Os donos da verdade

[dropcap]O[/dropcap] que é a verdade? A pergunta não pode ser isolada da pergunta no sentido contrário: o que á a falsidade? Encontramos várias respostas na filosofia. Verdade é que acontece, da maneira que acontece e, na versão negativa, é o que não acontece da maneira que não acontece. Mas a definição da falsidade implica um olhar que é enganado. Achamos que acontece o que não acontece ou que não acontece o que, de facto, acontece. Ou então achamos que é de uma maneira diferente que acontece o que acontece.

Do ponto de vista de Copérnico, o sol está parado e é a Terra que se move. Mas nós vivemos no mundo de Ptolemeu. Vamos ver o pôr-do-sol e não o levantar da Terra ou vamos ver o nascer do sol e não o baixar da Terra. Há evidências científicas ou experiências altamente sofisticas que nos comprovam que a Terra é esférica, mas localmente a Terra é plana ou assim o parece. Achamos que estacionamos o carro num sítio de uma determinada maneira e afinal o carro está noutro sítio e mal estacionado. Enganamo-nos nos dias, horas, sítios de encontros.

A verdade é real e objectiva. A falsidade resulta de uma ilusão da lucidez. Com efeito, também a verdade está implicada num olhar de reconhecimento. Sabe-se da verdade, do que acontece e do modo como as coisas acontecem. Este “sabe-se” é uma forma de acesso à realidade, acesso de que somos portadores. Sabemos como as coisas são. Ainda que não saibamos tudo, temos noção das coisas, temos percepção das coisas. É por isso também que podemos ser iludidos e enganados. Quem estiver fora da realidade não pode ser enganado. A falsidade está implicada na realidade. Na mentira, dizem-nos coisas, na aparência, aparecem-nos coisas. Somos atraídos por fantasias, ilusões e coisas que não existem.

Outra das definições da filosofia diz então que há uma adequação entre o que se pensa da realidade e a própria realidade, entre a nossa compreensão e as situações que acontecem na realidade. Falsidade é uma desadequação, um desfasamento, sem que tenhamos, porém, noção de que há um desfasamento. Só tem noção da desadequação quem mente. Quem mente diz que algo que acontece, quando não acontece ou se acontece não acontece do modo que diz que acontece. Quem mente diz coisas, mostra-as de alguma maneira.

A miragem aparece. De outro modo, não nos enganava. A aparência existe. De outro modo não nos iludíamos.
Sem nos apercebermos não existem verdades nem falsidades apenas quando somos chamados a tomar posição acerca de verdades e de falsidades. Não estamos sempre numa situação crítica em que temos de ver melhor para saber o que acontece ou de que modo acontece. Estamos continuamente no modo indicativo, sabemos o que acontece e o que não acontece, sabemos do modo como acontece e do modo como as coisas não acontecem. Não nos apercebemos também que se produz em nós uma adesão e colagem ao que acontece ou rejeição total da realidade. Onde estamos, que horas são, quem somos, o que estamos a fazer, a realidade dos objectos e a fantasia da imaginação, tudo é sabido sem que o digamos de nós para nós.

E há situações em que estamos metidos e não percebemos que são fantasias produzidas por mestres prestidigitadores, mágicos poderosos, que sabem de que gostamos e de que não gostamos, das pessoas com quem queremos estar e são amigas e dos outros com quem não queremos estar e são nossos inimigos.

As “fake news” são mentiras que se fazem insinuar nas nossas vidas sobretudo a princípio sobre matérias das quais não temos uma prova imediata, apenas remota. Mas depois são mentiras descaradas para quem não se deixa enganar e vê os outros, mesmo uma maioria ser enganada. Basta trabalhar com o ressentimento e todos temos motivos para estarmos ressentidos com a vida que é uma maneria de dizer que estamos ressentidos com os outros. Outro motivo fortíssimo é a inveja, o ciúme, a cobiça. Queremos ter mais e são os outros todos que têm tudo e nós não temos nada. A culpa é dos migrantes, das minorias étnicas, dos que não acreditam no que acreditamos ou dos que acreditam no que não acreditamos: se acreditam ou se não acreditam em Deus, se acreditam no meu Deus ou no Deus dos outros. E mexe connosco quem diz mal do nosso clube, da nossa orientação política. Porque são os outros e não os nossos que estão errados. Já não se pergunta pela verdade. Quer ter-se razão. Quer ser-se dono da verdade.

