Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasAo contrário das bruxas [dropcap]H[/dropcap]á pessoas que, a despeito da pouca idade que têm, revelam um sábio conhecimento da vida, um modo verdadeiramente prático de viver, como se tivessem um ouvido absoluto para a vida. Nos antípodas disto encontramos pessoas com idade avançada que continuam surdos, que continuam a viver como se estivessem afinados, embora a melodia que cantem esteja muito longe disso. Jeito para a vida é um talento com que se nasce ou não. E cada um é p’ró que nasce. Larissa era uma jovem muito bonita, de 20 anos, que cursava marketing numa faculdade em Floripa e fazia parte de um jovem grupo amador de teatro, com o qual colaborei algum tempo. Não tinha relações com homens ou mulheres, tinha ficantes. Ficava com quem, quando e onde queria. Estava podendo, como diziam as amigas. Mas o que a levava a viver deste modo devia-se mais à sua convicção acerca do amor do que à beleza que tinha. Dizia que se um dia sentisse aquilo que as outras pessoas chamavam amor, certamente iria mudar. Mas, até lá, vivia com o que tinha e com o que sabia. O que sabia é que as pessoas tendem a complicar a vida e afastava-se dessa possibilidade como o bêbado de um salão de chá. Larissa entregava-se aos ensaios no teatro com muito empenho e entreajuda, sempre disposta a colaborar em tarefas que lhe pediam, para além da representação. O seu comportamento na faculdade era semelhante. Muito simpática com todos e sempre com um sorriso no rosto. Era a imagem perfeita da felicidade. Naturalmente, ainda que ela não se importasse com isso, a inveja chovia continuamente sobre ela. Ou pela sua beleza, ou pela sua simpatia, ou pelo modo concentrado com que se entregava a todas as tarefas que fazia. Podia não ser a melhor, mas empenhava-se em tudo. Também nunca se ouviu dizer mal de ninguém. Acreditava que dizer mal era subtrair-se à vida: “Quando falo mal de alguém não estou em mim, na minha vida, estou no outro, e para mais num outro que não gosto; é perda de tempo, porque perda de mim ou de algo ou alguém que gosto; dizer mal é prosa de futebol no boteco”. Tinha sempre uma capacidade de simplificar as equações que muito me espantava. Uma amiga, a brincar, dizia que Larissa tinha nascido com um “simplificador” instalado. E não era difícil acreditarmos nisso. Um dia, Larissa chegou aos ensaios de teatro com um rapaz e apresentou-o como sendo o seu namorado. Ficou todo o mundo alarmado e olhando o rapaz como se ele fosse o Messias. Só faltou tocarem-lhe, abrirem-no por dentro para verem o que fazia dele tão diferente. Perguntas não faltaram, claro, tanto a Larissa quanto ao Messias. Um exagero que nem o inusitado da situação caucionava. O rapaz estava visivelmente embaraçado, enquanto Larissa continuava simpática como sempre. Dizia, sorrindo: “Gente, não assustem o meu homem, que ele vai pensar que eu só conheço louco e logo logo vai fugir de mim”. Não passou muito tempo, um mês, mês e meio, quando alguém pergunta a Larissa pelo Messias e ela responde que acabaram. Porquê? A única resposta que se obteve foi esta: “Se não é simples é porque é complicado.” À distância, isto é, não sendo nenhum dos elementos envolvidos na relação, consegue-se ver perfeitamente a resolução certa para a equação. Podemos imaginar muita coisa que pode ter levado Larissa a dizer aquelas palavras: privação da sua liberdade, uma tentativa de Messias fazer dela quem ela não é, dificuldade com o horário dele, ou simplesmente querem fazer do tempo livre constantemente coisas diferentes. Mas a melhor resposta deu a Larissa uma semana mais tarde, depois de um ensaio de teatro, quando se falava sobre o amor: “Olha, gente, não é que eu não acredite, mas é ao contrário do que se diz das bruxas: eu acredito no amor, mas que não o há, não o há.”
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasRuggero Leoncavallo (1857-1919): Pagliacci, ópera em dois actos [dropcap]A[/dropcap]ssinalaram-se no dia 9 de Agosto 100 anos da morte do compositor de ópera italiano Ruggero Leoncavallo, autor de uma das óperas mais populares de todos os tempos, Pagliacci. Filho de um magistrado policial e juiz, Ruggero Leoncavallo nasceu em Nápoles no dia 23 de Abril de 1857 e estudou música no Conservatório San Pietro a Majella nessa cidade e, mais tarde, literatura na Universidade de Bolonha. Em 1879, por sugestão do seu tio, mudou-se para o Cairo onde este desempenhava funções no Ministério dos Negócios Estrangeiros do Egipto. Aí foi professor de piano do irmão do novo Khedive, ou vice-rei do Egipto. Na sequência das revoltas em Alexandria e no Cairo em 1882, deixou rapidamente a cidade em direcção a Paris. Nessa cidade conheceu a sua aluna predilecta, Berthe Rambaud, que viria a desposar em 1895. Inspirado pelos românticos franceses, em particular por Alfred de Musset, começou a trabalhar num poema sinfónico baseado no poema La nuit de mai deste último. A obra foi concluída em Paris em 1886 e estreada em 1887 com aplauso da crítica, permitindo o seu regresso a Milão para iniciar a sua carreira como compositor de ópera. Depois de alguns anos a ensinar em Milão, e de ineficazes tentativas de produzir a sua primeira ópera, Chatterton, assistiu ao enorme sucesso de Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni, em 1890, e não desperdiçou tempo na elaboração do seu próprio verismo, a ópera Pagliacci. Segundo Leoncavallo, o enredo da obra foi baseado numa história verdadeira, um incidente da sua infância, nomeadamente um assassinato de que foi vítima um criado de família do compositor, Gaetano Scavelo. O assassino foi Gaetano D’Alessandro, cujo irmão Luigi era seu cúmplice. O incidente resultou de uma série de envolvimentos românticos envolvendo Scavello, Luigi D’Alessandro e uma rapariga da aldeia por quem ambos os homens estavam apaixonados. O pai de Leoncavallo foi o magistrado que presidiu à investigação criminal. A ópera em dois actos, com um prólogo, foi estreada em Milão no dia 21 de Maio de 1892, no Teatro dal Verme, dirigida por Arturo Toscanini, obtendo sucesso instantâneo. Hoje em dia é a única ópera de Leoncavallo no repertório operático standard. O libreto em italiano é também do compositor, e a obra relata a tragédia de um marido ciumento e da sua mulher numa companhia de teatro de comedia dell’arte. Em 1894, o compositor foi acusado de plágio do argumento da peça do escritor francês Catulle Mendès, La Femme de Tabarin, de 1887, que partilha muitos temas com Pagliacci, principalmente o da “obra dentro da obra” e do palhaço que assassina a sua esposa. Mendès processou Leoncavallo mas acabou por desistir da acusação. Hoje a maior parte dos críticos estão de acordo em que o libreto se inspirou verdadeiramente na obra de Mendès, posto que Leoncavallo vivia em Paris na época da sua estreia, e é provável que tenha visto a obra. Desde 1893 que Pagliacci se representa num programa duplo com a ópera Cavalleria Rusticana de Mascagni, uma parelha que habitualmente é conhecida de forma coloquial como “Cav y Pag”. Ambas são as óperas mais representativas do estilo denominado verista. A estreia de Pagliacci fora de Itália ocorreu rapidamente: no Reino Unido teve lugar na Royal Opera House, Covent Garden em Londres, no dia 19 de Maio de 1893. A estreia nos EUA teve lugar um mês depois do Covent Garden, no Grand Opera House de Nova Iorque, no dia 15 de Junho, enquanto o Metropolitan Opera apresentou a obra pela primeira vez no dia 11 de Dezembro do mesmo ano (junto com Orfeo et Euridice de Gluck). O Met combinou-a com Cavalleria rusticana pela primeira vez onze dias depois no dia 22 de Dezembro. Desde 1893 foi ali apresentada 712 vezes, e desde 1944, exclusivamente com Cavalleria. No Teatro Colón, em Buenos Aires, estreou-se na temporada inaugural de 1908, repetindo-se durante dezoito temporadas. Sugestão de audição da obra: Ruggero Leoncavallo: Pagliacci Plácido Domingo (tenor) as Canio; Teresa Stratas (soprano) as Nedda; Juan Pons (baritone) as Tonio, Florindo Andreoli (tenor) as Beppe; Alberto Rinaldi (actor) as Silvio; Coro del Teatro Alla Scala di Milano, Georges Prêtre – Decca: 470570-2
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDias de mudança I [dropcap]H[/dropcap]á dias que fazem convergir para si linhas de acção de diversas frentes e com prazos diferentes de desenvolvimento. Seja a preparação de um negócio, mesmo simples, a compra ou a venda de um artigo, um instrumento musical ou uma obra literária. Seja a inscrição num ginásio para finalmente se pôr em prática o que queríamos há tanto tempo, ter actividade física, ou na mesma linha de acção: deixar de fumar, beber menos, fazer dieta. Seja fazer a viagem ou as férias que podemos finalmente ter. Tudo pode acontecer num mesmo dia e a fazer confluir frentes idênticas de sentido. Não se compra ou vende a guitarra apenas mas compra-se ou vende-se a guitarra, os livros. Parece que nesse dia somos pessoas de negócio, só que habitualmente nada disso acontece. Temos a primeira aula no ginásio, deixamos ou reduzimos os cigarros e a ingestão de bebidas alcoólicas, iniciamos uma dieta, compramos roupa desportiva, tudo parece reluzir como nos primeiros dias de adolescência quando tínhamos o primeiro dia na piscina ou no dojo. Marcamos a viagem para uns dias num sítio em que alguém tem uma casa que nos oferece para estadia. Tudo no mesmo dia. Há dias em que tudo acontece e nada parece abortar, a trama da vida a ser faz que aconteça mesmo que mudemos de vida. Por maioria de razão acontece quando encontramos alguém. II Desde sempre percebi, desde o insondável e distante horizonte da infância, que havia momentos na vida, que definiam marcos, antes e depois, melhor: a partir dessa altura tudo haveria de ser diferente e nada continuaria como dantes. Parece uma redundância. Como é que o que será diferente poderia continuar igual e como é que o que não continua como dantes poderia ser igual depois. Mas é mesmo assim. Há uma compreensão do tempo anterior à experiência de vida por que se passou que também se dá relativamente ao tempo ulterior à experiência. Antes e depois colidem. Não há um único instante, mas há a vida toda. A vida que tinha sido levada até esse instante e a vida que se desenrola à nossa frente, sem pormenores mas na sua configuração. A partir de agora a vida vai ser totalmente diferente do que foi até aqui. Numa outra formulação possível a vida que podia ter sido como foi até aqui vai ser completamente diferente. A vida que era suposto ser tida passa a ser outra. Aquilo por que se passou, os momentos que se atravessaram, reconfiguraram a vida. Não sem antes a terem posto debaixo de um único horizonte que não sabíamos que havia, porque tudo parecia exterior a nós, o espaço, o tempo, os outros, nós próprios. Agora, só há interior e um interior que parece existir no tempo, um tempo que passa a ser radicalmente diferente do que foi até então, como se até então não tivesse havido tempo e agora passa a haver tempo, um tempo que começou a contar de forma decrescente e nós temos de viver uma vida que não foi desenhada por nós, mas pelo trauma. Tudo é post-traumático. III Os primeiros instantes em que conhecemos alguém que fica na nossa vida são diferentes dos primeiros instantes em que vemos alguém que conhecemos mas não fica na nossa vida e diferentes daqueles em que nem sequer nos apercebemos que vemos alguém. Há pessoas que ficam nas nossas vidas em ausência permanente. Tal como os nossos mortos estão sempre presentes a constituir a nossa mente lúcida, assim também eles estão presentes, independentemente de avaliarmos as suas existências como boas ou más para nós. Num instante parece lançar-se um projecto para sempre de convívio e co-existência. Ou antes, dá-se um excesso de sentido que vai para lá da mera sincronização entre ver e visto, sujeito e objecto. Há qualquer coisa que capta a história daquela miúda ou miúdo na infância, mas é sobretudo porque dá a sensação que já nos conhecíamos uns aos outros antes e que era a altura de nos revermos. Do mesmo modo, para além do reconhecimento há logo um quotidiano, um lance de futuro. Não é só presente e história pressentida é também futuro lançado numa antecipação e previsão meramente formais mas eficazes. Não só já éramos antes de nos termos conhecido como a nossa vida seria completamente diferente se não tivéssemos conhecido aquelas pessoas. Não seria possível ter futuro sem aqueles encontros. Não seria possível ter as nossas vidas sem aquelas pessoas. O futuro da vida é antecipado de tal forma que o calcorreamos até ao fim. Aqueles encontros arremessam-nos para o fim das nossas vidas. Lá estarão na hora da nossa morte. Um instante distendido do passado para o futuro e não a abstracção de ter a percepção de alguém: na piscina, no recreio, na sala de aula, no ginásio, numa rua a acenar.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasCircular [dropcap]C[/dropcap]aro munícipe, os vários departamentos da Câmara Municipal de Lisboa e as diferentes empresas municipais têm estado a colaborar activamente para proporcionar a melhor experiência possível aos turistas que elegem a cidade de Lisboa como destino de férias. Nesse sentido, submetemos as inúmeras e generosas sugestões que recebemos dos nossos colaboradores e dos munícipes que as remeteram para o email criado para o efeito a um rigoroso processo de triagem posto em prática por uma equipa multidisciplinar liderada pelo Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, o Dr. Fernando Medina. É com indisfarçável orgulho que apresentamos a seguinte lista de recomendações, por ora não vinculativas, dado carecerem de uma escrupulosa análise do nosso departamento legal para averiguar a possibilidade de passarem a disposições com força de lei. Este período, de que não podemos por ora antecipar a duração, servirá para testarmos a adequação das nossas propostas à disponibilidade dos nossos munícipes e às necessidades dos turistas. Queremos ser a curto prazo a cidade número 1 da Europa a nível turístico e para isso contamos com todos para proporcionar àqueles que nos visitam uma experiência ainda mais inesquecível de Lisboa. Os edifícios deverão afixar na porta de entrada o conjunto identificação de rede/palavra-passe de pelo menos um dos acessos internet por wifi dos moradores do prédio. Ainda que os custos do roaming na União Europeia sejam uma coisa do passado, a verdade é que nem todos os profissionais do Airbnb respeitam com o necessário escrúpulo o horário de recebimento dos turistas, pelo que o usufruto de um serviço de internet sem fios pode contribuir decisivamente para proporcionar, logo à chegada, a imagem de uma Lisboa tão moderna quanto acolhedora. Serão abertos concursos para providenciar os bairros emblemáticos da cidade cujo número de autóctones não seja suficiente para proporcionar a Experiência de Imersão Total em Lisboa que definimos como prioritária para o programa O Turismo é uma Festa com figurantes cuja admissão dependerá de critérios definidos pelo Grupo de Verificação e Controlo do departamento de Turismo de Lisboa e da eventual possibilidade de caracterização dos candidatos. Dar-se-á naturalmente preferência aos candidatos cuja aparência e fisionomia melhor se adeque às expectativas imaginadas da generalidade dos turistas. NOTA: a não ser em casos muitos excepcionais (candidatos com semelhanças muito vincadas a figuras públicas portuguesas internacionalmente reconhecidas) a função não implica qualquer vínculo contratual. Abrir-se-ão diversos cursos em regime pós-laboral de Competências Práticas Turísticas como Línguas (Alemão, Francês, Mandarim, etc.), Olissipografia Museológica e Tuk-Tuk para Iniciantes, entre outros. A frequência completa de cada um dos cursos implica creditação de competências e maior probabilidade de ser seleccionado para uma das muitas funções do programa de reconhecido sucesso Um Dia, Muitos Sorrisos. Encorajamos de igual modo os munícipes a darem quando possível os seus lugares nas muitas filas que se geram no quotidiano de Lisboa como, por exemplo, no supermercado, nos transportes públicos – muito especialmente aqueles que contemplam percursos eminentemente turísticos – e nos restaurantes. É sabido que as demoras no atendimento em ambiente de estadia longe de casa causam um stress desnecessário e impedem que se usufrua adequadamente do Tempo Turístico, por regra mais dispendioso do que o Tempo do Trabalhador. Esperamos que esta pequena lista contribua para aprimorar a experiência já muito positiva que os turistas reportam ter da cidade de Lisboa e aproveitamos para reforçar a nossa inteira disponibilidade para dissipar eventuais dúvidas. Mãos à obra!
