Hoje Macau VozesMimos anónimos [dropcap]O[/dropcap] almoço veio com uma maçã. Um fait-divers para muitos, mas não aqui. Na China come-se fruta, mas não para rematar refeições. Esta maçã teve um gosto especial. O gosto do mimo que vem do invisível. Um tantinho emocionada, passou-me pela cabeça que o primeiro som da palavra maçã em chinês é píng, o mesmo som de Paz. Sorri para mim própria como gostaria de o estar a fazer a quem me colocou aquela maçã em cima da caixa do caldo. Como de costume o saco do almoço foi deixado ao meio dia. Três batimentos e ouve-se o plástico a ser pousado no chão. Abro a porta. O funcionário já se dirige ao próximo quarto, vestido de verde. Olha para trás. Agradeço. O saquinho vem identificado com o número do quarto e um alerta simpático: “Veg”. Nem isso falha. Recebi um telefonema no segundo dia de estadia. “Quais são as suas preferências alimentares? Porco, vaca ou galinha?”. “Sou vegetariana” respondi. A refeição que se seguiu já veio em conformidade. Gosto especialmente quando me trazem folha de bambu, cogumelos chineses e Pak Choi, tudo salteado a acompanhar o inevitável arroz. Às vezes vem uma tacinha com pickles. Fazem bem à digestão. Mas também gosto do Chau Min com vegetais. Não o consigo comer ao pequeno almoço, por defeito cultural. Mas mesmo frio, sabe a pitéu ao lanche. Palavras do Chefe Esta manhã o Chefe do Executivo falou. Recordo, em relance, o ainda curto período Governativo de Ho Iat Seng. O dia em que assumiu o cargo e as expectativas de mudança que se anteviam, na altura, longe das sombras. Ainda com a cadeira fresca, depara-se com a tempestade. O Corona deflagra na China, e Macau tem que se proteger. Sem histerismo, o novo Chefe soube ser Chefe. Agora, em tempo de regresso de muitos, acolhe-nos. Dei comigo a confiar. Sou uma feliz privilegiada. Se estivesse nas mesmas circunstâncias em qualquer outra parte do mundo, o mais provável era terem-me colocado numa tenda improvisada num parque de estacionamento – com sorte. Não! Estou num hotel, com mais estrelas que o normal, e com todas as condições. O sol põe-se atrás da montanha. Gosto de o ver. “Estou sempre do outro lado do vidro” dizia-me hoje a Fátima em mensagem. Também a vejo. Quando sair vou agarrar nela, que é pequenina como eu, e dar-lhe uma volta no ar. A voz doce da Dália deu o bom dia do outro lado do mundo. Para a próxima voltamos a ver o mar. Parece que já só faltam nove. Até amanhã. Macau, 24 de Março de 2020
Tânia dos Santos Sexanálise VozesFicção do sexo e do vírus [dropcap]E[/dropcap]sta é altura de fazer ficção. A alienação fictícia é bem-vinda quando a realidade é dolorosa. Inventam-se estórias da história, tal como o Tarantino fez algumas vezes. Se se vivem dias difíceis temos a imaginação para torná-los diferentes. Se há alguém a gostar destes cenários onde vivemos e não anda com dificuldade em dar-lhes sentido, das duas uma: ou é um optimista ou é um sociopata. Há quem julgue que este tempo possa ser usado na criação de grandes obras literárias, grandes projectos que nunca foram concretizados. Sobem-se expectativas de quem não percebe nada de criatividade. A criatividade artística, aquela que cria coisas bonitas e rentáveis, não é a única resposta para lidar com os dissabores da vida. Mas um pouco de parvoíce é bem-vinda. Parvoíce que faz com que uma escrita semanal sobre sexo possa contribuir para estórias virulentas fantásticas. Estórias de heróis e heroínas onde o mal é aniquilado por completo com o acto do sexo. Era uma vez a corona que conhece a outra corona para fazer filhos e passarem o testemunho de destruição. O sexo é a arma da multiplicação, até com o vírus – que não fazem mesmo sexo, mas no mundo fictício tudo é possível. Depois há o sexo entre humanos, os fluidos que se trocam proporcionam as condições ideais para esta partilha virulenta também. O sexo não é uma arma de destruição, mas podia ser. E se o esperma fosse o melhor dos desinfetantes? E se a masturbação fosse a forma mais eficaz de fortalecer o sistema imunitário e combater o mal invisível? A masturbação que nos dizem fazer crescer pêlos nas mãos ou cegar, podia ser a solução para os problemas do mundo. Uma forma de produção de bem-estar, como já estou bem farta de pregar semanalmente e agora prego neste cenário de ficção. Nesta fantasia mirabolante, o sexo, dentro de certas condições, seria a solução para a situação que vivemos. O corpo seria passível de invasão, mas estaria apetrechado de formas de luta, de criar barreiras e de tornar a vida do vírus difícil. A capacidade de nos transformarmos seria real. Teríamos uma fonte inesgotável de desinfetante – não adoram a ideia do esperma ter mais do que uma função do que fecundar óvulos? Homens andarem a ejacular por motivos de higiene não seria um cenário bonito. Seria o pesadelo para a luta do patriarcado. Nesta fantasia igualitária os corpos com vulvas podiam contribuir de forma igualmente eficaz, com os seus fluidos protectores e desinfectantes. O orgasmo também seria uma forma de protecção. O orgasmo emitiria radiações capazes de destruir as gotículas transmissoras do vírus, como um morcego com a sua capacidade ultra-sónica. Já que foi um morcego que trouxe o vírus de corona para o mundo humano, nós também contribuímos com a nossa capacidade quasi-morcega para nos desfazermos da praga que nos assola. A forma como sentimos o corpo e o mexemos também seria passível de todo o tipo de inovação. Pálpebras e membranas estariam disponíveis para tapar aquilo que não devia estar exposto. O sexo desafiaria a tendência isolacionista que este vírus nos obrigou. Só é preciso criatividade para tornar o que nos desconforta em algo menos desconfortável. Criatividade que não precisa de se transformar numa grande peça de dramaturgia como insinuam que o Shakespeare fez. Usemo-la para a re-invenção nestes tempos que nos atiram ora para a preocupação, ora para o aborrecimento.
Andreia Sofia Silva VozesO mundo parou [dropcap]O[/dropcap] universo resolveu conspirar para que todos nós parássemos quase por completo as nossas vidas. No entanto, a chegada da pandemia da covid-19 deu-se na era do digital e da internet, o que, de certa forma, facilita o nosso quotidiano. Estamos permanentemente ligados e conseguimos manter trabalhos, aulas e afectos à distância. A covid-19 parece estar a ensinar-nos muitas coisas, a dar lições a muitos países e governantes, a obrigar-nos a olhar para o que antes não percebíamos. De repente vimo-nos confinados a estar sozinhos ou em família, a partilhar tempos e espaços como há muito não o fazíamos. Num mundo caótico, ficámos, subitamente, com muito tempo livre. Depois de o mundo parar, não se sabe muito bem por quanto tempo, seremos seres humanos melhores ou mais loucos? Iremos a correr que nem doidos para os bares, para as ruas, ou ficaremos meio atordoados sem saber como viver? Quais as lições da covid-19 que ainda estão por vir?
João Santos Filipe VozesO estudo… [dropcap]E[/dropcap]m 2018, o Governo de Chui Sai On encomendou um estudo sobre a Lei Sindical e pagou 600 mil patacas. Como nestas coisas se espera um trabalho imparcial, a “encomenda” foi feita a uma associação liderada por um empresário local. O trabalho foi concluído no segundo trimestre de 2019, com um atraso oficial, não muito significativo, diga-se. No entanto, apesar de haver um estudo pago com o dinheiro da RAEM, o Executivo continua sem divulgar os resultados, quase um ano depois da conclusão (?) do documento. Os deputados também dizem que não conhecem os resultados do estudo, apesar de alguns terem estado na reunião de Novembro do ano passado da Concertação Social, onde alegadamente a DSAL terá apresentado o documento, ou parte dele. Este aspecto nunca ficou muito claro porque todos os envolvidos tiveram medo de falar. Mas o que leva as pessoas do Executivo e representantes de patronato e sector laboral a terem medo de falar do estudo? Será que houve mesmo estudo? Quem se está a tentar proteger com este silêncio? Houve conclusões ou o estudo ainda está a decorrer? Estamos a viver a covid-19 e por isso todos os outros assuntos vão ter atrasos. No entanto, nada explica que o estudo continue escondido na gaveta. O que choca é que tão poucos deputados levantem questões sobre o assunto. As redes de informação “informal” devem ser fantásticas, os eleitores é que interessam pouco. Mas, será que já se pensou que quanto mais atrasada for a divulgação maior será a desconfiança face aos resultados? É que o tema já não é fácil…
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesOrçamento 2020 [dropcap]N[/dropcap]o passado dia 20, a comunicação social de Macau anunciou que o Governo da RAEM tinha proposto ao Conselho Legislativo uma emenda ao Orçamento de 2020. O Governo solicitou que fossem disponibilizados 38,9 mil milhões das reservas fiscais para compensar o déficit deste ano. Como bem sabemos, a situação financeira do Governo de Macau tem sido estável e sólida. Como o sistema de reserva fiscal foi estabelecido depois da reunificação, a administração financeira do Executivo tem de ser mais prudente. O Governo prevê que a receita do jogo sofra uma redução de 260 mil milhões para 130 mil milhões e, além disso, vai ter de lidar com as diversas consequências da epidemia. Para além das medidas que já tinham sido anunciadas, vão ser implementados nove benefícios fiscais para os residentes. É compreensível que estas alterações estejam a ser feitas. O Artigo 105 da Lei Básica de Macau estipula que o “orçamento da região deve ser gerido pelo Governo de forma a que os gastos sejam feitos na medida das possibilidades, lutando para equilibrar as receitas e os gastos, evitar os déficits e adaptar a taxa de crescimeto ao PIB”. Desde a reunificação de Macau a situação financeira tem sido boa. Desta vez, o déficit fiscal foi causado pela epidemia, o que é, como é óvio, um factor imprevisível e fora do controlo do Governo. Segundo os dados publicados pela Autoridade Monetária de Macau a 20 de Março, a reserva do Governo da RAEM monta a 180,7 mil milhões, dos quais 38,9 mil milhões vão ser usados para compensar o déficit orçamental deste ano. Não estamos num quadro de pressão financeira. A actual revisão do orçamento revela mais uma vez os problemas endémicos de Macau. A maior parte da receita do Governo provém da indústria do jogo. A epidemia afectou bastante esta indústria e fez cair a pique as receitas. É por este motivo, e por muitos outros, que a economia de Macau se deve diversificar, para não estar dependente de um único sector. É claro que uma verdadeira diversificação implica que possam surgir e consolidar-se diversas indústrias capazes de poder contribuir de forma significatica para a economia de Macau. Este tipo de desenvolvimento leva tempo. Numa altura em que a pandemia provoca a nível global uma situação relativamente grave, vai ser impossível surgirem novos negócios a curto prazo, por isso, para já, só podemos pensar em dirigirmo-nos nessa direcção dando um passo de cada vez. Por outro lado, devemos considerar o desenvolvimento de pequenas indústrias para garantir a estabilidade da sociedade de Macau. Por exemplo, deveriamos encarar a hipótese de criar uma linha própria de produção de máscaras de protecção? O Governo de Hong Kong também já tinha anunciado o Orçamento para 2020, que igualmente apresenta déficit. Embora a Lei Básica de Hong Kong possua um artigo equivalente ao Artigo 105 da Lei Básica de Macau, advertindo o Governo para manter o equilíbrio financeiro, o secretário das Finanças de Hong Kong declarou peremptoriamente que esta é uma situação de “grande déficit financeiro”. O Governo de Hong Kong também se verá obrigado a usar a sua reserva financeira para compensar o déficit. A receita do Governo de Hong Kong provém principalmente da venda de terrenos. Se o preço dos terrenos baixar, as receitas são afectadas. É por este motivo que as casas são tão caras na cidade. Hong Kong depende do negócio do imobiliário como Macau depende da indústria do jogo. Se estes sectores forem afectados, as receitas dos Governos das duas RAEs sofrem uma queda acentuada. É claro que, quando a epidemia se declarou, a situação do Governo de Hong Kong era muito pior do que a do Governo de Macau, porque existem cerca de 8 milhões de pessoas em Hong Kong, e apenas 600.000 em Macau, 13 vezes menos. Quando o Governo de Macau aplica um dólar por residente para minimizar os danos, o Governo de Hong Kong precisa de gastar 13 dólares. O rendimento per capita também é muito diferente. Segundo os dados de 2019 publicados pelo Fundo Monetário Internacional, o rendimento per capita em Hong Kong era de 49.334 dólares americanos ( 396.349 patacas), e o rendimento per capita em Macau de 81.151 dólares americanos (651.967 patacas), 1,64 vezes superior. O Governo de Hong Kong costumava aumentar os impostos para garantir a estabilidade financeira. Nesta altura essa estratégia deixa de ser possível. Actualmente, só podemos pedir a Deus que a epidemia passe depressa, que o perigo para a saúde pública acabe e que a economia possa começar a recuperar.
