicar-nos o mundo e a ralhar ao pai à mesa, em conversas divertidíssimas. Ficou-me o Cabrita à janela, em modo despedida, talvez ainda a lamentar as flores vermelhas das acácias que não coincidiram o seu tempo com o meu, enquanto a Sónia vem de casa da irmã, do outro lado da rua, e me dá mais um livro e uns quantos abraços.

Ficou-me a doce Hirondina, que conheci em Macau e a Keysha, essa miúda maravilhosa, tão jovem, mãe de uma menina que fez um ano daí a dias.

Volto para Portugal mais pesada, e não é só dos livros, ou não tivéssemos comido e bebido à fartazana. Volto com mais um sonho realizado. Volto com um verso do Craveirinha, “O que há a fazer sou eu que tenho de o consumar.” Ficou-me o clássico “africano a tentar convencer outro a transportar-lhe qualquer coisa numa viagem intercontinental”, neste caso duas mulheres que se me dirigem, uma delas passageira e a outra embaladora de malas com película aderente no aeroporto.

Ficou-me o comerciante que ameaçou atirar-me à água quando fotografei a sua loja sem reparar que ele estava lá dentro, as fotos desfocadas de estranhos nos my love ao pôr-do-sol e essa saudação tão bonita que se ouve em todo o lado. Olá amiga, olá mãe.

27 Set 2019

Art Pepper, esquecimento e profanação

[dropcap]C[/dropcap]onsidera-te desafiado a interromperes a leitura desta crónica após o 1º parágrafo e a ela só voltares depois de ouvires a música de Art Pepper. Mas por favor, ouve-o com a cabeça e não só com as orelhas se dela quiseres tirar prazer e proveito. Guarda um bom par de horas dedicadas aos clássicos “Art Pepper Meets the Rhythm Section” e “Art Pepper + Eleven” de 1957 e 1960, ou ao derradeiro “Goin’ Home” de 82 para desfazer dúvidas remanescentes.

Voltaste?

Caso estejas livre dos imperativos da actualidade e andes disposto a tornar presente o que as convenções dão como passado, ou caso ainda te reste um módico de curiosidade pelo que está fora do raio de alcance dos hábitos, concordarás que foste gratificado por uma música descomprometida e solar, fresca e salgada como uma brisa marinha, animada mesmo quando não é festiva.

Isto posto caberá chamar agora a tua atenção para o livro “Straight Life” a autobiografia de Art Pepper e o que ela em linha secante à tua esfera diz dos tempos actuais, embora tenha sido publicada em 1979, 3 anos antes da morte do saxofonista.

Em contraste com a claridade transmitida, e por conseguinte sentida, pelo saxofonista alto, as suas memórias desenrolam-se de maneira descarnada e sem esconderijo, naquela escrita tensa e pragmática típica da prosa americana. De vez em quando fazem sensação pública umas biografias assim, que não iludem nem mitigam pecados, falhas, delitos e desgostos. Não menos habitual é que a sordidez do que nelas vem descrito se cumula no tropo do artista torturado que por mor dos seus sofrimentos se revê como maldito, conquanto não lhe faltassem bem visíveis sinais de apreço que ele não repara ou desdenha, por os presumir ou insuficientes, ou hipócritas ou por não se achar merecedor deles. Nestes exemplos, e havendo prévia simpatia pelo autor, põe-se ao jeito de serem capturadas por sociologias e psicologias capazes de as lerem através de um crivo abonatório de modo a poderem transferir culpas para o Pai, para a Sociedade, para o quer que seja desde que iliba a responsabilidade do indivíduo em causa, ele próprio vítima enquanto perpetrador.

Não faltam em “Straight Life” as peripécias esperadas de um músico de jazz da década de 50. Um percurso de “junkie” que pontuou o período mais criativo com um rosário de entradas saídas da cadeia e de concertos desempenhados num estado de alienação, mesmo que coroados de êxito. Quem soubesse uma ou duas coisas acerca de Art Pepper desde logo adivinharia a ironia do título. De tão sacramental, este calvário já faz parte da mobília do jazz e certamente perdeu o poder de impressionar.

