O Brexit e a geofagia

[dropcap]U[/dropcap]ma crónica é uma Bola de Berlim, às vezes tem creme, outras não. Na Ilha do Farol o vendedor, trajado de branco como um enfermeiro, fazia ecoar praia fora o seu pregão: Bolinhas, Bolinhas!

Uma Bola de Berlim – com creme (é a gadelha) – parece o Boris Johnson, aquela que caiu na areia depois de alguém ter gritado Tubarão e o pânico assarapantar os veraneantes. Quando os mais atrevidos voltaram, um puto ranhoso topou a bola, felicitou-se e apanhou-a, devorando-a. Melhor: absorto pela sua sorte era-lhe indiferente que a areia se misturasse, ou antes, se sobrepusesse ao açúcar. Bola de Berlim crocante.

Averiguo no Google, que males causará ingerir areia, e descubro esta reportagem da moçambicana Anchieta Maquitela, de 2014, que pico pelo inédito e por justificar o ar prazenteiro do puto ranhoso:

«O consumo de areia virou moda em Maputo. As pessoas consomem areia na via pública, no interior dos “chapas” (…) a indústria de venda e consumo de areia está a ganhar terreno na província e cidade de Maputo (sic). Nas ruas, nas paragens e em frente das escolas, é comum a presença dos funis de papel branco cheios de areia.

Se antes comer areia era hábito entre as mulheres grávidas, para remediar a falta de ferro, agora virou moda e até homens consomem a areia.

Há três anos que Sitoe, por dia, acaba três a quatro funis: “No princípio, tive dificuldades, doía-me o estômago, tinha dificuldades de defecar, mas já estou viciado”. Por sua vez, para Alice Das Dores o vício começou aos 15 anos, tendo agora 22: “Esta areia tem um sabor incrível. Não sacia, mas traz um conforto à alma quando o desejo bate.”.

Diz Angélica Sitoe, 44 anos, vendedeira de lençóis no mercado Xipamanine: “A areia não tem gosto. Consumo por capricho”. Para Angélica, o que incentiva os jovens é o baixo preço, “Por mais que queira resistir não consigo. Sempre caio na tentação”.

A areia é extraída em Marracuene, a 30 quilómetros da capital. As mulheres pilam, seleccionam, põem nas bacias e vendem-na ao preço de 50 meticais. A seguir é submetida a um processo de transformação que passa pela adição de sal, incluindo a cozedura que dura entre duas e três horas. Logo a areia é peneirada para retirar a mais grossa. Para dar gosto, coloca-se sal de cozinha e segundo algumas fontes, sabão ou detergentes.»

Nunca dei conta, mas amanhã começam as aulas: vou perguntar aos meus alunos. E percebo melhor a alegria do puto e porque votaram os conservadores britânicos em Boris Johnson.
Continua a reportagem:

«No mercado, as vendedeiras de areia colocam o produto em recipientes abertos e manipulam-na sem luvas.

Teresa Francisco, mãe de dois filhos, vende areia no mercado  Xipamanine, arredores da capital: “É vantajoso comercializar areia porque é rentável, não apodrece, os ratos não consomem, e muito menos as crianças em casa”, explica.»

Confesso que este trecho me desconcerta. Se está na moda, não percebo a falta de sentido de oportunidade das crianças (serão abúlicas?) e como a Teresa Francisco não ocorre a poupança em tomates e feijão se as habituasse a consumi-la. Retomemos:

«Por sua vez, Rosa Moiane também vendedeira do mercado Xipamanine e mãe de dois filhos disse que faz este negócio desde 2011, e que com o dinheiro que ganha com a venda de areia sustenta os seus filhos e ajuda o seu marido que é guarda-nocturno e não recebe quase nada.

Contudo, Rosa reclama do aumento no custo do transporte e do número crescente de vendedeiras de areia na cidade.

“Dizem que este negócio mata e que devemos procurar fazer outros mas já experimentei vender tomate e cebola, e não deu certo”, concluiu.»

E, agora, a reportagem permite-nos aprender, pelo menos a mim, que nunca me tinha debruçado sobre estas práticas:

«A geofagia (comer terra) é uma prática culturalmente sancionada, e portanto não é considerada um distúrbio”.

Está documentado desde a pré-história, e a época dos faraós do Egipto. É um hábito com muitas variantes em sua prática e com diversos significados: nutricionais, psicológicos/psiquiátricos, terapêuticos, antropológicos, místico/religiosos e antropológicos.

“Na selva amazónica, por exemplo, por não ser fácil conseguir-se sal, grupos indígenas realizavam uma peregrinação anual em busca da terra salgada. No Peru e Escandinávia a argila é material comestível. Em algumas regiões de África a prática da geofagia está associada à crença de que durante o primeiro trimestre da gestação diminui as náuseas e estimula a secreção láctea quando o bebé nascer”, lê-se no documento.

A causa básica da geofagia é desconhecida, sendo que a deficiência de ferro no consumidor é a mais divulgada. Outros estudos relacionam a geofagia com a deficiência de zinco ou com as deficiências nutricionais múltiplas.

O problema coloca-se quando as pessoas consomem terra como se fosse moda, sem prestar atenção às condições nada higiénicas do processo de preparação.»

E, pronto, fim de citação, e afinal o Boris Johnson – que pelo contrário tem visíveis hábitos de higiene e daí a sua franja tão loura como o creme da mais estival Bola de Berlim – sempre teve razão: há saída para o Brexit e finalmente as praias do Reino Unido vão ser um sucesso digno de lambões.

O género humano consegue invariavelmente colocar-se um passo adiante das malditas circunstâncias, e eu, como um George Orwell de segunda, hei-de fazer o relato dessas comezainas dos súbditos de Sua Majestade.

Confesso até que estou disposto a propor a Boris um ”piqueno” negócio: cones de língua da sogra, com areia de Brighton tratada – polvilhada de sal, dentes de alho e salsa picados e uma colher de molho de soja. Embora sem descurar a vigilância quanto à restituição dos direitos aos meus amigos moçambicanos, pois, por muito que custe ao novel primeiro-ministro, esta solução não foi dele.

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