Politicamente correcto

[dropcap]C[/dropcap]om mais ou menos acordo sobre normas ortográficas cuja discussão prefiro evitar, mas assumindo-me – por não ter outro remédio – como pessoa relativamente aborrecida e vagamente anacrónica, mantenho profunda simpatia pela ideia de “politicamente correcto”, escreva-se lá como for, por essa tentativa de assumir que os nossos comportamentos quotidianos, as nossas escolhas, as nossas opções de vida, a forma como nos relacionamos com o trabalho e com a sociedade, a nossa linguagem, ou até o que comemos e consumimos, têm frequentemente implicações sobre as outras pessoas, sobre a vida comunitária que temos e a que podíamos ter, sobre o presente em que vivemos e o futuro a que podemos aspirar. Muito do que fazemos é da esfera da política e tem consequências sobre nós e também sobre as comunidades em que nos inserimos.

Comportarmo-nos, escolhermos, agirmos, falarmos, votarmos, em função dos nossos valores e das nossas preferências em relação ao tipo de sociedade em que queremos viver é aquilo a que gosto chamar “politicamente correcto”. Tem mais a ver com uma certa decência cívica do que com regras de etiqueta, boa educação e preceitos sociais que nos fazem aceitar, frequentemente com alguma hipocrisia, determinadas normas de linguagem e ação com as quais se harmonizam suficientemente comportamentos sociais dominantes que garantem certa harmonia entre as pessoas nas suas interações quotidianas. São coisas diferentes, portanto: as normas de etiqueta conduzem necessariamente a uma certa homogeneização que tende à eliminação do conflito, por assentarem em regras colectivamente aceites, ainda que de forma implícita; a ação politicamente correta frequentemente conduz (ou devia conduzir) ao conflito, por traduzir valores e consciências políticas individuais, com frequência divergentes e com fundamentos em diversos interesses, individuais ou de grupo, e diversas formas de entender o mundo e a sociedade. Que esse conflito fosse aceite com naturalidade e resolvido tranquilamente seria o mínimo a esperar em sociedades democráticas. Que esse diferenças sejam motivo para que supostas maiorias imponham violentamente a exclusão de comportamentos, acções ou grupos minoritários, há muito que deixou de ser aceitável em democracia. Ou pelo menos assim parecia.

Vem isto, evidentemente, a propósito de Marega, acidental ponta-de-lança da defesa dos valores democráticos na sociedade portuguesa, com os dedos do meio em riste e apontados com inequívoca clareza e determinação à turba alarve e ululante que o foi brindando com reiterados e sistemáticos insultos racistas durante um jogo de futebol. Que magnífica demonstração de correcção política, a do avançado que a seguir abandonou o relvado, deixando subitamente em claro fora de jogo companheiros de equipa, adversários, árbitros, espectadores no estádio e na televisão, enfim, quase todos nós, os que em nome de uma certa pacificação da convivência social vamos aceitando a normalização da alarvidade, do racismo e de tantas outras formas de intimidação e violência sobre quem é tido como mais fraco, seja por estar em minoria, seja por não ter acesso a formas de poder que lhes garantam a proteção necessária frente à boçalidade ou a outras formas mais ou menos evidentes de intimidação e agressão.

Os estádios de futebol têm sido zonas francas para esta selvajaria. Paga-se o bilhete e entra-se numa arena onde muito remotamente se aplica a legislação em vigor sobre o direito ao bom nome ou à proteção perante o insulto, a violência verbal e a intimidação psicológica, quando não física. Tudo faz parte da normalidade de uma tradição alegadamente desportiva e popular, generalizadamente aceite à esquerda e à direita do espectro político. As coisas ficarão mais evidentes quando se vai ao futebol com uma criança pequena, como me aconteceu quando levei o meu filho, na altura com 3 ou 4 anos, a ver um jogo de um obscuro campeonato distrital. Aquilo que seria uma oportunidade de vivenciar um suposto ritual festivo rapidamente se transformou num penoso exercício explicativo – ou evasivo – sobre variantes e nuances da língua portuguesa, ali aplicadas com profunda sabedoria e ampla variedade na agressão e intimidação de quem ouse aparecer pela frente da nossa maravilhosa equipa. Vale tudo nessas bancadas – e sabemos disso, as pessoas que vamos a estádios porque gostamos de futebol ou porque somos adeptos de um formidável clube, muito mais formidável do que qualquer outro.

Viria o árbitro da partida a registar em competente acta o ignóbil comportamento dos adeptos em questão. Fica-lhe bem a tardia atenção mas falhou no essencial, que é aplicar as regras do jogo no momento certo: interrupção imediata e derrota da equipa cujos adeptos praticaram reiterada e inequivocamente actos de agressão racista em relação a um jogador adversário, como mandam as leis. Está tudo escrito e é o mínimo que a decência impõe, por muito que façamos de conta que não se passa nada. O mesmo se aplica, de resto, aos colegas de equipa, treinadores e dirigentes do clube de Marega: lá estiveram eles, diligentes e ufanos, a tentar convencer o jogador a permanecer no rectângulo de jogo. Debalde: não houve grito ou obstáculo que demovesse da sua correcta e sábia decisão o magnífico avançado dos dedos em riste. Ficamos a dever-lhe a lição de civismo e reivindicação dos nossos direitos mais enquanto pessoas. Corremos menos riscos de que as coisas se passem da mesma forma na próxima ocasião.

E vai haver uma próxima ocasião, evidentemente. Esta esteve longe de ser a primeira, quer em Portugal quer noutras paragens. Em Inglaterra, por exemplo, esta tem sido uma temporada de recordes no que diz respeito a incidentes racistas contra jogadores. Não será tão estranho como isso, afinal. Vivemos tempos em que a alarvidade da violência racista – e machista, já agora – vai ganhando peso e representação institucional, com cada vez menor dissimulação da linguagem e dos comportamentos intimidatórios. Além de abjectos, estes actos constituem atropelos evidentes aos direitos humanos e crimes claramente definidos por lei. Vivemos tempos em que o autoritarismo e a violência sobre minorias se vêm legitimadas pelo discurso de presidentes, primeiros-ministros, deputados, presidentes de câmara, seja em Portugal, em Itália, em Inglaterra, nos Estados Unidos, na Bolívia ou no Brasil. Não pode haver tréguas, por parte dos que queremos estar do lado de cá da democracia, no combate politicamente correcto a esta recuperação do fascismo: não é com diálogo, é com o dedo do meio devidamente em riste.

21 Fev 2020

Chave na ignição

[dropcap]O[/dropcap]s sinais são positivos. Ausência de novos casos há mais de uma quinzena. Jardins parcialmente abertos. Mais movimento. Casinos de volta à vida. Admito que, ao contrário do que esperava, ver novamente as luzes dos casinos acesas dá algum alento, apesar de não ter vontade (nunca tive) de fazer apostas. No entanto o sentimento é agridoce.

Na rua, os altifalantes continuam a pregar apelos para evitar concentrações e ficar em casa sempre que possível. As grades de muitos estabelecimentos continuam em baixo e atrás delas não é difícil imaginar algumas histórias trágicas, derivadas da ausência de negócio. Não tenho dúvida que daqui a alguns anos vamos voltar a falar dos dias que estamos a viver e da forma como se deu a volta à situação e o que mudou numa cidade, que talvez nunca mais vai voltar a ser mesma e que, como disse até o empresário Jorge Neto Valente, sofreu danos irrecuperáveis a nível económico.

Vejamos agora como é que Macau e as suas pessoas irão acolher as inúmeras ondas de choque desta crise, que só agora estão a chegar e deverão fazer vir ao de cima todo o tipo dificuldades, mesmo a nível pessoal, económico ou familiar. Não há receitas certas e mesmo as boas ideias para solucionar problemas podem dar errado mas, pelo menos, há boa vontade e parece começar a haver algum alento, pelo menos, para recomeçar em algumas frentes. Acredito que o motor ainda não começou a andar mas pelo menos a chave já está na ignição. Veremos agora se chega a hora de a rodar ou voltar a tirar para esperar mais um pouco.

21 Fev 2020

Rins e morcegos

[dropcap]É[/dropcap] triste ouvir, por estes dias, em Portugal, as maiores barbaridades sobre o novo coronavírus e os hábitos alimentares dos chineses. Há quem pense que, por entrar numa “loja de chineses” e experimentar roupas e sapatos que fica infectado com o Covid-19.

Por toda a parte se ouve “ai, eu agora entrar nos chineses, nem pensar! Ainda me pegam o vírus”. E quando tentamos explicar como o vírus se transmite, ignoram-nos e duvidam do que dizemos. É gritante a desinformação e a falta de interesse em saber a verdadeira origem deste problema. Os portugueses também estão a deixar de ir a restaurantes chineses por pensarem que, por comer o crepe chinês ou o arroz chau chau (a falsa comida chinesa, como todos sabemos) ficam infectados.

E no campo dos hábitos alimentares, recordo-me das palavras que o artista José Drummond, a residir em Xangai, escreveu na sua página de Facebook. Nós, portugueses, comemos rins e coração de porco como petisco a acompanhar uma cerveja, lampreia, tripas à moda do Porto, pés de porco de coentrada e pratos onde usamos o sangue do porco acabado de matar. Eu não como, porque sempre odiei.

Ok, não comemos cobras, morcegos ou pangolins porque não faz parte dos nossos hábitos europeus. Devemos pensar em nós, primeiro, antes de criticarmos o outro só porque é para nós um corpo estranho e vive a milhares de quilómetros. A comunidade chinesa em Portugal e no mundo necessita, por estes dias, de muita solidariedade e apoio face à discriminação de que é alvo.