9 Out 2020

Sacerdócio da invenção e do desconhecimento

[dropcap]A[/dropcap] história começou quando resolvi não voltar a mentir e começar a dizer, pela primeira vez na vida, a verdade. Estava farto daquele modo de viver. Acordava com uma nuvem em cima da cabeça, corrosiva. Dores no corpo. Má disposição permanente. Nessa manhã, entrei na esquadra da polícia de livre vontade e fiquei à espera que me chamassem. Não foi há muito. Ficaram surpreendidos por me verem ali, mas não liguei e agi como cidadão normal que sou. Havia um aparelho de rádio pequeno em cima da secretária do primeiro escriturário, sintonizava a Antena 2 e passava aquela obra mais famosa de Listz. Nunca consigo dizer o nome, nem agora nem nesse dia, mas desperto e fico deliciado. Toca-se à noite.

Adoro certas passagens, lembro-me de epopeias, e naquela ocasião veio-me à memória uma imagem de campos de batalha ao fim da tarde. Húmidos e desertos onde a luta ainda estava por passar ou já tinha ido sem deixar rasto. E estava absorto nesse poema musicado de Liszt quando chamaram o meu nome e indicaram um gabinete ao fundo do corredor. “O inspector vai recebê-lo, senhor Ministro”, informaram-me. Entrei, era um homem de bigode, figura de Lua cheia, muito sorridente, que me saudou, perguntando-me ao que vinha. E eu disse-lhe, que estava ali para contar a verdade. Que andava cansado de mentir “ao povo”, todos os dias, e que agora chegara a altura de dar com a língua nos dentes. Não perdi tempo e comecei a desbobinar.

Fui logo pelo início, para que não faltasse pitada da história. O inspector de olhos arregalados ia apontando no seu caderninho, tentando apanhar aquela avalanche de informação que me entupia a boca e que na dele deixava escorrer um fio de baba.. Ao princípio não acreditou, mas à medida que fui descrevendo as situações com todo o pormenor, não esquecendo o nome de ninguém, percebeu que não estava a mentir e que estava a contar, tintim por tintim, tudo o que a sua brigada e a nação inteira andavam a tentar descobrir há anos e que até ali só suspeitavam. Aquilo era um tsunami na investigação, ia virar o país e deixá-lo de pernas para o ar. Era a verdade pura e dura.

Claro, a retaliação não se fez esperar. Semanas depois, quando o esclarecimento já se deslocara para outros destinos, dou com uma trupe de cavernícolas à porta do ministério. Apesar das trombas com que vinham, não lhes fiz frente e deixei-os entrar. “Façam favor”. Foi tudo muito natural. Não disseram logo ao que vinham, não eram de grandes falas. Deram-me um papel para a mão e sugeriram que não resistisse, que deixasse as coisas andar, que era melhor. Abri o papel dobrado em duas partes, li. Era só isso, vinham tomar conta dos incidentes. Queriam castigar-me. No papel vinham escritas as razões, queriam libertar-me do remorso, asseguravam, em letras grandes. Que desse um passo atrás. Que voltasse à esquadra e repetisse tudo, mas ao contrário. Disse-lhes que não valia a pena, que essa coisa da liberdade já estava gasta, agora a luta era outra. “Que se foda a liberdade!”, gritei. Sim, a luta é a vida, sem vida não há liberdade. Por isso, escusavam de estar para ali a inventar e a fazer perder-me tempo. Empurraram-me e ataram-me com uma corda. Se não me calasse e não fizesse o que pediam, penduravam-me da janela, pelo pescoço. Para dar o exemplo.