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasA poesia não é um lamento [dropcap]O[/dropcap] que é a poesia? Para esta pergunta, eu sei que há sacerdotes a sorrir e a guardar para si o sumo do mistério, mas também sei que há uma turba de poetinhas a pavonearem palavras e palavrinhas. Deixemos, pois, de lado os ‘jardins dos poetas’ e os guardiões do tesouro e falemos de lapso. Sim, a poesia é um lapso, uma inflexão incurável, um modo de descompensar as anamorfoses do mundo. Através da poesia, os humanos recorrem à roleta russa: disparam e por vezes a bala atravessa a linguagem e consegue emendar a morte. Um lapso de ouro. Num jogo de xadrez, é possível viver esse momento-chave: o jogador levanta a peça no ar e ainda não a pousou. O poeta aprendeu há muito a manter o braço no ar (nessa suspensão infinda) e a movimentar as peças da linguagem entre variados campos semânticos. E é no movimento e não na escolha – essa morte súbita – que se lhe reconhece a pulsão essencial. O poeta tem setas movidas e moventes que imitam a luz, fonte de vida. O desempenho inicial da linguagem é de natureza poética. É esse o seu cariz de “númen”. Hans Blumenberg situou o “absolutismo da realidade” nos primeiros estádios da caminhada humana – a chamada “vorverganggenheit” – desenvolvendo-se a comunicação nos antípodas das actuais convicções de realismo, ou seja, naquilo que Rudolf Otto designou por “numinous”. O númen, embora concreto como a areia que o mar amassou, designa um enigma que instaura algo ou que o faz viver e reviver. Na obra que abre o romantismo em Portugal, Camões (1825), Garrett recorre justamente à figura do númen para se aproximar dos sortilégios da saudade: “Misterioso númen que aviventas/ Corações que estalaram, e gotejam/ Não já sangue da vida, mas delgado/ Soro de estanques lágrimas – Saudade!”. O númen mostra e oculta ao mesmo tempo. Num conhecido fragmento (o nº93) atribuído a Heraclito por Plutarco, pode ler-se: “O senhor, cujo oráculo está em Delfos, nem fala, nem oculta, mas manifesta-se por sinais”. Os impactos desta bitola reversível que circula entre o conhecido e o desconhecido (e entre o visível e o invisível) sempre suscitaram disrupções emotivas e fóricas. Razão por que, quer na casa da filosofia (livro X de A República de Platão), quer nas narrativas axiais (caso do Alcorão por exemplo, em suratas como a 21,5, a 26,223, a 69,41-42 ou a 31,5), a poesia, enquanto registo, e os poetas, enquanto performers, foram amiúde mal vistos e até perseguidos. No entanto, G. Steiner, em A Poesia do Pensamento (2011), confirmou que a voz poética é também um númen que pensa e que, portanto, ao fim e ao cabo, nada seminalmente a distingue do ‘telos’ da filosofia. A não ser, estar muito para além dos modelos e das alfaias técnicas e metodológicas que a delimitam. No início da Poética, Aristóteles afirma que a poesia é “uma arte que até hoje permaneceu inominada”. Desde então, durante mais de duas dezenas de séculos, a poesia foi fortemente dissecada e gramaticalizada, mas sem nunca perder, enquanto vestígio de fundo, a pulsão de númen. Daí a sua persistente incógnita. Borges bem avisou nas “Palestras Norton” (1967), referindo-se a Stevenson, que a poesia mais não faz do que devolver a linguagem à sua fonte. Com a passagem do tempo, os jogos de linguagem foram-se tornando num aquário opaco em que tudo – nas suas muitas camadas – se diluiu. Teriam, pois, que ser os românticos a redescobrir na singularidade da poesia o poder de desvelar o ser e o cosmos, no momento em que as grandes escatologias começavam a ceder o seu papel dominador a novas formas modernas de codificar o mundo. Foi por isso que Shelley, em Defense of Poetry (1821), se aventurou a dizer que “o poeta participa do eterno, do infinito e do uno”, acentuando no ofício uma perspectiva gnosiológica. Desligada de finalidades práticas e aberta a partilhas fluidas, a poesia surge em Kant (na Crítica da Faculdade do Juízo, 1790) entre as “artes elocutivas”. Na mesma época Schlegel, em Lucinda (1799), agradecia às entidades ‘superiores’ a novíssima revelação da ‘poiesis’: “Estamos contentes e gratos para com a vontade dos deuses, estamos satisfeitos e agradecidos com o que eles nos indicaram tão claramente nas Sagradas Escrituras da bela Natureza.”. Na mesma obra, a poesia afirmava radicalmente toda a sua autonomia e recusava a instrumentalização a que tanta vez fora votada: “Há poemas na antiga religião que, em si próprios, possuem uma beleza, uma santidade e uma delicadeza únicas. A poesia formando-os e transformando-os, deu-lhes tanta riqueza e tanta fineza que a significação deles, já de si tão bela, ficou imprecisa e permite interpretações e formações sempre novas”. Entrávamos, logo a seguir, na esquadria do chamado ‘nosso tempo’ com a poesia, por vezes, a querer diagnosticar o que nunca lhe coube, nem caberia diagnosticar. É essa a doença dos realismos e dos artificialismos sem fim que persistem no seu cego jogging. Verdade seja dita que poucos ainda hoje agarram o animal pelo númen da roleta russa, ensaiando a abertura aos territórios onde o maior dos lapsos permitiu a Hilda Hilst escrever: “Minha sombra à minha frente desdobrada/ Sombra da sua própria sombra?/ Sim. Em sonhos via/ Prateado de guizos”. Não, a poesia não é um lamento, nem é uma representação seja do que for, mas confirma na plenitude o que Píndaro deixou escrito na sua oitava Ode: “O humano é o sonho de uma sombra”. A poesia pode não nos ensinar nada, mas pelo menos proporciona ao nada o espanto que o realiza. Blumenberg, H. Work on Myth. Cambridge; Massachusetts; London. The MIT Press, 1985, p. 57. Garrett. A. Camões. Editorial Comunicação, Lisboa. 1986, p. 55. Hilst, H. Poema XVII/Via Espessa em Da Poesia. Companhia das Letras, S. Paulo, 2017, p. 460. Kirk, G.; Raven, J.; Schofield M. Dos Oráculos da Pitonisa – 11/604A em Os filósofos pré-socráticos, F.C.G. Lisboa, 1994, pp. 217-218. Píndaro, Odes, trad. António de Castro Caeiro. Quetzal. 2010, p. 64. Schlegel, F. Lucinda. Guimarães Editores, Lisboa. 1988, pp. 133-134. Shelley P. A Defense of Poetry, Shelley´s Poetry and Prose. New York, Norton. 1977, p. 478-479.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasA lição de Cartier-Bresson 03/08/2019 [dropcap]N[/dropcap]ão faço ideia de como se sentirá o pistoleiro depois de três semanas de inactividade. O indicador lateja-lhe, a garganta está seca? Hoje sonhei com um maremoto e que em pânico tentava salvar a mulher e uma filha. O melhor é voltar às trincheiras. A Ilha do Farol continua um belo sítio para se passar uns dias de praia, embora tenha perdido parte do seu isolamento (está mais próximo da Caparica) e enerva que os guias turísticos apontem as pessoas que tranquilamente, nos alpendres das casas, “manjam” o seu arroz de ligueirão, como macacos amestrados. Continuará a Ilha um espaço ideal para se estar nas estações baixas, excelente para ouvir a integral do Eric Satie ou para a concentração num trabalho criativo qualquer. Na Ilha, uma insónia depositou-me este poema: No escuro, a mão é uma alga/ e tenteia – conseguirei fechar/ as pálpebras da Medusa?/ No escuro, os pássaros/ carecem de retábulo,/ mudo escarro de Deus caído no mar./ Não é por compaixão/ que a mão adere à pedra,/ ambas friáveis ao foco/ do farol que lhes recorta,/ intermita, a finitude./ Que portas semear no escuro/ se não caminhas sobre as águas?/ Afasta-se a traineira, segue-a/ no céu o crescente, o mesmo/ que palpita no sonho do gato/ enroscado aos pés do cacto/ na duna que o chapinhar do chinelo/ coroa. No quarto – ó faminto/ de luas e vulvas – aguarda-te a mulher,/ a carne e o riso que te participam. Não creio que volte ao Farol. Nunca volto aos sítios que me provocaram um poema. Assim fugo e me despeço, na busca da rasura e do silêncio: que a um látego só suceda o zoar do mundo, o mar. 04/08/2019 Caparide, na casa de uma amiga onde passo uns dias. Passo os olhos pelas estantes e resolvo entreter-me com leituras de que desertei há muito. Torga ou José Gomes Ferreira, por exemplo. Descubro que nunca li o Tempo Escandinavo, do José Gomes, um livro de contos de 1969, e levo-o para a cama. São contos breves que espelham a vivência do autor na Noruega. Leio-o num folego, num viés. A meio do livro sobressai o relato de uma relação triangular que acaba da melhor maneira: «Que bom trair!». A situação é simples, mas boa – um homem que gosta de quem tanto promete mas não dá, acaba por enrolar-se com a amiga que fazia de pau de cabeleira. A narrativa flui sem entraves, relativamente bem esgalhada, até que vão para a cama. Aí lê-se: «Depois, descido o estore, a mulher ficou de pé, como se estivesse ali há muito tempo à espera, cabelos vermelho-dourados, agressão penetrante nos olhos, feia de desejo (…) O bom é despi-la com delicadeza. Como quem veste mortas para o amor da terra.». Feia de desejo; como quem veste mortas? Uma foda tem de ser uma parábola? Tenho um arrepio, parece que o autor, que vivia num país sem liberdade, já está a escrever para agradar ao censor. Mas por que não te exilaste, meu caro poeta, limpando o aparo destas escórias gritantes? 06/08/2018 Tantos escritores só juntam palavras para fazer uma obra. Tal como na fotografia, demais só fazem clic. Ora, justamente Claudel – um autor prolixo – advertia que não foram as palavras que fizeram a Odisseia, mas ao revés. É esta dimensão que importa relevar: muito holisticamente os romances produzem-se da frente para trás, na perseguição de uma visão que, difusa, tacteia o seu recorte, a nitidez, e o fotógrafo acontece ou não, consoante a fotografia acusa um olhar ou pelo contrário. Cartier-Bresson é nisto exemplar, daí que insistisse no “instante decisivo”. Aqui, o fotógrafo socorreu-se de um axioma de Jean-François Paul de Gondi (1613-1679), cardeal de Retz, para quem “não há nada no mundo que não tenha o seu momento decisivo”. Facto é que não há sombra de vulgaridade nas suas fotos, até parece tudo encenado, tal o acerto dos enquadramentos. A virtude do seu olhar talvez lhe nascesse do que ele recusara: Bresson teve uma formação clássica na pintura e embora desistindo dessa expressão, a sua extrema aptidão para “arrumar” estruturas e os padrões desenhados pelas figuras contaminou-lhe a obra fotográfica. O seu posterior abandono da fotografia – com escândalo, pois muitos consideravam-no o melhor fotógrafo do mundo – foi a marca de um homem profundamente honesto para quem a fotografia não resultava de um passatempo, de uma evasão, ou de um engenho para o comércio, e terá sido, talvez, motivado por um sentimento de derrota, por achar que afinal não rompera com a gramática das imagens de que se tinha apropriado no estudo da pintura clássica. Contudo, a sua arte, apesar de banhada por um halo clássico, está na sua capacidade para cristalizar numa foto os “acasos objectivos” por que os surrealistas tanto pugnavam. De igual modo escrever, para alguns, não é um mero ajuntamento de palavras mas a visão que enforma o texto, construído como um painel de ladrilhos que ausculta em cada sequência, parágrafo e palavras, o único ajuste possível – aquele que maximaliza a síntese. 08/08/2019 Despeço-me de Lisboa, talvez para sempre.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasOnde os sonhos vão para morrer (II) «You’ve heard of people calling in sick. You may have called in sick a few times yourself. But have you ever thought about calling in well? It’d go like this: You’d get the boss on the line and say, “Listen, I’ve been sick ever since I started working here, but today I’m well and I won’t be in anymore.” Call in well.» ― Tom Robbins [dropcap]D[/dropcap]urante muito tempo, a pior pergunta que me podiam fazer era “O que é tu fazes?” É a nossa necessidade de classificar as pessoas, arrumá-las por categorias no nosso catálogo social. O modo como as pessoas se me dirigiam, quando me perguntavam se era cantora ou assumiam: “És escritora, não és? Fotógrafa, talvez? Actriz? Pensava que eras actriz”, não ajudava. Por vezes apresentavam-me assim, e eu sentia o rosto escaldar, como quando uma amiga, sabendo-me infeliz no trabalho, me enviava anúncios para os quais eu não me achava suficientemente qualificada. Dizem os estudos que os homens se candidatam a empregos desde que possuam 65% dos requisitos listados, enquanto as mulheres só o fazem nos 80%. É verdade que muitos artistas têm várias profissões: arquitectos que são escritores ou autores de banda desenhada, engenheiras informáticas que querem ser roadies e estão a tirar cursos de songwriting, têm lições de canto, piano, bateria; escritores que são professores/tradutores/editores, fotógrafas de concertos que são engenheiras. Argumentistas, modelos e actores que trabalham a servir às mesas ou como hosts em restaurantes. A verdade é que os call centers são, apesar do modo como empresa e cliente muitas vezes tratam as pessoas, um fértil campo de profissões variadas, desde advogados a jornalistas, onde se pode encontrar o maior número de pessoas qualificadas e igualmente subaproveitadas por metro quadrado. Há quem precise desse contraste oferecido por um escritório com horário definido para criar nos intervalos de tempo que sobram. Eugénio de Andrade foi funcionário público. Kafka trabalhou em seguros. Agatha Christie foi assistente de farmácia. Há quem tenha mantido o seu day job mesmo depois de atingida a fama. Há quem nunca tenha conseguido ter um trabalho dito normal e, ao largá-lo, tenha sentido um alívio incomparável. Atlas Lisboa, que já o tinha sido em 2012 e foi também Atlas Nantes, Berlim, Gasteiz, ao longo dos anos, é uma criação de Ana Borralho e João Galante. Participei na versão de 2018, no teatro municipal São Luiz, naquilo que considero ser uma reflexão comunitária. Em palco temos verdadeira diversidade de cidadãos, numa panóplia de profissões, origens, etnias e idades. Há lugar para alguém em cadeira de rodas, alguém de muletas. E muitas vozes, uma delas de um índio brasileiro. O que me marcou em ser parte do Atlas, inserido n’Os dias do público, para além de ser a minha primeira vez naquele palco e uma honra, foi fazer-me reflectir e dizer em voz alta o que fazia no momento. Responder à tal questão difícil. Na altura, tinha dois trabalhos, um no público e outro no privado, zero folgas. Durante os ensaios e demais preparação dos textos de cada um, foi possível reflectir sobre quanta da nossa identidade está relacionada com o trabalho que fazemos no mínimo durante quarenta horas por semana, sobre o que é a estabilidade, a felicidade. Uma popular TED TALK baseia-se na premissa BIG – books, individuals, goals como chave para o sucesso. Diz o autor que devemos ler de tudo e ler muito, que a diferença entre sonhos e objectivos são os prazos, e devemos ainda ter em atenção que somos um reflexo das cinco pessoas com as quais passamos mais tempo. O ideal seria rodearmo-nos de pessoas que chegaram mais longe que nós, até porque é preciso alguém que tenha a coragem e a visão, a insolência e mesmo a ambição de chegar onde quer, ou pelo menos tentar, para entender-nos. De fazer as coisas para além do medo. Os chamados riscos calculados. Num hilariante meme, que mostra dois homens à conversa, um diz que renunciou ao seu emprego para perseguir o seu sonho. “Que sonho?”, pergunta o amigo. “Renunciar ao meu emprego”, responde o primeiro. Mais seriamente, vem-me à memória a famosa frase de Doris Lessing: “Whatever you are meant to do, do it now. The conditions are always impossible.” Nunca é a altura certa, nunca estamos preparados para ter um bebé ou deixar um contrato com seguro médico e perseguir os sonhos, ser freelancer, aceitar outro tipo de sacrifícios, liberdade, desafios, benefícios. O que vale é que tudo é aprendizagem. Pode não ser perfeito, mas talvez seja mais verdadeiro. Ou, como diz a personagem de Mad Men, Megan Draper, frequentemente descrita pelo resto das personagens como o tipo de pessoa que faz tudo bem, em vésperas de despedir-se: “Senti-me melhor a falhar em algo que quero verdadeiramente fazer do que a ser bem-sucedida em algo que não é a minha vocação.” Talvez devêssemos, por uma vez na vida, experimentar essa sensação, a de fazermos só o que nos deixa felizes, só para não morrermos estúpidos. Ah, esperem, vamos todos morrer de qualquer modo. Que valha a pena.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasNáufrago na hora Djairsound, Lisboa, 25 Julho [dropcap]N[/dropcap]a certeza de que tudo fui,/ sou eu mesmo o poço e a cisterna/ onde me banho e a idade flui/antecipando pó e poterna.