Hoje Macau VozesFaça chuva ou faça sol [dropcap]C[/dropcap]onsegui acordar ainda de manhã. Parece que as horas estão a encontrar o seu tempo. Como de costume, o telefone já se enchia de mensagens dos de cá e dos de outros fusos. “Olá, estás boa?”, “Como está a correr isso por aí?”, “Precisas de alguma coisa?”. Cada um destes contactos tem um valor acrescentado pelas circunstâncias. Mais do que as mensagens que divulgam convites para solidariedades várias, estas demonstram que há uma solidariedade real, dirigida a um outro que existe. Não que a solidariedade colectiva deixe de ser imperiosa. Mas para que seja verdadeira é, primeiro, necessário que exista a real percepção do outro. Uma existência com morada no coração. Sem enganos nem ilusões. O termómetro das dez da manhã acusou 36 de temperatura. Na mesma altura abria-se a porta da frente. “Olá vizinha” dissemos uma à outra. A D. Maria também estava bem. Ainda fiquei a dar dois dedos de conversa à distância. Tinha dormido melhor, estava a ajustar tempos e mandou-me um beijo. Mais tarde, ao telefone, o Faustino falou-me do filme que estava a ver. Estamos limitados a um quarto, a viver do mesmo. A conversa continuou de raspão sobre o mau estado do mundo. Acabou com “mas o tempo até está a passar depressa e tranquilamente”. Foi bom ouvir. E está. Apesar do nevoeiro matinal o sol acabou por dar de si. O Carlos ligou. “Precisas de alguma coisa?”, perguntou acrescentando que estava um calor dos diabos lá fora. Olhei pela janela. Olha as árvores Aqui o clima é sempre o mesmo. A temperatura sempre agradável. Apercebi-me que podia estar o mais agreste Inverno do outro lado do vidro, que nem daria conta. Mas parece que o calor chegou, e podia já ser daquele que asfixia, que agora também não tem forma de se fazer sentir do lado de cá desta fortaleza de luxo. Aqui, a estação é sempre a mesma. Lá para a hora do almoço disse à Cristina que não precisava de fruta. O mil-folhas que veio na mala para ela, já era. Quando sair vou-lhe fazer três mil-folhas para que os coma seguidinhos em forma de agradecimento. Para a Vera o mesmo, ou outra coisa que mais lhe apeteça. Para os tantos amigos que me apercebo que tenho, alguma coisa se vai arranjar embrulhada em amor. O Mário interrompeu-me o Yoga. Mas não faz mal. Ele está uns andares acima e gostamos de dizer uns disparates por dia. Comentámos que as árvores derrubadas pelo Hato estão mais verdes que as outras, ali na montanha que nos dá vista. Se calhar, se não fosse este isolamento, nem nos teríamos apercebido. São 15h. Está sol. Faltam quase 10 dias. Até amanhã Macau, 23 de Março de 2020
Salomé Fernandes VozesO ar que respiramos [dropcap]C[/dropcap]om medidas para evitar a propagação da Covid-19, como incentivar as pessoas a trabalhar a partir de casa sem precisarem de se deslocar e o cancelamento de voos devido a restrições de viagens, já há registo de diminuição dos níveis de poluição atmosférica e CO2 nalgumas cidades e regiões. O ar que respiramos é hoje mais limpo do que o anterior à propagação do vírus. O luto por quem sucumbiu à doença é uma realidade diária, os aviões em terra dão uma sensação de aprisionamento geográfico, e a economia está a sofrer. Todos gostávamos que não fosse preciso passar por esta crise de saúde, mas em momentos como este há que repensar como vivemos e o que mais se valoriza. Ainda que nada apague os danos sociais e humanos deixados pela Covid-19, os líderes dos países e regiões afectadas devem reflectir sobre como reestimular as economias, para tentarem pelo menos retirar uma mudança positiva deste cenário. Ironicamente, a paragem da sociedade devido a um vírus que afecta o sistema respiratório, pode eventualmente ajudar a prevenir mortes prematuras associadas à poluição do ar. E quem sabe levar o mundo mais perto de atingir os compromissos do Acordo Climático de Paris, com os EUA forçados pela natureza do contexto a contribuírem para esse objectivo comum.
João Luz VozesFicção real [dropcap]N[/dropcap]uma escala reduzida, estamos a viver nas páginas de uma obra literária viva, com pulso e personagens reais submersos em mundos equiparáveis aos de Huxley, Orwell, Atwood e das narrativas distópicas mais plausíveis de ficção científica. A humanidade há muito que não partilha a mesma angústia globalmente, um calvário cuja natureza talvez só equiparável de uma forma muito restrita e local a Chernobyl. Vivemos guerras que abalaram o planeta, com ondas de choque a chegar a todos os cantos da Terra, genocídios em toda a parte do globo e ao longo de toda a nossa história. Passámos de raspão pela ameaça de aniquilação nuclear, treva mortífera à distância de um botão. Vimos abismos em abundância desde a ascensão da espécie da insignificância ao topo da cadeia alimentar. Genocídio, barbárie e ódio assassino estão na natureza de todos os humanos. Mas isto soa diferente, há aqui novidade pintada a tons de surrealismo. No meio do natural entrincheiramento dos poderes para preservar a subsistência em tempos de crise, este recolhimento total é algo que nos une, a auto-reclusão traz um sentido de partilha remoto. Mas no meio deste episódio de “Black Mirror” não vejo medo nas pessoas, pelo menos em Macau. Com maior ou menor estoicismo, os que chegam a Macau são isolados em quartos de hotel, como se a vida se materializasse em blue-ray ou streaming. Nos próximos capítulos, ou séries futuras, não me parece desfasado que o recolhimento e a inevitável reflexão tragam conclusões sobre a forma como vivemos. Isto pode ser um reset nos modos como as sociedades estão estruturadas actualmente, com uma actualização que beneficia o retorno ao essencial em detrimento do supérfluo, a solidariedade e empatia em vez de avareza e egotismo, o poder da união face ao antagonismo. Neste momento, largas centenas de pessoas são semeadas por largas centenas de quartos de hotel, com 14 dias de solidão e separação do mundo pela frente. Não avisto qualquer fetiche governativo a delirar com cárceres hoteleiros e a magicar experiências sociológicas que procuram o cúmulo do room service. O mundo, que nunca antes havia estado tão aberto e conectado, recolhe-se individualmente em prol de todos. Cada pessoa é uma cidade, um país, uma ilha, encerrada entre quarto paredes, com níveis diferentes de intensidade de clausura. À porta dos hotéis menos óbvios de Macau, familiares e amigos formam filas para levar amor aos seus enclausurados. Há sempre alguém que conhecemos nesta situação. Também eu levei bens a uma pessoa querida. À entrada do hotel/mosteiro/prisão de hospital, fomos conduzidos para lá do cordão de segurança em grupos de cinco para depositamos os sacos numa mesa. Cumprimos a nossa parte. O resto é uma encenação entre a normalidade e um cenário de filme. Os sacos são colocados nos típicos carrinhos de bagagem dos hotéis. A carga de coisas e afectos é depois passada a uma pessoa completamente coberta por um fato cirúrgico, com uma máscara que abarca a cabeça toda, que conduz as coisas para dentro da fortaleza hoteleira. Os sacos são colocados à porta do respectivo quarto e a pessoa desaparece antes que o enclausurado abra a porta. Tudo isto é matéria extraída do universo da fantasia, do sonho, da realidade para a efabulação. Concordo em parte com os que acham que um acontecimento desta dimensão e natureza pode mudar a forma como as sociedades funcionam. Concordo porque acho que a experiência do Covid-19 se vai repetir no futuro, e a chapada de realidade que todo o mundo está a levar é um prenúncio do que está para vir. Porém, solidariedade momentânea em momentos de aflição ou de terrível aborrecimento não tem a bruta e letal força argumentativa do capital. Facto trágico ao qual se aliam os lobos solitários, agentes de dissonância alimentados pela ideia de que só eles entendem o que se está a passar. Eles é que sabem, são os únicos de olhos abertos. Não me entendam mal, é natural e saudável suspeitar de todos os governos e esferas de poder, mas os limites da resistência param no umbigo. A liberdade precisa de protecção constante. Mesmo quando falamos da fronteira final do nosso derradeiro arbítrio, da soberania exclusiva que temos sobre o nosso corpo. Se a medicina diz que estamos a arriscar a vida se continuarmos a entupir a cara com bacon, cigarros, whisky e açúcar, especialmente depois de um problema de saúde, temos a liberdade para fazer o que acharmos melhor, de não seguir conselhos e acarretarmos as consequências das nossas decisões. A diferença é que jamais iremos contaminar alguém com o nosso AVC ou ataque cardíaco. Já agir irresponsavelmente com esta doença, que é do mundo, pode significar graves problemas para outros. A facilidade de contágio e a perigosa camuflagem da ausência de sintomas, transforma este bicho numa coisa diferente. Quer se reconheça, ou não, vivemos tempos históricos e potencialmente transformadores, saídos da dimensão ficcional e sem um último capítulo à vista.