Nada estava certo naquela cena, e não havia qualquer ponta de justiça. Mas isso já era de esperar, a  maior surpresa era virem falar em liberdade. Tinham era de engolir. “Que querem vocês com a liberdade, que vão fazer com ela?”, mas nem pestanejaram. Um deles estava mais enervado do que os outros e estava prestes a perder o autodomínio. Queria ir-se embora. Achava que aquela ideia de me atormentarem não ia dar em nada. Que se calhar até tinha razão em ter dado com a língua nos dentes. A coisa não estava a correr bem, transpuseram a porta da rua e logo encalharam num problema de consciência. O que viria a seguir? Informei-os de que atrás da próxima porta estaria o comissário da polícia com um batalhão inteiro que ia dar cabo deles.

Era inédito, estava sozinho no edifício e prestes a sair quando simpaticamente eles tocaram à campainha. Sim, saio desprotegido, não ando com guarda-costas. “Mas estejam à vontade”, garanti-lhes. Atrás da porta não havia ninguém. Ganhava tempo e instaurava a desconfiança. Ouvia-se o piano de Liszt a ressoar nos corredores, a anunciar a obscuridade. Desta vez, não havia epopeia, ninguém se fez ao caminho para o campo de batalha. E pedi para que acabassem com aquela história da corda, estava a magoar-me. Que levassem toda a papelada que quisessem, era um favor que me faziam. Mas em vez disso atiraram-me da janela, como tinham prometido. Pelo menos eram homens de palavra. Hoje em dia, já é raro.

E foi assim que, meses depois, chegamos ao epílogo. O caso é muito sério. Os governantes vão ser demitidos e os seus cúmplices vão para a cadeia. Não há lugar para recurso, a sentença do tribunal é superior e final. Fizeram merda e vão ter de pagar por isso. Devolvem as benesses e as propriedades e é uma sorte se ninguém os agredir na rua. O preço a pagar é mesmo esse. Vão e não voltam. “O governo por inteiro abandona o seu pelourinho”, já se adivinha na primeira página dos jornais. Não há cá “mas” nem “ses”, vai tudo parar atrás das grades e, diga-se, que merecem. O que me vale, são os cuidados intensivos.

A notícia caiu desenfreada no gabinete do Primeiro-ministro, que apesar de toda a trafulhice não estava à espera de semelhante desfecho, aquilo era um complô para o deitar abaixo, berrou ao telefone, não se inibindo de empregar estrangeirismos. “Só podia!” Tentou falar com o gabinete de relações públicas para saber o que era possível fazer, mas de lá não vieram ilações positivas. Podiam fazer um comunicado a negar qualquer relação com o acontecido, o que não estaria muito longe da verdade, mas a opinião pública estava formada e, como tal, tudo o que dissessem seria mais um prego no enorme caixão colectivo. Então, reuniu o Conselho de Ministros, só para saber quem era o autor daquela tramoia. Bastava olhar para a cara do prevaricador para compreender quem tinha sido. Pelos vistos, estava mal informado, os homens da corda não tinham vindo da sua parte. Só soube que eu tinha escorregado do primeiro andar e caído da janela. Há uma coisa que se chama “protecção de testemunhas”. Mas não sei se me volto a pôr em pé.

Na sala, enquanto cumprimentava a sua equipa, passou revista a todos, como se estivessem na tropa. Nem tentou disfarçar. Olhou cada um, homem ou mulher, fixamente nos olhos sem pestanejar, e quem lhe despertou verdadeiramente desconfiança foi o Ministro da Defesa. Sim, ele teria a ganhar com tudo isto, assumiu sem receios. É dos poucos que não será beliscado quando o futuro vier tomar conta da situação e poderá assumir a chefia do governo numa nova candidatura. Sim, tinha sido ele. “Que grande filho da puta!”

29 Jul 2019

Revisão da matéria dada

[dropcap]U[/dropcap]ma reportagem no Notícias, de Maputo, relembra-nos como pode descer o homem, na escala dos ratos. Aí se lê: há mulheres moçambicanas a serem forçadas a actos sexuais em troca de ajuda humanitária, na sequência da destruição causada pelo ciclone Idai.