// Mas seria tão bom como já foi/ ter sete anos e não este ar de boi, pesados cornos de lucidez intacta, tal pedra que o pensamento impacta.» Encerra com estas duas quadras a «Canção da Lúcida Idade», apenas uma das muitas, junto com outros tantos fados, que dão volume a este «Arder a Vida Inteira», do José Luiz [Tavares]. Recordo-me de as ver nascer em caderno pautado, a letra redonda e a lavrar sulcos de tão vincada, com a folha a mostrar o desgaste de uma mão que se roça inteira, pois o canhoto torna destarte antena a caneta, orientada aos nortes ou às alturas. Bebericando a sua preta, garantia-me que era intervalo no que vinha erguendo. Queria experimentar com respiração mais sôfrega, procurando aqueles temas fadistas, usando a popular quadra, aspirando a cantares. Sendo do rigor, o Zé Luiz nem descansou até haver composto boa dezena de poemas, afinal camonianos, a navegar pela cidade, pelo destino, pela morte e pelo amor, combo em variantes que sobem ao fescenino. E não pôde deixar fora o seu característico trabalho de linguagem, nas associações improváveis ou no léxico desenterrado que nem tesouro. E os versos tanto abrasam como sopram as cinzas do que vamos sendo. Coincidências, tal a do encontro com o mano Bruno [Portela], que assina a enigmática fotografia da capa [algures na página]. Afirma-se, assim, estilo a perseguir no futuro, resultante da relação do poeta com aquela arte de capturar fragmentos de real. Natural, portanto, que a celebração fosse desalinhada e em casa onde a mistura de comida e dança e bebida e canção obedece ao batuque. As mesas estavam prontas para a janta, o convite bem comportado anunciava o bom-leitor Patrak, também chamado de Luís Carlos Patraquim, a apresentar particularidades em torno da fogueira sem nunca se queimar, mas talvez tenha sido esse o único momento previsto a acontecer tal e qual. Enfim, para além das maravilhosas mornas da Maria Alice, que fizeram tremer as fundações de Santos às Janelas Verdes. Logo antes e a pés juntos atreveu-se o Aurelino [Costa] a entrar em noite, que seria tanto dele, com leitura ouvida em África. Aurelino sabe domesticar o mar dos convívios e atirar-se da onda mais alta. Aconteceu mais para o fim da noite, com o Djair, dono da casa, ao leme de uma precursão capaz de acordar os deuses. Detalhes, dirão, junto com outros abrilhantando a noite, mas escapam a essa classificação a leitura do Valério [Romão] e o bailado surpreendente, e de risco por improvisado, de Mano Preto. Se a isto somarmos as palavras abysmadas do Zé Luiz – chamou-me «seu editor» –, dou a noite por ganha. De «Canção da Danação II»: «noites de sismos bang bang/outro rosto por mim descora/ rudes tenazes pulso de sangue/ fazem-me náufrago na hora». Calcutá, Lisboa, 25 Julho No intervalo de contas por acertar, no sentido dos ponteiros do relógio, de cobrança a contra-cobrança, e com puxão de orelhas a começar o dia, concedo-me a tusa dos projectos. Por que raio, pergunto-me têm tanto a ver com bairro-alto? Começou antes, mas desembocou à mesa da noite com o José Xavier [Ezequiel] a tentar arrancar-me uma data para as suas lombadas e o Paulo [José Miranda] a anunciar mais poesia, ainda que o convidado fosse o José Ricardo [Nunes], em tarefa de hortelão, a ajeitar courelas, arrancando ervas daninhas, ou a regá-las, metáforas que nem soas apropriadas, antes fosse de carácter aeroespacial, metesse planetas e outras figuras do espaço distante por desbravar, i.e., por trazer próximo. Devia ter distribuído antes aos convivas, incluindo os que se ajuntaram brevemente, o Hiren [Tambacal], anfitrião-mor, e o Bernardo [Trindade], o seu «Clássico» (ed. Companhia das Ilhas). Nem por isso se deixaram de trocar leituras em voz alta, recordações do Bairro, opiniões políticas, duas ou três alegrias, além das tristezas. O Zé Ricardo é dos poetas mais fingidores que me foi dado nascer com. Sob a ameaça do nada, ludibria: nem os versos nos salvam e a literatura enfarta, mas com amigos algo muda. «Estão as quatro mesas cheias na Casa Antero/ e eu de pé ao balcão no canto/ mais escuro, a beber Memória/ enquanto espero pelos meus amigos./ Espero e escrevo que espero e escrevo./ E rapidamente me farto de tanta literatura, anseio/ é por conversa. Sozinho,/ neste canto escuro, escrevo e espero/ que algo se interrompa em mim,/ que as palavras percam de vez/ o pouco sentido que lhes resta.» Decidamos, entre nós e sempre no escuro, que palavras aprisionam o sentido. Campos Trindade, Lisboa, 25 Julho Estranhamente, ou nem por isso, almejar a Lua vem significando tocar desejos nas suas múltiplas dimensões, nas várias esquinas de luz e concreto. Somos ora astronautas, ora satélites de estranho sistema solar. Este propósito que me é trazido esta tarde parece ser de puro gozo, nascido de memórias todas atiradas ao futuro, coisa de beira-rio hoje e bairro-alto ontem, gesta da noite sempiterna, quando a ternura se sabe esconder no tempo. Estranhamente, ou nem tanto, o mano mais novo, Bernardo [Trindade], põe-me nas mãos o N.º 2, Tomo 1.º, de finais 1800, da «Revista Illustrada», do Luiz Antonio Gonsalves de Freitas. No amarelo do tempo a lamber o papel inscreve-se poema do dilecto Gomes Leal, ferroada intitulada «A Lua Morta». E troca-me, dramatica e simbolicamente, as voltas. Assente em premissa científica, anuncia morto esse espelho dos nossos quereres, vontades e sentires. «Ha milhões d’annos já que esse alvejante rastro,/ que ella espalha nos céos e sobre o mar profundo,/ não é mais que o lençol do cadaver d’um astro,/ do espectro d’um planeta e o phantasma d’um mundo.// Ha milhões d’annos já que, em torno á nossa esphera,/ o morto globo gyra, errante, solitario,/como o vulcão d’um astro extincto e sem cratéra, / — Frio espectro de luz que arrasta do seu sudário!» E seguem-se em cadência repetitiva evocações de catástrofes, um despropósito de descrições fúnebres e funestas, ainda que no inverso da nossa Terra, desembocando em diagnóstico fatal: eis «sombra vã», «cidade morta». Para quê, então, dirigir-lhe as mãos erguidas, em choro ou ternura? «E, no entanto, alma humana ! eterna atormentada!/ tu quizéras vêr perto a morta nau errante,/ quizéras abordar á extranha nau geláda,/ com seu porão sem voz, seus mastros de brilhante.// […] «Tu quizéras sarar as affliccções internas,/ n’essa imóvel região sem ar, nem movimento,/ n’esses bosques sem voz e noutes sempiternas,/ — onde não sopra nem um ai, nem folha, mar, nem vento !…// «Tu quizéras, emfim, da Vida soluçante/ ver quebrar-se o rumor n’esse silencio enorme.» No «silêncio enorme», na «região sem ar», na «nau gelada», queremos que aí desague o rumor da Vida soluçante. Em vão. E o poeta não anuncia conforto, antes anuncia os pedaços de «noute eterna» que já habitam os nossos dias. Os astros estão condenados. «Descança, Homem, porém ! — Como uma vil lanterna,/ morrendo, um dia, o sol regelerá no Oriente./ E n’esse cataclysmo e horror de noute eterna,/— as boccas se abrirão n’um só grito pungente.» Calcutá, Lisboa, 1 Agosto A maré de lágrimas paralisa-me na cadeira, quando os elementos pediam a brisa do abraço. O futuro adivinha-se enregelado. Fiz-me sensato, racional, pesando as palavras de modo a evitar do campo minado das emoções. Mas chegará para estabelecer um plano sobre o qual assentar passos, percursos, consolos? Valeu-me, madrugada dentro, longa conversa lunar, das que ajudam a sarar aflições. Assim do nada.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasRegressar [dropcap]O[/dropcap]lhem, amigos. Não sei se acontece convosco mas eu aproveito o balanço e deixo a confissão: o que mais gosto das férias é do regresso. A sério. Aliás, para ser ainda mais sincero, já que aqui ninguém nos ouve: o que eu gosto mais de todas as partidas, de todas as viagens, afectivas ou geográficas, colectivas ou individuais é sempre o mesmo: o regresso. Como agora. Já me fazia falta voltar a estas palavras que interrompi por vontade própria e necessidade. Mas a sua ausência não foi nem nunca será tão gratificante como o regressar à escrita. Assim com tudo, desde miúdo. As férias escolares, quando era criança, prolongavam-se por uma eternidade em que cabiam muitas aventuras e descobertas. Mas chegava sempre aquela altura terrível para os meus pais em que me lamentava pelos cantos, suspirando com uma frase cara aos supermercados: o regresso às aulas. Na Irlanda – um país que amo e o que mais visitei – cheguei a escrever para casa: “Não volto”. Oh, ilusão juvenil! Claro que voltei – e o ter voltado foi o melhor de ter partido, até porque me deu a infinita possibilidade de regressar. Gosto de regressar, sim. Gosto de me confortar numa ordem doce das coisas: um céu conhecido, um gesto previsível, uma rua já palmilhada. Não me escuso ao desconhecido – bom, não é verdade, cada vez tenho menos paciência, mas adiante – mas não sei viver sem o familiar. O meu filósofo político de referência, Michael Oakeshott, diagnosticou há muito esta disposição natural num célebre ensaio, On Being Conservative. Mas na verdade a razão funda desta disposição é – como qualquer conhecedor do conservadorismo britânico saberá – o medo da perda. E para isto não é necessário aderir a uma mundividência específica: começa e acaba em ser humano. O que mais me comove, então, é o voltar não a algo que se abandonou mas a algo que nunca se deixou. E reconhecê-lo, e comprazer-se nisso mesmo. O regresso é um combate ao tempo. É uma espécie de reclamação de imortalidade que só terá lugar se depois de partirmos deixarmos qualquer coisa a que alguém possa regressar. O poeta Shelley, por exemplo, sabia-o : « A mudança é certa», escreveu. «A paz é seguida por distúrbios; a partida de homens maus é seguida pelo seu regresso. Tais recorrências não deveriam constituir ocasiões para tristeza mas sim realidades para produzir conhecimento, para que pelo meio possamos ser felizes. » O regresso é a razão da partida e de todas as pausas. As férias, com a utopia do descanso e de “pormos em dia” tudo o que não tivemos coragem de fazer antes, são uma falácia. Não há férias da vida.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasA primeira e última opera seria de Offenbach [dropcap]Q[/dropcap]uando Jacques Offenbach começou a escrever a ópera Les contes d’Hoffmann (Os Contos de Hoffmann) em 1877, a sua derradeira obra, apesar da sua fama, o compositor queria ser conhecido por mais do que apenas as suas operetas superficiais, desejando que os Contos de Hoffmann o estabelecessem como um mestre reconhecido de ópera séria. Embora fosse exactamente isso que aconteceu, infelizmente, o compositor não viveu o suficiente para o constatar. Durante a sua vida, Offenbach tornou-se mundialmente famoso como compositor de operetas – geralmente comédias leves, ostentando dezenas de melodias cativantes que muitas vezes sobreviveram às obras para as quais foram escritas. O principal exemplo é o ubíquo “Can-Can” da sua opereta Orfeu nos Infernos – um número que lança três ou quatro melodias instantaneamente reconhecíveis, tudo no espaço de cerca de noventa segundos. A ópera em três actos, com prólogo e epílogo, Os Contos de Hoffmann, é baseada numa peça dos escritores Jules Barbier, que escreveu o libreto, em francês, e Michel Carré. A peça, Les contes fantastiques d’Hoffmann, que Offenbach viu, produzida no Théâtre Odéon em Paris em 1851, faz do poeta alemão da vida real, E.T.A. Hoffmann, um personagem nalgumas das suas próprias histórias fantasiosas. O drama de Offenbach segue o mesmo esquema, colocando o personagem principal em três histórias fantásticas de amor fracassado, Der Sandmann (O Homem de Areia), 1816, Rath Krespel (Conselheiro Krespel), 1818, e Das verlorene Spiegelbild (A Reflexão Perdida), 1814. O resultado é uma das óperas mais grandiosas e expressivas de toda a ópera francesa do século XIX – alcançando uma combinação de profundidade emocional e brilho musical que apenas os melhores compositores de ópera igualaram. Les Contes d’Hoffmann foi agendada para estrear no teatro Gaîte-Lyrique de Paris durante a temporada de 1877-78 mas, por dificuldades de orçamento, acabaria por ficar destinada a outro teatro, a Opéra-Comique. Mas Offenbach morreu em Outubro de 1880, quatro meses antes da estreia, enquanto a produção ainda estava em ensaios, deixando a partitura incompleta. A primeira apresentação, numa versão abreviada, tinha ocorrido em privado em casa de Offenbach, no dia 18 de Maio de 1879, na presença do compositor, do director da Opéra-Comique, Léon Carvalho e do director do Ringtheater Wien, Franz von Jauner. Ambos solicitaram os direitos, mas Offenbach conferiu-os a Carvalho. A primeira apresentação pública teve lugar na Opéra-Comique no dia 10 de Fevereiro de 1881, sem o terceiro acto, atingindo a centésima representação no dia 15 de Dezembro do mesmo ano, mas um fogo em 1887 destruiu as partes orquestrais e a produção foi suspensa. Apesar disso, uma verão em quatro actos com recitativos foi encenada no Ringtheater, em Viena, no dia 7 de Dezembro de 1881. Não voltaria a ser encenada em Paris até 1893, no Théâtre-Lyrique, mas com apenas 20 representações. Uma nova produção de Albert Carré (incluindo o terceiro acto) foi encenada na Opéra-Comique em 1911, permanecendo em repertório até à Segunda Guerra Mundial, e alcançando 700 representações no teatro. Em Março de 1948 Louis Musy criou a primeira produção do pós-guerra em París, dirigida por André Cluytens. A Ópera de Paris produziu pela primeira vez a obra em Outubro de 1974, dirigida por Patrice Chéreau com a participação do famoso tenor Nicolai Gedda no papel principal. A ordem original de Offenbach, recentemente recuperada, é: Prólogo–Olympia–Antonia–Giulietta–Epílogo – pois durante muito tempo representou-se o acto de Giulietta como o segundo e o de Antónia como o terceiro. Idealmente, as três intérpretes, que não são senão diferentes encarnações dos amores de Hoffmann, deveriam ser interpretadas pela mesma cantora, o que nem sempre aconteceu. Porém é normal que os quatro papéis de “vilão” (Lindorf, Coppelius, Miracle e Dapertutto) sejam interpretados pelo mesmo barítono, já que os quatro são encarnações diferentes do mesmo génio do mal que em cada ocasião frustram Hoffmann. Alguns outros papéis podem ser dobrados. No Prólogo, numa taberna em Nuremberga, a musa aparece, tomando a aparência de Niklausse (nesta ópera interpretado por uma mulher), o fiel companheiro de Hoffman, explicando que tem sido responsável pelo fracasso de todos os amores do poeta, para ele se devotar inteiramente à poesia. A primadonna Stella, a actuar na ópera Don Giovanni de Mozart, envia um bilhete a Hoffmann, marcando encontro para aquela noite, no seu camarim, depois da récita. O bilhete e a chave do camarim são interceptados por Lindorf, que assume em toda ópera várias versões do espírito maléfico do poeta. Os estudantes chegam à taberna e pedem a Hoffmann para lhes cantar a Balada de Kleinsack. A meio da história, em vez de descrever a cara do anão, Hoffmann começa a divagar, obcecado com a imagem de Stella, que amou outrora. De seguida, propõe contar a história dos seus três malogrados amores, dando início ao Acto Um. O primeiro dos seus amores é Olímpia, uma linda boneca de corda. O seu inventor, Spalanzani, apresenta-a ao poeta como sua filha. O cientista Coppelius, que lhe constrói os olhos, quer uma participação financeira na invenção. Chegam convidados para ver o prodígio. Esta canta a famosa ária “Les oiseaux dans la charmille” em que vai ficando sem corda. Hoffmann dança maravilhado com Olímpia, que vai levando mais corda, num crescendo vertiginoso até se desconjuntar toda, perante o olhar horrorizado do poeta. No Acto Dois, passado num quarto em casa de Crespel, em Munique, Hoffmann conhece o seu segundo amor: Antónia, uma jovem cantora lírica com tuberculose. Sempre que Antónia se lembra da sua defunta mãe, também cantora, começa a cantar, piorando a sua condição. O seu pai Crespel, tem-na fechada. Hoffmann aparece e apaixonam-se. O doutor Miracle chega convencendo Crespel que tem a receita para a cura da sua filha e embora Hoffmann tente fazer ver que o doutor Miracle é o espírito do mal, Miracle alicia Antónia a cantar, dizendo-lhe que não se pode perder um talento assim. Saca do seu violino e toca freneticamente até a jovem sucumbir, desaparecendo logo a seguir. Quando o pai regressa e vê a filha morta, culpa Hoffmann do sucedido. No Acto Três, passado num salão de festas de um palácio em Veneza, à beira do Grande Canal, os convidados esperam a bela cortesã Giulietta, que canta com Niklausse a muito famosa barcarola de Offenbach “Belle nuit, ô nuit d’amour”. Giulietta acompanhada do seu amante Schlemil convida todos para uma partida de cartas. Dapperttutto tira um grande diamante do bolso e revela o meio de fazer Giulietta apaixonar-se por Hoffmann. É só olharem para o diamante para este fazer as suas almas fundirem-se. Ambos caem apaixonados, e Schlemil rancoroso quer vingar-se, desafiando Hoffmann para um duelo. Com a espada de Dapertutto, o poeta consegue matar o rival, obtendo ainda a chave do quarto de Giulietta. Nesse momento vê-a passar no canal, nos braços de outro amante. A história termina na taberna de Luther, assim como a ópera Don Giovanni. Sem dúvida que Stella personifica os três amores de Hoffmann, mas este está tão embriagado que nem repara que é com Lindorf que a primadonna sai da taberna. Sugestão de audição da obra: Jacques Offenbach: Les contes d’Hoffmann Plácido Domingo (tenor) as Hoffmann; Edita Gruberova (soprano) as Olympia, Giulietta and Antonia; James Morris (bass) as Miracle; Christa Ludwig (mezzo-soprano) as Antonia’s mother; Choeur de Radio France; Orchestre Nationale de France, Seiji Ozawa – Deutsche Grammophon: 4276822
