A lição de Cartier-Bresson

03/08/2019

 

[dropcap]N[/dropcap]ão faço ideia de como se sentirá o pistoleiro depois de três semanas de inactividade. O indicador lateja-lhe, a garganta está seca? Hoje sonhei com um maremoto e que em pânico tentava salvar a mulher e uma filha. O melhor é voltar às trincheiras.

A Ilha do Farol continua um belo sítio para se passar uns dias de praia, embora tenha perdido parte do seu isolamento (está mais próximo da Caparica) e enerva que os guias turísticos apontem as pessoas que tranquilamente, nos alpendres das casas, “manjam” o seu arroz de ligueirão, como macacos amestrados.

Continuará a Ilha um espaço ideal para se estar nas estações baixas, excelente para ouvir a integral do Eric Satie ou para a concentração num trabalho criativo qualquer.

Na Ilha, uma insónia depositou-me este poema:

No escuro, a mão é uma alga/ e tenteia – conseguirei fechar/ as pálpebras da Medusa?/ No escuro, os pássaros/ carecem de retábulo,/ mudo escarro de Deus caído no mar./ Não é por compaixão/ que a mão adere à pedra,/ ambas friáveis ao foco/ do farol que lhes recorta,/ intermita, a finitude./ Que portas semear no escuro/ se não caminhas sobre as águas?/ Afasta-se a traineira, segue-a/ no céu o crescente, o mesmo/ que palpita no sonho do gato/ enroscado aos pés do cacto/ na duna que o chapinhar do chinelo/ coroa. No quarto – ó faminto/ de luas e vulvas – aguarda-te a mulher,/ a carne e o riso que te participam.

Não creio que volte ao Farol. Nunca volto aos sítios que me provocaram um poema. Assim fugo e me despeço, na busca da rasura e do silêncio: que a um látego só suceda o zoar do mundo, o mar.

04/08/2019

Caparide, na casa de uma amiga onde passo uns dias. Passo os olhos pelas estantes e resolvo entreter-me com leituras de que desertei há muito. Torga ou José Gomes Ferreira, por exemplo.

Descubro que nunca li o Tempo Escandinavo, do José Gomes, um livro de contos de 1969, e levo-o para a cama. São contos breves que espelham a vivência do autor na Noruega. Leio-o num folego, num viés. A meio do livro sobressai o relato de uma relação triangular que acaba da melhor maneira: «Que bom trair!». A situação é simples, mas boa – um homem que gosta de quem tanto promete mas não dá, acaba por enrolar-se com a amiga que fazia de pau de cabeleira. A narrativa flui sem entraves, relativamente bem esgalhada, até que vão para a cama.

Aí lê-se: «Depois, descido o estore, a mulher ficou de pé, como se estivesse ali há muito tempo à espera, cabelos vermelho-dourados, agressão penetrante nos olhos, feia de desejo (…) O bom é despi-la com delicadeza. Como quem veste mortas para o amor da terra.». Feia de desejo; como quem veste mortas? Uma foda tem de ser uma parábola? Tenho um arrepio, parece que o autor, que vivia num país sem liberdade, já está a escrever para agradar ao censor. Mas por que não te exilaste, meu caro poeta, limpando o aparo destas escórias gritantes?

06/08/2018

Tantos escritores só juntam palavras para fazer uma obra. Tal como na fotografia, demais só fazem clic. Ora, justamente Claudel – um autor prolixo – advertia que não foram as palavras que fizeram a Odisseia, mas ao revés. É esta dimensão que importa relevar: muito holisticamente os romances produzem-se da frente para trás, na perseguição de uma visão que, difusa, tacteia o seu recorte, a nitidez, e o fotógrafo acontece ou não, consoante a fotografia acusa um olhar ou pelo contrário. Cartier-Bresson é nisto exemplar, daí que insistisse no “instante decisivo”.

Aqui, o fotógrafo socorreu-se de um axioma de Jean-François Paul de Gondi (1613-1679), cardeal de Retz, para quem “não há nada no mundo que não tenha o seu momento decisivo”.

Facto é que não há sombra de vulgaridade nas suas fotos, até parece tudo encenado, tal o acerto dos enquadramentos.

A virtude do seu olhar talvez lhe nascesse do que ele recusara: Bresson teve uma formação clássica na pintura e embora desistindo dessa expressão, a sua extrema aptidão para “arrumar” estruturas e os padrões desenhados pelas figuras contaminou-lhe a obra fotográfica. O seu posterior abandono da fotografia – com escândalo, pois muitos consideravam-no o melhor fotógrafo do mundo – foi a marca de um homem profundamente honesto para quem a fotografia não resultava de um passatempo, de uma evasão, ou de um engenho para o comércio, e terá sido, talvez, motivado por um sentimento de derrota, por achar que afinal não rompera com a gramática das imagens de que se tinha apropriado no estudo da pintura clássica.

Contudo, a sua arte, apesar de banhada por um halo clássico, está na sua capacidade para cristalizar numa foto os “acasos objectivos” por que os surrealistas tanto pugnavam.

De igual modo escrever, para alguns, não é um mero ajuntamento de palavras mas a visão que enforma o texto, construído como um painel de ladrilhos que ausculta em cada sequência, parágrafo e palavras, o único ajuste possível – aquele que maximaliza a síntese.

08/08/2019

Despeço-me de Lisboa, talvez para sempre.

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