Emergem, em todos os lugares, em estados de crise, comportamentos deste tipo – da Croácia, ao Ruanda, ao Brasil de Bolsonaro: um artista é morto com oitenta tiros e ao Ministro da Justiça só lhe ocorre comentar, “acontece!”. Como em todos os períodos sombrios, flirtamos com o pior da pluralidade humana, à escala global.

Uma educação a sério conseguiria inculcar uma maior humanidade, a civilidade, no comportamento das criaturas? Face à insensibilidade de Moro levantam-se dúvidas mas atenuaria o número de ocorrências bárbaras; uma verdadeira educação humanista reforça o respeito pelo outro e a compaixão.

Entretanto, li um livro a vários títulos interessante, Le Battement du Monde (A Pulsação do Mundo), um diálogo entre dois pensadores: Peter Sloterdijk e Alain Finkielkraut. O livro surpreende pela actualidade, apesar de ser de 2003, sobretudo no diagnóstico traçado no capítulo O Estádio e a Arena.

Vou resumir alguns dos delineamentos aí esboçados. Nada de muito novo, simplesmente bem sistematizado:

«Na hora actual, a psicose de massa mediática substituiu integralmente o senso comum, esse maravilhoso órgão de uso democrático da inteligência colectiva».

Isto é muito claro para quem acompanha no Youtube a caricata evolução política no Brasil, onde enxameiam os canais, individuais ou colectivos, que pretendem substituir o papel dos media tradicionais. No geral, percebe-se que o que move o homem é a ilusão. Depois, a prática prevalecente (muito mais nos representantes da direita do que nos da esquerda) não é a de esgrimir argumentos mas a de taxar os adversários com etiquetas infamantes ou denúncias moralizantes. Modo de ser que se locomove segundo uma espécie de princípio da razão insuficiente herdado da retórica de guerra (em frívolos mas agressivos jogos de linguagem) fomentada pelos jacobinos no período de radicalização da Revolução Francesa. Eles compreenderam, explicam-nos os autores, que, para sobreviver na turbulência permanente, é preciso ser o primeiro a caluniar.

«A calúnia é a primeira arma do povo, ou melhor, dos amigos do povo», e o volume das calúnias urde rapidamente uma “sociedade do escândalo”, a qual garante uma rede à prática da calúnia e nos reenvia para o primeiro teatro da crueldade: o circo romano.

«Se, agora, alguma coisa não funciona no sistema mediático mundializado é por causa desta conversão cada vez menos secreta, cada vez menos decente, do espaço público num circo (…) O espaço público é penetrado por dois mecanismos de competição: aquele das acções de opinião e o das sensações circenses.

Nos nossos dias, a questão é de saber se existe uma vida fora do circo. A maior parte dos nossos contemporâneos responderá pela negativa. Eles estão convencidos que só o circo proporciona a vita vitalis, essa vida desdobrada de um sentimento de significação».

Acresça-se a isto, que decalca o que se passa (eles terem-no detectado em 2003 só confirma que há várias velocidades na globalização), duas outras características concomitantes:

A monetarização da “verdade”, ou seja, a opinião pública transformou-se numa Bolsa.

Repare-se em como o circo da opinião dos canais se transforma numa caça ao níquel. Quem mantém um canal lucra na proporção do número de likes e de visitas; daí que seja preciso dramatizar, acrescentar elementos de sensacionalismo à matéria, para que o vídeo seja mais impactante. Rapidamente as mensagens se convertem em slogans e os argumentos preterem à verdade os efeitos da retórica. O que imita a lógica televisiva. Quando vejo o Olavo de Carvalho a perorar para as centenas de milhares de pessoas inscritas no seu canal, e a usar-se da soberba que o faz afirmar ser o único escritor brasileiro que conhecerá a posteridade, tentando convencer os seus fiéis sobre o geocentrismo e que o Einstein era “um babaca”, só me lembro daquela questão de Brecht: “Que é roubar um banco, comparado com fundá-lo?”.

Esbateu-se a consciência do valor civilizacional, o sentido do respeito pelo adversário e as boas regras intelectivas. O que faz a grandeza das personagens num filme como A Grande Ilusão, de Renoir?