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA mulher do Primo Basílio [dropcap]E[/dropcap]stava uma daquelas manhãs perfeitas de Inverno em São Paulo, em que a temperatura ronda os 20° centígrados com um céu completamente limpo. Fui a pé até ao sebo do escritor Evandro Affonso Ferreira, junto à FNAC de Pinheiros – que já não existe mais – para uns dedos de conversa e a tentativa de encontrar uma edição boa e barata das obras de Monteiro Lobato. Depois de uma boa hora de conversa e passar os olhos em algumas possíveis edições da obra que queria – só uma delas não estava incompleta – Evandro pede-me desculpa, mas tinha de tratar de um assunto pelo telefone, antes de sairmos para almoçar, deixando-me a passear sozinho pelo sebo. Àquela hora raramente entravam pessoas. Quis o destino que nesse dia entrasse uma mulher muito branca, magra, com um vestido comprido e os cabelos ruivos apanhados em rabo de cavalo. Tinha à volta dos seus quarenta anos, a mesma idade que eu na altura em que vivia em Sampa. Dirigiu-se a mim e, confundindo-me com o dono do sebo, denunciando ser a sua primeira vez, pergunta-me se tenho uma edição de “O Primo Basílio”, de Eça de Queirós. Respondi-lhe que não trabalhava ali e que o meu amigo já a atendia, assim que deixasse o telefone. Reparando no meu sotaque, deixou saiu um “ah, português!”, que denunciou também não pertencer a este lugar. Evandro demorava e a curiosidade aumentava. Do meu lado por saber o que fazia uma estrangeira em Sampa à procura de “O Primo Basílio”, do lado dela por querer saber quem era este portuga, que tinha um amigo num sebo de Sampa. Chamava-se Simone, era francesa e vivia em Sampa há seis anos. Tinha vindo em 2000 com uma bolsa da PUC para estudos brasileiros e acabou por ficar cá. Agora ensinava na universidade “leitura criativa” e tinha acabado de se mudar para o bairro de Pinheiros. O seu interesse no livro de Eça de Queirós vem de há muito e não era para ler, mas para reler, pois nas mudanças acabou por perder uma das caixas dos livros, aquela onde estava o seu exemplar. E preparava-se para ministrar um curso sobre esse livro, segundo semestre. Há muito que não lia esse livro de Eça e fiquei curioso acerca do interesse de Simone. Ela sorriu e disse: “venha assistir às minhas aulas”. Perguntei: “E posso?” Podia, claro. Evandro finalmente largou o telefone, e atendeu Simone. Arranjou-lhe um exemplar da Editora Estadão, da colecção Ler é Aprender. O Evandro fez questão de me apresentar como um escritor português, que estava a viver agora no Brasil. Trocámos os telefones e os emails, ela saiu, o Evandro e eu fomos almoçar com outro nosso amigo – quem há meses me apresentara Evandro – o Guilherme Resstom. O almoço correu bem, como usualmente, e eu regressei a casa. Ao abrir o email, tinha uma mensagem de Simone, que gostava de tomar café comigo um dia destes. Encontrámo-nos no Pirajá – icónica cervejaria de Sampa, que tem o melhor chopp do mundo –, passado uma semana ao fim da tarde. No primeiro dia não tinha reparado, mas desta vez não me escapou como ela aparentava ser triste. À medida que fomos conversando, fui ficando convencido de se tratar de um evidente caso de tristeza aparente. Simone era triste por fora. Triste para transeunte ver. Em certo momento, disse: “Vivo sem cães, sem gatos, sem filhos, sem homens.” Mais tarde conheci-lhe a casa – quase sem móveis, sem objectos desnecessários – e pude comprovar o quanto era espartana. Os livros eram a sua verdadeira companhia. Os livros e a música, que estava continuamente a tocar num aparelho estéreo. Música clássica, maioritariamente. Desde esse dia no Pirajá, passamos a ser cúmplices, a trocar mensagens sobre literatura e sobre a experiência de ser-se estrangeiro no Brasil, ainda que estrangeiros diferentes. Como ela mesma costumava dizer, uma mulher é sempre mais estrangeira, para onde quer que imigre. Por sua causa reli “O Primo Basílio”, assisti ao seu curso e isso de algum modo mudou a minha vida. A intensidade da sua leitura, o seu modo de ver por dentro as personagens, as situações de vida – a existência, no fundo – marcou o modo como leio hoje essa obra de Eça de Queirós. Esta obra era apenas um dos cursos que dava, maioritariamente o seu ensino era sobre Guimarães Rosa e Stendhal. Um dia perguntei-lhe porque não regressava a França, ao que me respondeu: “Não se pode querer compreender a literatura de um país, à distância. À distância podemos gostar de todas as literaturas, mas para as compreendermos temos de viver onde elas foram escritas. Não sei muito sobre a literatura portuguesa, como sei sobre a brasileira, nem sequer sobre Eça de Queirós. Como você viu, o meu curso sobre “O Primo Basílio” é um curso impressionista e existencial, de quem gosta e se identifica muito com essa obra. Mas não é como quando ensino Guimarães Rosa ou Stendhal.” Deixei São Paulo, acabámos por deixar de trocar mensagens, mas ainda hoje me lembro do nome que lhe passei a chamar, que a fazia rir: “A mulher do Primo Basílio”.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasGiacomo Leopardi [dropcap]E[/dropcap]steve uma imensa Lua-Cheia, a última da Primavera, e o tempo é vertical nestes momentos e quase sempre estamos mais perto do espaço sideral; subitamente recordo-me como ela será no deserto e vejo então o «Pastor errante da Ásia» esse canto noturno de Leopardi! Nada nos traz mais viva a Galáxia que um poema destes, nem as sombras da noite nos cansam a marcha, nem a Lua nos entontece, há aqui um caminho de estrelas a seguir, que todas elas e a Lua nos oferecem rotas prodigiosas. Parece que se passa lá para o Médio Oriente, entre a terra do Sião e a Pérsia, é certamente próximo destes territórios, onde iria ele buscar os rebanhos e a contemplação de uma noite assim? – «… tu sabes, por certo, a que doce amor sorria a Primavera/ mil coisas tu sabes, mil coisas descobres, que ficam ocultas ao simples pastor…/ que quer dizer esta imensa solidão? E eu, quem sou?». Leopardi foi um dos maiores poetas italianos do século XIX, romântico, central na cultura literária do seu tempo, a sua curta vida pareceu não ser um acaso feliz já que Leopardi de saúde frágil se tornou um enclausurado, nesta clausura teve mestres eclesiásticos dado a severa rigidez moral de uma família cuja mãe funcionava como o maior “aperto” para a cura. Nobre por nascimento, tinha na biblioteca paterna o único refugio e talvez a forma de pastorear o seu rebanho debaixo de uma Lua imaginária do tamanho da sua própria solidão. Era um classicista, um homem cheio de Mediterrânio; traduz Homero, é um pensador notável, um ensaísta brilhante e filólogo, mas é na poesia que recorre à sua possível libertação de homem condenado. Ela ser-lhe-á vital para prolongar os dias da sua vida. O Iluminismo dá-lhe também alento de prosseguir na demanda de um pensamento, não só absolutamente bem estruturado, como libertador. Se nos detivermos na sua vida pouco fértil em movimento, vamos paradoxalmente achar nela um homem de visão cosmológica impressionante, como se na quietude observa-se de um ponto remoto o Universo, e poemas como «Infinito» estão plasmados no seu interior por janelas que contemplam a distância, e também esse pensamento, essa forma de sentir em meditação lhe conferem ampla beleza e acentuada lucidez. É um poema sublime! Projecta-se em grandes interrogações filosóficas e quase temos um taumaturgo que a partir de bases precárias indaga as suas desconhecidas sugestões como um enamorado face à maravilha da possível existência do amor. Leopardi, também aqui não foi feliz! Experiências dolorosas o deixam ainda mais à beira da fadiga e quase disfere um golpe cínico e fatal em « Aspasia» uma espécie de vingança, uma luta que trava no seu interior, este homem, que afinal tinha um coração imenso que batera toda a vida, fá-lo parar, sem antes dizer que era a única beleza do mundo, mundo que devia ser pequeno, a ver pela amplitude de como falava da imensidão. Leopardi morreu por esta altura de Junho, quem sabe se na última Lua-Cheia da Primavera, e é dos tais poetas que estão escondidos nas nebulosas dos nossos sonhos, mas que não podemos passar sem eles, estava a trabalhar em « Moralidade Operette» reunido em «Pensamentos» e em tom satírico e irónico o seu género poético exigiu aqui o abandono do estilo lírico adoptando um ritmo narrativo mais crítico face ao pensamento contemporâneo, as questões sociais nunca foram deixadas de fora na sua inquietação, mas, sem dúvida que as analisava também a partir da infeliz experiência da sua própria vida. A sua força foi imensa, e só para o fim se lhe apodera um estado de espírito céptico para o qual a sua transbordante natureza de poeta não conseguiu lidar com governação e esperança renovada. Tinha trinta e nove anos durante uma epidemia de cólera e a sua saúde sempre frágil não resistiu. Talvez se o tivessem amado…Mas os poetas não são para amar. Quem lhes dera serem compreendidos e ternamente suportados por um sincero carinho de alguém. Não sendo o caso, a morte, que tanto desejou, deve-lhe ter parecido abençoada. A Terra é local maravilhoso para se erigirem templos de fogo! E ainda a Lua, a sua Lua de pastor: Isto eu conheço: que estas eternas caminhadas do meu frágil ser, algum bem ou contentamento outros terão…. para mim a vida é mal. Mil coisas tu sabes que ficam ocultas a um simples pastor…. As noites de Lua-Cheia das últimas Primaveras. Leopardi é um nome também inesquecível, é como o silêncio, tem a fome e a beleza nas vogais… vagueia só pelas savanas e a morte ronda-lhe o corpo alto como um anel de vento. Esquelético e vertiginoso, esquece a sua demanda osmótica na paisagem, e salta para a vida como uma última fronteira.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasDorgon e Zhuang no reinado de Shunzhi [dropcap]A[/dropcap]isin-Gioro Fulin nasceu a 15 de Março de 1638 e era o nono filho do Imperador Huang Taiji, sendo a sua mãe a consorte de quarto grau Zhuang (Borjigit Bumbutai, 1613-1688). Quando o Imperador Huang Taiji morreu em 21 de Setembro de 1643 sem designar sucessor, deveu-se ao trabalho de bastidores da consorte viúva Zhuang a escolha do seu filho pelo comité de príncipes manchus, eleito entre os onze filhos do Imperador para continuador da dinastia Qing. A História repetia-se tal como acontecera na sucessão de Nurhachi. Três eram os mais importantes candidatos e de novo aparecia Dorgon (1612-1650), então com 30 anos, era o 14º e mais novo filho de Nurhachi e meio-irmão de Huang Taiji; HaoGe (1608-1643) tinha 35 anos de idade e era o primeiro filho de Huang Taiji, sendo a mãe a manchu Ula Nara hala; e Fulin com seis anos de idade. Entre os três, Dorgon era o mais bem preparado pois sabia falar manchu, han e coreano, para além de ser de sangue totalmente nürzhen, tal como HaoGe, o que tornava ambos os mais fortes candidatos, podendo por isso trazer lutas internas na Corte entre as forças que apoiavam cada um. Por isso a viúva Zhuang propôs Fulin, ainda uma criança, de sangue meio manchu meio mongol, com grande apoio Borjigit, de Jerjer, a Imperatriz Xiaoduan e do general Ming Hong Cheng Chou, que em 1640 fora capturado e por ser uma pessoa honesta e um brilhante militar, Huang Taiji quisera-o nas suas fileiras para o colocar a servir na China a combater contra os Ming. Mas resoluto, o general preferia suicidar-se em vez de lutar pelos manchus e então a consorte Zhuang em chinês conseguiu fazê-lo mudar de ideia, trazendo-o para o lado dos manchus. Huang Taiji em 1641 deu uma grande festa em honra da integração deste general nas fileiras do exército das oito bandeiras, apesar da grande tristeza do imperador pela morte da sua favorita consorte Minhui (Harjol,1609-1641), irmã mais velha de Bumbutai (Zhuang). Por outro lado, Bumbutai falou com Dorgon e conseguiu fazer entender ser Fulin o mais indicado, pois reduzia as tensões e disputas na corte, ficando ele também com o poder, já que pela menor idade de Fulin teria de haver um regente, cargo para o qual Bumbutai o indicava. Por histórias não provadas, tendo nas idades apenas um ano de diferença, diz-se ser Dorgon amante de Bumbutai e segundo constava tal relação ocorria ainda em vida de Huang Taiji. Este não gostava muito do meio-irmão Dorgon e enviava-o constantemente à China para combater os Ming, mas ele regressava sempre dos campos de batalha e muitas vezes como vencedor. Assim em manobras de bastidores foi o nono filho Aisin-Gioro Fulin (1638-1661) escolhido pelo comité de príncipes manchus para continuador da dinastia, sendo então nomeados como regentes, Jirgalang e Dorgon. Com a escolha de Fulin para imperador, mudava assim Bumbutai o título de consorte de quarto grau Zhuang para o de Imperatriz mãe Zhaosheng. No dia 26 da oitava Lua (8 de Outubro) de 1643 no Palácio Imperial de Shengjing foi Fulin coroado Imperador Shunzhi (1644-1661), o segundo da Dinastia Qing e durante a menor idade ficaram como regentes, o tio Dorgon, pois irmão de Huang Taiji, em conjunto com o primo Jirgalang, sobrinho de Nurhachi. O poder de Dorgon Ainda em 1643 Dorgon como regente matou HaoGe, seu sobrinho e tomou-lhe a esposa, também do clã Borjigit. Com a mudança da capital Shengjing para Beijing, no nono dia da décima Lua de Jiashen (8 de Novembro de 1644) Shunzhi tornou-se o primeiro Imperador da Dinastia Qing da China e Dorgon ficou com o poder completo tanto militar como político quando em 1647 destituiu Jirgalang. Dominava tanto no seu original território manchu como na China, apesar de no Sul haver ainda bolsas de resistência Ming. Ano em que se intitulou Pai do Imperador, pois até então era apenas tio do imperador. Segundo um episódio nunca registado nos livros da História da Dinastia Qing, tinha Shunzhi onze anos quando em 1648 Dorgon se casou com a Imperatriz mãe Zhaosheng. O Imperador entendeu a razão de tal matrimónio, pois servia para o proteger e à sua posição, mas por outro lado não o aceitava, pelo mal trato que Dorgon lhe dava e o ter-lhe proibido estudar a língua chinesa han. Apercebia-se do seu fraco poder, pois vivera sempre dentro do palácio, em contraste com o enorme trabalho militar de Dorgon na luta contra os Ming e unificação do império manchu, assim como o medo de lhe acontecer o ocorrido ao seu meio-irmão HaoGe, morto pelo tio. Tal casamento levou à má relação do Imperador Shunzhi com a mãe, pois com dez anos apenas uma vez por mês a podia visitar. O regente Dorgon manteve todo o poder até à sua morte, ocorrida no último dia de 1650 e foi então que o Imperador Shunzhi iniciou com 14 anos a governação. Realizado um funeral com toda a pompa ao regente Dorgon, logo passado um mês o Imperador retirou-lhe os títulos e os pertences, assim como mandou cortar a cabeça ao féretro de Dorgon. Oficialmente nada ficou registado para tal atitude. O inicial poder da Dinastia Qing tivera a mão de Dorgon, sendo este reabilitado apenas no reinado do Imperador Qianlong (1736-1796), quando lhe foram restituídos os títulos e se lhe construiu um templo (Tai Miao) para lhe serem oferecidos sacrifícios. Apesar das muitas esposas, só tivera uma filha. Quando Shunzhi tomou a governação, como não tinha aprendido a língua dos han começou a estudá-la, fazendo-o por nove anos, inteirando-se ao mesmo tempo sobre a cultura do povo que governava. Por isso activou o sistema de exames imperiais (keju) para oficiais civis, dando aos chineses han a possibilidade de ocupar lugares de mandarim. Dorgon não confiara nos generais Ming e só após a sua morte foram eles promovidos por Shunzhi, que colocou o general Hong Cheng Chou como governante militar no Sudoeste da China, dando-lhe amplos poderes para decidir sem precisar de reportar ao imperador. Este general disciplinou os corruptos governantes manchus que longe da capital tinham mãos livres para fazer o que lhes apetecia e deu-lhes uma nova orientação. Também para equilibrar o poder dos oficiais militares manchus casou a sua irmã, a Princesa JianNing com o filho do general Ming Wu Sangui. Ainda com Dorgon vivo, em 1650 “as tropas de Qing ocuparam Cantão. Dando seguimento à prática da dinastia anterior, o governo Qing proibiu os portugueses de entrar e comerciar na cidade”, segundo Victor F. S. Sit, que refere ter o Vice-rei de Guangdong-Guangxi mandado em 1651 “um édito ao Senado de Macau informando que . Nesse mesmo ano, o Senado declarou a rendição de Macau, permitindo a reactivação do comércio de Macau e o envio de oficiais alfandegários de Cantão para inspeccionarem os navios mercantes ancorados no porto de Macau.” O Imperador Shunzhi dava início à sua governação.
