Sacerdócio da invenção e do desconhecimento

[dropcap]A[/dropcap] história começou quando resolvi não voltar a mentir e começar a dizer, pela primeira vez na vida, a verdade. Estava farto daquele modo de viver. Acordava com uma nuvem em cima da cabeça, corrosiva. Dores no corpo. Má disposição permanente. Nessa manhã, entrei na esquadra da polícia de livre vontade e fiquei à espera que me chamassem. Não foi há muito. Ficaram surpreendidos por me verem ali, mas não liguei e agi como cidadão normal que sou. Havia um aparelho de rádio pequeno em cima da secretária do primeiro escriturário, sintonizava a Antena 2 e passava aquela obra mais famosa de Listz. Nunca consigo dizer o nome, nem agora nem nesse dia, mas desperto e fico deliciado. Toca-se à noite.

Adoro certas passagens, lembro-me de epopeias, e naquela ocasião veio-me à memória uma imagem de campos de batalha ao fim da tarde. Húmidos e desertos onde a luta ainda estava por passar ou já tinha ido sem deixar rasto. E estava absorto nesse poema musicado de Liszt quando chamaram o meu nome e indicaram um gabinete ao fundo do corredor. “O inspector vai recebê-lo, senhor Ministro”, informaram-me. Entrei, era um homem de bigode, figura de Lua cheia, muito sorridente, que me saudou, perguntando-me ao que vinha. E eu disse-lhe, que estava ali para contar a verdade. Que andava cansado de mentir “ao povo”, todos os dias, e que agora chegara a altura de dar com a língua nos dentes. Não perdi tempo e comecei a desbobinar.

Fui logo pelo início, para que não faltasse pitada da história. O inspector de olhos arregalados ia apontando no seu caderninho, tentando apanhar aquela avalanche de informação que me entupia a boca e que na dele deixava escorrer um fio de baba.. Ao princípio não acreditou, mas à medida que fui descrevendo as situações com todo o pormenor, não esquecendo o nome de ninguém, percebeu que não estava a mentir e que estava a contar, tintim por tintim, tudo o que a sua brigada e a nação inteira andavam a tentar descobrir há anos e que até ali só suspeitavam. Aquilo era um tsunami na investigação, ia virar o país e deixá-lo de pernas para o ar. Era a verdade pura e dura.

Claro, a retaliação não se fez esperar. Semanas depois, quando o esclarecimento já se deslocara para outros destinos, dou com uma trupe de cavernícolas à porta do ministério. Apesar das trombas com que vinham, não lhes fiz frente e deixei-os entrar. “Façam favor”. Foi tudo muito natural. Não disseram logo ao que vinham, não eram de grandes falas. Deram-me um papel para a mão e sugeriram que não resistisse, que deixasse as coisas andar, que era melhor. Abri o papel dobrado em duas partes, li. Era só isso, vinham tomar conta dos incidentes. Queriam castigar-me. No papel vinham escritas as razões, queriam libertar-me do remorso, asseguravam, em letras grandes. Que desse um passo atrás. Que voltasse à esquadra e repetisse tudo, mas ao contrário. Disse-lhes que não valia a pena, que essa coisa da liberdade já estava gasta, agora a luta era outra. “Que se foda a liberdade!”, gritei. Sim, a luta é a vida, sem vida não há liberdade. Por isso, escusavam de estar para ali a inventar e a fazer perder-me tempo. Empurraram-me e ataram-me com uma corda. Se não me calasse e não fizesse o que pediam, penduravam-me da janela, pelo pescoço. Para dar o exemplo.

Nada estava certo naquela cena, e não havia qualquer ponta de justiça. Mas isso já era de esperar, a  maior surpresa era virem falar em liberdade. Tinham era de engolir. “Que querem vocês com a liberdade, que vão fazer com ela?”, mas nem pestanejaram. Um deles estava mais enervado do que os outros e estava prestes a perder o autodomínio. Queria ir-se embora. Achava que aquela ideia de me atormentarem não ia dar em nada. Que se calhar até tinha razão em ter dado com a língua nos dentes. A coisa não estava a correr bem, transpuseram a porta da rua e logo encalharam num problema de consciência. O que viria a seguir? Informei-os de que atrás da próxima porta estaria o comissário da polícia com um batalhão inteiro que ia dar cabo deles.

Era inédito, estava sozinho no edifício e prestes a sair quando simpaticamente eles tocaram à campainha. Sim, saio desprotegido, não ando com guarda-costas. “Mas estejam à vontade”, garanti-lhes. Atrás da porta não havia ninguém. Ganhava tempo e instaurava a desconfiança. Ouvia-se o piano de Liszt a ressoar nos corredores, a anunciar a obscuridade. Desta vez, não havia epopeia, ninguém se fez ao caminho para o campo de batalha. E pedi para que acabassem com aquela história da corda, estava a magoar-me. Que levassem toda a papelada que quisessem, era um favor que me faziam. Mas em vez disso atiraram-me da janela, como tinham prometido. Pelo menos eram homens de palavra. Hoje em dia, já é raro.

E foi assim que, meses depois, chegamos ao epílogo. O caso é muito sério. Os governantes vão ser demitidos e os seus cúmplices vão para a cadeia. Não há lugar para recurso, a sentença do tribunal é superior e final. Fizeram merda e vão ter de pagar por isso. Devolvem as benesses e as propriedades e é uma sorte se ninguém os agredir na rua. O preço a pagar é mesmo esse. Vão e não voltam. “O governo por inteiro abandona o seu pelourinho”, já se adivinha na primeira página dos jornais. Não há cá “mas” nem “ses”, vai tudo parar atrás das grades e, diga-se, que merecem. O que me vale, são os cuidados intensivos.

A notícia caiu desenfreada no gabinete do Primeiro-ministro, que apesar de toda a trafulhice não estava à espera de semelhante desfecho, aquilo era um complô para o deitar abaixo, berrou ao telefone, não se inibindo de empregar estrangeirismos. “Só podia!” Tentou falar com o gabinete de relações públicas para saber o que era possível fazer, mas de lá não vieram ilações positivas. Podiam fazer um comunicado a negar qualquer relação com o acontecido, o que não estaria muito longe da verdade, mas a opinião pública estava formada e, como tal, tudo o que dissessem seria mais um prego no enorme caixão colectivo. Então, reuniu o Conselho de Ministros, só para saber quem era o autor daquela tramoia. Bastava olhar para a cara do prevaricador para compreender quem tinha sido. Pelos vistos, estava mal informado, os homens da corda não tinham vindo da sua parte. Só soube que eu tinha escorregado do primeiro andar e caído da janela. Há uma coisa que se chama “protecção de testemunhas”. Mas não sei se me volto a pôr em pé.

Na sala, enquanto cumprimentava a sua equipa, passou revista a todos, como se estivessem na tropa. Nem tentou disfarçar. Olhou cada um, homem ou mulher, fixamente nos olhos sem pestanejar, e quem lhe despertou verdadeiramente desconfiança foi o Ministro da Defesa. Sim, ele teria a ganhar com tudo isto, assumiu sem receios. É dos poucos que não será beliscado quando o futuro vier tomar conta da situação e poderá assumir a chefia do governo numa nova candidatura. Sim, tinha sido ele. “Que grande filho da puta!”

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