Hoje Macau VozesOs primeiros dias [dropcap]P[/dropcap]assam dez minutos das cinco da tarde. Da janela do quarto, consigo ver a minha casa. Imagino o Pedro, o Di, o João e o outro João. Cada um nas suas rotinas, como se fosse uma manhã normal. Imagino-me a dizer-lhes bom dia. O Pedro está a sair de bicicleta, equipadíssimo, para apanhar ar e liberdade. O João come uma laranja e uma torrada com manteiga de amendoim a acompanhar o café, enquanto desenrola as notícias da noite no telemóvel. O Di vai para a porta de máscara nas orelhas para um passeio, bem-disposto, apesar da preocupação com os seus, que estão lá longe. O outro João vai trabalhar com a maleta nas mãos, no seu andar airoso. Digo-lhes mentalmente bom dia outra vez, como se isso lhes chegasse de alguma forma. Como se as palavras e o afecto saíssem desta janela, que nem se abre para deixar entrar ar, e subissem a montanha, com uma pausa no templo para um olá às tartarugas e ao buda, e continuassem em passo ligeiro até ao prédio, subissem no elevador, entrassem casa adentro e se espetassem carinhosamente nestes meninos. Da janela deste quarto vivo de longe a suposta normalidade. Estou em isolamento. Hoje é o 12º dia. Sim, podia ser o terceiro, mas aqui a contagem mais apropriada é decrescente. Faltam 11 dias excluindo o dia de hoje. Acordei uma primeira vez de manhã, por volta das dez. Um senhor anónimo, que está em funções neste andar, tinha batido à porta. É como os carteiros e bate sempre três vezes de cada visita que me faz. Dos seus deveres fazem parte a medição de temperatura, duas vezes ao dia e respectivo registo num papelinho, a entrega de refeições três vezes ao dia, e assuntos diversos que compreendam entregas e levantamentos de coisas. Nunca lhe vi a cara, e possivelmente não verei. Mas já lhe distingo o olhar, e sabe bem. Apontou-me o termómetro à testa, num acto delicado. Sorriu com os olhos por detrás da máscara e ergueu o polegar depois de ouvir o “pi” que assinala os graus. Devo ter respondido com um olhar interrogativo. Disse-me em inglês: “35,5”. Agradeci. Voltei para a cama. O jet-lag não perdoa. Por volta das 13h comecei a acordar para o dia. A luz filtrada pelas cortinas é amarela e bonita. De cortinas fechadas está sempre sol dentro do quarto. Todos os dias, desde o primeiro acordar aqui, a luz que entra combina com o cenário. É de um amarelo quente saído do pantone do Wes Anderson e combina com o sofá vermelho e as paredes verde seco. Ainda bem. Gosto do Wes, e agrada poder imaginar-me numa espécie de “Grand Budapeste Hotel”. A viagem Cheguei aqui, a este quarto, às cinco da manhã no dia 20 de Março. Doze horas depois de ter aterrado em Hong Kong. A incógnita asfixiada de expectativa não foi só na chegada ao oriente. Durou dias com as notícias a mudarem ao minuto lá do outro lado do mundo que não se soube precaver a tempo, por pensar que esta China se situava demasiado longe. Do outro lado, em que a arrogância se transformou em inoperância. Do outro lado onde deixei o coração. Recordo a minha saída de Lisboa. O abraço que não consegui evitar aos meus pais e o que não consegui dar ao meu irmão. Soluço. Recordo os amigos que ainda consegui encontrar e lamento aqueles que me ficaram impedidos pela avalanche dos acontecimentos. O avião que viria vazio, não fosse o fecho das fronteiras externas europeias – como se o perigo estivesse mais fora do que dentro – vem agora lotado. Todos, todos de máscara. Essa medida desprezada pelo velho continente e que me fez sentir tão mais segura nas muitas horas de viagem que se seguiriam. Como companhia tive três heróis. Lembro-me do avião sobrevoar ao largo da Síria. Do sol se estar a pôr nessa altura. Da noite em que aqueles que ali vivem estão mergulhados há anos. Tentam fugir de uma guerra que não é deles, enquanto continuam invisíveis para o mundo. Uma invisibilidade como a que se viveu sobre a China quando tudo isto começou. Uma invisibilidade que é dada automaticamente ao que está distante, ao que não toca por perto. Uma invisibilidade gémea do egoísmo e aliada da impunidade. Ali, debaixo do avião que transportava muitos de regresso a casa estariam tantos sem casa alguma. Chegados a este lado tudo parecia um filme antigo que decorria em câmara lenta. Havia esperas, falta de informação, mas sobretudo uma secreta segurança. Viriam buscar-me. Iriam instalar-me. E assim, foi. Seria no mínimo indelicado, não agradecer ao Governo de Macau. O meu sentido obrigada por tratarem de nós que chegamos e dos que cá estão. À chegada ao hotel, de madrugada, estava a C. e a V. Trabalhavam no dia seguinte, mas isso era de menor importância. Estavam ali. O aparato policial e as medidas dos Serviços de Saúde à entrada deste hotel mantinham-nos à distância. Mas estavam ali e era só isso que importava. Agora estou aqui. Esta é a primeira de uma série de relatos que vão acompanhar o meu quotidiano em isolamento. Hoje o dia já vai longo entre recordações e rotinas ainda desconhecidas. Hoje começa a Primavera. Até amanhã. Macau, 21 de Março de 2020
João Romão VozesAspida [dropcap]“A[/dropcap] Grécia é a nossa aspida”, garantiu agradecida a presidente da Comissão Europeia, em cerimónia oficial com o primeiro-ministro grego, depois de a polícia local ter respondido com a violência civilizacional própria da Europa contemporânea à chegada de um grupo de refugiados vindos da Turquia, e antes fugidos da guerra a da fome do norte de África e do Médio-Oriente. Como habitualmente, muitos deles eram jovens e crianças, que por acaso até começam a escassear num continente cada vez mais triste, envelhecido e embrutecido, incapaz de discernir ameaças e oportunidades. Contra essas pessoas erguemos nas praias da Grécia contemporânea a nossa “aspida” europeia, evocando escudos protectores dos guerreiros helénicos da Antiguidade. Esmagamos com eficácia essa tenebrosa ameaça dos que ousaram chegar às costas da “nossa” Europa. 700 milhões de euros foram logo ali prometidos à Grécia, 350 prontos a sair imediatamente dos ricos cofres europeus, para garantir que as autoridades possam continuar a cumprir cabalmente a sua histórica missão de aplicar a violência necessária aos migrantes que não se afogam na travessia do Mediterrâneo – hoje a fronteira mais mortífera do mundo. Conhecemos os procedimentos e temos vindo a habituar-nos a estas novas formas de uma União Europeia que criou uma comissão específica para a “Protecção do Nosso Modo de Vida Europeu”. Não sei a que se refere a Comissão com este “Nosso” mas esclareço que não é certamente o meu, que dispenso esta protecção. A patética denominação fala em “modos de vida” mas refere-se a supostas ameaças de imigrantes e incluí tarefas relacionadas com segurança, cooperação judicial, salvaguarda da lei, protecção de bens e serviços e, naturalmente, migração. Pouco ou nada tem isto que ver com o que quer que se queira designar como referência cultural a um suposto “modo de vida europeu”: é apenas e só um mecanismo de protecção e violência contra o exterior e o diferente – a xenofobia feita instituição, com orçamento próprio e tudo – 3.800 milhões de euros só em 2020 para “segurança e cidadania”. Para quem está no lado sul Mediterrâneo, esta suposta protecção não pode parecer senão bizarra: nenhum país do Norte de África ou do Médio Oriente atacou territórios europeus nas últimas décadas. Já a Europa teve participação activa – através da NATO – nos ataques que mataram larguíssimos milhares de pessoas, dizimaram cidades inteiras, arrasaram património cultural, destruíram economias e desarticularam sistemas políticos: com bombardeamentos massivos e sistemáticos no Iraque, na Líbia ou na Síria, mas também com o apoio à organização, financiamento e treino de organizações políticas e militares que desestabilizassem os regimes políticos existentes em quase todos os países do sul do Mediterrâneo. Na realidade, viriam esses grupos também a desestabilizar a Europa e os Estados Unidos, com esporádicos mas significativos actos de violência terrorista. Em todo o caso, as 13 pessoas vítimas mortais de ataques jihadistas na Europa em 2018 (dados da Europol) já dificilmente se comparam com o número de vítimas de ataques xenófobos, homofóbicos ou de violência sobre minorias perpetrados por cidadãos europeus no interior da Europa. Não se aplicou o mesmo zelo protector do “nosso modo de vida europeu” quando começaram a chegar ao mundo notícias sobre o terrível impacto do aparecimento de um novo vírus na China, com muito intimidativos níveis de propagação e mortalidade. A China está longe e pelos vistos não foi nada que justificasse levantar em riste uma aspida que nos protegesse de semelhante ameaça. Foi até motivo de graça, mais ou menos generalizada, incluindo piadas xenófobas com que se vai animando a arrogância cultural e intelectual de alguns círculos europeus, não tão poucos como isso. E foi também motivo de violência, com agressões várias a pessoas de origem asiática, que pelos vistos não têm na Europa ou no Norte da América direito pleno ao tal “modo de vida”. Ou a ser pessoas, mais simplesmente. Na realidade, mesmo quando os impactos massivos da presença do vírus começaram a sentir-se em Itália, ainda se notou uma transferência geográfica das alusões xenófobas, agora dirigidas aos povos do Sul da Europa. Passou esse tempo, no entanto. Hoje não há outro remédio do que tentar erguer a aspida por toda a Europa, tardia, desajeitadamente e com emergências várias, por terra, mar e ar, impondo obstáculos ou bloqueios cada vez maiores à circulação, confinamento domiciliário das pessoas, agora necessário mas porventura evitável se se tivesse intervindo muito mais cedo, quando algures no mundo já eram visíveis os sinais da ameaça. A sobranceria com que frequentemente se olha desde a Europa para outras partes do mundo leva também a isso: a aprender pouco, a perder oportunidades de conhecer melhor problemas e ameaças efectivas e colectivas, com as quais todos temos que lidar, independentemente da zona do globo que habitemos. Escolhemos mal aliados e inimigos: tratamos com violência seres humanos que fogem da fome e da guerra para nos bater à porta em busca da vida digna que julgam que a Europa pode oferecer e franqueamos as portas à chegada dos vírus que nos matam aos milhares – e às foças militares que tomam conta das ruas enquanto nos fecham em casa. Paradoxalmente, é quando a China lidera o progresso civilizacional nesta área, anunciando o início de testes em seres humanos para a vacina contra a Covid-19 e disponibilizando médicos para apoiar o trabalho de combate à epidemia em vários países europeus, que a Europa não encontra alternativa a fechar-se em si mesma, bloqueando aeroportos, paralisando economias, fechando as pessoas em casa. Não sei se é esta “Protecção do Nosso Modo de Vida Europeu” que a Comissão propõe mas esta União Europeia parece uma instituição definitivamente arredada de qualquer ideia de comunidade, solidariedade ou progresso, transformada numa plataforma de defesa intransigente e violenta de interesses e poderes instalados no conforto da sua arrogante ignorância. Resta-nos que esta experiência única e histórica de resistência colectiva – porque não há outra forma – possa servir para reforçar a solidariedade entre as pessoas, para ajudar a discernir o importante do acessório, para aprender mais modestamente com o que fazem outros povos com outras culturas, e para que sejamos mais capazes de identificar as ameaças certas em relação às quais temos que levantar as nossas aspidas. Se assim for, já valerá a pena a travessia.