Rita Taborda Duarte h | Artes, Letras e IdeiasO fio que nos prende à vida [dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário, papel em que os meus fantasmas desafogo. Nunca vo-lo confiei, que nem tudo o que me cruza o dia a dia há-de, pois, desaguar nesse leito com que me tolerais, contrafeito, mas, em tempos, um infeliz, desses sem dentes, à cata de beatas com que entreter os lábios, confessava a outro que tal, cúmplice nas vidas mal vividas: «Isto há dias que parecem noites». Aquilo colou-se-me ao ouvido, aconchegou-se-me à memória e ficou lá a dormitar até espertar hoje. Pois não sejais impaciente, meu secretário, toda a vez mais incerto: se vos falo de poesia, acolheis distraído o que vos digo, enrugais-vos inquieto e mal contente, esquivando-vos às palavras, desatento. Mas falando-vos de infelizes aos caídos, já vos excita a curiosidade mórbida e tornais-vos hospitaleiro, cheio de mesuras: todo ouvidos. Há sei lá quantos anos trago a frase na modorra da memória para logo hoje me roer a dúvida do seu significado: metáfora de um dia escurecido, quase negro? De dia longuíssimo como uma noite de insónia, com o tempo pingando, como ruído de fundo? Ou um dia de farra e festa, que nem noite até de madrugada? Que sei eu das curvas da vadiagem pelas noites que ultrapassam muitos dos nossos dias caseiros, comezinhos… O que há a dizer é que a frase se me alojou na memória, como um grande verso de um bom poema, perdido na deslembrança. Tudo isto, para vos confiar que há pelo mundo vidas, frases, que parecem versos. O contrário é também verdade. Não vos impacienteis, meu secretário, que não vos retenho para vos falar da honesta poesia do dia-a-dia, nem para vos dizer, como o disse Pimenta (eu sei, que me estou a requentar) que há tanta poesia «numa rosa como numa chouriça.». Só mesmo para vos dar conta, a despropósito, que saiu a obra reunida de Rui Caeiro, pela editora Maldoror. Chamaram-lhe «O Sangue a Ranger nas Curvas Apertadas do Coração», verso resgatado do livro «Sobre a Nossa Morte Bem Muito Obrigado», um dos tantos escrito num «tecido em carne viva — única coisa em que verdadeiramente dá gosto escrever» Agora está aí tudo à mão de semear, sem precisão de andar à cata de edições perdidas, para as repescar a custo: a obra toda disponível, como um naco de vida a ser desfrutado de uma assentada. Numa golfada: a sofreguidão dos dias todos juntos, mas sem a temporalidade arrastada que se exigia das plaquettes e pequenos livros, esparsos, um a um, com a calma dos anos passando, dos tempos que se seguia ao tempo. Toda a poesia, todos os escritos, todas as histórias, todos os textos. Num volume só, esta modéstia da gramática, a contenção serena, claro irónica, de quem vigia os maneirismos de estilo, dando-lhe rédea curta, refreando-o, alcançando, como poucos, aquele fundo de genuinidade de quem traz as palavras coladas ao corpo: versos, frases, palavras, pensamentos, diálogos (pequenas histórias: e que histórias!) ao virar da esquina da página; esta maneira de escrever não como quem escreve, mas como quem pensa, repara, desconfia e, principalmente, conversa. Como se a cada momento (num encolher de ombros, que a literatura é como a vida, levá-la a sério não é levá-la a peito, mesmo ainda ao peito), se dissesse: estou aqui e reparo, penso-o, e digo-o, como quem escreve, discorrendo, discutindo. A poesia mostra-se como se escrevendo a vida, esta vida que todos temos presa por um fio («Um fio que te prende à vida. Que faz o seu trabalho, que faz o seu possível».). Em pequenas edições de pequenas editoras ou mesmo em edições de autor; livros com pessoas, vivências, presenças lá por dentro, e com destinatários, tantas vezes, à conta: por genuína vontade, é certo, de se manter à margem de fogos de artifício literários, mas também por descobrir a poesia como outra coisa: acto de reparar, de saber, de pensar, de conhecer (de nos sabermos sempre no presente anões aos ombros de gigantes, mas nem por isso maiores), mas principalmente ser capaz de fazer da sua poesia uma dádiva a amigos, dilectos leitores, uma espécie de prolongamento do acto de dialogar, conversar. Aliás, nada de especial, ou de excepcional, que «falando da vida dos poetas, não esquecer talvez o principal, que é tantas vezes o mais comezinho: algures assim como que o ruído de uma torneira que não deixava nunca de pingar– mas isso também não era coisa que metesse cobiça, ou era?». Escrever como quem vai tertuliando dúvidas, perplexidades: os achados de quem tanto «leu, que tresleu», como lhe diria a Tia Carolina, naquele arremedo de prefácio, ou lá o que é, no livro «Baba de Caracol», organizado em três partes, «qual delas a mais monosprezível.». Já nesse livro, as palavras não eram só coisa que se dissesse, mas um lastro que se colava à pele, provocando, claro, comichão na vida: «Todos os dias logo pela manhã/as palavras// a cansada surpresa de estar vivo/ as palavras» e depois, às vezes, acertar: «aproximar do papel em branco, igual à criança que não conhece da vida, senão o que mal ouviu dizer e tudo o resto adivinha– e acerta» Vem-nos a certeza de que dizer e viver se encontram, não em equilíbrio (isso é por demais frequente: as palavras equilibrando o mundo como podem, com esforço e esmero, tantas vezes), mas no mesmo prato da balança, pendendo pois para o mesmo lado, uma acrescentando peso à outra: talvez por isso a poesia ajude a afogar tantas vidas. Da morte, da vida, dos gatos, do gato, os amigos e outros bichos, da doença, das memórias, (a memória, mesmo a mais realmente biográfica, é sempre uma bela ficção), histórias e diálogos, das falripas de prosas, pouco de poesia e literatura ( os poetas, quando falam entre si não falam de literatura, antes de dinheiro), do amor «sem misticismos», e de novo da morte, de lugares e de não lugares, do corpo, de mamas ( não de seios), é sobre tudo isto que connosco conversam os livros que fazem este livro. E ainda de Deus. Muito se conversa sobre Deus, que é, no fundo, o fantasma obsessivo que assombra os ateus: é que não acreditar nele não lhe devia dar o direito de nos tramar a vida: «Saber se morreste ou se nunca exististe é outra falsa questão. Pó é coisa que sempre houve, vá lá a gente adivinhar-lhe a origem» Vinde, cá meu tão certo secretário, quero falar-vos ainda falar da sorte: muitos destes livros (metade? mais?) não os acolhera sequer em minha estante, até agora. Não me tinham sido destinados: resgato-os, de uma vez, ao lugar que lhes pertence. E sim, meu tão certo secretário, tendes razão… falta lembrar o prefácio tão justo e íntegro, admirável, que encabeça estes livros todos de uma vida, e também a capa, belíssima, e o grafismo exímio, tudo, à uma, da responsabilidade de Luís Henriques, mas não vou fazê-lo, meu secretário. Nem posso. Há o pudor que não deixa, em público, elogiar o trabalho dos amigos, principalmente daqueles que já vêm ainda doutras lides, mais antigas até que antigamente. Cito só o final do prefácio do Luís e fica cumprida a incontornável obrigação da referência: «Para que raio serve uma conclusão no início do livro? Afinal de contas, estas linhas são uma antecâmara e a epígrafe há-de preparar melhor a leitura. Depois vem o rumor do tal fio. Dele, nosso. É dar-lhe ouvidos, para não entregarmos já tudo ao esquecimento.» Pois claro, meu tão certo secretário, assim me calo, e já vou tarde: há que «usar o silêncio como generosa estratégia», como se diz na epígrafe, do Changuito, escolhida como um ante-prefácio que encabeça o livro, e que nos manda ouvir mais do que falar nestas conversas que os livros, neste livro, connosco travam. Rui Caeiro, O Sangue a ranger nas curvas apertadas do coração, Lisboa, Maldoror
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO cheiro a estevas [dropcap]A[/dropcap]s férias são muita coisa ao longo do tempo de uma vida. Na minha infância – passada em França – significavam o regresso a Portugal, bagageira atulhada de brinquedos, parafernália electrónica e queijos brie do tamanho de uma pizza familiar, dois dias de estrada aborrecidamente atrás de camiões ou perigosamente a ultrapassá-los, dois dias a ver o meu pai a fumar cigarros e a beber café em quantidades suficientes para causar um ataque de asma e de ansiedade a um elefante adolescente, dois dias a ouvir a minha mãe, num tom entre o desesperado e o resignado, reclamar a medo com o meu pai: “cuidado, Zé”, “mais devagar, Zé”, “não temos pressa, Zé”, e o meu pai a chutar a bola para canto apontando para o que se via da estrada: um laranjal, uma bomba de gasolina, um moinho de vento, para desconsolo exausto da minha mãe: “olha para a estrada, Zé!” Quando finalmente chegávamos e após as duas horas do ritual beijos-prendas-que-saudades-de-vos-ver-estás-tão-grande, a minha esperança era a de irmos logo nesse dia para a praia, nem que fossem oito da noite, para que eu pudesse dar aquele mergulho com que tinha sonhado o ano todo e assim ficar surdo de um ouvido, até que a meio da noite escorresse de lá um pingo de mar e daí adviesse aquele estranho prazer da normalidade retomada. O meu pai não era grande fã da praia: “tem muita areia”, “faz demasiado calor”, “cheio de gente”, e eu não percebia o que é que dessa equação podia ser menos que perfeito. Quando finalmente conseguia que alguém me levasse à praia – normalmente os meus cunhados ou as minhas irmãs, desejosos de transferir o barulho que eu e o meu sobrinho (praticamente da minha idade) fazíamos dentro de casa para um sítio mais amplo – entrava na água para de lá sair apenas quando me perguntavam “não achas que já estás aí há demasiado tempo? Não tens frio?”, e eu, arroxeado e tiritando, metro e meio de gente aquém dos quarenta quilos, respondia “n-n-n-ão, est-t-t-ou b-b-bem”. O meu pai preferia o campo à praia. Não o campo-campo que se nos ocorre à imaginação, aquele dos arbustos verdejantes, dos laguinhos coaxando entardeceres, das ovelhas roendo um pasto viçoso. O campo árido do interior algarvio, a terra amarela e seca, polvilhada de lamelas de xisto, o campo das veredas ladeadas de estevas pegajosas, arriba acima e abaixo, serpenteando entre courelas minúsculas nas quais, na proximidade de um poço ou de um furo artesiano, pontificavam umas linhas de vinha ou uma sementeira de batatas. Para além do meu pai sentir por tudo aquilo a exacta proporção inversa daquilo que eu sentia, havia ainda a questão da caça; a única questão, aliás, onde coincidíamos rigorosamente no gosto. Foi com ele que aprendi o que era uma perdiz, foi com ele que aprendi a distinguir coelho de lebre (pré-caçarola, evidentemente), foi com ele que vi os cães mais obedientes e felizes do mundo. Apesar do meu amor pela praia – entretanto oscilando entre indiferença e repulsa – as minhas melhores memórias das férias em Portugal são da caça. Não tanto pelo que se – ou pelo que não se – caçava, mas sobretudo pelo prazer que via no rosto do meu pai quando me explicava as tocas e os ninhos como o pai dele lhe tinha explicado, décadas atrás. As férias nunca mais foram o mesmo desde a infância – nada nunca mais o é, poderá contrapor-se. O meu pai, entretanto, morreu, tinha eu dezasseis anos. Eu sei que o céu dele está cheio de codornizes e de coelhos e que cheira a esteva e que faz sempre calor no ponto certo.
José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasOs 70 estão de volta! [dropcap]A[/dropcap]cumulam-se os sinais. É verdade que todos os anos aumenta o número de pessoas insurgidas e alarmadas com o calor estival em termos análogos com que recrimina os frios de inverno, sintoma da progressiva, quem sabe se irreversível, deterioração da sensatez; mas repara que não se têm verificado quartos minguante fora de calendário, notícias de elevadores que continuam a subir depois do último andar, epidemia de gatos albinos, vulcões que recomeçam a respirar, aborígenes vistos de novo a dançar à volta de lume. Todos os indícios tradicionais e convencionais de algo iminente. Não alimentes, contudo, ilusões – está a acontecer, agora mesmo, diante de ti, escapando-se da vista como uma barata por detrás do frigorífico. As provas são elementares e preciosas, só uma superior perspicácia saberá conciliá-las. Ouviste estes álbuns “The Tour – vol 1 & 2” de Woody Shaw e Louis Hayes resgatados de uma gaveta qualquer? O registo da digressão na Alemanha em 1976– não te parece um prenúncio eloquente? …Na Alemanha…? Já te esqueceste ou alguma vez ouviste o “I Offer You” de Lucky Thompson ou “Musique du bois” de Phill Woods? Percebes o que quer isto dizer? Sim, era oblíquo, subterrâneo, pouco mais do que uma silhueta, mas havia jazz a correr e a fazer-se nos anos 70 à margem do cânone desbaratador do free que de rebelde, rebelde continuou a auto-denominar-se depois de conquistar o centro. O augúrio consubstanciou-se um pouco mais todavia assim de repente num programa, quem diria de Anthony Bourdain – um dos últimos que depois viu-se serem crepusculares – em entrevista a Lydia Lunch quando ela diz: “ninguém procurava a felicidade mas a satisfação.” Saudades nenhumas, portanto, da juventude, dessa fase ruinosa do qual ninguém sabe muito bem como escapou, atraente como nenhuma outra, incluindo a menopausa, aos negócios da publicidade e da psicologia. Ainda menos saudades, prossegue Lydia Lunch, das provações passadas nesses tempos que outros, não as tendo sofrido, acham gloriosos. Ao menos entre escombros cintila a lucidez de perceber a perigosa e platónica fantasia românica da “felicidade” – os burguesitos dos românicos tardo-setecentista a namoriscarem impávidas meninas da baixa aristocracia, claro que havia de correr mal, e ainda hoje há tantos que não percebem. Mais orgulhosa se mostrava pois Lydia Lunch por ter sobrevivido àquilo, do que pela obra artística subsistente – a arte é para os eternos, não tem estômago. Ninguém, se puder, quer ser Basquiat ou Haring ou Jaco Pastorious, todos oitentistas está bem, mas cadáveres prematuros à moda dos 70s. Está então definitivamente a suceder qualquer coisa de estranho. Por onde baforavam hálitos de enxofre surte uma estranha hipótese de se apreciar a década de 70 sem ser à força. Mas como, senhores, como depurar os anos 70 dos ABBA e outros maus-cheiros – só os tolos creram em tal profecia – de tantas imposturas nele geradas: das calças à boca-de-sino e dos filósofos franceses, dos penteados medonhos e dos filmes de Bertolluci ou de Ken Russell, dos psicotrópicos, dos alucinogénios, do psicadelismo e – socorro! – do rock sinfónico ou dos poemas de Ary dos Santos, do Ary. Aviso e precauções afinal contribuem para o seu contrário e se os anúncios atrás revelados pareciam indicativos, o presságio tangível ou incontornável se fores estruturalista, arrebentou no santo nome de “Africa Speaks.” Sim baby, desentope essas orelhas da cera acumulada por playlists de rádios-bem, pelo bom-gosto lux lisbon, pelo género Y suplementar às sextas, de camisa estampada e óculos de massa e barbas, de muitas e espessas barbas tão hip como bejecas artesanais, cortes de cabelo e tatuagens de futebolista ora gentrificados. Prometo que daqui a já não muito tempo tamanha cangalhada te envergonhará como a mim me envergonharam os anos 70. Desentope-as para receberes a Boa Nova de – rufam tambores… – Carlos Santana!, esse mesmo em que estás a pensar e nenhum outro, o Carlos Santana “está alguém em casa?” do “Samba pa ti” Cuf Téxteis (se tiveres menos de 55 anos esquece, não percebes…), o Santana que após disco e meio de génio, o sísmico “Abraxas” com sequelas em “Caravanserai”, e nisto só transitaríamos de 1970 a 72, se remeteu a 4 décadas de inutilidade, ei-lo inesperadamente e de repente desmumificado, exumado da cápsula de criogénico onde o haviam escondido, a derramar potência como só um ancião é capaz, livre da flatulência de um nobel que o prenda ao pedestal. Os anos 70 estão de volta e haverá quem diga bem deles, podes estar certo. Se isto não é um milagre o que é um milagre?