20 Fev 2020

O COVID-19 e a economia global

“A virus is more powerful in creating political, social and economic upheaval than any terrorist attack.”
Tedros Adhanom Ghebreyesus
Director-General of the World Health Organization

 

[dropcap]O[/dropcap] COVID-19, declarado “Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII na sigla em língua inglesa), a 30 de Janeiro de 2020 pela “Organização Mundial de Saúde (OMS)” tinha até 17 de Fevereiro de 2020, tinha infectado cerca de setenta e uma mil e trezentas e vinte e seis pessoas, continuando o seu número a aumentar diariamente, a grande maioria delas na China, tendo matado mais de mil e setecentas e setenta e cinco pessoas, tendo sido curadas dez mil e seiscentas e dez pessoas e espalhou-se por quase 30 países. Dada a enorme importância da China para a economia global, o efeito de propagação poderá ser agitado e duradouro. A China é demasiado importante para a economia global, dado o seu extraordinário crescimento económico nos últimos quarenta anos, que a tornou na segunda maior economia mundial, com um PIB de treze triliões e seiscentos mil milhões de dólares comparados com o PIB dos Estados Unidos de vinte triliões e quinhentos mil milhões de dólares.

O crescimento anual de 7 por cento ou superior, muito além da capacidade das economias desenvolvidas tornou-se a regra. A China alcançou esta posição ao suplantar os Estados Unidos como o sustentáculo do comércio global. A China é o maior negociante de mercadorias do mundo, e está rapidamente a alcançar os Estados Unidos em serviços comerciais após um ímpeto de crescimento de 18 por cento em 2018. A longa prática de fornecimento de componentes e dispositivos electrónicos de empresas chinesas, e o vasto e crescente mercado interno do país, tem encorajado milhares de empresas estrangeiras a abrirem as suas fábricas e lojas no país, e a juntarem-se às redes de distribuição locais.

A China também é fulcral para uma gama diversificada de cadeias de abastecimento global, pois grande parte das matérias-primas do mundo viaja para a China antes de ser transformada num produto manufacturado. A guerra de 2019 com os Estados Unidos sobre as tarifas de importação de bens no valor de milhares de milhões de dólares ilustrou o poder da economia chinesa para abalar as previsões globais. A maioria das indústrias na China fechou durante duas semanas devido ao ano novo lunar e não se esperava que a maioria das fábricas reatassem a actividade novamente até ao dia 9 de Fevereiro de 2020 e muitas protelaram a sua abertura até 14 de Fevereiro de 2020 como precaução, uma vez que dezenas de milhões de pessoas permaneceram fechadas em dezenas de cidades de todo o país.

Os fabricantes de automóveis estão a fechar as fábricas, as portas de cafeterias estão encerradas e os portos estão muito mais silenciosos do que o habitual. Sabe-se que as pequenas e médias empresas, que operam com contratos de curto prazo e apenas com pequenas reservas financeiras e físicas, estão com problemas. Os relatórios de regiões do cinturão fabril central da China falam de criadores de gado a esgotarem as reservas de rações. A cidade de Wuhan, com cerca de onze milhões de habitantes e centro do surto, é um grande centro industrial regional, sendo uma engrenagem importante na indústria automóvel e um magnete para as empresas estrangeiras. É a terceira maior base educacional e científica da China, com duas das dez principais universidades. É impossível pensar que semanas de paralisação não terão um impacto considerável na produção económica.

O presidente Xi Jinping, reconheceu tal facto, e em resposta, as autoridades redobraram os esforços para apoiar a economia, diminuindo ou eliminando tarifas sobre as importações dos Estados Unidos e tornando os empréstimos mais baratos para as empresas e consumidores. A economia chinesa cresceu 6 por cento em 2019, conforme relatado pela autoridade oficial de estatísticas do país, sendo a taxa mais baixa em quase trinta anos e uma grande queda em relação aos 10,2 por cento alcançados em 2010. Havia esperanças de que 2020 seria um período de recuperação, após uma prolongada guerra comercial durante 2019 com a administração Trump. O COVID-19 torna essa possibilidade improvável. A maioria dos analistas ainda prevê um crescimento acima de 5 por cento para a economia chinesa, com base no que é conhecido até agora sobre a propagação do vírus, e o provável impacto sobre os consumidores, empresas e governo.

O cenário parece no momento sombrio sem se saber qual o hospedeiro animal transmissor do vírus ao ser humano e o tratamento e cura das dezenas de milhares de infectados. A possibilidade da descoberta de uma vacina levaria cerca de dezoito meses. A Academia Chinesa de Ciências Sociais da China acredita ainda que o crescimento do PIB no primeiro trimestre de 2020 pode ser de cerca de 5 por cento, não podendo descartar a possibilidade de ser menor. Há quem sustente que a taxa de crescimento real da China para 2019 foi provavelmente muito próxima de 3,7 por cento e em 2020 será inferior. O pior cenário pode ser a contracção económica. É importante notar que os investidores que esperam uma recuperação decisiva quando o surto for contido, provavelmente ficarão desapontados.

É de realçar o enorme saldo de dívidas incobráveis que assola as indústrias estatais da China, que estão a envelhecer, como um obstáculo ao crescimento ao longo de vários anos. O banco central da China começou a injectar fundos extra na economia para manter os empréstimos enquanto o vírus se instala, principalmente para impulsionar o investimento empresarial, mas estes fundos, embora sejam baratos e abundantes, são usados principalmente para evitar a falência de empresas “zombie” que representam 13 por cento das empresas mundiais, e assim denominadas por terem um baixo nível de rentabilidade e cuja única forma de sobreviverem é refinanciando a sua dívida quantas vezes for necessário, mesmo se essa operação for mais prejudicial que a dissolução das mesmas empresas.

Adentro deste cenário quais são as indústrias mais vulneráveis? Os primeiros sectores a serem recuperados do surto será o sector do turismo e serão as indústrias de viagens e turismo, que geralmente desfrutaram apesar de tudo de um crescimento acentuado em 2019. Os voos cancelados e as reservas de hotéis na China e na região da Ásia, que depende dos turistas chineses, seguiram a restrição das viagens de e para as grandes cidades da cintura central da China e até mesmo do continente para Hong Kong e Macau. As companhias aéreas reduziram os seus serviços e por exemplo a Cathay Pacific planeia diminuir o número de voos em um terço nas próximas semanas e tem encorajado o pessoal a tirar semanas de férias não remuneradas de duvidosa legalidade. O número de passageiros diminui 55 por cento em comparação com o período lunar do ano novo em 2019. Os turistas chineses passam muito tempo em países asiáticos e o custo das restrições de viagens serão sentidos em toda a região. Se a crise persistir, o efeito global será palpável.

Os chineses fizeram cento e setenta e três milhões de visitas de Setembro de 2018 a Setembro de 2019 e gastaram mais duzentos e cinquenta milhares de milhões de dólares, mais do que qualquer outro país. As cadeias inteiras de abastecimento, como a automóvel, electrónica e industrial estão a começar a gemer. As companhias de navegação relatam uma queda acentuada no volume de contentores. A China também tem um enorme mercado doméstico para o retalho, alimentos e bebidas e um indicador atingiu uma profunda derrapagem, em parte como resultado do vírus, que foi o preço do grão do café que caiu 20 por cento. A Starbucks tem quatro mil pontos de venda na China e mais de metade foram encerrados pelo surto. Quanto ao mercado de acções e outros indicadores-chave, os mercados de acções asiáticos sofreram turbulência na primeira semana de Fevereiro de 2020, por causa de uma queda no retalho, serviços ao consumidor e negócios de transporte, antes de recuperarem devido à esperança de que o surto do vírus pudesse ser contido.

Os mercados ocidentais em grande parte seguiram o mesmo exemplo. Os preços do petróleo também estiveram sob pressão, devido à expectativa de um abrandamento da procura global, assim como outras matérias-primas. A China é o maior importador mundial de petróleo bruto e também um grande consumidor de metais como o cobre e o minério de ferro. As empresas de viagens, fabricantes de automóveis e lojas de produtos de luxo estavam entre os sectores mais voláteis. Quanto ao provável custo económico quanto comparado com a situação semelhante anterior, revela que em 2002-2003, a “Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS na sigla em língua inglesa) espalhou-se praticamente sem controlo por trinta e sete países, causando o pânico global, infectando mais de oito mil pessoas e matando cerca de oitocentas pessoas.

É de recordar que as estimativas atribuíram os danos da SARS entre os trinta e os cinquenta mil milhões de dólares e que apesar de serem grandes números, foram uma gota no oceano em comparação com o PIB global que, mesmo assim, valia cerca de trinta e cinco triliões de dólares. O COVID-19 está a espalhar-se a um ritmo seis vezes mais rápido que o de SARS, principalmente através do contacto humano entre pessoas que ainda não apresentam sintomas. A China é uma economia muito mais aberta do que era em 2002, e por isso é de esperar que a perturbação seja maior do que a causada pela SARS. É de prever que muitas empresas sejam afectadas por uma recessão na China, pois imensas empresas globais dependem de fornecedores sediados na China, como por exemplo, duzentos e noventa dos oitocentos fornecedores da Apple, e o país é responsável por 9 por cento da produção global de televisões. É de recordar que 50 por cento de toda a fabricação em Wuhan está relacionada com a indústria automóvel e 25 por cento com suprimentos de tecnologia da região.

Os líderes da indústria automóvel da Europa e dos Estados Unidos têm apenas peças para umas semanas. A Hyundai cessou as actividades na Coreia do Sul devido à falta de peças provenientes da China. Apenas para indicar a integração de algumas empresas estrangeiras na China, a fabricante americana de vidro industrial e cerâmica Corning Inc., com mais de cento e sessenta e cinco anos, que combinou a sua incomparável experiência em ciência do vidro, cerâmica e física óptica com profundas capacidades de fabricação e engenharia para desenvolver inovações e produtos que alteram o estilo de vida, construiu dezanove fábricas em todo o país e tem mais de cinco mil trabalhadores chineses. A empresa está a planear aumentar a sua presença depois de ter dispendido um milhar de milhão de dólares em uma instalação para produzir a sua última geração de dez polegadas e meia em vidro preto usado para painéis LCD.