João Luz VozesVolte-face [dropcap]D[/dropcap]evo estar a ficar demasiado velho e condescendente, apesar de sentir o fogo a arder, para não ser cáustico com o Executivo local nesta coluna. Não me entendam mal, a decisão racial de fechar as portas a trabalhadores não residentes que não sejam de origem chinesa evoca o espírito de Donald Trump, o grande Satã para a santa pátria. Sabemos que o impulso imediato entre a classe política, e parte da sociedade, é apontar o dedo a quem vem de fora, isto numa cidade constituída por pessoas que vieram de fora, basta recuar uma ou duas gerações, às vezes nem isso. E, pronto, afinal vou mesmo ser cáustico. Os piores e mais mimados instintos desta população não devem ter eco em quem os governa, ou caminhamos numa estrada bem perigosa. Também é conhecida a forma canibalesca como esta população se comporta. Se um chinês se torna residente de Macau, imediatamente quer fechar a porta a todos os que pretendem seguir o mesmo caminho e passa a odiar quem é como ele era no minuto anterior a ter o BIR. Também é verdade que nos casos recentes de calamidade pública, a sociedade uniu-se de forma que deixa um gajo emocionado e que inveja o resto da cristandade. Ok, volto a conceder. O Governo tem sido forçado por circunstâncias extraordinárias a agir rápido, ninguém pode acusar este Executivo de dormir encostado à bananeira. Quando se anda tão rápido, ainda para mais numa estrada fora dos mapas, é natural que se chegue ao destino com umas amolgadelas na chapa.
Pedro Arede VozesCheque prenda [dropcap]O[/dropcap] vale de consumo de três mil patacas destinado à utilização residentes de Macau é uma medida positiva avançada com prontidão pelo Governo e que traz vantagens tanto a consumidores como aos estabelecimentos comerciais afectados pela crise provocada pela Covid-19. E penso que esse duplo objectivo será cumprido. No entanto, duas questões podiam ter sido ponderadas de outra forma. A primeira, apesar da conveniência, é a clara vantagem face à concorrência que a Macau Pass vai gozar em termos de fidelização de utilizadores, disseminação de terminais e relativamente aos dividendos que irá retirar por via do aumento do número de transações que irão acontecer a partir de Maio através deste meio de pagamento. A outra, é o facto de a utilização do vale de consumo abranger grandes superfícies como as cadeias de supermercados que, mesmo nas horas mais delicadas do mês passado, nunca fecharam portas e, arrisco, podem até ter alcançado lucros superiores ao esperado, devido a impulsos e à ansiedade, podendo assim desvirtuar de certa forma, o propósito de injectar capital no comércio local e nos negócios de menor dimensão. De Macau damos um salto a Ovar, para aquilo que no final de Janeiro, ao mesmo tempo que em Wuhan foi construído um hospital em 10 dias para conter a epidemia, me atreveria a dizer que seria um puro simulacro de fantasia. A verdade é que à semelhança daquilo que aconteceu na cidade que foi o epicentro da epidemia, Ovar está em lockdown. Ninguém sai. Ninguém entra. Mais uma viagem, no mínimo, impensável, que faz parte do caminho que tem vindo a ser trilhado pelo coronavírus.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA politização das relações económicas “The United States brags about its political system, but the President says one thing during the election, something else when he takes office, something else at midterm and something else when he leaves.” Deng Xiaoping [dropcap]À[/dropcap] medida que a separação entre a China e os Estados Unidos aumentar, conduzirá a um choque mais explícito sobre a segurança, influência e os valores nacionais. Os dois países continuarão a usar ferramentas económicas nessa luta, como sanções, controlos de exportação e boicotes com advertências e objectivos mais curtos e explicitamente políticos. As empresas e outros países entenderão que será mais difícil evitar serem apanhados no fogo cruzado. A luta tem um realismo duro que é a grande rivalidade de poder na sua essência. Ainda não é tão ideologicamente radical quanto a formulação clássica da Guerra Fria do capitalismo versus socialismo. Mas, à medida que as tensões aumentam, as divergências entre as estruturas políticas dos dois países estão trazer à tona diferenças irreconciliáveis. A rivalidade entre os Estados Unidos e a China será cada vez mais travada como um choque de valores e animada pelo fervor patriótico. Os Estados Unidos vêem a China como um regime proibitivo que usará a sua influência económica para punir os seus inimigos e limitar as críticas do exterior. A China vê os Estados Unidos como um poder hegemónico que quer atrapalhar o seu crescimento e semear a divisão dentro das suas fronteiras. A guerra comercial tem sido realizada, não tendo terminado com a trégua em vigor, mas tem poucas possibilidades de um progresso positivo. O “establishment” da política externa dos Estados Unidos está focado em como conter a China em vez de competir, ampliando as tensões bilaterais. O ataque à China terá notoriedade na campanha presidencial dos Estados Unidos, e o céptico presidente Trump terá intenções mistas e capacidade limitada para impedir que o seu governo tome medidas duras contra a China em questões de segurança nacional e política externa. A crise política de Hong Kong persistiu, até às eleições presidenciais de Taiwan, em 11 de Janeiro de 2020, que reelegeram a presidente Tsai Ing-wen, que prometeu preservar a soberania da ilha diante dos esforços intensos da China para a colocar sob controlo, reforçada por um forte sentimento nacionalista da população. Os Estados Unidos enfatizarão o apoio militar e diplomático ao regime de Tsai e, pelo menos, o apoio moral aos manifestantes de Hong Kong (dirigidos pelo Congresso), provocando objecções iradas da China por interferência nos seus assuntos internos. Assim, os Estados Unidos tomarão medidas duras contra a China, incluindo sanções financeiras (sobre Xinjiang, Irão, Hong Kong), designação de autoridades, controlos de tecnologia e esforços para limitar o fluxo de capital americano para empresas chinesas. Tais acções também criarão riscos a uma economia chinesa que está a desacelerar agravada pelo surto de COVID-19. A China por sua vez, punirá as empresas americanas e outras estrangeiras vistas como apoiantes da “agenda de contenção” dos Estados Unidos. A lista de “entidades não confiáveis” crescerá mais e a China continuará a restringir o espaço para estrangeiros, reduzindo a sua capacidade de obter vistos. A politização das relações económicas da China intensificar-se-á à medida que procura “saídas” ideológicas de alívio contra uns Estados Unidos agressivos e desaceleração do crescimento económico, enquanto o presidente Trump enfrenta uma campanha de reeleição desafiadora, o presidente Xi pode testar a disposição daquele de reagir agressivamente em áreas como Hong Kong e Taiwan, sentindo que, embora o comércio seja importante para o presidente Trump, está menos interessado em questões de segurança, o que é perigoso, porque o presidente dos Estados Unidos é imprevisível. É de acreditar que as “Empresas Multinacionais (EMNs na sigla inglesa)”preencherão as lacunas da governança global e a ordem liberal deixada pelo mundo G-ZERO, que é um termo que se refere a um vácuo emergente de poder na política internacional, criado pelo declínio da influência ocidental e pelo foco interno dos governos dos países em desenvolvimento. O sector privado, especificamente, participará da liderança em áreas como mudanças climáticas, alívio da pobreza e até liberalização do comércio e investimento. O cepticismo cresceu exponencialmente, em particular, porque as empresas enfrentam um ambiente regulador e geopolítico significativamente mais conflituoso em 2020 e desde a Segunda Guerra Mundial, a globalização liderada pelos Estados Unidos tem sido benéfico para as EMNs, pois expandiu e consolidou as cadeias de suprimentos globais com base em mão-de-obra barata e conjunto de recursos de todo o mundo que representam mais de 50 por cento do comércio, um terço da produção e cerca de um quarto do emprego mundial. As multinacionais tornaram-se actores políticos influentes à medida que os países moldavam os regimes globais de comércio, regulamentação e impostos a seu favor, e as empresas, por sua vez, exerceram influência nas políticas. Os mercados no exterior onde multinacionais dos Estados Unidos investem em manufactura recebem taxas tarifárias mais baixas do seu governo e de igual forma, é muito provável que os projectos do Banco Mundial que envolvam empresas multinacionais obtenham melhores termos de financiamento devido à sua capacidade de influenciar os maiores patrocinadores governamentais do banco. Hoje, porém, os estados-nação estão a reafirmar-se, apresentando novos riscos para o capital e activos das corporações. Os factores estruturais motivam os governos como a desaceleração do crescimento global, aumento da disparidade socioeconómica, aumento do populismo e nacionalismo e competição tecnológica entre os Estados Unidos e a China, que torna o comércio mais arriscado. Os Estados-membros da União Europeia, estão a adoptar políticas industriais para promover empresas domésticas e combater a abordagem estatista da China. Nos Estados Unidos, regular “Big Tech” é uma ideia cada vez mais importante na política. As autoridades de segurança nacional dos Estados Unidos estão a pressionar para proteger a infra-estrutura crítica e limitar o investimento estrangeiro, inclusive de empresas de países terceiros e também estão a tentar obrigar as empresas ocidentais a adoptarem uma visão centrada na Administração Trump de “fornecedores confiáveis” e transparência de propriedade como parte de esforços mais amplos para reduzir as oportunidades de mercado dos Estados Unidos para empresas chinesas. E, mesmo quando um Congresso americano dividido impede mudanças em algumas áreas, estados federados estão cada vez mais a regulamentar questões de privacidade ao “antitruste”. Na China, não são apenas as empresas de tecnologia que se movem rápido e que enfrentam riscos elevados, pois nos últimos anos conseguiram “capturar” instituições estatais para impedir ou diminuir regulamentações desfavoráveis. As empresas nos Estados Unidos gastaram três mil e quinhentos milhões de dólares em “lobby corporativo”, em 2018, e devem ter ultrapassado esse montante em 2019, valor que mais que duplicou em relação a 1998 que foi de um milhar e quinhentos milhões de dólares. As empresas enfrentarão uma reacção negativa a esses esforços, devido aos crescentes movimentos populistas anti-comércio, principalmente nos mercados desenvolvidos. A quase improvável vitória de um candidato presidencial mais à esquerda, como Sanders ou Warren, faria que o eco da sua mensagem económica influenciasse um pensamento político mais centrista em questões como a regulamentação do sector das participações privadas, aplicação de políticas “antitruste” e o controlo de preços farmacêuticos. Os acordos multilaterais de livre comércio deram às empresas multinacionais uma alavancagem para reduzir pressões regulatórias, ou pelo menos tornar a regulamentação consistente em muitos mercados, diminuindo os custos. Os países procuram acordos bilaterais que são produtivos isoladamente, mas criam novas inconsistências nas regulamentações globais e nas tarifas. Os estados-nação estão a reafirmar-se, apresentando novos riscos para as empresas. Os novos riscos regulatórios prejudicam a reputação corporativa e dificultam a gestão de assuntos públicos. Os assuntos públicos precisarão de estar mais envolvidos na estratégia e conhecedores dos riscos políticos e regulatórios. As empresas não podem concretizar a vontade de todas as pessoas, pois maximizarão os ganhos nas áreas em que as pressões regulatórias se alinham com os seus principais modelos de negócios (Apple sobre a privacidade de dados e a Tesla sobre a sustentabilidade), minimizando os riscos de precipitação