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá [CAPÍTULO ANTERIOR] [dropcap]M[/dropcap]arina Kaplan e Cândido Vilaça estavam a olhar um para o outro como se estivessem hipnotizados. Entre eles intrometeu-se o fumo que trazia odores de ópio e tabaco. O Bambu Vermelho estava repleto e, por isso mesmo, mais quente do que o habitual. Nem as ventoinhas que iam rodando lentamente no tecto conseguiam dissipar aquela temperatura que fazia surgir gotas de suor na testa dos jogadores e das raparigas que circulavam entre eles. Aquela hora tardia Cândido gostava de estar ali a tentar imaginar o que era a vida de cada um daqueles homens, antes de devotarem o seu futuro ao jogo. Imaginava cenários que tanto pareciam reais como irreais. Marina agarrou no seu copo de vodka e levou-o aos belos lábios. Na mesa, perto dela, estava uma máscara da ópera, que tinha trazido de Xangai e que lhe servia, de vez em quando, para recordar esses tempos que nunca mais regressariam. Tinha a certeza disso, apesar do que lhe dizia Cândido. – És um sonhador, Cat. A velha Xangai morreu. Não ressuscitará. Vai-nos ser servida, ao longo dos anos, em capítulos cheios de memórias. Como um livro que iremos escrever, devagarinho. Agarrou na máscara e passou os dedos pela face. – Trouxe-a para nunca me esquecer dos anos que lá vivi. As máscaras dizem-nos muito sobre a vida. Todos as usamos, mesmo que não sejam estas. Por detrás da máscara da firmeza alguns ocultam as suas debilidades. Outros, por detrás da máscara da debilidade, escondem a sua força. Acho que tu és o segundo caso. Sempre foi assim e sempre assim será. Mas, às vezes pergunto-me, porque é que a máscara da força triunfa muitas vezes sobre a da debilidade? Repara nesta. Sabes porque a escolhi? – Não. – Gosto das misturas de cores. Tem vermelho, a cor da lealdade e da coragem. E púrpura, da bravura e da esperança. Tem o branco, da crueldade e da traição. E o ouro e a prata porque são usados nas cores dos deuses, porque o seu brilho produz efeitos sobrenaturais. – Pensava que as tradições russas eram mais importantes para ti do que as chinesas. – Agora ambas são importantes. O meu pai era cossaco, tal como o meu avô e o meu bisavô. Ia à igreja, aspirava o aroma balsâmico e a luz das velas. Foi aí que aprendi a dominar o fogo interior. Isso salvou-me a vida muitas vezes em Xangai. Quando fugi da Rússia não sabia o que ia encontrar. Julguei chegar ao paraíso. Mas era um paraíso negro. Sorriu tristemente. Os seus olhos azuis claros, por momentos, pareceram escurecer até se tornarem negros. – Todas cidades são cruéis. E Xangai foi a mais cruel de todas. Havia prazer e sexo em todo o lado. Dinheiro fácil e sem fim. Os gangsters guiavam o destino da cidade. E, para termos o filme perfeito, o jazz dava-lhe mistério e sedução. E tu, Cat, fazias parte dessa mentira muito bonita. Mas, como sabes, o jazz é uma música muito decadente. Xangai não era uma cidade de pesadelos, apesar das mortes, da droga. Era de sonhos, de fantasia. Lembras-te das pistas de dança cheias de pessoas com roupa de noite? Todos podiam esquecer o passado e os seus pecados. Que eram os pecados de cada um ao pé dos de Xangai? Era um porto aberto. A todos. Também o foi para mim. Salvou-me. – Porque fugiste da Rússia, Marina? – Tinha 20 anos. Era uma jovem louca. Idealista. Acreditava na revolução, mas juntei-me aos socialistas-revolucionários. Andei a colocar bombas. Foi um erro que paguei caro. Para não ser morta, tive de fugir. E foi assim que cheguei a Xangai. – E porque é que vieste para aqui, Marina? Só para fugires ao que se adivinhava em Xangai? – Os chineses não têm ninguém a quem rezar. Onde é que eu me coloco? Não acredito na culpa, mas penso que há algo que nos é superior. Cândido escutava-a. Deu uma pequena gargalhada antes de dizer: -Sabes, a má sorte, sendo habitual, é suficientemente má. Mas, pior, é não ter sorte nenhuma. – Tu és um homem curioso, Cat. Não admira que tenha estado apaixonada por ti. Mas não iria dar. Tu és o protagonista da paz quando não há paz. Só Jin poderia agora apaixonar-se por ti. Fez uma pausa e aproximou a sua face da de Cândido. – Porquê, Marina? – Porque tu lhe dás essa sensação de paz. Algo que ela nunca conheceu. Marina levantou-se, saiu do pequeno reservado onde estavam protegidos por uma cortina de linho e voltou, pouco depois, com um crucifixo que parecia russo, ortodoxo. E uma foto. – Perguntaste-me se tinha trazido algo do passado. Trouxe. Esta foto de quando era uma jovem revolucionária. Cândido olhou. Ali estava ela, rodeada de muitos jovens, rapazes e raparigas. – Quase todos foram mortos. Alguns de forma horrível, em prisões onde nunca se vê a luz. Depois passou a mão pelo crucifixo. Fixou-o, como se estivesse a ter uma visão. – Tudo o que vem dos homens é tão efémero quanto a vida dos próprios homens. Antigamente as pessoas iam às igrejas para falar com Deus, que reinava no absoluto. Nesse infinito muito reconfortante vivia na luz, na sombra e no silêncio, e nos seus jogos. Tenho saudades de igrejas como as que conheci na Rússia. – Acho que tudo é irreparável, Marina. Mas é isso que faz a grandeza e a miséria de um homem ou de uma mulher. Porque nunca sabemos em que partes da vida nos equivocamos. – E é por isso que agora queres ser o que um herói nunca foste? Cândido ia responder, mas, de repente, por entre as cortinas, surgiu a face de José Prazeres da Costa. Tinha os olhos vermelhos e um ar cansado. Marina levantou-se. Percebeu que ele queria falar com Cândido. Disse que ia ver como estava o Bambu Vermelho. E afastou-se sem ruído. Prazeres da Costa sentou-se defronte de Cândido. Trazia, na mão, um copo de uísque. Parecia já ligeiramente tocado pelo excesso de bebida. – O que se passa, José? – É a Amélia. Quer que eu me decida. Não quer esperar mais. Quer deixar o marido e vir viver comigo. Diz que tenho dois dias para me decidir. Depois sai de casa. Cândido esperou um pouco antes de responder. – Acho que não tens fuga. Vais ter de te decidires. Ela está decidida. E tu, queres viver com ela? – Quero. Mas queria ter tudo controlado. Ter dinheiro. E que ela não saísse de casa desta forma. Tenho receio da forma como o marido reagirá. – Terás de conviver com isso. Prazeres da Costa suspirou. Depois bebeu o resto do uísque que tinha no copo. – Eu sei. Mas era uma coisa com que não me queria preocupar. – A vida é assim, José. Não a controlamos. Prazeres da Costa parecia estranhamente envelhecido e descrente. Cândido já tinha visto homens assim, que procuravam consolo. A qualquer preço, mesmo que fossem jogadores. Ser lúcido, às vezes, é mais doloroso do que perceber que ninguém consegue controlar a sua vida. A nossa imaginação inventa inimigos para ficar reconfortada. Mas isso não chega. Esse é o grande medo dos homens. Procuramos sempre o Céu. Descobrimos, depois, que é a antecâmara do Inferno. Voltou a encarar Prazeres da Costa. Disse: – Tenho uma mensagem para o teu amigo japonês. – Diz. – É melhor escrever. É mais seguro. Escreveu num papel: “Daqui a dois dias, à noite, no cais 16, descarga de encomendas vindas da China. Muito importante.” Prazeres da Costa agarrou no papel, meteu-o no bolso, e levantou-se. Deparou com Marina, a quem agradeceu por lhe ter apresentado o homem que lhe tinha emprestado o dinheiro para pagar as dívidas de jogo. Assim poderia criar novas dívidas. Saiu, cambaleante. Marina sentou-se e disse: [CONTINUAÇÃO]
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasEsta que te escrevo Horta Seca, Lisboa, 28 Julho [dropcap]N[/dropcap]ão é gralha, esta data a abrir. Este exercício diarístio mistura-me os tempos ao modo de saudoso whisky sour, agitado sabiamente pelo Bruno [Abreu], no defunto Baliza. Estou aqui a batalhar com as frases, a resistir que nem o ferro das vigas de colunas por encher das casas em construção. O betão do pensamento escorre atropelando tudo antes do erguer de paredes. Os dias recentes fazem do passado e do futuro animais obedientes, festas e pouca disciplina, desobedientes ao que por eles sinto. E sinto muito. Atrasos chegam de par com os projectos, âncoras lúgubres e caprichosos papagaios de papel. Para que o previsto aconteça, tenho que mastigar muito do tardamento, devo desatar nós. Dobrando curva do óbvio, uns são mais rijos que outros: como fazer chegar os livros aos seus leitores? As soluções de hoje não contêm amanhã. Horta Seca, Lisboa, 22 Julho Gosto muito de cartas. Pela parvoeira dos afazeres, de tanto desresponder, deixei de as receber. O meu mano Tiago [Manuel] continua dos poucos, senão o único, a praticar essa disciplina de samurai. E cada uma das que envia inclui lâmina desenhada e o mais que lhe aprouver. Retribuo de outras maneiras, todas frustres perante o gesto magnânimo de aplicar mão e tinta sobre branco a pensar naquela pessoa e não outra. Namorei muito por via postal e não conheço melhores preliminares, afinal, transfigurados em interliminares, pensando no sexo enquanto foz e cais de longas viagens ao encontro do ser, o próprio perdido ali ou em busca de mais além no outro. Disperso. Por tanto gostar de cartas, temo que estas passem despercebidas, devolvidas ao remetente, sem as cores e os passos de Elvis. «Moléstias, Embustes e Pontinhos Amantes» (ed. Arranha-céus e capa algures na página) nasceu dos tratos de polé que Rita Marquilhas, Catarina Magro, Fernanda Pratas, liderando vasta equipa, deram à «Escrita Quotidiana em Portugal entre os séculos XVI e XIX». Trocadilho desajeitadamente com a «pluralidade de juízos – episcopais, inquisitoriais, reais, locais, corporativos, militares – [que] vigiaram o comportamento dos indivíduos de acordo com certos princípios legais e morais» e de onde foram retiradas para nosso deleite estas cartas. Gozo com os aflitos e seus medos, mas em que em melhor matéria mergulha a literatura suas garras criadoras? Este complexo volume (caixa que inclui 100 cartas, embrulhadas em fita lacrada a simular o selo da intimidade de outrora, sem contar com cartaz e livro de instruções) transfigura-se em máquina produtora de experiências. E roubo ainda ao prefácio, para que se perceba mais avante: «Quem as conseguiria inventar? Falam-nos de ladrões todos corteses, de padres nada católicos, de mulheres, numerosas mulheres, ora queixosas ora batalhadoras, mas sempre eloquentes. Há presos em fuga, amores, desamores, vinganças e maledicências. Há várias doenças, descritas quase com prazer, e também muitas viagens. Pelo espaço de duas publicações, uma portuguesa e uma espanhola, distribuímos este amplo fresco, ilustrado por Nuno Saraiva. São retratos de pessoas que viveram há 200, 300, 400 ou 500 anos e usaram um dos mais antigos formatos que o texto escrito pode receber: o da carta.» Enormes figuras, plenas de vulgaridade, aqui se apresentam, com enquadramento de primeira água, em português da época transcrito para a actualidade e ilustrado, com a malandragem adequada, pelo Nuno, e assim facilitando o acesso ao que se queira, da básica narrativa à evolução da letra manuscrita entre a época quinhentista e a oitocentista, das oscilações da língua às mudanças sociais nos donos da capacidade de ler e escrever. E mais, gesto política de aguda actualidade, que só a memória nos resgatará: «o resgate da vulgaridade, como concordam os estudiosos da sociedade, tem de estar presente nas interrogações que dirigimos à história, sob pena de, entre outras mistificações, perdermos o rasto de muitos dos nossos tabus.» «Moléstias» talvez tenha sido, até agora, o mais atrapalhado dos nossos títulos, pela dificuldade em gerir cada dos múltiplos aspectos que o fazem único, do alcance do esforço posto no enquadramento e na transcrição, pela quantidade das ilustrações, pelo desenho da caixa, pelos desafios técnicos da fita fechada com lacre a simular a experiência original, e mais isto ou aquilo. Mas sobretudo, por termos sido, por uma vez, incapazes de comunicar com o designer, resguardado sob pseudónimo de Melting Spot. Acontece, mas, à excepção da ausência, por vez primeira, do volume na data aprazada de lançamento, não se nota nódoa no essencial. Casa dos Bicos, Lisboa, 23 Julho Era suposto orientar debate, mas temo ter deitado conversa fora. O pretexto era a edição de «O Rasto de García Lorca» (ed. Levoir para o Público, colecção Novela Gráfica), com desenho e argumento de Carlos Hernández, e El Torres a «limpar, brilhar e dar esplendor». Juntámo-nos à mesa, Sílvia Reig, a editora, José de Freitas, coordenador editorial, e Pedro Rapoula, que comoveu a sala com leituras de alguns poemas menos conhecidos, mas ferozes na celebração da alegria e do amor. Pilar del Rio deu início ao assunto, do mesmo modo que o faz no volume, de par com Mercedes de Pablos, falando da ferida-Lorca a partir deste «caleidoscópio de 12 faces-cenas». Hernández recolhe vestígios de modo a compor o rosto fugidio do símbolo, a partir de fragmentos do homem. Ainda hoje a figura do poeta se faz incómoda, recusando Granada as tradicionais homenagens aos que se erguem identidade. No rasto do rosto final, conversa do autor com seu pai, fica claro que o presente não quer que regresse do passado este fantasma. Que força tão temível possui esta figura? O carisma que transgredia as arrumações, burgueses e camponeses, operários e actores? A homossexualidade a perturbar o modo como nos vemos e nos relacionamos? Um gesto que fazia do teatro, da poesia, da cultura, ferramentas de múltiplas possibilidades? Não traz respostas, esta bd, mas ajuda no labirinto de ruínas. «Sem encontrar-se. / Viajante pelo seu próprio torso branco. /Assim ia o ar. // (…) As nuvens, em manada, / ficaram adormecidas contemplando / o duelo das rochas contra a aurora. // Vêm as ervas, filho; / já soam suas espadas de saliva / pelo céu vazio. //Prepara teu esqueleto; /é preciso ir buscar depressa, amor, depressa, / nosso perfil sem sonho.» Temos que voltar à escrita de cartas, como afinal este «Rasto…» acaba sendo, ao pai do artista e à cidade de ambos. Os tempos exigem-nos. Na sua última carta, responde à do seu namorado, Juan Ramírez de Lucas: «En tu carta hay cosas que no debes, que no puedes pensar. Tú vales mucho y tienes que tener tu recompensa. Piensa en lo que puedas hacer y comunícamelo enseguida para ayudarte en lo que sea, pero obra con gran cautela. Estoy muy preocupado pero como te conozco sé que vencerás todas las dificultades porque te sobra energía, gracia y alegría, como decimos los flamencos, para parar un tren». Energia, graça e alegria, receita para parar comboios.