A Apple é fornecida a partir de fábricas na China e tem uma rede de quarenta e nove lojas e escritórios que permaneceram encerrados até 9 de Fevereiro de 2020, bem como outros retalhistas americanos, como a Starbucks com quatro mil e duzentas lojas e a Levi’s que encerrou metade das suas lojas e o país represente apenas 3 por cento das suas vendas globais. O Sudeste Asiático é o mais atingido, daí que as economias locais estão fortemente ligadas ao gigante chinês. É de recordar que a pior crise financeira do pós-guerra asiático, em 1997-1998, foi parcialmente atribuída à desvalorização da moeda chinesa. O Japão pode ser uma economia mais rica, mas também será afectada. A China é um grande comprador de máquinas industriais, carros e camiões e dos bens de consumo tecnologicamente avançados do Japão. As peças de fabrico chinês alimentam as fábricas japonesas com componentes e há que considerar os milhões de turistas chineses que visitam o seu vizinho oriental todos os anos.

O Japão prepara-se para o cancelamento de viagens de quatrocentos mil turistas chineses no primeiro trimestre de 2020. A economia australiana também está estreitamente interligada com a China, e a situação terá um peso real na economia. As universidades australianas estão a sofrer porque muito menos estudantes chineses retornaram para se matricular no novo ano académico. O Reino Unido, tal como outros países europeus, está em posição de limitar o fluxo de visitantes chineses com um enorme impacto na economia, embora os centros comerciais de “design”, como os da cidade de Bicester sofram uma forte queda se os visitantes chineses permanecerem afastados por algum tempo. O impacto mais amplo será sentido se o comércio global, como esperado, começar a abrandar. O Reino Unido está ligado a todas as grandes economias e por essa razão sempre se constipa quando a economia global espirra e principalmente a chinesa como locomotiva da globalização económica. A indústria manufatureira britânica entrou em recessão em 2019, em resposta à guerra tarifária entre os Estados Unidos e a China, que atingiu o comércio global.

Será que poderia descarrilar a economia dos Estados Unidos, o suficiente para afectar as eleições deste outono?
Há provas anedóticas de que o impacto do vírus está a espalhar-se pelas pequenas empresas americanas. As empresas americanas podem ter dificuldade no acesso a componentes para os seus produtos manufacturados, enviando um sector da manufactura em recuperação, de volta à longa recessão que sofreu em 2019. O encerramento de fábricas nos estados de Ohio e Pensilvânia pode causar problemas à campanha de reeleição de Donald Trump, que depende muito da criação de empregos industriais nesses estados, mas Novembro de 2020 ainda está a nove meses de distância, e ainda é difícil dizer se os efeitos do COVID-19 vão durar tanto tempo. Qual seria na realidade o impacto na economia global?

As previsões cautelosas é de cerca de 0,3 por cento de diminuição do crescimento global, embora deva permanecer à volta dos 3 por cento. As previsões mais sombrias, alertam se o vírus continuar a espalhar-se e a actividade chinesa permanecer profundamente perturbada durante meses, uma contracção da economia global é possível, particularmente porque os bancos centrais têm poucas provisões monetárias eficazes para emergências. Há o risco de que um mecanismo de “feedback” adverso e um espaço limitado para resposta política, poderia empurrar a economia global para a recessão. Mais que os danos económicos é preciso pensar nos incalculáveis danos sociais que está a criar.

O COVID-19 é um nome para a doença, não para o vírus que a causa, que tinha um apelido temporário de “2019-nCoV”, significando que era um novo coronavírus que surgiu em 2019. Mas o patógeno também recebeu uma nova designação, sendo que o vírus é uma variante do coronavírus que causou o surto da SARS e por isso foi designado o novo “coronavírus 2” relacionado à síndrome respiratória aguda grave do patógeno, ou “SARS-CoV-2”. Todavia, esse não é um nome com o qual a OMS se sentisse feliz. Assim, do ponto de vista das comunicações de risco, o uso do nome SARS podia ter consequências indesejadas em termos de criar medo desnecessário para algumas populações, especialmente na Ásia, que foi mais afectada pelo surto de SARS em 2003 e por esse motivo e outros, nas comunicações públicas, a OMS passou a referir-se ao “vírus responsável pelo COVID-19” ou “ao vírus COVID-19”, mas nenhuma dessas designações pretende substituir o nome oficial do vírus. A sequência genética que tinham dos vírus da SARS e do “Síndroma Respiratória do Oriente Médio (MERS-CoV) parece revelar que são da mesma família do coronavírus e muito semelhantes. O objectivo será identificar proteínas que facilitam a entrada do vírus na célula.

Os estudos até ao momento realizados mostraram que a estrutura terciária do isolado de poliproteína “COVID-19 _HKU-SZ-001_2020” tinha 98,94 por cento de identidade com “SARS-Coronavírus NSP12” ligado a co-factores “NSP7 e NSP8”. A comunidade científica não conseguiu produzir uma vacina e um tratamento eficaz para os dois primeiros coronavírus, mesmo que um novo surto dos mesmos pudesse ter surgido e sem contar com as mutações que possam sofrer. Imobilismo científico ou outros obscuros interesses? Alguns medicamentos são testados contra o coronavírus. Estão a ser usadas para tratamento drogas experimentais inicialmente desenvolvidas contra a SARS e outros coronavírus, e até mesmo um medicamento usado no tratamento do HIV.

20 Fev 2020

Dia-V

[dropcap]N[/dropcap]os Estados Unidos, o dia de São Valentim de 2020 foi o mais consumista de todos com um gasto de 27.4 mil milhões de dólares. Houve mais jantares, mais presentes, mais dinheiro gasto. Mais amor consumista que se espalhou. Amor é amor. Mas o Dia V pode referir-se a outras coisas.

No Dia-V o mundo também se chateia com a violência contra as mulheres e raparigas. Assédio, violação e mutilação genital feminina. No dia do amor e dos namorados aproveita-se para falar de coisas sérias. E há quem estique a discussão para a violência no namoro em particular, já que é o dia de se celebrar a relação amorosa. O amor é tão inequivocamente claro nas campanhas de marketing. Ninguém imaginaria que com ele também vem outro pacote de emoções e dificuldades que são difíceis de ser identificadas. Por vezes, e infelizmente, o amor é confundido com formas de violência, abuso e controlo. Ainda há pouco tempo decidi ver uma série romântica chinesa onde o amor obsessivo e controlador era de alguma forma legitimado. Um homem cheio de dinheiro faz uma miúda acreditar que ela tem leucemia e que ele é o único dador compatível para se aproximarem. De alguma forma isto foi entendido – depois de alguma zanga – como um gesto romântico. O amor é assim, faz-nos fazer coisas incompreensíveis, como às vezes nos querem fazer acreditar: ‘sempre para o bem do outro’. Amor bem-intencionado, era como se chamava a série em inglês.

As estatísticas sobre a violência no namoro continuam más. A UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) em Portugal fez um inquérito onde 67% dos inquiridos naturalizavam alguma forma de violência no namoro e também onde 58% identificou já ter sofrido alguma forma de abuso. É muito. E como é que se identifica o abuso? Há o erro de pensar que as relações de antigamente é que estavam cheias destas confusões, de papéis de género ultrapassados, do tapa na cara quando o jantar não está pronto a tempo e horas. O amor destas gentes jovens e emancipadas pode não ser ultrapassado, mas carrega alguns legados que são traduzidos para as práticas sociais contemporâneas. Um novo milénio de telemóveis e híper-conectividade que em vez de libertar criou outras formas sofisticadas de controlo e de abuso. Sempre com o pretexto que o amor é bem-intencionado.

Há quem entenda o Dia-V como o dia da vagina, se quiserem ainda o tom reivindicativo, mas menos violento. Um dia para o amor próprio para quem tem vaginas (que não precisa de ser necessariamente uma mulher, já cobrimos isso) e para quem não tem e que se identifica com a causa. Todas as vaginas precisam de uma dedicada atenção se quiserem atingir o seu potencial máximo. Vaginas de dinâmicas complicadas, onde é ainda difícil falar do prazer e de saúde. Onde se possa discutir as menstruações porque são um símbolo de transformação corporal que muitos preferem ignorar (em alguns países do mundo pessoas a menstruar têm que ser isoladas de tudo). Tantos direitos ainda por serem garantidos por esse mundo de gentes com vaginas menstruantes.

Os dias especiais podem ser apropriados para re-significações importantes. No dia catorze de fevereiro, mergulhar na loucura de honrar namoros perfeitos com jantares perfeitos em restaurantes perfeitos é tão antiquado. Celebrar o amor, claro, e discutir abertamente as suas dinâmicas que vão desde à forma como se entende o sexo e o género às suas relações de poder. Discutir o amor até que nos sintamos confortáveis para praticá-lo nas suas formas relacionais, sociais e políticas.

19 Fev 2020

Malabarismos calculados

[dropcap]A[/dropcap] dupla tomada de posição do Governo no que diz respeito à reabertura dos casinos e a obrigatoriedade de quarentena para trabalhadores não residentes provenientes do Interior da China é tão surpreendente quanto, à partida, incoerente.

Lei Wai Nong justificou a aparente incoerência de reabrir casinos numa altura em que se continua a pedir que a população fique em casa e que atravessar fronteiras passa a ser mais difícil, com a procura de um “ponto de equilíbrio” que tenta colocar nos pratos da balança, a segurança da população, saúde económica e o bem-estar social possível, permitindo que milhares de trabalhadores voltem a trabalhar e a receber salário.