em outros lugares. A capacidade das multinacionais de gerar riqueza, crescimento e empregos será afectada. Os accionistas precisarão de ajustar as expectativas. A reacção do ânimo ocorre em um momento em que as projecções de ganhos para 2020 são afectadas pelo risco geopolítico e pela emergência internacional do COVID-19. Os investidores estão a equilibrar o potencial de flexibilização das tarifas Estados Unidos-China contra a dissociação tecnológica forçada e projecções de crescimento económico mais brando nos maiores mercados mundiais. As procuras regulatórias crescentes e mais díspares dos países, aumentarão os custos de transacção e pressionarão ainda mais os lucros. As políticas de privacidade de dados na Europa, um aumento de imposto digital na OCDE e uma lista de “entidades não confiáveis” na China são apenas o começo da lista de desafios. E, logo, as multinacionais não ajudarão tanto na governança global nem no apoio à ordem global. Perante os novos ventos contrários, a maioria precisará de um foco ainda mais nítido nos seus resultados. Mais um piloto do mundo G-Zero. A Índia como terceira potência asiática, teve no primeiro-ministro Narendra Modi, a figura eclética que passou o seu primeiro mandato e entrou no segundo, a promover políticas sociais controversas à custa de uma agenda económica. Os impactos serão sentidos em 2020, com maior instabilidade comunal e sectária, além de política externa e contratempos económicos. Modi e o seu governo revogaram o estatuto especial de Jammu e Caxemira e implementaram um sistema para identificar imigrantes ilegais no nordeste, retirando a cidadania a mil e novecentos milhões de pessoas. O governo também aprovou uma lei que, pela primeira vez, faz da religião um critério para migrantes de países vizinhos adquirirem formalmente a cidadania indiana. Os conflitos sectários e religiosos crescerão e Caxemira é um barril de pólvora, com líderes políticos ainda presos e acesso à Internet vedado. Os protestos espalharam-se pela Índia, pois muitos cidadãos temem a perda da identidade secular da Índia. A resposta dura do governo, por sua vez, provocará ainda mais manifestações, mas Modi não recuará e, à medida que o governo segue a sua nova agenda, os líderes da oposição a nível estadual desafiarão directamente o governo central. Esse foco na agenda social também terá efeitos prejudiciais para a política externa da Índia. As suas acções em termos de direitos humanos serão objecto de um exame mais minucioso por muitos países, e sua reputação será afectada. As relações da Índia com os Estados Unidos têm sido um sinal refulgente mas enfrentarão um desafio em 2020, sendo de lembrar que dois milhões e quatrocentos mil indianos americanos pesam para a eleição do presidente Trump. Alguns membros do Congresso dos Estados Unidos estão preocupados com as políticas da Índia em geral, e em particular com os seus planos de comprar o sistema russo de defesa antimísseis S-400. O Congresso poderia impor sanções e no mínimo, a compra do sistema anti-míssil impedirá novas vendas de equipamentos militares dos Estados Unidos à Índia, o alicerce mais forte do relacionamento bilateral. Os conflitos sectários e religiosos crescerão em 2020 e a repercussão económica também é digna de nota. A agenda social fortaleceu uma parte essencial da base do primeiro-ministro Modi, “Associação de Voluntários Nacionais (Rastriya Swayamsevak Sangh – RSS)” que é uma organização paramilitar indiana de direita e nacionalista hindu que se opõem à abertura do mercado e apoiam o nacionalismo económico. O RSS é o pai ideológico do “Partido do Povo Indiano (Bharatiya Janata- BJP)” de Modi e ajudou a garantir a sua reeleição. O RSS habilitado significa que Modi tem menos espaço para manobrar as reformas estruturais, assim como a economia que está a começar a desacelerar com o crescimento trimestral de 2019 a cair para 4,5 por cento em seis anos e os indicadores prospectivos a parecerem ainda menos tranquilos. A influência do RSS foi evidente na decisão de Modi de abandonar as negociações da “Parceria Económica Global Abrangente (PEGA na sigla inglesa)”, em 2019 e será uma grande razão pela qual é improvável que a Índia volte a reunir-se em 2020. A situação fiscal da Índia também é precária, pois o governo enfrenta um deficit fiscal crescente, marcado pelo desempenho insuficiente do imposto sobre bens e serviços. A economia enfraquecida, por sua vez, alimentará mais nacionalismo económico e proteccionismo, pesando no curso conturbado da Índia em 2020. A Europa durante anos foi um grande jogador da geopolítica e soube traçar o seu percurso em política externa e comercial. Até agora, provou ser incapaz ou pouco disposta a recuar efectivamente onde discordava dos Estados Unidos ou da China, mas está prestes a mudar. A nova liderança da Comissão Europeia, e o líder mais poderoso da União Europeia (UE) actualmente, o presidente francês Emmanuel Macron, compartilham uma visão sóbria dos assuntos mundiais. Ambos acham que a UE tem sido ingénua ao esperar que os seus principais parceiros comerciais cumpram as regras e quer equipar-se para reagir a práticas injustas e antecipar a novas decisões unilaterais. A presidente da Comissão Europeia e o presidente francês acreditam que a UE deve ser “a guardiã do multilateralismo”. O facto de tais princípios estarem a ser atacados convenceu Ursula von der Leyen de que a UE deveria defender-se activamente contra modelos económicos e políticas concorrentes. Quanto à regulamentação, a principal autoridade “antitruste” da UE, a Comissária Europeia para a Concorrência. Está a combater gigantes da tecnologia americana através do uso inovador da lei de auxílios estatais da UE para questionar os seus acordos tributários. A EU, no comércio, adoptará essa abordagem mais assertiva em novas áreas, por exemplo, tornando o cumprimento do Acordo Climático de Paris, uma condição para novos acordos e retaliando em espécie contra tarifas punitivas. Os Estados membros e a Comissão também estão a pressionar a China para nivelar o campo de actuação nas compras, com a ameaça de usar novos “instrumentos internacionais de compras” contra empresas chinesas, se as empresas europeias não obtiverem melhor acesso ao mercado chinês. A EU, em questões militares, não está disposta a manter o seu exército continental, mas tomará medidas para usar o maior mercado interno do mundo para derrubar barreiras transfronteiriças ao comércio militar e ao desenvolvimento tecnológico. Visto dos Estados Unidos, isso será uma afronta, especialmente porque poucos países europeus cumpriram as suas promessas na NATO em gastos com a defesa. Os novos líderes da UE acham que o bloco tem sido ingénuo ao esperar que os seus principais parceiros comerciais cumpram as regras e querem equipar-se para reagir a práticas injustas. A Europa mais independente cria riscos para os Estados Unidos e estes poderiam atacar aquela, especialmente porque Trump não é partidário da UE. As tarifas de retaliação não são mais um tabu, e um imposto digital em toda a Europa poderia provocar tarifas punitivas em alguns dos sectores mais orientados para a exportação, como os automóveis e bens de consumo. A partilha de dados também está em risco. Existe uma preocupação crescente com o facto de a UE se tornar muito agressiva ao impulsionar a sua liderança regulatória, principalmente por meio do bem-sucedido “Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados (RGPD) 2016/679” . À medida que a UE enfrenta gigantes da tecnologia dos Estados Unidos, é provável que estes adoptem uma abordagem mais agressiva para combater o RGPD. A UE mais geopoliticamente activa também criará mais tensão com a China. A China até ao momento alcançou muitos dos seus objectivos na Europa, pois as empresas ainda podem investir em infra-estrutura da “Iniciativa Uma Faixa, Uma Rota (BRI, na sigla inglesa)” que não se espalharam para a maioria dos Estados-membros. A China teme que o presidente francês apele a uma triagem mais vinculativa dos projectos da BRI em toda a UE. Uma postura mais rígida da UE em relação ao “antidumping” exacerbará as tensões. A fricção UE-China sobre questões como Xinjiang e o Mar da China Meridional intensificar-se-á e por mais que a China insista que o mundo aceite “Uma China, Dois Sistemas”, uma Europa mais geopolítica tentará insistir que a China aceite “Um Sistema, 27 Estados” e que aquela não vê com bons olhos.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSexo (e outras coisas) em tempos de pandemia [dropcap]O[/dropcap] mundo vive (oficialmente) uma pandemia. Especula-se o quão isto afectará as nossas vidas, as nossas estruturas institucionais e a nossa prática diária a curto, médio e a longo-prazo. Já há uns meses que a Ásia vive em isolamento, um estado de solidão que nos é tão anormal. Agora o epicentro está na Europa, com isolamentos auto-propostos ou recomendados pelo governo. A guerra contra o desconhecido está aí e não se sabe se teremos a estrutura para combatê-la. O que sabemos é que esta luta necessita de uma orquestrada resposta que navega decisões de teor socio-político e pequenas práticas diárias individuais: como lavar as mãos ou sair de casa só quando estritamente necessário, com particular enfâse no isolamento e no distanciamento social. Mesmo que estas sejam medidas para salvaguardar a saúde física, a saúde mental precisa de cuidado também. A ansiedade colectiva e individual está a níveis catastróficos. O isolamento em nada contribui para minimizar esta ansiedade, nem à tendência de ficar obcecado com as notícias, na espera de actualizações e notificações. Ansiedade que tem alimentado notícias falsas, trocas de mensagens de voz pelo whatsapp falsas e outras actividades que têm deixado as pessoas alienadas pelas razões erradas. O impacto destes meses à saúde mental não é um infeliz efeito secundário, é um efeito que precisa de ser prevenido, acima de tudo. Há investigação feita que mostra que o isolamento contribui para stress pós-traumático, depressões e outros problemas emocionais. As distracções, nestas alturas, são importantes para as pessoas desligarem-se dos cenários de medo que se montam de momento (principalmente quando ninguém sabe o fim desta situação atípica). Assim serão capazes de se distanciarem da ansiedade, em vez de vivê-la a todo o momento. O sexo é uma tão boa distracção como qualquer outra. E com isso há quem especule que haverá um baby-boom, tal como eu especulei anteriormente quando a epidemia era só do que se falava. Há quem também especule muitos divórcios, porque as famílias terão que ficar em casa, sem estímulos exteriores. De qualquer modo, haverá espaço e tempo para o sexo. Para quem está em casa com alguém com quem pode fazê-lo, e para quem está sozinho. A masturbação deverá ser importante durante estes tempos. Os seus benefícios de tratar o corpo e a mente são nos bem conhecidos: ajuda a relaxar, a melhorar o humor e a fortalecer o sistema imunitário. Mal não fará, especialmente em tempo de pandemia. Não é por acaso que o site da pornhub está a oferecer uma subscrição completa aos italianos que estão em isolamento. Um gesto solidário para quem precisa do escape do sexo. Aproveita-se este momento de impasse social para procurar novas fantasias, novos fetiches e novas experiências sexuais. Encomenda-se o brinquedo sexual que sempre se desejou, ou começa-se os exercícios vaginais que nunca encontraram a disciplina para ser implementados. Tanta coisa que pode ser (sexualmente) concretizada. Procurar formas de distração em tempos de distanciamento social deve ser visto como um mecanismo de defesa que ajuda a equilibrar os níveis de ansiedade. Níveis que são inevitáveis, perante tanta incerteza. Distrações podem ser o sexo, vídeos de gatos, filmes ou séries. Este é um apelo ao prazer em tempos sombrios. O prazer que não é sinónimo de luxúria. O prazer como potenciador de bem-estar dentro das circunstâncias, e das limitações, em que vivemos.