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasUma estátua para Herodes [dropcap]É[/dropcap] este o título de um livro de Natália Correia de interesse maior e de polémica interpretação pelo conteúdo da matéria de facto (expressão jurídica que todos os dias escutamos num país que se intumesceu de banditismo económico e social) nem sempre é rigoroso, mas isso, é a imperativa vontade da autora que não sacrifica o génio de se fazer compreender apenas e não somente por métodos estilísticos que certamente tirariam peso ao suporte da mensagem que deseja passar. É esta economia muito imprópria aos tempos que correm pois que certas temáticas ao serem desbravadas por longos e enfadonhos sistemas discursivos tirariam o grau de choque que será sempre necessário nos grandes alertas. Sabemos todos do elevado grau de criancismo imposto e das muitas e artificiais aberrações que laudatoriamente vão passando como salvíficas diante das mentes tenras em formação e da profunda inoperância para fazer sentir que a protecção é um valor que se dá como um dever sem discussão possível, que as crianças, elas mesmas, gostam de sistemas firmes, até para poderem exercitar os limites da sua natureza de seres em crescimento. Isto que parece pouco, tem sido superiormente ignorado na manobra dos seus “interesses” retirando uma grande autonomia e agravando cada vez mais uma demarcação sadia entre elas e nós. As pobres crianças andam de local para local, de conversas para moral num grande tráfico experimental para resultados fictícios, e não fora a molesta forma de ensino um álibi a mais para a execução de entes retardados, estaríamos face a elas enquanto seres pensantes com uma muito provável falta de consideração por esse dom tão genuíno que é o de terem grandes recursos. Creio que neste grande afã do “menorizamento” do adulto, elas crescem com hiatos profundos entre aquilo que cada um deve ser. E, sem dúvida, que psicanalisar crianças é uma tarefa imprópria para a saúde e a motivação onírica das mesmas. Fala-nos a autora em linguagem admirável da conduta e da transmissão de pai para filho, dando-nos uma visão desse laço estranho e das consequências sociais firmadas no mais labiríntico da consciência, fala-nos das três idades: a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo (substituindo este por o da Mãe) com sinalética muito demarcada para as religiões abraâmicas, neste discurso, reparamos num adulto com uma juventude que se prolonga em menorização infantilista, e segue depois para obliterar toda essa sagacidade da criança em formação, um problema embrionário que mau grado as Eras parece não ser solucionado, tomando apenas aspectos diferentes. «Desfalcado o ser da imagem do Pai que ministrava o logos e sem o apoio efectivo da Mãe que dá o amor, perdido no labirinto angustiante deste abandono, entrega-se às façanhas da sua irracionalidade.» Talvez que crescer tenha pilares que implementem na consciência uma unidade sem a qual não seja possível realizar o aperfeiçoamento de um ente que se deseja autónomo, e que o labor da luta progenitora tenha amarfanhado a criança por uma manobra indelicada causando-lhe estranhas ameaças que o futuro se encarregará de revelar. Adaptam-se para sobreviver, e parecendo protegidas nem sempre o estão nas áreas que mais importam. Ao capítulo intitulado «Os semeadores dos ventres» é da própria História que se fala, nas ferramentas que tornaram possível assegurar a legitimidade da progenitura, a força motriz da polaridade pai/ filho uma das características do projecto da transmissão para conseguir o maior número de prole que assegurem ao mais parecido o legado do pai, até ao movimento de rejeição do “filho rebelde” cujo castigo do pai seria tão impiedoso como injustificável aos olhos da mãe. A corrente transmissora criava assim o pai que na sua soberania se juntava aos filhos como uma criança mais e que tinha como filiação a mulher que tomava por companheira. E deste diabolismo infantil dos cérebros inacabados que comandam as sociedades receamos que as mesmas soçobrem numa orgia de irracionalidade em multiplicação desordenada criando Pai e Filho as estruturas ideológicas do extermínio. «Em cada pai que se faz de urso para divertir um bebé há um déspota que se bestializa num quadrúpede para atrair a vida de que se quer apropriar». O experimentalismo indagador da educação posto ao serviço da mente infantilizada terá o seu cenário mais provável na barbárie próxima, mas se desvincularmos estes efeitos, um regresso bom às origens da Mãe, ou quiçá ao feto imaterial, poderá reverter o facto. Mãe essa que não precisa certificar-se de nada, mas necessita desvincular-se da labiríntica forma em que um jogo habilmente preparado a desintegrou para ser um brinquedo mais do infantilismo do Pai. Escusado será dizer que mencionar Herodes é de um extremo choque juvenil e, na impiedosa forma como desejou abolir um seu concorrente, temos o grau de irracionalidade que as rédeas do poder assumem para guardarem o seu lugar, mas, há também que saber esclarecer o nervosismo cingido ao novo código em mudança que deu origem a uma violenta irritação, passando a dualidade a projetar-se no Filho. E esta guerra mantida chega aos nossos dias que estranhamente prefere brincar a encarar a dura frente da já muito fétida projecção. Mas também creio que Herodes tinha vidência:” o mal será esse Cristo dizer «Deixai vir a mim as criancinhas». Ficará coberto de moscas e tomá-lo-ão por um cadáver. Tanto bastará para que se forme uma religião.” Mimos intoleráveis para as manifestas noções reinantes da criancice imposta. Fala-nos também da figura negra de um Hilter todo projectado na observância dos poderes mágicos característica da psicose criancista, contorcendo-se na violenta revolta contra o Pai e aplicando alarmantes resoluções (o ódio que as crianças sentem perante alguma coisa e que as predispõe mais ao extermínio do que a acções concertadas) reflecte-o assim como uma liquidação definitiva do Pai, essa pedra angular do monoteísmo judaico. Esta é uma obra que nunca será neutra em matéria de visão urgente, que afinal, só mesmo os poetas conseguem resgatar à suprema lucidez pela qual são conhecidos.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA primeira vez no deserto [dropcap]V[/dropcap]anina era uma argentina de Buenos Aires a viver em Floripa há mais de 10 anos, desde os seus vinte e poucos. Tocava baixo numa banda de covers nos bares da cidade e era apaixonada por pegar ondas na praia Mole. Vivia ali perto, sozinha, na Lagoa da Conceição. Argentinos na ilha não é incomum. Aliás, é um dos lugares de preferência dos portenhos para passarem as suas férias. No verão, a ilha fica cheia deles. Alguns acabam por ficar ou voltar mais tarde para passarem a viver junto às inúmeras praias da ilha. Conheci Vanina depois de uma actuação da sua banda, através de uma amiga comum, e desde esse dia passámos a conversar com muita regularidade. Apesar de sermos muito diferentes, a começar pelo género e a acabar nos hemisférios onde nascemos e crescemos, havia uma secreta cumplicidade de estrangeiro. Sabíamos que não éramos dali, e toda a gente à volta sabia-o melhor que nós, pois o gosto que tínhamos pela cidade – pelas praias e pela paisagem – iludia-nos amiúde acerca da nossa cidadania. Mas de fora, todos viam claramente que não éramos dali, pelo menos quando começávamos a falar. Tanto ela quanto eu tínhamos sotaque, mesmo falando a língua. Um estrangeiro é sempre um estranho, apesar do gosto que possam ter por ele. É uma afeição exótica que se cultiva, como ter peixes de aquário num apartamento da cidade. Vanina gostava de me visitar a meio da tarde durante a semana. Dizia que “o tempo é uma vida”. Era muito ligada a disciplinas esotéricas, e explicava que há várias vidas em cada momento e que se não nos entregarmos a eles, rejeitamos a vida. No fundo, era uma interpretação do “carpe diem” de Horácio, na sua versão mais alargada: “carpe diem quam minimum credula postero”, aproveita o dia e acredita o menos possível no amanhã. E, na verdade, Vanina era de uma coerência titânica em relação a esse preceito de vida. Evidentemente, a ajudar a sua filosofia havia uma confortável situação financeira, que lhe permitia trabalhar se e quando quisesse. Vanina era fascinante, tinha um claro domínio sobre si, os seus impulsos, e ao mesmo tempo deixava-se levar pelo momento. Dizia: “Controlo perfeitamente os meus desejos, as minhas vontades, mas deixo-me levar pelo que a vida me traz. São coisas muito diferentes, Portuga. Por exemplo, conheço um homem e tenho a plena consciência de que gostaria de ter um envolvimento carnal com ele, mas se ele for muito interessante controlo essa minha vontade, esse desejo, embora me entregue ao momento e possa passar horas com ele; sei que se pusesse o corpo entre nós, isso acabaria. Este é o exemplo concreto de controlo do desejo e de deixar-me levar pelo que a vida me traz.” Quando acrescentei que nem sempre o desejo acaba com o interesse, pode até aumentar, respondeu: “Isso pode até ser, quando é amor. Mas este não cresce nas árvores. Homens e mulheres, sim.” Bebia e fumava muito moderadamente. Aliás, tudo nela era moderado, menos a entrega apaixonada ao momento. Vi-a uma noite sair com um cara e soube mais tarde que passou três dias com ele sem ir a casa. Disse-me depois: “Foi um exemplo claro de aproveitar o que a vida me dava. Sabia claramente que não iria existir nada mais que dois dias, e foram três. Portuga, uma vez segui um mestre hindu, que conheci em Amesterdão, durante meses, por vários países. Conheci-o numa palestra e segui-o. Um belo dia entendi que já não fazia mais sentido segui-lo e regressei a Buenos Aires.” Perguntei-lhe se isso não era um modo de não ter controlo sobre ela, visto ser desviada do seu trajecto sem ter pensado nisso. Mas não. O trajecto dela era a vida e na vida não há desvios. A vida é como o deserto, sem pontos de referência. Para onde quer que se caminhe é desvio. A não ser que previamente se saiba para onde caminhar, mas na vida isso não existe. A vida é uma primeira vez no deserto.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasPalácio Nacional de Mafra e Santuário do Bom Jesus de Braga declarados Património Mundial [dropcap]O[/dropcap] conjunto monumental composto pelo Palácio, Basílica, Convento, Jardim do Cerco e Tapada de Mafra e o conjunto arquitectónico e paisagístico do Santuário do Bom Jesus do Monte, em Braga, receberam no passado dia 7 de Julho, na 43ª Sessão do Comité do Património da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), que decorreu em Baku, no Azerbaijão, a classificação de Património Cultural Mundial da UNESCO. Na sessão, foi ainda anunciado que o Museu Nacional Machado de Castro passa a estar integrado na área classificada da Universidade de Coimbra, que em 2013 também foi classificada Património Cultural Mundial da UNESCO. Os monumentos portugueses fizeram parte das 36 indicações para inscrição na Lista do Património Mundial que estiveram a ser avaliadas. Ambas as candidaturas suscitaram algumas questões ao Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios (ICOMOS), que faz a apreciação de todas as propostas que chegam de todo o mundo. No caso do complexo de Mafra, pelo facto da Tapada não estar suficientemente documentada e, em relação Santuário do Bom Jesus, em relação à autenticidade e integridade do monumento, assim como à preservação e prevenção de acidentes, como possíveis incêndios à volta do complexo religioso. No entanto, após esclarecimentos por parte da representação de Portugal, as propostas acabaram por ser aprovadas. O monumento de Mafra foi aprovado com o apoio do Brasil, da Tunísia e da China, tal como de outros Estados que fazem parte do Comité, como Angola ou Indonésia, embora tenham apoiado as recomendações para a conservação e um estudo cartográfico deste complexo monumental. Quanto ao Santuário do Bom Jesus, o Brasil, que abriu a discussão e faz parte do Comité, defendeu que o Santuário não só cumpre todos os critérios para ser integrado na Lista do Património Mundial, mas serviu também de inspiração para o complexo do Bom Jesus de Congonhas, já incluído na mesma Lista. A Lista do Património Mundial da UNESCO integra actualmente 1.092 sítios em 167 países. Portugal passa agora a contar com 17 locais classificados em território português, nomeadamente o Centro Histórico de Angra do Heroísmo, o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém, em Lisboa, num conjunto de proximidade, e o Mosteiro da Batalha e o Convento de Cristo, em Tomar, que foram os primeiros monumentos a serem classificados, em 1983. A estes juntaram-se a Região Vinhateira do Alto Douro, a zona central da cidade de Angra do Heroísmo, a Paisagem Cultural de Sintra, a Cidade-Quartel Fronteiriça de Elvas e as suas Fortificações, o Centro Histórico de Évora, o Centro Histórico de Guimarães, o conjunto do Centro Histórico do Porto, Ponte Luís I e Mosteiro da Serra do Pilar, a Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico, a Laurissilva da Madeira, o Mosteiro de Alcobaça, os locais de Arte Rupestre do Vale do Côa, bem como a antiga Universidade de Coimbra – Alta e Sofia, havendo ainda 11 locais que constituem património mundial de origem portuguesa no mundo. Segundo o Observador, o presidente da Câmara de Mafra, Hélder Sousa Silva, presente na sessão, referiu que a classificação do Palácio, Basílica, Convento, Jardim do Cerco e Tapada de Mafra peca por tardia, porque apesar de ser um dia histórico para Mafra e para Portugal, esta candidatura preparada há 10 anos já devia ter sido classificada há muito tempo. Para o autarca, a inscrição de Mafra na lista do Património Mundial “não é um ponto de chegada, mas um ponto de partida e traz responsabilidades acrescidas para a manutenção [do monumento] a curto prazo”, esperando que haja uma Mafra antes da classificação e uma Mafra depois da classificação, virada para a recuperação do património. O director do Palácio Nacional de Mafra, Mário Pereira, defendeu, numa nota de imprensa enviada pela autarquia na ocasião, que a inevitabilidade de um reconhecimento não poderia, nem deveria ser protelada, porque Mafra e o seu monumento há muito que mereciam esta inscrição. Também a Escola das Armas e o Exército, a direcção da Tapada Nacional e a Paróquia de Mafra, outros parceiros da candidatura, se regozijaram com a classificação. Ricardo Rio, presidente da Câmara Municipal de Braga, salientou por sua vez que, com a distinção conferida ao Santuário do Bom Jesus, para além do orgulho vem também uma grande responsabilidade. O dossier de candidatura do conjunto composto pelo Palácio, Basílica, Convento, Jardim do Cerco e Tapada de Mafra a Património Mundial foi entregue ao Centro do Património Mundial da UNESCO no dia 27 de Janeiro de 2017, uma etapa histórica neste complexo e exigente processo. O Palácio Nacional de Mafra é o mais importante monumento representante do barroco em Portugal, nomeadamente do barroco joanino. O dossier de candidatura, designado Real Edifício de Mafra, foi coordenado pelo município e pela Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) da República Portuguesa, com a colaboração do Palácio Nacional, Escola das Armas, Tapada Nacional e Paróquia de Mafra. Os parceiros desejavam fazer coincidir o anúncio agora feito pela UNESCO, assim como a conclusão da reabilitação dos carrilhões do complexo, com as comemorações dos 300 anos do lançamento da primeira pedra do palácio, que tiveram o seu ponto alto no dia 17 de Novembro de 2017. É de referir que a reabilitação dos carrilhões do Palácio Nacional de Mafra, que sofreu vários atrasos e era fundamental para o Estado Português e a Câmara de Mafra poderem candidatar o monumento a Património Mundial, se iniciou em Junho de 2018. No dia 24 de Outubro de 2018, uma grua instalada em frente ao Palácio começou a retirar, pela primeira vez desde 1730, os sinos maiores dos carrilhões, o primeiro deles a pesar mais de sete toneladas, para serem analisados e restaurados, num investimento de 1,5 milhões de euros. Além de apear os sinos para virem a ser intervencionados, o consórcio português responsável pela empreitada, especialista em conservação e restauro do património, também é responsável pelo tratamento da pedra, restauro dos cabeçalhos, estruturas de madeira que suportam os sinos, e pela construção de novas estruturas de suporte da torre norte. A equipa encontrou alguns dos sinos em muito mau estado, em risco de se desprenderem da estrutura e criarem um efeito de dominó, que poderia resultar na queda de sinos na frente do palácio. Os dois carrilhões com 119 sinos, repartidos por sinos das horas, da liturgia ou dos carrilhões, constituem o maior conjunto sineiro do mundo, sendo, a par dos seis órgãos históricos e da biblioteca, o património mais importante do palácio. Mário Pereira referiu que está tão confiante no bom curso desta obra que já tem alguns carrilhonistas convidados para o concerto inaugural em Setembro de 2019, se tudo correr como previsto. Por sua vez, o dossier final de candidatura do Santuário do Bom Jesus do Monte, um trabalho desenvolvido ao longo de 20 anos, foi entregue ao Centro do Património Mundial da UNESCO no dia 15 de Janeiro de 2018. O Santuário constitui um conjunto arquitectónico e paisagístico construído e reconstruído a partir do século XVI, no qual se evidenciam os estilos barroco, rococó e neoclássico. É composto de um “Sacro Monte”, de um longo percurso de via-sacra atravessando a mata, de capelas que abrigam conjuntos escultóricos evocativos da morte e ressurreição de Cristo, fontes e estátuas alegóricas, da Basílica, culminando no “Terreiro dos Evangelistas”. No Santuário, prossegue actualmente a recuperação das capelas, um projecto que se espere fique concluído até 30 de Setembro, prevendo-se que a zona do Santuário fique recuperada até 30 de Junho. Portugal foi o único país a inscrever dois monumentos na Lista do Património Mundial da UNESCO nesta sessão, algo que traz uma responsabilidade acrescida ao país, segundo o embaixador português na UNESCO, António Sampaio da Nóvoa. Foram ainda inscritos este ano na lista, entre outros, os bens Parati – Cultura e Biodiversidade no Brasil, as Colinas do Prosecco em Itália, Bagan no Myanmar, o Sistema de Gestão da Água de Augsburgo na Alemanha e o sítio da Antiga Babilónia no Iraque.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasBumbutai a Imperatriz Xiaozhuang [dropcap]C[/dropcap]onsiderada a Mãe da Dinastia Qing, influente nas escolhas dos herdeiros, actuando estrategicamente na educação dos dois primeiros imperadores manchus da China, protegeu o filho Fulin a tornar-se o Imperador Shunzhi, assim como o neto Xuanye. Este, como Imperador Kangxi, quando morreu a avó mongol Borjigit Bumbutai, consorte Zhuang do defunto Imperador Huang Taiji, deu-lhe o título de Respeitável Imperatriz avó Zhuang, Xiaozhuangwen. Pertencente ao clã mongol Borjigit da tribo Khorchin, Bumbutai (1613-1688) nasceu a 28 de Março de 1613 (dia 8 do segundo mês intercalar do ano 41 do reinado de Wanli) e era filha do Príncipe Jaisang (Zhaisang) e de Boli, sendo o avô paterno Manggusi, chefe do clã Borjigit. Ainda criança, o pai convidou um professor para lhe ensinar a cultura e língua Han, assim como a luta wushu. Tinha quatro irmãos mais velhos entre os quais Wukeshan (?