Contudo o desprendimento narrativo do biografado estende-se a terrenos que esses sim tornariam bastante improvável algum editor dispor-se à publicação deste livro nos dias de hoje. E se o fosse mereceria uma geral e concludente execração a qual tem dado mostras de correr desenfreadamente até à proscrição da obra e à rasura do nome do seu autor.

Contribuiria sem apelo nem agravo para a sua liminar censura que Art Pepper refira com desprendimento inúmeras relações sexuais conquistadas e não consentidas, engates descritos uns como triunfos a maior parte como prosaicos, todos expostos sem noção de remorso.

Mas é de outra ordem não menos eloquente mas, quem sabe, talvez mais susceptível de inocular o bacilo da dúvida, o que a seguir se expõe ao teu voyeurismo de leitor cônscio, justo e de certeza temente à probidade moral em vigor.

Art Pepper era branco num meio musical predominantemente negro, meio esse cercado pela desconfiança e não pouca acrimónia de uma sociedade branca. No início fez uso desta desconfortável fisionomia de Janus para subverter os pequenos mas implacáveis infernos da segregação racial que regulava o quotidiano na América dos anos 50; ia ele buscar a comida aos restaurantes que não serviam negros ou mandava parar os táxis que doutro modo fugiriam.

Ainda que não o quisesse assumir e apenas pretendesse ser um camarada ou tão só conquistar o respeito dos seus companheiros negros, Art Pepper acabou por se ver no papel prestável de “anjo branco” protector. Na década de 60, como se sabe, os descendentes dos escravos decidiram tomar em mãos a sua cidadania, reivindicar direitos evidentes e legítimos, insurgir-se contra a subalternização cívica. Art Pepper presumiu não ter nem culpas nem contrições a prestar. Mas um dia, ao cabo de um recital, foi avisado que nas suas costas o baterista exibira um sorriso desdenhoso durante os seus solos. Quando Pepper o interpelou o baterista cuspiu no chão e verberou que os “white punks” não sabiam tocar. “Então porque tocam comigo?” “Para nos aproveitarmos de ti, ‘white motherfucker.’” Diz Art Pepper que chorou, não se sabe se de raiva ou de comiseração.

O certo é que houvessem os actuais juízes da moral pública lido estas memórias e não sonambulasse o jazz nas catacumbas das predilecções musicais e já não se poderia contar com as obras de Art Pepper.

27 Set 2019

Das livrarias

[dropcap]E[/dropcap]stou numa livraria em Estrasburgo para um encontro com leitores, uma livraria com cerca de trinta e cinco anos de existência na qual trabalham cinco pessoas. Uma senhora ao meu lado pergunta por um livro de que leu resumo e crítica num jornal de Maio; não sabe precisar o jornal em questão ou o título do livro ou o autor, mas é um romance histórico que versa a República de Weimar e, na escola onde trabalha – é professora de geografia –, duas colegas falaram-lhe muito bem do livro. O livreiro chama um colega, justificando-se: a minha especialidade não é de todo o romance histórico, madame.

Chega o segundo livreiro: esta senhora procura um romance que saiu em Abril, Maio, sobre a república de Weimar, não se recorda se o autor é francês ou se… Sim – interpõe o outro – já sei. Venha comigo – dirigindo-se à senhora.

Veja se é este que procura – a senhora faz que sim com a cabeça, sorri –, é este mesmo. Eu lembrava-me de que a capa era em tons de azul, mas nem por nada me conseguia lembrar do nome. Se me permite – prossegue o livreiro – temos outro título aqui na livraria que poderia interessar-lhe, é o mesmo tema tratado de uma perspectiva inteiramente diferente, na minha opinião bastante mais realista… não diria realista, ambos os livros são bastante fiéis na perspectiva que cada um deles traduz dos acontecimentos pós-primeira guerra, mas são duas histórias contadas de modo muito diferente, e penso que até se complementam. A senhora segue-o, regressam à prateleira de onde o livreiro retirou o primeiro livro e ali se demoram em conversa sobre livros, a república de Weimar, o que já leram este ano e o que mais gostaram de ler e porquê.