Andreia Sofia Silva VozesA nossa vez [dropcap]D[/dropcap]izem que demora tudo a chegar e a acontecer no Alentejo, em Portugal, porque somos lentos e queremos é dormir a sesta debaixo do chaparro. Sem casos de infecção da Covid-19 no distrito, mas estando a uma hora de Lisboa e tão perto de Espanha, permanecemos nas nossas casas e cancelamos todos os nossos compromissos. Lá fora, na cidade pequena, as ruas permanecem pouco diferentes do que sempre foram, mas os cafés fecharam quase todos. Há uns velhos teimosos na taberna que continuam a fugir à excessiva pacatez do lar. Jogam-se cartas, bebem-se uns tintos e mandam-se umas piadas sobre a Covid-19. Piadas de quem passou por guerras e quem já viveu com pouca comida, a trabalhar de sol a sol. Agora há ainda menos que fazer. Observamos as árvores, o campo, o sol e o céu azul, ouvimos os pássaros, privilégio que quem está em Macau não tem. Amigos de Macau, chegou a nossa vez de resistir. Aguardamos tempos difíceis e esperamos que venha o mais que provável Estado de Emergência, talvez decretado hoje, quarta-feira. O mundo parou ainda mais num Alentejo parado. Amigos perguntam-me se podem sair um pouco nas ruas de Lisboa porque não aguentam mais. Desligamos as televisões para não ficarmos paranóicos. O mundo está a dar-nos lições importantes e a inverter peças que julgávamos paradas no seu lugar. Enquanto isso, sonho e penso num mundo livre e de fronteiras abertas.
João Santos Filipe VozesMemória [dropcap]D[/dropcap]onald Trump é a negação de tudo o que é ciência. Não é o único no seu quadrante político e no oposto, na esquerda, também há demasiada gente a colocar a ideologia acima da ciência. A negação do conhecimento e dos factos pelas crenças é cada vez mais transversal. Não admira por isso que Trump tenha dito que o Covid-19 era como a gripe ou até menos grave. Trump é o mestre das redes sociais, percebe como ninguém o imediatismo de um meio em que qualquer post com três dias fica perdido. Mas, o mais interessante é que muita gente na RAEM que, no início, também dizia que a então “pneumonia de Wuhan” era menos grave que a gripe nos Estados Unidos, tenha virado e se dedique a escreve grandes lençóis com críticas, que até são justas, e recomendações aos Governos de fora. Felizmente para muitos o facebook não tem espelho nem memória. Um último destaque para a libertação do Chan Kin Man. Esteve preso durante 11 meses por causar “distúrbios públicos”. Na verdade o crime foi ter sido uma das pessoas envolvidas no Occupy Central, movimento que de violência só teve os ataques da polícia. Ataques, na altura, unanimemente muitos condenados, mesmo que hoje se diga o contrário. Chan foi um pacifista e poderia ter sido uma ponte entre azuis e amarelos, ou se preferirem Governo, polícia e população. Mas, a vontade política na RAEHK foi diferente e ensinou-se a seguinte lição à população: se forem para as ruas vão para a prisão. A escalada da violência também é o resultado disto. As pessoas sabem que uma vez na rua já não há nada a perder…
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesRegresso às aulas [dropcap]D[/dropcap]epois da actividade laboral ter regressado ao normal, o Governo anunciou finalmente o calendário da reabertura das escolas. As aulas do 12º ano começam a 30 de Março, para os estudantes se prepararem para os exames de acesso à Universidade. A 13 de Abril regressam à escola os alunos do 10º e do 11º ano; uma semana mais tarde, a 20 de Abril, será a vez dos alunos do 3º ciclo; a 27 de Abril as aulas do 1º e do 2º ciclos vão ser retomadas e, finalmente, a 4 de Maio será a vez dos infantários e das escolas de educação especial. Após este anúncio os pais vão sentir-se aliviados. As escolas estão fechadas desde os finais de Janeiro. Embora os jovens tenham continuado a estudar online, depararam-se com muitas dificuldades de ordem técnica. Por exemplo, como instalar certos programas, como lidar com falhas de rede e como lidar com alguns programas que só podem ser utilizados a nível local. Sem ultrapassar estes problemas, não podiam acompanhar o ensino online. A concentração das crianças do 1º ciclo não é por natureza muito elevada, especialmente quando os professores só aparecem nos ecrãs dos computadores, o que claramente dificulta o estudo. Nesta fase, é muito difícil conseguir um ensino online bem sucedido sem o apoio dos pais. Enquanto os pais estiveram em casa puderam acompanhar os filhos, mas, após ter sido restabelecida a normal rotina de trabalho, é impossível manter este apoio. O anúncio do calendário da reabertura das escolas vai ajudar a aliviar a pressão a que os pais estiveram sujeitos, sobretudo aqueles que têm crianças mais pequenas. São sem dúvida boas notícias. Olhando para este calendário salta-nos à vista o facto de prever uma reabertura faseada. O Governo decidiu que as escolas não iam reabrir todas ao mesmo tempo, mesmo depois de não se ter registado nenhum caso de infecção por coronavírus durante mais de um mês. A prioridade são os estudantes que preparam o ingresso nas Universidades; a seguir regressam os alunos do 10º e do 11º ano. Nesta altura, é muito importante que os estudantes do 12º ano estejam bem preparados de forma a não terem de ser colocados em Universidades fora do território. Desde que tudo continue a correr bem, e não haja mais nenhum surto na cidade, o resto dos alunos podem voltar à escola. Primeiro voltam os do 3º ciclo e depois os do 2º e do 1º ciclo. Estes procedimentos destinam-se a garantir a “segurança”. Os estudantes das escolas secundárias são mais velhos e mais maduros que os das escolas primárias. Se houver um problema, as escolas dos mais crescidos terão mais facilidade em lidar com a situação. Posto isto, estes preparativos são absolutamente razoáveis. É evidente que a abertura das escolas é o primeiro passo. Mas existem ainda muitos outros problemas por resolver. Será que vai haver necessidade rever as matérias que foram dadas online, sobretudo por causa das dificuldades informáticas que os estudantes tiveram de enfrentar? Como é que vai ser feita a avaliação, os trabalhos que fizeram em casa vão contar para a média? Este ano vai haver um período normal de férias de Verão? Ou vai haver apenas uma breve interrupção nessa altura? Estas são questões que as escolas vão ter de resolver. No anúncio da reabertura das escolas, as Universidades não foram mencionadas; mas não foi apontado nenhum motivo para esta decisão. Os estudantes universitários vêm de todo o mundo, China, Portugal, Filipinas, América, etc. Confrontados com os surtos de infecção em muitos países europeus, teremos de colocar os estudantes estrangeiros em quarentena quando regressarem a Macau? Será mais adequado manter os cursos a funcionar online? Os problemas que foram acima mencionados, relativos às escolas primárias e secundárias, também vão ocorrer nas Universidades. Sem um debate aprofundado de todas estas questões, será difícil anunciar a reabertura do ensino superior. Não queremos que os finalistas continuem a adiar a sua graduação, nem eles vão desejar que o novo semestre, que começa em Setembro, continue a ser afectado por esta epidemia. A reabertura das escolas de todos os níveis de ensino é uma prioridade. Claro que compreendemos que este é um processo complexo que afecta os estudantes, os pais e os professores de Macau e que tem de ser tratado de forma cuidadosa. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Carlos Morais José VozesO outro lado [dropcap]H[/dropcap]á uma árvore no meio da avenida. É uma árvore qualquer, sem nada de especial a não ser o facto de ter sido plantada a meio da avenida. Durante o ano muda de cor e esse ritmo prossegue inalterável apesar de existir na separação dos dois sentidos, sujeita aos humores dos automóveis. Mas esta árvore não morre facilmente. A poluição diária não a destrói. Espera por esse grande vento que a derrubará, um suzuki ou um mercedes, conduzido por uma rapariga inocente e alcoolizada. A árvore não protestará. A árvore não é grande nem frondosa. Pelo contrário: lembra uma figura de Giacometti e a existência ténue daqueles seres que frequentam ruas de um homem só. Distingui-a nitidamente, numa torção de pescoço, quando atravessei pela última vez a avenida a correr, ignorando a passadeira e o carro da rapariga de hálito inocente e alcoólico. Não sei se ainda lá está a árvore erecta a meio da avenida. A desgraça súbita não polui. Desta vez, cheguei ao outro lado.