A monetarização da “verdade”, ou seja, a opinião pública transformou-se numa Bolsa

Aquilo que parece uma ideia inócua a borbulhar numa proveta burguesa, é mais sério do que se afigura. Não apenas à superfície isso sustente a vaga de anti-intelectualismo que vemos emergir por todo o lado, como é sintoma disto: «Os novos denunciantes, no momento do insucesso, tentam mudar as regras do jogo. É isto, o fascismo. Deixa-se cair as boas maneiras do combate quando se compreende que na arena actual há risco de se perder a vantagem. Produz-se então um último esforço desesperado para negar a derrota. É por esta via que o terrorismo jacobino se volta a instalar na nossa cultura.»

Onde fica a ética no meio desta amálgama de tudo ao molho e fé na calinada? Talvez um princípio dela seja esboçado pelos autores quando defendem: «(…) é preciso reformular um código de combate, implicando o cuidado do inimigo. Quem não quer ser responsável por um inimigo já cedeu à tentação do tanto pior melhor. Querer ser responsável pelo seu inimigo: o gesto primordial de uma ética civilizadora dos conflitos. Se a forma do “celerado” é a única maneira de conceber o inimigo, aí estamos já embrulhados no massacre imaginário.»

Será isto entendido por poucos, paciência. Começa-se sempre por poucos. Na Grécia antiga inventaram-se os Jogos Olímpicos como uma emulação da violência e a competição agónica substituiu a guerra. São de soluções deste tipo – que implicam um reforço da simbolização, i. é de um retorno da astúcia, da persuasão, da inteligência e da capacidade interpretativa articuláveis no espaço público, contra a literalização cognitiva e a calúnia que aí se jogam – que o futuro necessita para se proteger.

18 Abr 2019

As opiniões são piores que os coelhos

[dropcap]A[/dropcap] conversa acerca do declínio do jornalismo ultrapassa largamente as nossas fronteiras. Um pouco por toda a parte organizam-se conferências, debates e outros e mil e um enclaves nos quais se revezam no púlpito os profetas do apocalipse, os médicos-legistas e os coveiros. Numa coisa, pelo menos, parecem todos de acordo: o jornalismo de investigação, tal como o conhecemos, está morto. Divergem quanto às causas de morte. Uns apontam o dedo ao aparecimento da Internet, dos motores de busca e das redes sociais, que sorvem a fatia do bolo publicitário que antes alimentava a rotativa, outros ensaiam um mea culpa através do qual tentam arregimentar apoios e adeptos: o jornalismo, para estes, definhou porque o mantra economicista se sobrepôs com tal peso às directivas capazes de estabelecer uma linha entre o bom e o mau jornalismo que tudo acabou por ficar nivelado por baixo; os bons jornais ficaram maus e os maus ficaram piores. A verdade é que ainda estamos demasiado próximos do epicentro da batalha para lhe ver claramente os contornos. Uma coisa é certa, no entanto: independentemente do desfecho, nada será como dantes.

Além das fake news, contendo em si o poder e perigo tremendos de se tornarem o Pedro e o Lobo capaz de cravar o último prego no caixão do defunto, existem motivos mais discretos para que o jornalismo se tenha tornado uma espécie de activo tóxico. A Internet teve o condão de despertar uma consciência colectiva cujo modo de funcionamento está longe de ser claro. A imediatez do meio tem tendência a despertar no humano a tentação da resposta pronta. Bem vistas as coisas, isto não é nada de novo. A recompensa que advém da prontidão é imediata. A reflexão é um desporto de fundo; leva tempo, requer ponderação, calma e tempo. É muito mais exigente no trabalho a que obriga e proporciona uma satisfação desfasada do tempo em que se dá. A velocidade a que os assuntos se sucedem dificulta a nitidez necessária para dirimir aquilo que importa daquilo que é puramente acessório. A indignação resultante da morte de um gato por atropelamento pode ser idêntica aquela que advém das atrocidades cometidas num cenário de guerra. Noutra coisa são idênticas: no tempo que duram. São indignações a prazo, reacções cuja intensidade é inversamente proporcional ao tempo e à profundidade a que a elas nos dedicamos. Estamos muito mais focados na sucessão das coisas no mundo do que nas coisas que compõem essa sucessão. É uma corrida de velocidade na qual só fugazmente temos uma ideia de quem é quem na procissão interminável dos assuntos.