-1666), pai da consorte Jing (Erdeni Bumba) concubina do Imperador Shunzhi e Manzhuxili (?-1665), avô paterno da Imperatriz Xiaohuizhang (Alatan Qiqige, 1641-1718) que veio a casar com o Imperador Shunzhi. Bumbutai viera para a corte nürzhen em 1625 para consorte de Huang Taiji, pois a sua tia Jerjer (1599-1649), filha mais velha de Manggusi, mais tarde a Imperatriz Xiaoduan, encontrava-se no palácio há sete anos e ainda não tinha dado descendência. Então Manggusi colocou Bumbutai, a neta mais nova de 13 anos, para casar com o príncipe Huang Taiji, na altura com 34 anos de idade. Dez anos depois, a sua irmã mais velha Harjol (1609-1641) chegou à corte e tornou-se a favorita consorte Minhui. Como tradição, a estreitar relações políticas e diplomáticas, o clã mongol Borjigit da tribo Khorchin enviava princesas à corte nürzhen para casar com os príncipes e o khan. Percebe-se o porquê ao referir ser o clã Borjigit a origem de todos os clãs mongóis que governaram a Ásia desde o século XIII e estivera no poder na Mongólia durante séculos e mesmo na Índia o Império Mughal tinha descendentes pela linha materna dos Borjigit. Dos inúmeros príncipes estão Temüjin (Gengis khan, 1162-1227), o unificador das tribos mongóis que em 1215 conquistou Beijing e o seu neto Borjigit Kublai, que se tornou Imperador-Khan ao fundar a dinastia chinesa Yuan (1271-1368). Esta dinastia foi na China substituída em 1368 pela dos Ming e mudou-se para a Mongólia como Dinastia Yuan do Norte até ser destronada em 1453, mas logo no ano seguinte voltou a conquistar o território, depois segmentado pelos descendentes. A tribo dos Khorchin [cujo ancestral directo era Khasar, irmão de Gengis Khan] em 1612 fez uma aliança com os nürzhen e em 1624 foi a primeira tribo mongol a submeteu-se a eles, até que em 1635 deram como finda a Dinastia Yuan do Norte e colocaram-se sob o governo do manchu Khan Aisin-Gioro Huang Taiji. Desde que Nurhachi ordenara aos seus filhos para se casarem com princesas mongóis houve 84 casamentos até à entrada dos manchus na China e durante a Dinastia Qing realizaram-se 586 casamentos entre manchus e mongóis. Algo fora do normal nas dinastias chinesas. Aliança por casamento Bons cavaleiros e arqueiros, os mongóis e os nürzhen desde longos tempos habitavam territórios a Norte da China e combatiam-se até que Nurhachi (1559-1626), do clã Aisin Gioro, tribo jianzhou dos nüzhen, procurando unir as tribos nürzhen com o fito de conquistar a China, resolveu em 1612 fazer um pacto com os mongóis do clã Borjigit da tribo Khorchin, aliando por casamentos os dois povos. Daí a chegada à corte manchu de princesas mongóis. Nurhachi primeiro em 1612 casara com a filha de Mingan, o segundo irmão de Manggusi, chefe dos Borjigit, e em 1615 com Shoukang (1599-1666), filha de Sunguoer, o irmão mais novo de Manggusi. Tinha Nurhachi 57 anos e Shoukang 16 anos e dessa relação não nasceram filhos. Shoukang viveu como Imperatriz viúva durante o reinado de cinco soberanos manchus. Nurhachi casara quinze vezes e quando morreu não deixou indicado o seu sucessor, havendo três potenciais candidatos ao trono da Dinastia Dajin (1616-1636, Grande Jin, ou Jin Tardio): o segundo filho Daishan, nascido da primeira esposa, a nüzhen Tunggiya hala (neneme gaiha fujin); o oitavo filho Huang Taiji (1592-1643) nascido em 1592 da nüzhen Yele Nara hala com quem contraíra matrimónio em 1588; e Dorgon (1612-1650), o seu 14.º filho proveniente da nüzhen Ula Nara hala, cuja posição era de Dafei (grande consorte, a principal), rainha titular que controlava as concubinas e após a morte do khan se suicidou e o acompanhou no mausoléu. Conta uma história ter Nurhachi antes de morrer confidenciado a Ula Nara hala a escolha de Dorgon para lhe suceder, mas como nada ficou escrito e a mais ninguém tal referira, quando esta veio com essa revelação ninguém acreditou e a corte obrigou-a a suicidar-se para acompanhar o khan no mausoléu. Assim Dorgon não teve apoio para se tornar khan, assumindo em 1626 o trono da Dinastia Da Jin, com o título de reinado Tiancong, o khan Aisin-Gioro Huang Taiji, que no ano anterior tomara como consorte secundária Bumbutai. Foi ela uma excelente conselheira, tornando-o num bom Imperador, assim como ajudou à unificação das tribos nürzhen, que ainda não tinha ocorrido totalmente, tal como na ocupação da Coreia (1626). Quando os manchus lutavam contra os Ming, conseguiu ela convencer o general chinês Hong Cheng Chou, preso em 1640, a integrar as fileiras do exército manchu. O segundo khan Aisin-Gioro Huang Taiji (1592-1643) governou a dinastia Dajin de 1627 a 1636 com o título de reinado Tiancong. Era casado com Ula Nara hala, uma manchu de quem tinha um filho com 6 anos, HaoGe, quando em 1614, ainda como príncipe Huang Taiji se casou com a mongol Jerjer (1599-1649) e esta tomou uma posição mais alta do que a primeira esposa. Em 1636 Huang Taiji tornou-se imperador e mudou o nome da dinastia para Qing (puro), sendo Jerjer coroada Imperatriz Xiaoduan. A consorte secundária Bumbutai (1613-1688), sobrinha da Imperatriz, chegou à corte manchu em 1625 e foi então que Jerjer teve a primeira das três filhas, a 2.ª princesa Wenzhuang (1625-1663), dando depois a Huang Taiji a 3.ª e a 8.ª filha. Em 1634 Harjol (1609-1641), a irmã mais velha de Bumbutai, veio para a corte nüzhen e casou-se com HuangTaiji, tornando-se a favorita consorte Minhui. No ano de 1637 deu-lhe o oitavo filho e o khan felicíssimo mandou pela primeira vez a ordem de libertar prisioneiros e pensou torná-lo o seu sucessor. Mas este filho apenas viveu alguns meses. Estava já grávida Bumbutai, que desde 1636 era a consorte de quarto grau Zhuang, e a 15 de Março de 1638 deu o nono filho a Huang Taiji de nome Aisin-Gioro Fulin, que veio a ser o Imperador Shunzhi (1638-1661). Tiveram mais três princesas, a 4.ª a 5.ª e a 7.ª filha. Houve ainda outras consortes do clã Borjigit casadas com Huang Taiji que, apesar de ser o fundador da Dinastia Qing, não chegou a Imperador da China, morrendo em Setembro de 1643.
admin h | Artes, Letras e IdeiasSacerdócio da invenção e do desconhecimento [dropcap]A[/dropcap] história começou quando resolvi não voltar a mentir e começar a dizer, pela primeira vez na vida, a verdade. Estava farto daquele modo de viver. Acordava com uma nuvem em cima da cabeça, corrosiva. Dores no corpo. Má disposição permanente. Nessa manhã, entrei na esquadra da polícia de livre vontade e fiquei à espera que me chamassem. Não foi há muito. Ficaram surpreendidos por me verem ali, mas não liguei e agi como cidadão normal que sou. Havia um aparelho de rádio pequeno em cima da secretária do primeiro escriturário, sintonizava a Antena 2 e passava aquela obra mais famosa de Listz. Nunca consigo dizer o nome, nem agora nem nesse dia, mas desperto e fico deliciado. Toca-se à noite. Adoro certas passagens, lembro-me de epopeias, e naquela ocasião veio-me à memória uma imagem de campos de batalha ao fim da tarde. Húmidos e desertos onde a luta ainda estava por passar ou já tinha ido sem deixar rasto. E estava absorto nesse poema musicado de Liszt quando chamaram o meu nome e indicaram um gabinete ao fundo do corredor. “O inspector vai recebê-lo, senhor Ministro”, informaram-me. Entrei, era um homem de bigode, figura de Lua cheia, muito sorridente, que me saudou, perguntando-me ao que vinha. E eu disse-lhe, que estava ali para contar a verdade. Que andava cansado de mentir “ao povo”, todos os dias, e que agora chegara a altura de dar com a língua nos dentes. Não perdi tempo e comecei a desbobinar. Fui logo pelo início, para que não faltasse pitada da história. O inspector de olhos arregalados ia apontando no seu caderninho, tentando apanhar aquela avalanche de informação que me entupia a boca e que na dele deixava escorrer um fio de baba.. Ao princípio não acreditou, mas à medida que fui descrevendo as situações com todo o pormenor, não esquecendo o nome de ninguém, percebeu que não estava a mentir e que estava a contar, tintim por tintim, tudo o que a sua brigada e a nação inteira andavam a tentar descobrir há anos e que até ali só suspeitavam. Aquilo era um tsunami na investigação, ia virar o país e deixá-lo de pernas para o ar. Era a verdade pura e dura. Claro, a retaliação não se fez esperar. Semanas depois, quando o esclarecimento já se deslocara para outros destinos, dou com uma trupe de cavernícolas à porta do ministério. Apesar das trombas com que vinham, não lhes fiz frente e deixei-os entrar. “Façam favor”. Foi tudo muito natural. Não disseram logo ao que vinham, não eram de grandes falas. Deram-me um papel para a mão e sugeriram que não resistisse, que deixasse as coisas andar, que era melhor. Abri o papel dobrado em duas partes, li. Era só isso, vinham tomar conta dos incidentes. Queriam castigar-me. No papel vinham escritas as razões, queriam libertar-me do remorso, asseguravam, em letras grandes. Que desse um passo atrás. Que voltasse à esquadra e repetisse tudo, mas ao contrário. Disse-lhes que não valia a pena, que essa coisa da liberdade já estava gasta, agora a luta era outra. “Que se foda a liberdade!”, gritei. Sim, a luta é a vida, sem vida não há liberdade. Por isso, escusavam de estar para ali a inventar e a fazer perder-me tempo. Empurraram-me e ataram-me com uma corda. Se não me calasse e não fizesse o que pediam, penduravam-me da janela, pelo pescoço. Para dar o exemplo. Nada estava certo naquela cena, e não havia qualquer ponta de justiça. Mas isso já era de esperar, a maior surpresa era virem falar em liberdade. Tinham era de engolir. “Que querem vocês com a liberdade, que vão fazer com ela?”, mas nem pestanejaram. Um deles estava mais enervado do que os outros e estava prestes a perder o autodomínio. Queria ir-se embora. Achava que aquela ideia de me atormentarem não ia dar em nada. Que se calhar até tinha razão em ter dado com a língua nos dentes. A coisa não estava a correr bem, transpuseram a porta da rua e logo encalharam num problema de consciência. O que viria a seguir? Informei-os de que atrás da próxima porta estaria o comissário da polícia com um batalhão inteiro que ia dar cabo deles. Era inédito, estava sozinho no edifício e prestes a sair quando simpaticamente eles tocaram à campainha. Sim, saio desprotegido, não ando com guarda-costas. “Mas estejam à vontade”, garanti-lhes. Atrás da porta não havia ninguém. Ganhava tempo e instaurava a desconfiança. Ouvia-se o piano de Liszt a ressoar nos corredores, a anunciar a obscuridade. Desta vez, não havia epopeia, ninguém se fez ao caminho para o campo de batalha. E pedi para que acabassem com aquela história da corda, estava a magoar-me. Que levassem toda a papelada que quisessem, era um favor que me faziam. Mas em vez disso atiraram-me da janela, como tinham prometido. Pelo menos eram homens de palavra. Hoje em dia, já é raro. E foi assim que, meses depois, chegamos ao epílogo. O caso é muito sério. Os governantes vão ser demitidos e os seus cúmplices vão para a cadeia. Não há lugar para recurso, a sentença do tribunal é superior e final. Fizeram merda e vão ter de pagar por isso. Devolvem as benesses e as propriedades e é uma sorte se ninguém os agredir na rua. O preço a pagar é mesmo esse. Vão e não voltam. “O governo por inteiro abandona o seu pelourinho”, já se adivinha na primeira página dos jornais. Não há cá “mas” nem “ses”, vai tudo parar atrás das grades e, diga-se, que merecem. O que me vale, são os cuidados intensivos. A notícia caiu desenfreada no gabinete do Primeiro-ministro, que apesar de toda a trafulhice não estava à espera de semelhante desfecho, aquilo era um complô para o deitar abaixo, berrou ao telefone, não se inibindo de empregar estrangeirismos. “Só podia!” Tentou falar com o gabinete de relações públicas para saber o que era possível fazer, mas de lá não vieram ilações positivas. Podiam fazer um comunicado a negar qualquer relação com o acontecido, o que não estaria muito longe da verdade, mas a opinião pública estava formada e, como tal, tudo o que dissessem seria mais um prego no enorme caixão colectivo. Então, reuniu o Conselho de Ministros, só para saber quem era o autor daquela tramoia. Bastava olhar para a cara do prevaricador para compreender quem tinha sido. Pelos vistos, estava mal informado, os homens da corda não tinham vindo da sua parte. Só soube que eu tinha escorregado do primeiro andar e caído da janela. Há uma coisa que se chama “protecção de testemunhas”. Mas não sei se me volto a pôr em pé. Na sala, enquanto cumprimentava a sua equipa, passou revista a todos, como se estivessem na tropa. Nem tentou disfarçar. Olhou cada um, homem ou mulher, fixamente nos olhos sem pestanejar, e quem lhe despertou verdadeiramente desconfiança foi o Ministro da Defesa. Sim, ele teria a ganhar com tudo isto, assumiu sem receios. É dos poucos que não será beliscado quando o futuro vier tomar conta da situação e poderá assumir a chefia do governo numa nova candidatura. Sim, tinha sido ele. “Que grande filho da puta!”
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasAinda a vacinação, parte segunda e última [dropcap]U[/dropcap]m estudo em 2017 com dados de 2011 a 2013 revelou que a incidência de autismo na comunidade somali era de 1 em 32 crianças, enquanto que na comunidade caucasiana era de 1 em 36. Estatisticamente, a diferença é residual. Ainda assim, a comunidade somali, provavelmente sofrendo do defeito de óptica que consiste em ver o infortúnio próprio de forma hipertrofiada, não é convencida pelos números apresentados. Michel Osterholm, ex-epidemiologista do estado de Minnesota, assegura que o medo incutido pelos anti-vaxxers é o grande responsável pela resistência da comunidade à vacinação. O argumento? “Lembrem-se, o sarampo é uma doença que dura entre cinco a dez dias. O Autismo é para sempre.” Embora a taxa de mortalidade do sarampo seja efectivamente muito diminuta, diria que o “para sempre” da morte de uma criança intencionalmente não vacinada é bastante mais cruel do que o “para sempre” do autismo. O grande problema que ocorre quando a comunidade médica diz em uníssono – e com amplos estudos a sustentarem a afirmação – que “as vacinas não causam autismo” é a sua incapacidade, por outra parte, de determinar com suficiente grau de certeza o que de facto causa o autismo. E é nesse limbo, propício ao crescimento do bolor da desconfiança, que laboram todas as teorias da conspiração. Em 2008 Charlie Sheen foi para tribunal para impedir que a ex-mulher, Denise Richards, vacinasse os dois filhos de ambos. O actor acredita que as vacinas são “um veneno”. Em 2015, Jim Carrey tuitou contra o timerosal e o alumínio presente em algumas vacinas, acusando o Estado da Califórnia de fascismo corporativo e de envenenar crianças. Billy Corgan, dos Smashing Pumpkings, diz não acreditar naqueles que fazem as vacinas ou no medo que inculcam nas pessoas para os “obrigarem a tomá-las”. Jenny McCharty é provavelmente a grande porta-voz mediática do movimento anti-vacinação americano. Em 2005 anunciou que o seu filho Evan tinha sido diagnosticado com autismo. A condição manifestou inicialmente com ataques epilépticos. Quando estes foram debelados com tratamento apropriado, o estado geral de Evan melhorou substancialmente. Jenny continua a afirmar, com maior ou menor frequência de patacoadas pseudo-científicas, que foram as vacinas que causaram o autismo de Evan e aconselha os pais “a pesarem os prós e contras da vacinação de modo informado” (leia-se nas não tão subtis entrelinhas: vacine por sua conta e risco, porque as consequências da não-vacinação são despiciendas – a imunidade de grupo protege até os não vacinados (a chamada protecção indirecta) – e as da vacinação podem ser uma indesejada sorte grande na tômbola do autismo). Resta dizer que Jenny McCarthy foi namorada de Jim Carrey durante cinco anos. É interessante verificar que o movimento anti-vacinação aparece irmanado a outros movimentos de teor conspirativo. Muitos dos que defendem a terra plana também têm uma posição crítica acerca das vacinas e dos seus supostos malefícios. A verdade é que as muitas teorias da conspiração compõem uma espécie de rizoma entrelaçado com múltiplos pontos de contacto e de tangente. E a natureza primordial desse núcleo rizomático é a suspeita de estarmos a ser controlados/enganados/amestrados por forças dissimuladas cujo propósito é destruir-nos/escravizar-nos/roubar-nos (riscar em cada caso o que não interessa). E esta criatura de múltiplas cabeças alimenta-se da ignorância que transforma muito rapidamente em desconfiança. Alimenta-se das sombras.