Em França e exceptuando talvez Marselha, não há cidade que não tenha umas quatro ou cinco livrarias independentes. E uma livraria independente – pelo menos para os franceses – não é só uma livraria que não pertence a uma grande cadeia de retalho de livros. É sobretudo um local onde trabalham pessoas cuja especialidade é encontrar aquilo que se procura e aquilo de que nem se sabia estar à procura. Chega-se lá e descreve-se o bicho de que se tem uma vaga recordação num braile confuso e não só o especialista o conhece como consegue trazer à colação do interesse toda uma zoologia de criaturas da mesma família.

Em Portugal quase já não temos livreiros, tirando honrosas mas insuficientes excepções. As pessoas que trabalham nas Fnacs e Bertrands da vida não são, na sua grande maioria, especialistas. São mal pagos (como quase toda a gente) e não se lhes exige que acompanhem o “mercado literário” de um ponto de vista outro que o ponto de vista do departamento de marketing. O livro é um produto como outro qualquer e, como qualquer produto, está sob alçada da coordenação estratégica dos departamentos que tratam especificamente de produto: o departamento de marketing e o departamento comercial. Pouco importa que os possíveis clientes andem perdidos nas livrarias entre a savana da auto-ajuda e a cordilheira das culinárias do mundo sem saber exactamente destrinçar as diferenças entre secções ou focar-se num título em particular: desde que saiam dali com um tijolo debaixo do braço – e mesmo que não mais regressem – está tudo bem. O que interessa são os objectivos, e estes não vêem miolos.

As livrarias em Portugal tornaram-se uma espécie de restaurante típico cuja gestão passou para o filho mais velho: vamos cortar nos custos, refazer a ementa em função da estrangeirada que por aí anda à procura do very typical mas com um twist. Quando se derem conta do barrete já estão de regresso aos seus países. Desde que a sala esteja sempre cheia, tanto dá isto ser um restaurante ou uma manjedoura.

27 Set 2019

Ser maior da actualidade?

[dropcap]A[/dropcap] “actualidade” foi desde sempre privilegiada. Na ontologia ingénua em que vivemos, na “metafísica natural”, “o que está a dar” tem mais ser do que o que não está a dar.

Seja nas notícias, seja em qualquer forma de espectáculo, seja individual e colectivo, cada momento presente é mais importante do que “o que passou” e do “que ainda não é problema”. A actualidade, o presente, é continuamente actualizado, está submetido a um updating que reconstitui, reforma, renova o próprio sistema da realidade ou então começa tudo de novo. O presente é mais do que o passado e do que o futuro. O pragmatismo acentua esta valência. É agora e não mais tarde. O que foi mesmo agora, mas há pouco, já não se projecta sobre a nossa realidade da mesma maneira. O que importa e tem valor é este istmo entre o mar do passado e o mar do futuro ou numa outra imagem fluvial, a crista da onda em que surfamos e que de cada vez a cada instante se vai formando é mais importante do que as encostas de moles de água que temos atrás das costas e à nossa frente. O passado mora lá trás e o futuro a Deus pertence. O presente é que é. O passado mesmo há pouco não é já e o futuro não é ainda. A interpretação do ser do presente é concomitante à interpretação do não ser do passado e não ser do futuro, respectivamente não ser já e não ser ainda. Vive-se um dia de cada.

