Do fazer nada

[dropcap]A[/dropcap]ssim: uma brisa leve, um calor inoportuno, indesejado e imprevisível. Uma rua serena, aliviada pelo abandono de Agosto. Ninguém na rua. Permitam que repita com um leve sorriso nos lábios, único ser humano que tudo pode confirmar, escudado numa esplanada do bairro ainda irredutível: ninguém na rua.

Então a entrega possível. Olhem, amigos: sem dever nem prazo, pegar num livro que de tanto lido e de tanto amado não pode ser desprezado. Todos temos um. Vários, direi. A boa notícia: nunca será o mesmo. Crescem connosco e nós, se formos espertos e sortudos, crescemos com eles. Não tenho dúvidas sobre esta matéria: é urgente um Plano Nacional de Releitura.

Haverá certamente outras prioridades. Mas não agora, não agora que me reencontro com o major Scobie de O Nó do Problema (The Heart Of The Matter) de Graham Greene. Quantas vezes terei lido o livro? Muitas. Conheço-o como a mim próprio, este característico anti-herói greeneano que confunde amor com compaixão. Um homem com uma ambição semelhante a Bartleby, pecador agostiniano na sua doce recusa à vida. O seu objectivo maior é estar sozinho; e só as paixões e Deus estão no seu caminho. O mesmo que o condena.

Mas não quero fazer aqui recensão literária. Este meu Greene, sublinhado e amarfanhado com o uso mas ainda com a possibilidade e a vida para poder fazer mais notas, é apenas um prazer recorrente, como acredito que os melhores prazeres devam ser. E, até deparar com a realidade absurda, a coisa estava a correr bem, um leitor apaixonado com tempo e sentindo a cidade que ainda respira de alívio devido à deserção da população de Agosto. Não, amigos: conhecendo a minha sorte sabia que mais cedo ou mais tarde iria levar com qualquer coisa que me maçasse.

Assim foi: os meus olhos depararam, numa pausa de leitura, com mais um sinal extraordinário destes dias. E assim, eu que estava sem horas nem intenção sentado numa cadeira fui violentamente contrariado naquilo que achava que estava a fazer: nada. Pior: soube que para fazer nada era preciso seguir uma “disciplina” ou “filosofia”. Até várias: a coisa começou na Dinamarca, com algo a que chamaram hygge e que se definia por “ficar em casa sossegado” (a sério). Não contentes com isto, os maldosos escandinavos inventaram uma declinação do conceito e – hop! – apresento-vos ao lagom, uma “filosofia” sueca cuja o princípio maior é o de “ver a vida com moderação”. O leitor dirá: para quem se dedica a querer não fazer nada, tudo isto parece dar muito trabalho. O leitor diz bem, e não está preparado para o que vem: o nyksen, uma “visão” holandesa que, de forma surpreendente, recomenda o que fazer para não fazer nada: vaguear, ouvir música, estar sentado – desde que seja sem propósito.

Até hoje não fazia ideia de que era um exímio praticante de nyksen combinado com todas as outras variantes. Provavelmente terei neste momento direito a um honoris causa. E nem me apetece dizer que o otium romano – a condição filosófica mais sublime – já anda por aí há algum tempo. Não, nem que seja só por hoje a minha irritação com estes dias, em que mesmo o que não tem destino precisa de GPS vai ter que ser interrompida por vontade própria. Até porque tenho muito nada para fazer.

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