Depois de superada a primeira batalha ao nível da prevenção, acredito que o Governo da RAEM está claramente a tomar os seus riscos para tentar sair ainda mais por cima, da crise provocada pelo novo coronavírus.

No entanto, um risco é sempre um risco e apesar de este até ser, à partida, calculado (quem serão os clientes dos casinos depois do reforço das medidas nas fronteiras?), o próprio Governo já admitiu voltar atrás “caso haja algum incidente”.

Espero sinceramente que, nesta fase de aparente estabilização da situação clínica relativa ao coronavírus em Macau, este não seja um passo maior que a perna. Sobretudo, quando a medida de quarentena obrigatória de entrada no território não abrange (para já) nem residentes nem turistas, cidadãos esses imunes a qualquer vírus.

19 Fev 2020

Vulnerabilidades

[dropcap]N[/dropcap]ão sou especialista em saúde, nem tenho intenções de ser. Contudo, se virmos a taxa de mortalidade do COVID-19 em Wuhan e fora da província de Hubei parece muito claro que as mortes se devem mais à falência do sistema de saúde local do que à mortalidade da doença. As imagens de uma mãe que tentava levar a filha aos tratamentos para a leucemia em Hubei mostra como a saúde faliu na província.

Este aspecto por si só devia ser uma grande lição para o Interior, que espero que tire as ilações devidas, mas também para Macau. A resposta do Governo de Ho Iat Seng tem sido justamente elogiada. Mas se tivesse surgido um surto local teria o sistema de saúde de Macau capacidade de resposta? Respondo com um redondo não.

No início, o número de camas para isolamento rondava as 350, o que é alarmante. É chocante como uma região tão traumatizada com a SARS não tem melhores equipamentos para as doenças infecto-contagiosas.

Mas não é surpreendente. Chui Sai On foi uma nulidade que teve sorte de governar num período em que o dinheiro nunca parou de entrar. No entanto, em questões de segurança da população fez zero. Em relação aos tufões foi preciso acabar a sorte e morrerem 10 pessoas com o Hato para criar um mecanismo de resposta adequado.

Na saúde aconteceu o mesmo. Em dez anos não conseguiu terminar um hospital, nem um centro de doenças infecto-contagiosas, o que nos deixa a todos numa posição vulnerável. Resta-nos esperar que a RAEM continue a ser protegida pela sorte nos próximos meses e o Governo de Ho corrija as vulnerabilidades deixadas por Chui. Chega de jogar à roleta russa com a segurança da população.

18 Fev 2020

Regresso ao trabalho

[dropcap]A[/dropcap] melhor notícia que tivemos esta semana foi a ausência de novos casos de coronavírus em Macau. Esta notícia confirma que até agora não fomos atingidos pela epidemia. Numa cidade pequena e densamente povoada como Macau, um surto epidémico seria muito perigoso.

A questão fundamental é como manter Macau saudável. É sabido que o vírus se transmite pelo ar. Se conseguirmos eliminar o contacto entre as pessoas, a transmissão do vírus terminará. Para evitar as concentrações, os departamentos governamentais reduziram ao máximo a prestação de serviços, as empresas interromperam as suas actividades e os estudantes ficaram em casa. Há alguns dias, o Governo de Macau aconselhou a população a não se deslocar ao Fai Chi Kei para comprar máscaras, de forma a evitar a permanência de muitas pessoas no mesmo local. Todas estas medidas tiveram como objectivo impedir a concentração pessoas, de forma a eliminar as condições que permitem a transmissão do vírus.

Os funcionários públicos voltaram ao trabalho esta segunda-feira. A reabertura dos serviços públicos vai fazer-se de forma faseada. Em certos casos, alguns serviços só reabrem ao público mais tarde. A população deverá compreender e aceitar estas decisões.

O regresso gradual dos funcionários públicos implicará a retoma gradual da actividade empresarial. As empresas precisam dos seus empregados. Em Macau, existem mais de 100.000 trabalhadores estrangeiros.

No entanto, muitos deles regressaram à China durante os feriados do Ano Novo chinês. Como é sabido, a China continental está em estado de alerta e foi implementado o controlo de fronteiras. Para estes trabalhadores é, para já, impossível o regresso a Macau. Pode daqui deduzir-se que as empresas que os empregam irão ser afectadas. Posto isto, esperamos que os empregadores compreendam esta situação, bem com os colegas que certamente irão ficar sobrecarregados de trabalho. Todos temos de ser tolerantes.

O regresso às aulas só acontecerá após a normalização dos serviços e da actividade empresarial, por não ser uma urgência imediata. Como é natural, quando as pessoas voltarem ao trabalho, as multidões regressarão às ruas. Se, mesmo nestas circunstâncias, não se registarem novos casos de infecção viral, os estudantes poderão voltar às aulas. Desta forma protegemos ao máximo a saúde dos jovens e das crianças.

É necessário ser paciente para aguardar o regresso da normalidade. O tempo de espera é tempo perdido. Os exames foram adiados, as receitas das empresas diminuíram e os serviços públicos estão suspensos, durante este período de espera. Todos são afectados. Por causa desta paragem, o Governo vai injectar 20 mil milhões de patacas na economia da cidade, para aliviar temporariamente os danos causados.

A retoma dos serviços públicos, da actividade comercial e das aulas, é importante, mas a saúde da população de Macau também o é. Não nos devemos precipitar no regresso à normalidade. É importante seguir à risca os conselhos dos profissionais de saúde. Quando os médicos forem de opinião que o risco de transmissão do vírus está ultrapassado, então será altura de tudo voltar ao que era, e isso será o que de melhor podemos esperar para Macau.

 

Consultor Jurídico da Associação Para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

18 Fev 2020

Coragem ou lá o que é isso

[dropcap]O[/dropcap] medo é um veneno que se intromete nos corações e determina vontades e acções. Mas, como todos os venenos, o medo pode ser útil se usado em doses sóbrias. Platão admite que só os estúpidos não sentem medo pois não compreendem o que lhes ameaça a vida. A sua e a dos seus.

E define a coragem como a capacidade racional de enfrentar uma situação perigosa, pela análise comedida dos dados em questão e pela tomada de uma resolução que, no limite, salvaguarde o que para o sujeito existe de mais precioso: a sua vida, a sua família, o seu país… Portanto, a coragem não se define pela ausência de medo, mas pelo domínio racional desse mesmo medo, ele mesmo fundamental para o garante da sobrevivência.

Os chamados “bravos” não sentem medo porque não têm consciência e a isso não se chama coragem mas estupidez. Corajosos, para o grego dos ombros largos, serão os que, tendo consciência total do perigo, sentindo medo, são capazes de racionalizar a situação, superar as suas emoções e controlar as suas acções. Eu preferiria dizer que: a guerra ganha-se antes de sair de casa – para parafrasear liberalmente Mestre Sun.

17 Fev 2020

O ano do silêncio

[dropcap]D[/dropcap]urante a alvorada do Ano Novo chinês, o surto de pneumonia provocada pelo novo coronavírus em Wuhan alastrou-se a todo o país. Embora Macau não tenha fechado as fronteiras, o Governo da RAEM pede aos cidadãos que permaneçam em casa e que saiam apenas se for estritamente necessário.

As escolas estão encerradas, os departamentos oficiais reajustaram os horários de serviço, os casinos, os locais de entretenimento público e os recintos desportivos fecharam as portas e a única opção que resta aos residentes é ficar em casa.

A cidade tornou-se silenciosa; as Ruínas de São Paulo, normalmente habitadas por multidões ruidosas, estão agora em silêncio. Tenho estado em casa, onde passo a maior parte do tempo a navegar online e a acompanhar a par e passo as notícias relacionadas com a evolução da pneumonia. Tem surgido uma grande quantidade de video-clips e de publicações onde as pessoas manifestam a sua preocupação com a situação actual. Entre eles, houve um que me impressionou particularmente. Tem o título “Um Ano Novo muito silencioso” que nem sequer foi muito divulgado pelos média.

O video-clip, que tem a duração de quatro minutos, é narrado por alguém cuja voz imita a do Presidente Xi Jinping. Quando ouvi a frase “este Ano Novo chinês está muito silencioso” proferida numa voz familiar, admirei o talento do narrador. Para além de imitar a voz do Presidente, a mensagem é muito específica, repleta de palavras inspiradoras e de confiança na capacidade de vencermos a epidemia. Finalmente fala-nos de esperança, lembrando que “depois da tempestade vem a bonança”.

Mas será que a bonança vai chegar? Segundo as palavras de Zhong Nanshan, um consultor sénior chinês da área de saúde, vai levar pelo menos alguns meses até que isso aconteça. Até lá, para revitalizar a economia teremos de enfrentar enormes desafios. No entanto, se a causa do surto deste novo coronavírus não for identificada, outra tragédia, semelhante à que foi provocada pela Síndrome Severa Aguda Grave (SARS- sigla em inglês), será inevitável. O médico Li Wenliang, que alertou para a possibilidade desta epidemia se transformar numa ameaça semelhante à SARS, declarou que “revelar a verdade é mais importante do que reivindicá-la”. Li Wenliang veio a falecer, vítima deste novo vírus e a sua morte despertou a inquietação do público face à autodenominada transparência do Governo.

Num país repleto de câmaras de vigilância e de tecnologias sofisticadas de reconhecimento facial, os criminosos não têm onde se esconder. Além disso, o sistema de controlo fiscal implementado pelo Governo chinês expõe facilmente quem comete fraudes, sem, contudo, ser capaz de detectar os negócios ilegais que decorrem no Mercado de Mariscos de Huanan em Wuhan, e localizar a origem deste novo vírus de forma a controlar a sua propagação. No entanto empenha-se em manter sob vigilância quem dá os alertas. Não será esta uma questão a ponderar?