A Internet tem o condão de nos confundir tanto como de nos reassegurar. Por um lado, tudo acontece a uma velocidade para a qual não fomos obviamente treinados – e alguma poderemos sê-lo? E não estaremos a ver a coisa ao contrário? Não seria mais profícuo para todos desacelerar o mundo? Por outra parte, se tudo está a acontecer e nada nos prende a atenção mais do que umas míseras horas, não se poderá dar o caso de não estar a acontecer nada de importante, de facto? E mesmo que esteja, que posso eu fazer? Há uma tremenda desproporcionalidade entre a quantidade de coisas que me são dadas a ver e o meu limitadíssimo poder de intervenção sobre elas. Parece inclusive uma metáfora de um putativo inferno: o mundo existe, acontece e afecta-me; mas, por mais que me esforce, a minha capacidade de o afectar é praticamente nula. Uma linha de montagem de frustrados e neuróticos.

Se o jornalismo é só a vertente informativa, puramente informativa, não tem préstimo social. As notícias, a existirem, devem ser capazes de modificar a realidade. Notícias de corrupção devem originar processos e demissões. Notícias de guerra mandam que a sociedade se mobilize de algum modo. Notícias de abusos de direitos humanos devem provocar reacções de censura a vários níveis.

Muito pouco disto está a acontecer. A relatividade instala-se, muito por via da democratização falaciosa da opinião: à liberdade opinativa não corresponde a equivalência valorativa das opiniões. Estamos num caminho muito perigoso. O nosso farol, neste momento, é a irrelevância generalizada.

3 Dez 2018

Guerras de propaganda

[dropcap]N[/dropcap]ão se fala muito dele, não tem a visibilidade de um canal de televisão internacional como a BBC, a CNN ou mesmo a Russia Today, mas existe no serviço de acção externa da União Europeia (UE) um departamento que tem como função denunciar, contrariar e refutar a propaganda russa. Chama-se East StratCom Task Force – um nome que parece saído de um filme de espionagem, à boa maneira de James Bond. Imbuído de uma lógica que se assemelha à da Guerra Fria, produz duas newsletters por semana, Disinformation Digest e Disinformation Review, quer em inglês quer em russo, em que não apenas elenca aquelas que terão sido as notícias falsas da semana produzidas pela Rússia, como também reforça os pontos de vista da União sobre assuntos prementes. Esta semana, por exemplo, as publicações, distribuídas online, falavam da propaganda “desconstruída” em torno de Aleppo, e da campanha contra as ONGs em curso na Rússia.

Como se viu durante a recente campanha eleitoral para a presidência dos Estados Unidos da América (EUA), as notícias falsas vieram para ficar. Abundam nas redes sociais; no Facebook, por exemplo. Recordo-me particularmente de uma, posta a circular há pouco mais de seis meses, que iria arrumar com as hipóteses de António Guterres ser eleito secretário-geral das Nações Unidas. Tratava-se da alegada apresentação da candidatura de uma mulher – tal como preconizava o ainda secretário-geral Ban Ki-moon –, diplomata filipina, que receberia o apoio de toda a Ásia (China incluída). O pior destas “notícias”, melhor seria se lhes chamássemos boatos, é que são partilhadas e comentadas, passando a fazer parte do conhecimento comum de muitos cidadãos. São alcandoradas ao estatuto de facto. Como a suposta notícia de que Donald Trump teria dito há duas décadas, que a ser candidato presidencial sê-lo-ia pelo partido republicano – “informação” que seria desmentida mais tarde.