João Luz VozesO Chico Esperto [dropcap]C[/dropcap]omecei a escrever este artigo por impulso na noite de segunda-feira passada, faz hoje uma semana. A relativização e verborreia surreal sobre a pandemia nas redes sociais impulsionou-me a escrever esta carta de amor ao mitra que chama “sócio” a estranhos e ao doutorado em “eu é que sei”. Quando escrevi a primeira parte desta crónica ainda não havia fotos da praia de Carcavelos cheia, ou festa do coronavírus em Aveiro. Mas tenho de dar a mão à palmatória e referir que, desde então, Portugal acordou um pouco do torpor fantástico que por vezes coloca o país noutro planeta, imune à realidade. Assim sendo, este retrato social já chega um pouco tarde, mas ainda existem largas bolsas populacionais destes espécimes que sabem muito mais sobre epidemiologia que a comunidade científica, ou que atravessam uma fase de pouco amor à vida. Mas, aqui vai o retrato social dos dois polos da perigosa relativização do momento histórico que o mundo está a atravessar pelos piores motivos. O Covid-19 trouxe à luz do dia o espectro amplo do chicoespertismo luso, transversal a todas as classes. Vai do mitra do bairro ao indivíduo culto mais bem informado. Para o mitra, a reacção marialva à epidemia faz parte da sua génese, é algo que constitui a sua identidade, antes de desatar a chorar e a clamar pela santa mãezinha que está no céu, agarrado ao crucifixo. Até lá, ladra barbaridades do género: “oh, essa constipação chinoca é para meninos, eheh [escarro no chão]. Eu? Alguma vez? Tá-se mesmo a ver, agora despentear a bigodaça com essas máscaras panascas! Mas eu ando aqui a comer gelados com a testa, não?! Isto é tudo uma cambada de gatunos, é o que é, só querem roubar o Benfica. Um bagacinho e isso vai ao lugar”. É natural que o mitra reaja com ignorância brutamontes, é a única coisa que conhece. Reage ao coronavírus como reage ao orçamento de Estado, que não compreende, ou ao nascimento de um filho, que também lhe escapou às contas. O gajo informado é, naturalmente, mais complexo, mas partilha um factor essencial com o mitra. Nada o ultrapassa no que toca à interpretação da actualidade. Ambos lêem o mundo de formas diferentes, mas interiormente são experts em saúde pública, epidemiologia e todas as categorias do Trivial Pursuit. Ah, e em gajas, claro, não estivéssemos nós nas pastagens do marialva lusitano, essa manifestação quasi-equestre, o mito fantástico entre o Eduardo Prado Coelho e o Zezé Camarinha. Regressando ao gajo informado. Ninguém lhe passa a perna. Ui, era só o que faltava. Então e as coisas que leu e/ou escreveu online, plenas de sentido de humor, acutilância e crua e desapaixonada factualidade? Mesmo que por vezes resvale para asserções parolas pseudo-poéticas, à la Gustavo Santos, do género “o medo é que mata, não o vírus”. Está visto que tudo não passa de alarmismo desenfreado, um golpe nas nossas liberdades, uma gripe um bocado mais chata, uma deriva autoritária, o resultado de vivermos num Estado mamã, etc. O indivíduo informado, de repente, transforma-se no fã nº1 do Glenn Beck, que achava que os FEMA camps do tempo do Obama eram campos de extermínio de rednecks patriotas. A pessoa culta torna-se num ser que não consegue distinguir entre pânico e prevenção, imune a lições importadas de casos de sucesso ou de trágico insucesso. Num ápice, o gajo que leu tudo de Sartre a Eco, passando pelos clássicos, torna-se no mitra que encara a ciência como uma agremiação de marrões que não deixam copiar nos exames e que nunca beijaram uma mulher. De repente, tudo é uma conspiração para sabe-se lá o quê. No meio de tanta desinformação e da cobertura pornográfica das televisões portuguesas, que causaram fatiga de coronavírus, perdem-se muitas oportunidades para se estar calado e não dizer alarvidades. Oportunidades que o chicoespertismo nunca desperdiça. O chicoespertismo tem acalmado nos dias que correm. As chapadas de realidade são pequenos cursos introdutórios à humildade, mesmo que no íntimo sobreviva aquela chama rebelde do cepticismo. Não estou aqui a defender que o poder político é um esteio de pureza, pelo contrário, é uma fossa séptica onde a decência se afoga. Mas não é necessário puxar a ciência para esse lodaçal onde um porco parece um bicho asseado. Para já, gostaria que a prudência e o bom-senso fossem a nota dominante do futuro próximo do meu país. Para o bem de todos, inclusive dos “chicos espertos”.
Hoje Macau VozesPedro Baptista: Portuense ilustre, sinófilo por descobrir [dropcap]N[/dropcap]ascido a 20 de Abril de 1948 e falecido a 20 de Fevereiro de 2020, Pedro Baptista foi justamente lembrado pela sua autarquia como um grande portuense. Ao Porto devotava um amor tal que o parecia erigir utopicamente a uma espécie de cidade-estado ideal feita daquilo que os sonhos são feitos, mas também da concreta memória, depositária do seu passado liberal e dos seus escritores e pensadores, sintetizada em orgulho tripeiro, responsabilidade cívica e nacional, nas suas palavras evocativas da revolução liberal de 1820, cujas comemorações, em curso, comissariava. O seu percurso biográfico, desde a luta antifascista aos vários comprometimentos políticos e cívicos que foi cultivando, é descrito de forma escorreita e solta, aqui e ali intempestiva e sempre desabrida, nos seus dois volumes de memórias (Da Foz Velha ao Grito do Povo [2014] e Da Revolução Gorada aos Desafios do Presente [2015]), situadamente redigidos no exílio voluntário em Cantão e Macau, República Popular da China, onde por vários anos viveu. A sua inscrição social assegura-lhe lugar histórico já atestado, primeiro na formação de um maoismo português (veja-se a obra historiográfica de Miguel Cardina) e, posteriormente, na pugna regionalista a que dedicou grande parte das suas energias em democracia, sob vários formatos (veja-se a este respeito a biografia divulgada pela Câmara do Porto e o importante amigo do seu correligionário Francisco Assis no Público do passado 22 de fevereiro). No entanto, recordar a sua militância cívica não pode nem deve, sob pena de se cometer uma grande e angelista injustiça, subalternizar o autor Pedro Baptista, o homem de letras e o pensador. Não nos deteremos aqui nem nos romances nem nos ricos materiais pedagógicos que foi como docente liceal compondo, mas destacaremos o volume Ao Encontro do Halley [1987], que de alguma forma assinala a sua redescoberta enamorada da cultura portuguesa. Neste âmbito, homenageamos aqui o historiógrafo e intérprete do pensamento português contemporâneo, em especial da chamada “escola portuense” de Filosofia, da qual sempre validou a pluralidade, contra as leituras monolíticas, e a riqueza do seu labor de ensino e debate, livre e aberto, suscitado pela grande figura de Leonardo Coimbra. Este havia sido o fundador da primeira Faculdade de Letras do Porto, barbaramente extinta pela ditadura militar, a que Baptista dedicou o exaustivo estudo O Milagre da Quinta Amarela [2012], onde compulsa os contributos da plêiade de professores e alunos que no espaço de uma breve década enriqueceram a cultura portuguesa. Assim, a sua opção por autores menos atendidos, como Lúcio Pinheiro dos Santos [2010], cujo pensamento incorpora nítidas marcas indianas (como sublinha) e o grande helenizante Newton de Macedo, de quem também colige as obras completas [2014], que detidamente comenta [2010], vem reforçar o programa teórico de reapresentação da diversidade interna daquele projecto pedagógico. No caminho aberto por Leonardo, Pedro Baptista assumia-se-nos entusiasmado pelo futuro, movido na confiança de que o homem não é uma inutilidade num mundo feito, mas obreiro de um mundo a fazer. A expressão leonardina “Mundo a fazer” deu sugestivamente lema e título a uma das suas colectâneas de ensaios [2013]. Assim, insurgia-se contra as visões enclausurantemente paroquiais que dicotomizam castiços e estrangeirados, afirmando que só na abertura ao outro é que poderemos ser verdadeiramente quem somos: A história da cultura dos nossos dois últimos séculos parece-nos indicar a sina de que quando estamos na Europa e no mundo, tendemos para estar connosco, ao passo que, quando estamos sozinhos, nem connosco estamos. Tal como o seu patriotismo era plural, sublinhando a irredutibilidade dos contributos regionais para a construção da cultura nacional, também a sua visão da história da filosofia não era a de uma reconsagração do já instituído. Era a de uma recuperação do olvidado e do outro, preocupando-se sempre com os nexos, articulações e diálogos que o pensamento vai estabelecendo com a ciência e a acção ético-política no mundo, mas também com as expressões literárias, tão carecentes de uma crítica filosoficamente fundamentada. Neste sentido, o seu genuíno universalismo leva-o a intuir desde muito jovem que só por provincianismo cultural poderíamos estudar filosofia ignorando o contributo asiático, e nomeadamente chinês. Assim, vemo-lo muito jovem, em 1960-1970, na Faculdade de Letras do Porto a impor aos professores e colegas o tratamento de um tema à época inesperado e vanguardista: o taoísmo como tendência materialista na filosofia medieval chinesa: Sigamo-lo: A realidade de chineses pensantes foi adquirida com facilidade, mas teve de ser equacionada… a existência de uma filosofia chinesa foi o diabo… a professora punha as maiores dúvidas, depois oposições, depois confessou que foi apanhada de chofre e que nós devíamos ter avisado porque as coisas não podiam ser assim… avisado de quê? Da existência da China e de chineses? Da existência da cultura chinesa medieval? O debate prosseguiu pelos corredores, alargou-se e continuou na aula seguinte. Com propriedade, o Pacheco Pereira frisou que não podiam aceitar a existência da filosofia chinesa como não podiam aceitar a existência da árabe ou de qualquer outra porque o curso era não de filosofia, mas de filosofia europeia branca! – Talvez pensamento, mas não filosofia – atalhariam as boas almas… Mas quem é o Ocidente para definir a bitola do que é filosofia e do que não é filosofia na Humanidade? E mesmo que se aceitasse esse ponto de vista inaceitável, se considerássemos pensamento e não filosofia, o problema era precisamente o mesmo! Era a conceção colonial e imperialista subjacente ao aparelho ideológico, na versão portuguesa a que aquele curso pertencia, tal como a própria conceção de filosofia, de cultura e de civilização… Mal eu sabia que a Faculdade anterior, dissolvida pelo Salazar em 1927, com efeitos a 1931, para ser substituída por aquele pastiche ruminoso que eu frequentava, estudava e com atenção a filosofia oriental, não por ter uma conceção anticolonial, mas por ter uma conceção universal e aberta, com pretensão civilizada a ser ciência, ou pelo menos a ser saber… Como de resto em toda a Europa! Porque se soubesse, abrir-se-ia aí mais uma frente a introduzir fissuras nas barragens inimigas. Parece-nos poder interpretar a partir deste trecho, inserto na primeira parte das suas memórias [p. 289-290], como o maoismo foi nele uma primeira forma ainda incipiente, de sinofilia, uma abertura a uma sinologia por construir, rumo a um universalismo que teria necessariamente de incluir o contributo chinês. Não podemos deixar de sublinhar a justeza desta sua interrogação: como é que um país que tanto se orgulha retoricamente do seu pioneirismo na procura do Oriente nunca tenha criado, desenvolvido e consolidado uma forte tradição científica e cultural sinológica que tanto o enriqueceria e prepararia para o presente em que estamos e para o futuro a haver? A nossa sinofilia, poética e ideológica, tem de se desdobrar em científica sinologia. Leiamos assim a esta outra luz a evocação que a pretexto de Wenceslau de Moraes redige em 2009, onde se interroga desencantadamente sobre o que fomos histórico-culturalmente procurar ao oriente exótico: Algo estranho, exterior a nós? Ou uma parte de nós? Teremos tido capacidade para uma verdadeira abertura, para nos apresentarmos virgens, ou pelo menos desarmados, desalmados, da nossa ocidentalidade, disponíveis para vermos o Outro na sua realidade – seja lá isso o que for! Ou fomos para mais uma vez nos vermos a nós? [Mundo a fazer, p 29] Neste sentido, o próprio Ocidente, neste século XXI, para ser livre, teria de ser livre de ser ocidental, nesse sentido excludente e imperial que tão longamente se tem imposto. Esperemos que as suas reflexões ainda inéditas sobre a China, de que há vários anos nos falava, ainda que incompletas, possam chegar a ver a luz do dia. Encorajamos os seus próximos a deitarem mãos a esta tarefa. Talvez Pedro Baptista tenha, na sua estadia chinesa, retomado, de forma problematizadora, o taoismo provocatório da juventude. Sabemos que foi reler os sagazes textos de Marx sobre a Ásia, que foi até reler algum Mao, que andava fascinado pela complexa história da filosofia chinesa de que abundantemente se documentou. Acalentava ainda o projecto de estudo da Filosofia contemporânea portuguesa em Macau, tema sobre o qual redigiu uma germinal introdução em 2013 [Livros do Meio], onde chama a atenção para a lacuna que é a ausência de um levantamento sistemático do influxo sinológico que a ligação a Macau inscreveu na cultura literária e filosófica portuguesa.