Independentemente de quaisquer considerações, a Província de Guangdong é a zona do país onde se consome mais carne de animais selvagens e o surto de SARS em 2003 foi também aí que surgiu. Macau tem uma “caverna de morcegos” em Ka-Ho na área de Coloane, onde se aloja uma vasta população destes animais, mas nunca aconteceu nada deste género na cidade. Diz-se que o surto desta pneumonia em Wuhan está relacionado com os morcegos, mas eu acredito que está muito mais dependente dos comportamentos humanos.

Passaram-se quarenta anos desde que Deng Xiaoping iniciou as reformas e abriu a China ao resto do mundo. A China, o gigante adormecido, acordou e fortaleceu-se. O plano original implicava o desenvolvimento da economia e do sistema político. No entanto, a concentração no desenvolvimento económico e a negligência em relação às reformas políticas originou inevitavelmente uma série de problemas.

O Dr. Li Wenliang lembrou ao povo chinês que uma sociedade saudável não pode ser dominada por “certos vícios”. Este novo ano, tão terrivelmente silencioso, dá-nos oportunidade de reflectir sobre a raiz dos problemas.

14 Fev 2020

Quando a porca torce o rabo 

[dropcap]É[/dropcap] em momentos de crise que se evidenciam talentos, capacidades ou mesmo fracassos. A crise causada pelo surto do coronavírus em Macau revelou algo que todos nós já sabíamos: que a diversificação económica pura e simplesmente não existe.

Com os casinos fechados, como estão as Pequenas e Médias Empresas? Às moscas e a definhar, com a corda ao pescoço. Onde param as lojas ligadas ao sector das indústrias culturais e criativas, uma das bandeiras políticas do Governo para diversificar a economia? Estão fechadas, também com dificuldades em manter as rendas e assegurar o negócio.

Investir em Macau é arriscado, porque basta um sopro de vento para não se conseguir aguentar uma renda. As coisas são muito voláteis e quem faz pequenos negócios não aguenta com as enormes pressões do mercado imobiliário, muito menos com os salários dos seus trabalhadores, o que gera também uma crise laboral. É uma bola de neve.

Cabe ao Governo alterar a lei laboral e a legislação relativa às rendas para que os diversos sectores consigam fluir de uma outra maneira. É preciso sair do século XX para finalmente cairmos no século XXI. Se os empresários e os proprietários deixarem.

14 Fev 2020

Crónica do saco

[dropcap]D[/dropcap]a China, sinais de desconforto. Yang Fude, Secretário do Partido Comunista chinês partilhou há dias, na conferência de imprensa do Centro Nacional de Saúde, algumas dicas para lidar emocionalmente com o isolamento e a pressão a que muitos estão expostos na cidade de Wuhan, devido ao surto do novo coronavírus.

O responsável afirmou que uma pessoa se sentirá muito mais relaxada depois de tirar alguns minutos para chorar num sítio resguardado. Isso e esmurrar um saco de areia, acrescentou. Com medo de ficar com o saco vazio parecem estar os habitantes de Hong Kong que têm desbastado as prateleiras do supermercado com uma sofreguidão atroz.

Por cá, em dias de relativa estabilização da situação clínica, onde não há registo de novos casos há, pelo menos, sete dias, a bolsa que começa a criar desconforto é a económica, a dar sinais de estar cada vez mais vazia, enquanto vai subsistindo a dúvida se o encerramento dos casinos é prolongado além dos 15 dias decretados pelo Governo.

Olhando para a situação de curto prazo, o cenário é preocupante para o negócio, com cada vez mais estabelecimentos a fechar portas e a encontrar dificuldades em pagar aos colaboradores. Outros sacos que têm criado animosidade por estes dias são os do lixo, após uma infeliz infografia do IAM que apelava ao ensino das empregadas domésticas para não mexer no lixo como forma de prevenção do coronavírus.

Com isto tudo, esperemos apenas que em tempos difíceis surjam soluções construtivas e ponderadas que dêem azo a mais do que apenas vontade de ir ali para o canto chorar. Alguém ainda se lembra da lei dos sacos de plástico?

13 Fev 2020

Bolas Ben-Wa

[dropcap]A[/dropcap]s bolas ben-wa são bolas vaginais que ajudam a fortalecer o pavilhão pélvico. Há muitos outros nomes para este utensílio à saúde sexual, como bolas chinesas, bolas de gueixas, bolas do amor, duotones, ou simplesmente bolas vaginais. Nas minhas pesquisas não consegui chegar a uma história muito aprofundada de onde estas bolas vieram e para que propósito. A versão mais citada é que foram inventadas no Japão, por volta de 500 DC, para aumentar o prazer dos homens que penetravam vaginas. Só depois é que se começou a conjecturar outras vantagens. Bolas que podem ser de vários tipos, feitios e pesos.

Quando as bolas já eram comuns no oriente, no mundo ocidental começou-se a falar nos exercícios Kegel no final dos anos 40, desenvolvidos para o tratamento de perdas urinárias no pós-parto, provocadas pela pouca tonificação muscular. O músculo é o pubococcígeo, o chão que sustenta todos os órgãos da zona, como o útero e a bexiga. O mesmo músculo que as bolas dizem tonificar. As pessoas que têm úteros passam por várias transformações ao longo do tempo que podem afectar o seu tónus. Mas isso não quer dizer que o fortalecimento do pubococcígeo seja só recomendado para quem já passou por momentos desafiantes, ou para quem teve um prolapso uterino, ou sofre de incontinência urinária. O fortalecimento muscular serve a todos os úteros e bexigas que se querem melhor apoiados e sentir mais prazer – e que tenham vontade de exercitar músculos que não se exercitam no ginásio.

As bolas são só um auxiliador para o programa de tonificação. Primeiro que tudo, é preciso comprar o apetrecho mais adequado a cada um. Nem todos os chamados sex toys são feitos com os materiais mais simpáticos para o corpo, nem mais higiénicos. É importante evitar materiais porosos para que não contribuam para o desenvolvimento de culturas bacterianas. O silicone é um bom material, de limpeza fácil.

Também há bolas de vários tamanhos ou pesos para diferentes níveis de tonificação. A recomendação é que se comece pelos mais leves e se vá progredindo para os mais pesados.

Ao inserir as bolas dentro da vagina (com ajuda de lubrificante) e se proceder com as suas rotinas diárias, o músculo irá naturalmente reagir às vibrações das bolas – que fará com que contraia ligeiramente e que se tonifique. O melhor será caminhar, correr, andar de um lado para outro enquanto as bolas estão inseridas – não mais do que meia-hora por dia. Nas primeiras vezes sugere-se experimentar em casa, caso a vagina ainda não seja capaz de segurar as bolas convenientemente e estas caírem pelas pernas abaixo (é muito normal se isso acontecer, com tempo e persistência isso irá mudar). Vários especialistas sugerem práticas diferentes, com o cuidado para não forçar em demasia. O mais importante é experimentar, analisar o nível de conforto, e fazê-lo com alguma regularidade. Há quem ainda sugira contracções particulares quando as bolas estão inseridas, para intensificar o exercício. Não faltam por aí indicações.

Não há uma clara evidência científica que as bolas são a melhor opção do que os clássicos exercícios Kegel. As bolas são um método mais ‘antigo’ que usa pesos, enquanto que os Kegel são um método sem a inserção de objectos na vagina. Ainda assim, um e outro têm sido recomendados pelas prováveis vantagens à saúde – na prevenção e tratamento. São os testemunhos individuais que ajudam a corroborar as potenciais vantagens – que vão para além do estado de saúde físico, claro. Não é por acaso que as bolas ben-wa são publicitadas como facilitadoras de orgasmos. Pavilhões pélvicos felizes, também provocam sexo feliz.

12 Fev 2020

Tentáculos do polvo

[dropcap]A[/dropcap] notícia publicada na edição de ontem neste jornal revela bem como funciona o Instituto para os Assuntos Municipais (IAM). Uma infografia que apelava a que as empregadas domésticas aprendessem a não mexer no lixo para não propagar a nova estirpe de coronavírus, como se fossem umas atrasadas mentais, estava a ser divulgada junto do Gabinete de Comunicação Social e o presidente do IAM, José Tavares, não só não sabia de nada como não concordava com o teor da mensagem, e bem.

Provou-se então que o IAM é um polvo com tentáculos, uma máquina administrativa bastante pesada que tem alguns dirigentes com pensamentos retrógrados e racistas, sem noção do que é comunicação política e cívica. Recordo-me de uma outra polémica, quando o ainda Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais divulgou uma mensagem de feliz ano novo em espanhol, sem a menor noção do ridículo, tendo em conta o facto que a língua portuguesa está sempre na agenda política em Macau.

A infografia já retirada do IAM é apenas um exemplo da xenofobia que permanece por estas bandas em relação aos trabalhadores não residentes, que são vítimas de discriminação e que têm sido sujeitos a condições de vida e de trabalho desumanas, que o coronavírus só veio piorar. Um dia alguém terá de dar o murro na mesa a favor destas minorias.

12 Fev 2020

Coincidências

[dropcap]N[/dropcap]o ano passado, ou há dois anos, uma menina de quatro anos foi três vezes com gripe ao hospital Kiang Wu. Foi sempre mandada para casa e na última vez ficou internada. Morreu devido a “complicações”. Há uma ou duas semanas, em pleno desenvolvimento da epidemia, uma das vítimas foi uma vez ao hospital público e enviada para casa. Depois, foi mais duas vezes ao Kiang Wu e mandada para casa. Finalmente, apresentou-se no Kiang Wu e pediu para ser internada. O pior confirmou-se e estava infectada.

