Gisela Casimiro – Onde os sonhos vão para morrer (III)

In ‘life,’ I don’t want to be reduced to my work.
In ‘work,’ I don’t want to be reduced to my life.
My work is too austere.
My life is a brutal anecdote.
— Susan Sontag (3/15/73)

 

[dropcap]N[/dropcap]o quadro leio END OF LIFE, e desato a rir, tão secretamente e sem ter de dar explicações quanto possível. Não são vocês, sou eu.

Acabei de rever Mad Men, o que significa que deixei Nova Iorque e estou a conhecer Baltimore em The Wire. Numa das muitas cenas num bairro social, as personagens conversam, desta feita não no icónico sofá laranja no relvado e sim a uma mesa. Dois jovens jogam damas, supostamente, mas com peças de xadrez pois, como adivinha o terceiro, não sabem jogar xadrez nem têm damas, na verdade. Recorrendo a analogias sobre o tráfico de droga e os gangs, assistimos a uma lição. E eu pergunto-me: o que é que estou a fazer aqui, onde não pertenço? A jogar às damas com peças de xadrez, claramente. Aborrecida, arrastando-me de casa para o trabalho todas as manhãs, tornando-me o meme da moça vestida, pronta, sentada na cama, que diz “Eu esperando a hora de me atrasar.”

Dizem que para termos algo que nunca tivemos temos de estar dispostos a fazer algo que nunca fizemos. Reencontro, no Facebook, um testemunho de há uns anos, proveniente de um dos melhores projectos de sempre, Humans of New York: “Parece que quanto mais tentava que ela fosse sobre arte, mais o dinheiro controlava a minha vida: coleccionava prestações de desemprego, lidava com a humilhação de pedir dinheiro emprestado a amigos e familiares, dava voltas na cama à noite tentando perceber como pagar a renda. Para sobreviver tive de trabalhar em dois sítios, e depois de findos os turnos sentia-me demasiado stressado para pintar. É muito difícil criar nestas circunstâncias. A criatividade é um processo delicado. Muitas vezes pergunto-me se deveria ter seguido uma carreira durante a primeira metade da minha vida, obtido algum tipo de segurança financeira, e só então feito a transição para a arte.” Jung explica, os Wu Tang Clan também. Alguém comentara dizendo ter conhecido um talentoso retratista, quando ambos trabalhavam como zeladores. Ao perguntar-lhe o que fazia ali, o outro teria dito: “Por vezes temos de fazer o que temos de fazer, ou seja, fazer o que não queremos fazer, durante oito horas do dia, para podermos fazer o que queremos nas demais dezasseis.”

Nas últimas quatro semanas estive em duas empresas, três escritórios, conheci muita gente, aprendi e cansei-me muito. Tive uma esmagadora sensação de déjà vù na primeira, sentindo que voltara atrás no tempo três anos, novamente naquela empresa, novamente com uma hérnia inguinal (na altura noutra função e cidade, na altura ainda sem saber que a tinha ou o que raio era uma hérnia inguinal). Decidir que algo é temporário ajuda-nos a suportá-lo. Como daquela vez em que me despedi e, passados dois meses, engoli o orgulho e voltei para o antigo empregador.

Agora, permiti-me tirar uma teima, prevenir-me para não ficar de mãos a abanar, pelo meio fazer tempo para o que me parecia ser a única escolha sensata desta fase, da qual me fartei faz tempo. Deixar de procurar, continuar a receber propostas, agora até exactamente para a função de há três anos, mas não ser preciso. Sentir alívio mas, principalmente, não me sentir asfixiada.
Segunda-feira. As semanas chegam e passam. Pouco ou nada fiz a não ser ir trabalhar. É disso que tenho medo? De como o trabalho faz o tempo passar nos primeiros tempos, sobretudo depois do desemprego, tão depressa que nem me vejo?

Alguém nos oferece uma maçã e abraça. Alguém traz um bolo de banana caseiro, delicioso, húmido, bonito, com brilhantes na cobertura. Alguém grita e é admoestado. Alguém é despedido.

Alguém tem um ataque de pânico e é confortado. Alguém volta para a sua terra. Alguém nos faz rir e elogia e nós a eles. Mais alguém é despedido. Alguém se esquece de desligar um temporizador que apita como uma bomba. Alguém tagarela incessantemente. Alguém tenta ler.

Mais alguém também escreve. Alguém joga ping pong, cria um lugar à mesa, vai buscar pela segunda vez uma cadeira para nós. Alguém é ameaçado de despedimento. Alguém nos fala dos seus sonhos, família, datas importantes na sua cultura. Alguém já nos impressiona, intimida, enerva ou surpreende. Alguém é do Brasil, Holanda, Filipinas, Itália, Inglaterra, Moçambique, Índia, Angola, África do Sul, Reino Unido, Paquistão, Alemanha e de mais de dois ou três sítios ao mesmo tempo. Alguém chora, é como nós e nada como nós. Sexta-feira: alguém se despede com um beijo na testa, o que não estranhamos, talvez por já nos tratar pela alcunha quase desde o primeiro dia.

Por enquanto parece que o instinto e a espera terão valido a pena. Pelo menos assim me dizem os meus próprios emails, quando deixo de ignorá-los e encontro tantas coisas boas de que fazer parte. Não são os trabalhos-para-pagar-as contas, sou eu. E o #$%&@* do Martin Luther King, Jr. É que os sonhos, na verdade, só morrem connosco, e às vezes nem assim.

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24 Jul 2020 21:01

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