Andreia Sofia Silva VozesO Presidente Covfefe [dropcap]M[/dropcap]uitos se lembrarão decerto do famoso tweet de Donald Trump em que este escreveu “Covfefe”. Nada dizia, nada significava, todos tentavam saber aquele significado. Mantendo as devidas diferenças e distâncias, Portugal tem um Presidente da República cujas acções ou palavras significam, muitas das vezes, Covfefe. Ou seja, nada. Isto a propósito do surto ligado ao Covid-19. Parece que Marcelo Rebelo de Sousa esteve em contacto com uma turma de alunos que por sua vez estiveram em contacto com uma professora infectada e resolveu fazer o teste. Não está infectado. Decide fazer quarentena. Até aqui tudo bem. Mas depois segue-se todo um circo mediático em torno disto. Escreve-se sobre o que o Presidente vai fazer durante a quarentena, pergunta-se, e ele responde. Faz-se uma peça televisiva sobre o Presidente a ter comportamentos diferentes, em que primeiro beija as pessoas e depois diz que não se deve beijar por causa do vírus. Brincam-se com recomendações da Direcção-geral de Saúde, e todos nós assistimos a este vazio noticioso, até ao nível do discurso do Presidente, que fala sempre, todos os dias, em todas as ocasiões. Cavaco Silva, seu antecessor, falava pouco, este fala em demasia. Tanto que chega a ser Covfefe.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesCastelos na areia [dropcap]S[/dropcap]e construirmos um castelo de areia na praia, mal a maré sobe, ele desaparece. Mas se o construirmos longe da praia o destino será o mesmo, o vento e a chuva acabam por demoli-lo, porque construções sem alicerces não perduram. O surto do novo coronavírus em Wuhan não foi acidental, mas sim inevitável. Os seres humanos não têm respeitado a Natureza e o alcance e a escala da engenharia bioquímica não têm parado de crescer. Quando os homens usam os vírus como instrumentos para gerar dinheiro, mas acabam por deixá-los escapar ao seu controlo, o resultado pode ser comparado a um caudal de água que irrompe por uma barragem danificada. As principais vítimas da inundação serão sempre os pobres que habitam as margens das albufeiras. Terá havido pessoas que se aperceberam da crise que nos esperava? Claro que sim! A questão é que estes pequenos grupos de pessoas conscientes, que ousaram falar desta crise, foram silenciadas porque estavam a comprometer os interesses dos monopólios. Há quem opte por orbitar em torno do poder para obter benefícios. Mas existem muitos mais que, em troca do seu silêncio, recebem uma vida sem preocupações. Estas pessoas adormecem a consciência com prazeres materiais. Em vez de apoiarem quem pretende expor a verdade, fazem os possíveis para os travar, de forma a que os seus “belos sonhos” não sejam desfeitos. Na maior parte dos casos, as pessoas preferem ignorar a realidade. As razões que desencadearam as tragédias relatadas em filmes como o “Titanic” ou “A Torre do Inferno” voltam a estar presentes no surto do novo coronavírus em Wuhan. Quem foram os responsáveis pelo afundamento do Titanic? A quem se ficou a dever a culpa do incêndio do edifício mais alto do mundo? Aqueles que procuraram descobrir a verdade por trás destas tragédias foram interrogados e torturados! Por norma, as pessoas preferem ignorar a opinião dos peritos e de quem trabalha directamente no terreno, no entanto, poderiam dar uma vista de olhos em livros como: “O Cisne Negro: o Impacto do altamente Improvável”, “O Rinoceronte Cinzento” e “Os Vinte Anos Perdidos”. Ao menos os autores destes livros não têm relações com o poder político nem com o poder económico. Desde que se deu a crise financeira em 2009, o mundo inteiro tem vivido numa bolha económica, alimentada por empréstimos a baixo juro e por uma política monetária facilitista. Os Governos estão constantemente focados no aumento do PIB e nos indicadores de crescimento económico. Quando a bolha económica rebenta, volta tudo à estaca zero. Desta vez a culpa cai em cima dos morcegos e não onde devia cair, nos manipuladores que actuam nos bastidores! Após quarenta anos de reformas e de abertura ao exterior, o crescimento económico da China é tão avassalador, que os lucros gerados podem soterrar a Humanidade inteira. A economia dispara, mas as reformas políticas estão congeladas. No entanto, quanto mais desenvolvida está a economia, mais perto está o país do caminho que conduz à crise. Costuma descrever-se a relação entre a China e Macau como uma “relação de sangue”, mas quando a qualidade do sangue está comprometida, o receptor sofre as consequências. O segredo para evitar o colapso do castelo de areia, não está no silenciamento de quem quer manifestar as suas opiniões, mas sim no recurso urgente à democracia e à ciência, como meios para consolidar as fundações do castelo e para criar um país constitucional capaz de, com resiliência, fazer frente às adversidades. No cenário da epidemia do novo coronavírus, Macau vive presentemente um momento de tranquilidade. Será esta a altura ideal para o Governo da RAEM considerar a apresentação de um plano para demolir o castelo de areia contido na Agenda Política a levar em Abril à Assembleia e fazer de Macau um paraíso de lazer e um verdadeiro destino turístico?
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA protecção que o sexo virtual nos dá [dropcap]Q[/dropcap]uem se preocupa com o futuro do sexo já previu um interesse desmesurado no sexo virtual. A premissa é de que o sexo real é difícil. Difícil porque necessita da gestão relacional e emocional entre pessoas. O sexo virtual salta esse passo, permitindo-o sem muitas preocupações ou cedências. No virtual concretizar-se-á o sexo de uma fantasia que não se conseguiria na realidade. Até para quem já tem parceiro, o sexo virtual vai ser sempre aliciante. Este não terá que ser o resultado de uma compreensão mútua, adaptação ou cedência. Este capacitará a pessoa a controlar absolutamente tudo. O envolvimento do corpo será mínimo, e, se existir, será mediado por apetrechos. Os algoritmos criarão figuras virtuais que irão responder da forma como a mente sexualizada deseja, sem grandes problemas. Estas inovações, em quantidades saudáveis, até são bastante boas para acordar a nossa libido. Também há quem preveja que o sexo virtual possa ser uma realidade partilhada, como em jogos de role-play. Mais realistas e mais sexuais, as pessoas poderão ser personagens em universos paralelos e terem sexo. Aqui a questão da negociação também poderá estar presente. O resto estará protegido e pode ser alterado. Cara, sensação, corpo. Poderão escolher-se os corpos que nunca tivemos, e encontrar outros nas mesmas condições. O sexo, continuará a ter o seu ‘quê’ de facilidade. Estas personagens poderão desenvolver grande química por alguém, que se conhecessem na vida real, não teriam interesse absolutamente nenhum. Que tipo de reinvenção curiosa seria esta? Quão real é o não-real – será das perguntas mais difíceis para o futuro do sexo. Assim que estas práticas se tornarem mais comuns, vai ser preciso discutir o virtual no real, onde as consequências da vida são muito claras, ao contrário destes universos onde seriam facilmente contestadas e alteradas. Como é que os dois universos serão capazes de co-existir? Será que o sexo virtual pode ser considerado sexo verdadeiro, de alguma forma? O sexo virtual e a sua facilidade escondem-nos de medos que são muito legítimos. Mas mantê-los escondidos em nada contribui às nossas individualidades e muito menos às sociedades em que vivemos. Já todos entenderam a importância central do sexo nas nossas vidas. Não é por acaso que a indústria do sexo é das mais prolíficas e estas inovações não param de sair. A procura incessante por estas formas protectoras de sexo talvez sinalizem o inerente medo de errar – de perceber que não existem encontros sexuais perfeitos (como a ficção gosta de insinuar que existem). Talvez normalizando esse risco poder-se-á ter uma atitude mais progressiva. Tal como o vício da pornografia, se consumido em excesso, o sexo virtual pode contribuir para a sua banalidade. Será necessário aferir os limites saudáveis. Serão necessários consumidores capazes de aferir as vantagens e as desvantagens dos universos paralelos. O sexo virtual auxilia aqueles que não querem enfrentar o sexo sem mediadores, e os que são capazes do mesmo, mas que querem experimentar coisas diferentes nas suas vidas. No sexo, raramente existem práticas inerentemente más. Mas a falta de reflexividade sobre o sexo e de como nos sentimos sobre ele impossibilita o sentido critico que nos ajuda a navegar estas vidas sexuais futuras.
Pedro Arede VozesProblema e tarefa [dropcap]T[/dropcap]alvez por defeito de fabrico, gosto de ir ao desporto beber algumas aprendizagens que podem perfeitamente ser aplicadas ao dia a dia e que encaixam no cenário de crise em que nos encontramos. Correndo o risco de não me expressar tão bem como o meu amigo e mestre de sempre, muitas vezes a grande dificuldade que existe quando enfrentamos um problema é não conseguirmos mobilizar a nossa capacidade para a tarefa que temos pela frente, em detrimento dos receios (mais ou menos reais) que temos perante esse problema. Explico melhor. Perante uma situação desfavorável (perdendo um jogo por 0-3, por exemplo), podemos encarar o problema de duas formas. A primeira é ficar a pensar que devia ter feito diferente lá mais atrás, enquanto continuamos a encarar o problema como uma montanha difícil (ou impossível) de escalar. A outra, é focar única e exclusivamente na tarefa imediata que temos pela frente e nas ferramentas à disposição, ou seja, mobilizarmo-nos completamente para “dividir” o problema em partes e começar o trabalho, que no nosso exemplo seria fazer o 1-3. E daí, prosseguir com a próxima tarefa, que será alterar o marcador para 2-3 e assim sucessivamente, procurando um eventual sucesso. Agora que o coronavírus já chegou a Portugal parece, por vezes, que o foco tem estado demasiado no problema e pouco na tarefa. Ou seja, dá a sensação que há muitos a pensar no problema “Covid-19”, procurando saber se é mais ou menos perigoso que uma gripe sazonal ou qual a sua taxa de mortalidade, etc.. e poucos a pensar na tarefa imediata, e individual, que tem pela frente e que pode ter implicações na comunidade. Até porque o real problema vai além do número de casos confirmados e pode passar pelo colapso/entupimento da capacidade de resposta de estruturas médicas, material, recursos humanos etc.