A culpa? Da mulher, pois está claro, que não tinha dito aos médicos que tinha estado num hospital de Zhuhai. Agora, um grupo de trabalhadores sentindo que estavam a jogar roleta russa com as suas vidas apresentou um rol de queixas, inclusive sobre a falta de máscaras adequadas. Como reage o hospital? Garante que está tudo bem e pede que não se lancem “rumores”, apesar de admitir algumas falhas. E do lado do Governo? O normal.

O Kiang Wu é sempre um assunto tratado com pinças, para não se chatear quem tem poder. Em última análise a culpa é dos trabalhadores por virem a público porque deviam ter falado internamente, mesmo que já o tivessem feito sem resultados. O histórico de coincidências e “azares” acumula-se. No entanto, eu estou descansado e plenamente confiante, porque no dia em que acontecer algo grave que resulte numa ameaça à saúde pública vamos ouvir os responsáveis a dizer que “nada fazia prever” tal desfecho…

11 Fev 2020

Cerrar fileiras

[dropcap]E[/dropcap]ste é o meu primeiro artigo deste Novo Ano Chinês. Para todos vós vão os meus votos de felicidades e de muita saúde.

O surto do novo Coronavírus surgiu há cerca de três meses. Durante este período, vários países adoptaram diversas medidas de prevenção para combater a propagação da epidemia, esperando minimizar os seus efeitos. Macau encerrou as escolas por tempo indeterminado; os funcionários públicos podem trabalhar a partir de casa até dia 16 deste mês. Há poucos dias atrás, os casinos e locais de entretenimento da cidade foram fechados, e a maior parte das carreiras de autocarros acaba às 22.30. Estas medidas destinam-se a impedir a concentração de pessoas e evitar a propagação do vírus.

Actualmente, as ruas de Macau à noite estão desertas. A fervilhante vida nocturna desapareceu. Embora esta situação implique importantes prejuízos económicos, o Governo de Macau foi obrigado a tomar estas precauções para que todos nós possamos resistir à adversidade com sucesso.

As próprias pessoas evitam os contactos. Se possível, não vão trabalhar, não mandam as crianças à escola e quase não saem. Claro que a vida tem de continuar, por isso o isolamento não pode ser total, as pessoas isolam-se apenas na medida do possível. Este procedimento é o que cada um de nós pode fazer de melhor para combater a epidemia. Nesta altura, é muito importante que todos nós tenhamos um cuidado especial com a higiene pessoal. Devemos lavar as mãos com frequência, levantarmo-nos e deitarmo-nos cedo para manter o corpo saudável. Quem não tiver sintomas de gripe deve evitar os hospitais. O Governo tem de focar os seus recursos no tratamento dos doentes infectados pelo vírus. Ao adoptar estes comportamentos, estamos a ajudar o Governo, a nós próprios e aos outros.

Todos sabemos que ainda não se descobriu a vacina para neutralizar este vírus. Por enquanto, tudo o que o Governo pode fazer é implementar medidas que evitem a sua propagação. A cada cidadão compete cooperar, evitando o mais possível expor-se a contactos com terceiros e evitando adoecer. Se todos seguirmos à risca estas instruções, conseguiremos combater com sucesso esta epidemia.

Parte importante deste combate é travado pelos profissionais de saúde que se dedicam com entusiasmo a velar pelo bem-estar de todos nós. Há poucos dias soubemos que tinha havido um greve de profissionais de saúde em Hong Kong. A greve foi uma forma de exigir ao Governo de Hong Kong o fecho das fronteiras.

Estes profissionais salientaram de forma clara que se o Governo mantivesse as fronteiras abertas, os portadores do vírus entrariam em Hong Kong e o número de infectados iria disparar. Se esta situação se vier a verificar, o sistema de saúde irá colapsar e não vai haver profissionais em número suficiente para acudir aos doentes.

Todos nós sabemos, que o vírus surgiu em Wuhan. Depois disso, espalhou-se a muitas outras cidades da China. Não há dúvida de que o encerramento de fronteiras e o isolamento das zonas mais afectadas, pode reduzir o risco de propagação a outras comunidades. No entanto, com o intercâmbio que existe actualmente entre a China e Hong Kong, intensificado pelo facto de muitos hongkongers residirem em Shenzhen, devido ao elevado custo das casas em Hong Kong, as entradas e saídas são uma realidade do dia a dia. Se o fecho de fronteiras for implementado, como é que estas pessoas podem vir trabalhar? Mas, para além deste motivo, existem muitas outras razões que levam as pessoas a circular diariamente entre a China e Hong Kong. Com as fronteiras fechadas esta circulação deixa de ser possível. E que consequências podem daí advir? Sem falar nos produtos de primeira necessidade que Hong Kong importa da China. Mais uma vez, o fecho das fronteiras vai impedir este transporte. Quem traz estes produtos vai deixar de poder entrar em Hong Kong. Será isto viável?

Embora os profissionais de saúde tenham terminado a greve, este assunto merece ser avaliado em profundidade. Devemos interrogarmo-nos porque é que a greve durou cinco dias mesmo havendo todas estas questões a considerar.

 

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau
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Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
11 Fev 2020

Do Silêncio & outras Perversidades

[dropcap]É[/dropcap] bom o Silêncio que não nos trespassa, que unicamente sincopa as horas e as frases, mas não a pureza fúnebre de não ser, nada existir, viver de preces e ventos. São singulares as vozes dos ventos, de cada vento, de cada brisa, de cada corrente de ar, ainda que condicionado. Falam-nos, cantam-nos ao ouvido, ouvimo-los, rumorejam ou silvam, são um ritmo, uma melodia, por vezes toda uma canção, uma ária simples, um lieder lírico, obsceno. O canto do vento é uma metamorfose do Silêncio.

Mas nós somos feitos para o ruído, para enfrentar multidões, gregarismos cínicos, outros verdadeiros, inevitáveis. Somos compostos de botões e dedos alheios, precisamos deles como da ideia da peste, colada a esta pele, a fazer de matrix. O Silêncio só nos agrada sincopado, não constante ou pesadelo interminável.

Somos de ouvidos, de discursos, de músicas, de logos variados e de temas indiferentes. Por ouvir e tanto relata a dependência. Para matar o Silêncio. Nele dorme o monstro a que daria o nome de Pressentimento da Morte. Quando ele acorda, tudo se altera, tudo muda. Há que embalá-lo de volta ao seu sono silencioso e culpado.

10 Fev 2020

Do Silêncio & outras Perversidades

[dropcap]É[/dropcap] bom o Silêncio que não nos trespassa, que unicamente sincopa as horas e as frases, mas não a pureza fúnebre de não ser, nada existir, viver de preces e ventos. São singulares as vozes dos ventos, de cada vento, de cada brisa, de cada corrente de ar, ainda que condicionado. Falam-nos, cantam-nos ao ouvido, ouvimo-los, rumorejam ou silvam, são um ritmo, uma melodia, por vezes toda uma canção, uma ária simples, um lieder lírico, obsceno. O canto do vento é uma metamorfose do Silêncio.
Mas nós somos feitos para o ruído, para enfrentar multidões, gregarismos cínicos, outros verdadeiros, inevitáveis. Somos compostos de botões e dedos alheios, precisamos deles como da ideia da peste, colada a esta pele, a fazer de matrix. O Silêncio só nos agrada sincopado, não constante ou pesadelo interminável.
Somos de ouvidos, de discursos, de músicas, de logos variados e de temas indiferentes. Por ouvir e tanto relata a dependência. Para matar o Silêncio. Nele dorme o monstro a que daria o nome de Pressentimento da Morte. Quando ele acorda, tudo se altera, tudo muda. Há que embalá-lo de volta ao seu sono silencioso e culpado.

10 Fev 2020

Valores dúbios

[dropcap]N[/dropcap]os últimos dias tenho visto alguns trabalhadores dos Serviços de Saúde de Macau, a título pessoal nas redes sociais, a desvalorizarem a Pneumonia de Wuhan. Parece que o vírus da influenza é mais mortal e causa 40 mil mortes todos os anos nos Estados Unidos.

Como se não fosse suficiente ainda vêm falar de “manipulação” do Ocidente… Felizmente, depois de se reconhecer a dimensão do problema que temos em mãos, tanto o Governo Central como o Governo de Macau têm mostrado bem mais respeito pelos mortos, pelos infectados e pela população.

Estão à procura de soluções, apesar do enorme desafio. Mas não deixa de ser engraçado que pessoas que trabalham em serviços com tanta responsabilidade estejam mais focadas na política de agressão externa do que na população de Macau e da China. Numa fase tão complicada como a que atravessamos, que prioridades são estas? Acham que é assim que se tranquiliza a população com este discurso de ódio? Não percebo estes valores. Parece que para estes profissionais de saúde não importa que morram chineses, desde que morram mais americanos. São os nacionalistas de pacotilha, para quem o bem do país é secundário desde que o “Ocidente” esteja pior.

Finalmente, quero recordar Alexis Tam. Lutou pelo centro de doenças infecto-contagiosas e foi bloqueado pelos interesses locais. Ficou claro que era tão urgente quanto ele dizia. Defendeu a criminalização das pensões ilegais e o tempo deu-lhe razão. Quantos “turistas ilegais” de Wuhan estavam “escondidos” nesses viveiros de criminosos no NAPE e ZAPE sem que seja possível localizá-los? Pois…

7 Fev 2020

Lisboa tão boa

[dropcap]À[/dropcap]s vezes acontece mudar de cidade. Podem ser muitos os motivos e as circunstâncias, conhecido ou desconhecido o novo lugar, mais ou menos estimulante a expectativa em relação a um qualquer novo ciclo que se abre, mas certo é que há tarefas inevitáveis. Encontrar casa é, claro está, uma delas. Aconteceu-me agora, com algumas atribulações da vida em casal, nem sempre completamente sincronizada. Temporariamente só, como diz a canção, calha-me arrendar sozinho o espaço que me há-de acolher por uns breves meses, uma manifesta mas inevitável ineficiência da economia doméstica em terras japonesas. Fazem-se contas: vai ser um terço do meu ordenado líquido, mais coisa menos coisa, para pagar o aluguer de um pequeno espaço, confortável e solitário, numa cidade nova, desconhecida e aparentemente simpática. Em breve será melhor e voltaremos a ser dois, o espaço será maior e melhorará a economia: com uns 20% do nosso rendimento conjunto havemos de suportar esse custo inevitável que é o da habitação, essa necessidade básica dos seres humanos que em geral tem menos prioridade do que devia nas políticas públicas e mais especulação do que se devia admitir na regulação mercantil.