Mas não se pode negar a realidade do futuro. É uma realidade com que contamos, bem na esperança. Mal, na desesperança. É inegável que temos saudades do passado ou o queremos esquecer ou ainda que somos o que temos sido, mesmo quando estamos numa relação de indiferença com o passado ou até só de aparente indiferença. Nós existimos tão pouco só no ápice do presente como também para estarmos na crista da onda, no cume da montanha, na fronteira, no sítio exacto em que estamos numa deslocação ou viagem, precisamos sempre do ponto de partida e do ponto de chegada, das encostas, do vale, da mole de água que faz inchar a onda e da descida em direcção à beira mar ou lá para onde nos leva a onda. O momento presente, ensanduichado entre o passado, mesmo o passado há pouco, agora mesmo, e o futuro daqui a nada, do que está prestes a “rebentar”, a acontecer, o instante presente da actualidade mais actual que existe, não poderia nunca ser nem existir, sem o passado há pouco nem o futuro daqui a nada.

É difícil perceber quem faz a actualização de cada novo momento presente que simplesmente tudo renova e, de facto, tudo renova sem excepção. O mais das vezes repete o que já está dado, ao permitir que continue a ser o que tem sido, sendo ou não bom o que é e tem sido. Outras vezes, permite começar de novo. Outras ainda dá a compreender que é o princípio do fim, que tudo muita, que tudo vai ser diferente e nada vai ficar como dantes. Custa perceber que assim é, que as coisas acabam e custa também perceber que as coisas se renovam ou nascem coisas novas.

A actualidade do presente dura um instante, mas o próprio presente pode durar mais do que instantes, pode ser a própria qualidade da duração natural das situações, do que entendemos ser a constituição do tempo da duração qualitativa das coisas.

As últimas notícias sabem-se na hora, na última hora. Cortam-se metas a cada instante. Os relógios marcam o tempo ao segundo e décimo de segundo já na vida quotidiana. Por maioria de razão o tempo dos atletas, da indústria de ponta, é ainda mais subdividido. Acontecem coisas dignas de registo em tempos subliminares de que não damos conta. Mas a actualidade pode ser também a do semestre lectivo, do tempo da faculdade ou da qualidade do tempo que temos quando somos estudantes. Há o tempo da época desportiva, o ano civil, religioso, a agenda política, os longos prazos mas finitos dos recursos do planeta, a duração da vida humana e de gerações e gerações de vidas humanas.

O que define a actualidade ou o sentido de uma época não se reduz a um instante. Não se distende também apenas a uma duração somente quantitativa. As durações dos objectos temporais são diferentes entre si e resultam da qualidade constitutiva do tempo que é o seu. Ou seja, de algum modo fazemos valer o momento futuro imediato como já a ser integrado no momento actualíssimo do presente. Acordamos, levantamo-nos, bebemos café, tomamos banho, saímos de casa para o trabalho. Qualquer que seja a série de acontecimentos distribuídos pelos seus momentos, haja ou não conteúdos em agenda, eles estão já pressupostos e é com essa pretensão que acordamos e nos deslocamos em casa, distribuindo-nos pelas divisões onde os rápidos momentos da manhã são vividos: quarto, cozinha, casa de banho, escadas, porta da rua, caminhos, partidas e chegadas. O dia inteiro está diante de nós como o objecto temporal que se oferece a ser, a que resistimos com perseverança ou que acolhemos suavemente como algo que desliza bem ou nos faz deslizar bem no seu fluxo. Não precisamos de ler a agenda ou de passar em revista mentalmente o que vamos fazer, o que é importante nesse dia, hoje. Até podemos esquecer-nos do que temos para fazer e podemos não fazer o que era suposto fazermos. No princípio do dia, está o dia para viver, quer aconteça quando ainda é noite ou já a meio da manhã, tarde ou à hora do jantar. Podemos ter um dia longo ou um dia curto. Ainda assim, constitui-se sempre sem se saber bem como a ideia de que há para ser ou que não temos já tempo, que é também uma forma de percebermos que estamos virados para o futuro. Estamos sempre virados para o futuro, quer com ele cheguem conteúdos ou não cheguem conteúdos. O tempo da chegada e da partida de pessoas, situações, circunstâncias ou conjunturas, não pode ser confundido com o próprio ser do tempo que é sempre e continuamente a da eterna partida, passagem irreversível de tudo, simplesmente tudo. [Continua].

27 Set 2019