A generalização destes boatos veio tornar a vida dos jornalistas ainda mais difícil. São apenas os profissionais da comunicação social se vêem forçados a proceder à verificação de um número cada vez maior de alegados factos, como também vão ter de relatar amiúde a própria existência do boato. A divulgação de que ele corre nas redes sociais pode permitir uma melhor compreensão das narrativas que se pretendem fazer passar e da realidade que se procura construir, isto sem se ter a certeza sobre quem está por detrás do processo, cuja origem é quase sempre impossível de determinar. Mais: os governos passaram a acusar-se uns aos outros – particularmente os Estados Unidos e a Europa, de um lado, e a Rússia, do outro – de “assaltos” informáticos e de ataques cibernéticos, com o objectivo claro de destruir a “imagem” do inimigo. É como se o Muro de Berlim não tivesse vindo abaixo.

Contrariar a lógica de quem quer danificar a imagem de políticos da UE e afectar os valores que são tradicionalmente comuns a uma maioria dos Estados-membros não é uma tarefa fácil. Os ataques cibernéticos que se sucedem um pouco por todo o lado contribuem para ajudar a construir um inimigo – o que facilita a explicação da derrota. Foi assim nos EUA, tem sido assim nos países que se preparam para eleições em 2017, como a Alemanha, a França e a Holanda.

É como se o Muro de Berlim não tivesse vindo abaixo Angela Merkel, por exemplo, disse há dias que vamos todos ter de nos habituar “a vi- ver com eles”. E são quase impossíveis de confirmar de uma forma independente. Os jornalistas limitam-se a citar os porta-vozes dos governos que acusam outros da autoria de roubo de informação e da autoria de notícias falsas. De serem criminosos, portanto.

Os governos passaram a acusar-se uns aos outros de “assaltos” informáticos com o objectivo claro de destruir a “imagem” do inimigo.

Foi assim no rescaldo das eleições nos EUA, em que as autoridades norte-americanas apontaram o dedo à Rússia de Putin de ter estado na origem do furto de informação ao responsável pela campanha eleitoral de Hillary Clinton à presidência dos EUA, John Podesta. Sublinhe-se Putin, pois a acusação dos serviços secretos norte-americanos foi clara: um ataque desta ordem não poderia ter sido feito sem uma ordem expressa do Kremlin.

Dada a incapacidade de a comunicação social provar a fiabilidade das afirmações postas a circular pelos governos – saber-se-á alguma vez se foi Putin quem ordenou o ataque ou se a fuga dos e-mails da campanha de Clinton, divulgados pelo Wikileaks, partiu de dentro da própria estrutura de apoio à antiga secretaria de Estado? –, esta nova guerra torna impossível ao cidadão comum acreditar no quer que seja. É como se de repente tivéssemos passado a viver num mundo de realidades paralelas, saltando de uma para outra ao ritmo do zapping televisivo ou dos sítios que frequentamos na internet. Saúda-se naturalmente a liberdade de escolha, a liberdade de informação. O problema é que a informação nunca foi pura nem foi nunca totalmente objectiva. A informação sempre foi e sempre será enformada por quem a produz e obedece a uma lógica que escapa, em muitos casos, quer ao jornalista quer ao leitor. É como se o trabalho jornalístico estivesse ferido de morte. Parece que os tempos em que era possível acreditar num ou noutro jornalista fazem já parte da história. Há muitos anos, o relato independente do jornalista em cenário de guerra era essencial para se ter uma visão menos contaminada do que se estava a passar. Agora, acreditar que é possível acreditar não ajuda muito, pois torna-nos em simples receptores de informação, como se o processo comunicacional se resumisse à administração de um vacina, na sequência da qual passássemos todos a pensar o mesmo.

Este estado de coisas aproveita a quem? Numa primeira leitura, a Putin. Ao pôr em evidência os podres da democracia “ocidental”, o Presidente russo estaria não apenas a vingar-se pela divulgação dos Panama Papers, que, ao porem em evidência o modo de funcionar dos oligarcas russos, terão sido percepcionados no Kremlin como um ataque proveniente de Washington, mas também a sublinhar uma equivalência moral entre o “ocidente” e a Rússia. Todo este caldo de cultura – a incerteza, as instituições frágeis – seria o enquadramento perfeito para justificar uma liderança autoritária do tipo da de Putin. Mas esta é apenas a leitura que é feita por alguns analistas “ocidentais”

21 Dez 2016