Comparo com notícias e estudos recentemente publicados que falam de Lisboa, onde mais de 50% do rendimento bruto das pessoas serve para suportar custos de habitação. Uma barbaridade, evidentemente, que um governante chegou mesmo a classificar como “crime de lesa-pátria”. Não toda a pátria, é bom de ver, porque há quem pague e quem receba, quem seja proprietário e quem seja inquilino, quem empreste dinheiro e quem pague juros. Também nos mercados de habitação se decide grande parte do grande jogo da redistribuição dos rendimentos no capitalismo moderno, dos salários de quem trabalha para as rendas de quem disponibiliza habitação ou para os lucros de quem oferece crédito. Num caso ou noutro, há muito mercado e pouca regulação pública.

A habitação é um caso evidente de injustificada sujeição das pessoas a injustas e brutais regras do mercado. Não só por constituir uma necessidade elementar, mas também porque pouco do investimento – e do talento – necessário à sua produção resultam, de facto, da livre iniciativa individual. Não é só construir um prédio e pô-lo à venda: há todo um processo de urbanização que envolve criação de infra-estruturas públicas para a circulação e mobilidade, distribuição e tratamento de água, fornecimento de energia, segurança, acesso aos serviços públicos de saúde, educação ou cultura que são essenciais à vida quotidiana. Há um largo número de equipamentos e serviços que requerem investimentos e planos públicos para ser possível o investimento privado. É por isso mais do que legítima a regulação deste mercado: na realidade, o contributo do “investidor” privado é relativamente pequena – e frequentemente não mais do que um comportamento especulativo para exploração do desespero de quem precisa de tecto.

A recente massificação do turismo urbano agravou o problema, naturalmente. Melhor ou pior, a oferta de habitação disponível nas cidades foi planeada em função de projeções para a evolução demográfica e condicionada pelas limitações públicas em expandir as infra-estruturas, equipamentos e serviços urbanos que suportam a criação de habitação. A possibilidade de essas habitações serem utilizadas para fins turísticos que se abriu com a generalização da utilização de plataformas digitais para este despropósito cria naturalmente uma situação de escassez que penaliza os residentes na proporção da atractividade da cidades: quanto mais espectacular a cidade, mais lixadas as pessoas que lá vivem.

É o caso de Lisboa, naturalmente. Uma cidade magnífica – e cada vez melhor – para quem a visita. Não sou lisboeta, mas ali vivi em diferentes períodos da minha vida. Lembro-me da cidade poluída e altamente congestionada do final dos anos 80, com uma baixa que se tornava quase deserta ao fim da tarde. Deu-se entretanto uma deslocação massiva para a periferia, subúrbios vários em crescimento acelerado, para onde se deslocaram famílias atraídas pelo crédito fácil e o início da expansão das redes metropolitanas de transportes públicos e privados. O financiamento bancário a esta mudança nos hábitos de habitação contribuiria decisivamente para a chamada “financeirização” da economia, o crescimento implacável do poder da finança, que haveria de dar no que deu. Entretanto, era o centro de Lisboa que começava a renovar, com os brilhantes mármores das sedes das instituições bancárias a pontuar a degradação dos edifícios devolutos que mais tarde se tornariam hotéis.

Esse processo de renovação urbana continuaria, com maior ou menor velocidade, estimulado também pelos grandes eventos que haviam de chegar – a Expo 98 e o Euro 2004 – e impulsionar novas redes de equipamentos e serviços, cada vez mais preocupados com aspetos da qualidade de vida urbana que ultrapassassem largamente as necessidades básicas de habitação e mobilidade eficientes. Aumentaram os espaços verdes, as áreas pedonais, as vias para bicicletas, os modos não-motorizados de transporte. Lisboa é hoje uma cidade que facilmente ultrapassa as melhores expectativas de quem a visita: limpa, eficiente, com mobilidade fácil, bonita, segura, com um impressionante património cultural material e imaterial, boa comida, ambientes amigáveis, bons preços, muitas e muito diversas alternativas para ocupar o tempo. Dificilmente há hoje cidade no planeta que ofereça melhor do que Lisboa a visitantes ávidos de novas “experiências” e “culturas” urbanas.

Retomo então o fio a esta meada: quem vive em Lisboa precisa de dedicar mais de metade do seu rendimento bruto aos custos de habitação. É uma brutalidade injusta (porque sobretudo beneficia especuladores improdutivos) e ineficiente (porque implica que o dinheiro gasto iniba outro tipo de consumos com efeitos multiplicadores mas interessantes sobre as economias). E é o resultado de uma política de renovação urbana desligada dos direitos dos cidadãos – e em particular do direito essencial à habitação. Sem essa ligação, não há melhores cidades: ainda que pareçam, elas excluem os direitos dos seus próprios residentes – excluem as suas pessoas. Deixo um exemplo de um plano de expansão urbana para 20.000 residentes que tive oportunidade de visitar recentemente em Helsínquia, lugar onde o Estado Providência ainda prevalece sobre a selvajaria dos mercados: amplos espaços verdes públicos, prioridade à mobilidade não motorizada, escolas e restantes serviços públicos dispostos de forma a que nenhuma criança tenha que atravessar uma única rua com automóveis para chegar às aulas. Tudo com construção e arquitectura mais que decentes e apenas 30% das casas vendidas no mercado. O restante destina-se a habitação social e cooperativas. Sem estes mecanismos, é possível haver cidades bonitas, eficientes e altamente atrativas. O que não é possível é que sejam para nós.

7 Fev 2020

Alterações climáticas e variabilidade climática

[dropcap]Q[/dropcap]uando nos debruçamos sobre as notícias referentes a fenómenos meteorológicos extremos podemos verificar que frequentemente os comentários tecidos por várias entidades, por vezes responsáveis governamentais e de organizações internacionais, atribuem essas ocorrências às alterações climáticas. Há que ter cuidado na apreciação das causas desses fenómenos na medida em que é frequente confundir-se variabilidade climática com alterações climáticas. São conceitos diferentes, mas facilmente confundíveis, na medida em que ambos se referem a modificações no comportamento do clima, embora em escalas temporais e espaciais diferentes. Vejamos como se distinguem, de acordo com a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (United Nations Framework Convention on Climate Change – UNFCCC).

Variabilidade climática, numa determinada região, consiste em variações do estado médio do clima em períodos relativamente curtos como um mês, uma estação ou um ano, enquanto que alterações climáticas se referem a variações estatisticamente significativas do estado médio do clima, que persistem por um período prolongado (décadas ou períodos mais longos) e abrangem regiões mais vastas. Por exemplo, a ocorrência de secas numa determinada região, com certa regularidade, poder-se-á atribuir à variabilidade climática. No entanto, se as secas ocorrerem mais frequentemente e se a tendência para a diminuição da precipitação se mantiver durante algumas décadas, poder-se-á pressupor de que se trata de uma alteração climática. A UNFCCC distingue, assim, a variabilidade climática, que atribui a causas naturais e perdura durante períodos relativamente curtos, das alterações climáticas que considera atribuíveis à atividade humana e se repercutem por muito mais tempo. São frequentemente atribuídas às alterações climáticas a maior frequência de fenómenos meteorológicos extremos, como ciclones tropicais de grande intensidade, períodos de seca mais longos e mais frequentes em algumas regiões e chuvas torrenciais noutras, etc.

Na realidade sempre ocorreram alterações do clima durante milhões de anos, desde que a atmosfera do nosso planeta se formou. Basta pensar que as glaciações e os períodos interglaciários foram resultado de milhares de anos de arrefecimento da atmosfera terrestre, alternando com longos períodos de aquecimento.

As causas das glaciações estão essencialmente relacionadas com os parâmetros orbitais da Terra, o que implica maior ou menor radiação solar que atinge o nosso planeta. A grande diferença entre essas alterações e as que ocorrem atualmente consiste no facto de as glaciações e os períodos interglaciários se arrastarem durante milhares de anos, enquanto que as alterações climáticas que atualmente se processam estão a ocorrer desde há relativamente pouco tempo e as suas causas são atribuídas à injeção de enormes quantidades de gases de efeito de estufa produzidos desde o início da era industrial, ou seja, há menos de duzentos anos.

Um fator importante que está na base de alguma variabilidade climática são as chamadas teleconexões, que consistem em ligações entre certos fenómenos que ocorrem na atmosfera ou no sistema atmosfera-oceanos, em algumas regiões do globo, e que causam alterações na circulação geral da atmosfera e, consequentemente, a ocorrência de fenómenos meteorológicos significativos em regiões distantes. Entre as teleconexões contam-se o “El Niño” e “La Niña”, que se referem, respetivamente, a aquecimento e arrefecimento anómalos da água do mar na região equatorial do Pacífico Sul, próximo do Peru. No caso do El-Niño, a água sobreaquecida aquece o ar que se lhe sobrepõe, provocando perturbação na circulação geral da atmosfera, o que é a causa de fenómenos meteorológicos significativos em regiões distantes. Por exemplo, durante o El-Niño, ocorrem secas no Nordeste brasileiro e chuvas intensas no sul do Brasil, enquanto que nas regiões do Sudeste asiático, onde se situa Macau, os meses de dezembro a maio são anormalmente mais chuvosos.

Pode não ser correta, por exemplo, a afirmação de que as alterações climáticas foram a causa de certos fenómenos meteorológicos extremos, como por exemplo o furacão Katrina (agosto de 2005) que causou cerca de 1.800 vítimas mortais nos EUA, ou o tufão Haiyan, que tirou a vida a mais de 7.000 filipinos, em novembro de 2013, ou até o tufão Hato, que afetou Macau em agosto de 2017.

Ocasionalmente, ocorre um acontecimento ou sequência de acontecimentos meteorológicos que nunca foram registados antes, como o furacão Catarina que atingiu o estado de Santa Catarina, no Brasil, em março de 2004, ou a temporada excecional de furacões no Atlântico Norte em 2005. O furacão Catarina foi, até à presente data, o único a ser detetado no Atlântico Sul, o que causou estranheza no meio científico ligado às ciências da Terra. Será que tais acontecimentos são manifestações das alterações climáticas ou tratar-se-ão de simples variabilidade natural do clima? Nem o IPCC poderá responder a esta pergunta, mas a realidade é que fenómenos meteorológicos extremos têm vindo a ocorrer com maior frequência, e em latitudes em que são raros ocorrerem. Esta série de acontecimentos incomuns, a tornar-se persistente, poderá sugerir uma muito provável alteração do clima. É o caso, por exemplo, de tempestades tropicais terem vindo a afetar com mais frequência os Açores, e até mesmo o continente português. Esta realidade fez com que Portugal tenha recentemente sido admitido como membro do Comité dos Furacões, com sede em Miami.

O aumento da frequência de fenómenos meteorológicos extremos e a sua ocorrência em regiões onde previamente eram raros levam-nos a acreditar que as alterações climáticas causadas pela ação antropogénica são altamente prováveis. Digo “altamente prováveis” porque é arriscado afirmar certeza absoluta quando se trata do comportamento de um sistema tão complexo como é o clima. Mesmo não havendo essa certeza, é absolutamente necessário que os governos tomem medidas para que se recorra cada vez mais às energias renováveis, na medida em que os combustíveis fósseis (petróleo, carvão mineral e gás natural) demoraram milhões de anos a se formarem e não são inesgotáveis. Ao ritmo cada vez mais acelerado a que são consumidos, tornar-se-ão cada vez mais escassos. Não apostar em alternativas é contribuir para que as gerações futuras encontrem um planeta cada vez menos sustentável. Apesar do protocolo de Quioto, em 1997, das vinte e cinco Conferências das Partes promovidas pela UNFCC e do acordo de Paris (2016), o consumo desses combustíveis não diminuiu.

Mesmo que as alterações climáticas não fossem uma realidade, o simples facto de a variabilidade climática ser inegável deveria fazer com que os governos de todos os países se empenhassem no incremento da utilização de energias renováveis. A menor exploração dos combustíveis fósseis seria uma benesse para o meio ambiente, evitando terríveis desastres como os que ocorreram com o derramamento de petróleo no Alasca devido ao naufrágio do petroleiro Exxon Valdez, em 1989; na costa da Galiza em 2002 com o naufrágio do petroleiro Prestige; no Golfo do México em 2010 devido a explosão numa plataforma de exploração petrolífera, etc.

É evidente que a política de descarbonização interfere com grandes interesses instalados e daí aparecerem dirigentes governamentais de alguns países que, para serem fiéis às forças que financiaram as respetivas campanhas eleitorais, insistem em remar contra esta grande maré que é a tomada de consciência de grande parte da humanidade.

6 Fev 2020

Ensaio sobre a cegueira

[dropcap]S[/dropcap]uspender a actividade do sector do jogo em Macau é uma medida que exige coragem e que demonstra, perante uma situação extraordinária como é a epidemia do novo coronavírus, que o Governo parece estar verdadeiramente a colocar a saúde e os interesses da população em primeiro lugar.

Para além do conteúdo, a forma desembaraçada (pelo menos) de Ho Iat Seng transmitir as medidas necessárias, passa uma imagem de frontalidade e transparência numa situação de crise. E isso é bom nos tempos que vivemos. O que já não é tão positivo é a “cegueira” de alguns que, em estado de pânico, acorreram aos supermercados, ainda o discurso do Chefe do Executivo não tinha terminado, para fazer precisamente o contrário dos apelos anunciados e da garantia dada, de que existem alimentos suficientes para assegurar o abastecimento da RAEM nas próximas semanas.

Como relatado em algumas passagens da obra de Saramago, muitas vezes, maior que o perigo em si de uma epidemia, pode ser o perigo despoletado por actos desesperados, onde reina o egoísmo e decisões extremadas, nunca antes ponderadas num contexto normal, deixando valores fundamentais para segundo plano e não contemplando, por exemplo, os interesses dos mais carenciados. Por isso, para o bem de todos, é preciso estar de olhos bem abertos. Até porque, ao contrário da epidemia romanciada em “Ensaio sobre a cegueira”, o coronavírus é uma epidemia que não impede ninguém de ir vendo o que se passa à sua volta.

6 Fev 2020

As lições do Hato 

[dropcap]A[/dropcap] passagem do tufão Hato por Macau deu-nos uma série de lições já muito analisadas, mas deixou também um sentimento de histeria colectiva de cada vez que há uma crise do género, seja uma tempestade tropical ou uma epidemia. Desta vez Macau já conta com dez casos de infecção pelo novo coronavírus e, com a decisão de encerrar os casinos por duas semanas, a população correu de imediato aos supermercados, tal não é o pânico de que o mundo termine amanhã e acabe o fornecimento de bens essenciais.

Esta histeria colectiva que se traduz na corrida aos supermercados em nada ajuda a manter a calma e, até certo ponto, não se justifica. Talvez não fosse má ideia as autoridades decretarem uma série de medidas para evitar que as pessoas esvaziem as prateleiras dos supermercados sem necessidade.

Aguardemos pelo desenrolar dos acontecimentos, que todos os dias ganham novos episódios algo preocupantes. Mesmo com a existência de dez casos no território e com a suspensão temporária das ligações de ferry, o alarmismo não é bom conselheiro. Cabe ao Governo de Macau tentar travar esta histeria colectiva com medidas que não passem apenas pela emissão de comunicados oficiais.

5 Fev 2020

Massagem nos genitais

[dropcap]O[/dropcap] sexo tântrico está mais na moda do nunca. Talvez porque as pessoas precisem de encontrar a sua criatividade sexual em algum lugar, e a tradição do sexo tântrico é tão boa como qualquer outra. Uma das actividades desta tradição milenar são as massagens nos genitais. A técnica é tão simples que se torna complexa. Ao contrário do que muitos acreditam, estas massagens não são uma nova forma de nomear a masturbação. A massagem na yoni e no lingam – os nomes em sânscrito para vagina e pénis – são formas de ligação sensual, sensorial, física e espiritual. A massagem não deve ser sexualizada, mas não é de admirar se assim se transformar.

Os ensinamentos do sexo tântrico exploram o relaxamento com o objectivo de criar uma ligação com o corpo. Por isso é que é importante ter a mesma atitude mental tal como se fosse uma massagem às costas. Só que esta é uma massagem centrada nos genitais, e em outras zonas circundantes e erógenas. A barriga, as coxas ou as ancas fazem parte do pacote. Estas podem ser auto-administradas ou administradas por outros.

Ambas as formas permitem a sensualidade do toque – despindo-se das expectativas clássicas e heteronormativas da masturbação ou do sexo, de algum tipo de penetração ou de um ‘final feliz’ com o orgasmo. A forma como a enfase está no processo da massagem e não na sexualidade, pode, na verdade, resultar em imenso prazer e num dos orgasmos mais intensos de sempre. É uma lógica complicada de prioridades, mas é assim que o nosso sexo funciona. A pressão para a performance assim ou assada não existe nestas massagens. A ligação com o corpo, com as sensações, e com o deixar-se levar pelo toque é que cria a disponibilidade para o orgasmo.

Estas massagens podem fazer parte do ritual de bem-estar individual e até colectivo – trabalhando na relação de seres e de corpos. Apesar de não existirem estudos que confirmem muitas das assumpções desta tradição, esta diz-se ter muitas vantagens para a saúde física dos genitais e para a saúde emocional. Da mesma forma que acumulamos tensão nos ombros, também se acumulam tensões, problemas e desafios nos genitais, e que se estendem pelo corpo todo. Diz quem pratica, que as massagens ajudam a manter a saúde do pavilhão pélvico, a compreender melhor a libido de cada um, a tratar casos de ejaculação precoce ou de impotência. Apesar de não existir evidência científica, não vejo que mal faria em experimentar e, quiçá, incluir estas massagens na rotina.

A recomendação é que as pessoas explorem à vontade, e que puxem pela criatividade nas formas de estimulação, fricção e toque (acompanhado por algumas técnicas de respiração). Cada um poderá explorar de acordo com o que lhe mais agradar, e também encontrarão inspiração nos artigos e vídeos alusivos ao tema. A inovação vem da re-interpretação dos genitais, não só como órgãos de sexo, mas como órgãos de sensibilidade. Fujam da tendência de massajar o clitóris de forma circular, ou de estimular o pénis para cima e para baixo. Lubrificantes ou óleos de massagem são extremamente importantes, e convém procurar os produtos com os quais se sintam confortáveis. Não ter medo de guardar um momento para explorar estas massagens quando se está sozinho, com o ambiente preparado para o efeito – velas, óleos ou música. E quando a dois, deixar massajar e ser massajado nestas outras formas de toque, permitindo uma nova relação de confiança e prazer.

5 Fev 2020