Carlos Morais José A outra face VozesOs infectados [dropcap]C[/dropcap]ada infectado é meu irmão. Bro’, sis’, brother, wathever… Je suis infectado! Estou convosco por condição. Há muito que estou doente, profundamente doente de um sem-número de maleitas inomináveis mas que, sem pudor, tenho transmitido aos incautos. Sim, aos incautos com quem não me abstenho de conviver. Socializo, vou a reuniões, frequento festas, deslizo pelas ruas, entro em cafés, almoço em restaurantes, chego-me às pessoas. Aí, nesses lugares plenos de humanos indefesos, tusso, contido, aforismos; espirro orações pagãs; verbalizo blasfémias e espero pelo resultado. Sim: tenho contagiado muita gente, uns meros inocentes que passavam, outros claramente culpados que só esperavam por um momento qualquer para dirimir a culpa. Passei a doença à minha filha; peguei-a à minha mulher. E isto, como devem imaginar, foi de menos. O pior devia estar para vir. Entretanto, enquanto nada se passava, num dia sem chuva, sem sol ou presságio de nevoeiro, chegou um coronavírus, vulgo covid-19, criando uma série de mal-entendidos. É que a doença já cá estava, em nós morava e sem pagar a renda. Também não era uma prenda que nos tenha sido ofertada. Não: era o azeite, era a banha, a manteiga; era o óleo de girassol, de amendoim, de canola: o que vinha ao de cima, depois de muito espremido e destilado o coração. E foi preciso uma epidemia para que essa nossa gordura, a nossa gordurosa verdade emergisse, na tona manhosa das noites ou à superfície rançosa dos dias, consoante os horários de cada um. Há muito tempo que estamos infectados. A doença não é nova: temo-la há muito, repito. Possuímo-la. Acarinhamo-la, como a tudo o que é nosso e, provavelmente, com dificuldade viveríamos sem ela. Fazemos amor com essa doença quando cuidamos ninguém estar a olhar. Não haver câmaras. Pois cada um de nós é um infectado e, nessa estranha medida, constitui um perigo para o outro. Graças ao covid-19, finalmente assumimos: usamos máscaras, luvas, óculos protectores e evitamos mãos, lábios, faces, corpos alheios. Fico com o Ti digital, ok? E tu com o Mim. Para quê a proximidade, afinal? Temos o cabo e temos a net, temos o flix. O uber e o eats. O outro no seu lugar: na distância física: onde deve estar. Compro sem tocar. Pago sem papel. Exijo a desinfecção. As gentes limpas. Médicos orgânicos. Amigas biológicas. Menos não será suficiente. E as empresas que o asseguram e o garantem digitalmente por escrito. Enviam para o email. Depois desparecem e cada negócio é coisa de uma noite: mágica. Volta a doença. Não: não se trata de uma doença nova. Nós temos a doença: cada ser humano está infectado e é fatal para o outro. Perdi o que tornava suportável a tua companhia, o que me garantia ser capaz de realmente te aturar, de te olhar, de te ouvir, de realmente te tocar, de te conhecer (meu deus, que seca!)!…, como se realmente existisses. Lembro-me… mas como parece distante… coisa de outras eras… de outras gentes, assim tipo Neardanthal ou Cro-Magnon… Antigo Regime ou Pós-II Guerra, gentes do passado, habituadas a bizarros costumes… Estamos fechados em casa. Onde se está bem. Supermercamos e regressamos como se de Tróia viéramos: cansados. Mas não vimos de lado nenhum. Nenhum lugar há para ir. Mas ainda a precisar de reconstruir arquétipos, continuar a peça, representar qualquer coisa: um papel tíbio, que não perturbe, não contagie, mas ainda assim presente como um fantasma ousa estar presente numa mente temerosa e oca. A obrigação de fazer qualquer coisa. E a nossa casa é igual à casa seguinte e passasse mais ou menos a mesma coisa, mais net e menos flix, mais face e menos book (pouco importa), sem que saiba se isso efectivamente me irrita ou, pelo contrário, me conforta. Uso máscara. Sempre usei, só que ninguém dava por isso. Agora uso duas. Agora é importante saber que se está infectado. Ter consciência aguda do seu próprio estado. Compreender o mal que se pode passar aos outros. Ser o impaciente zero. Onde me pode levar tamanha ousadia?… Por vezes vou ao restaurante… arrisco. Doutras não sei o que fazer porque qualquer acção me parece inútil, pré-programada, como um destino perante o qual não sobra sequer a vontade de ser espectador. A vontade de tão diluída: fantasma. O mundo sem os outros não interessa. Com eles também não. É o que a doença nos ensina. Não é de agora. Nem do vírus coroado rex. Seria bom, seria útil, será impossível: talvez uma peste, um dia, nos faça cair a máscara. A nós: os infectados.
João Luz VozesO medo [dropcap]O[/dropcap] jornalismo é uma actividade feita de imprevistos. Mas por cá, existe uma dificuldade extra ao trabalho dos jornalistas: o terror absoluto ao poder do patrão, a subserviência canina e o pavor de armar ondas, de ser aquele gajo que se mete em bicos de pés. Mas nem é um caso desses que me leva a escrever estas linhas. O mundo atravessa uma crise que carece de clareza, de informação especializada, que também é serviço público. Quando um especialista, ou técnico, usa as redes sociais para transmitir a sua sapiência e iluminar a perigosa treva do desconhecimento, o seu contributo pessoal está dado. Por vezes, os meios de comunicação social acabam por ser megafones destas informações privilegiadas. Mas então e se o papá não gostar? Ui, arranja-se um trinta e um e lá nos encolhemos todos, não é? É deprimente ver um homem não ter autonomia para dar o seu contributo pessoal para o aumento do conhecimento social, sem opiniões ou julgamentos. Quantas vezes lemos nas redes sociais autênticos teasers de segredos que se sabem, mas que nem se sussurram? Quantas vezes são dadas pistas de casos que precisam de luz, ou de uma janela aberta para arejar o ar estagnado pela corrupção e do compadrio? Mas dizê-lo em voz alta é coisa para poucos bravos. Estou a extrapolar para coisas muito mais difíceis de dizer, quando por vezes a solução é simples. A cidadania também se faz dando a cara, assumindo o papel que desempenhamos na sociedade, como homens adultos.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesRegressar ao futuro [dropcap]R[/dropcap]ecentemente, quem olhar para os jornais de Macau, encontra sobretudo notícias sobre a revitalização da economia e análises sobre os cupões electrónicos. Estas notícias ocupam as páginas dos jornais porque na cidade não aparece nenhum caso de infecção por coronavírus há cerca de um mês. Para já, a saúde da comunidade de Macau está garantida. Isto significa que o perigo da doença já passou e que nos devemos concentrar nas medidas pós-epidémicas? De momento, Hong Kong continua a ter novos casos e na China as infecções continuam a aumentar. O vírus chegou a outros países e a situação está particularmente grave na Coreia do Sul e em Itália. Podemos afirmar que o mundo está infectado com o coronavírus. A actual situação de Macau pode ser descrita como uma reconvalescença em fase inicial. Está na altura de pensar na reactivação das dinâmicas sociais, como é o caso do regresso dos estudantes à escola. Passaram duas semanas sobre o regresso dos funcionários públicos ao trabalho. A comunicação social tem encorajado a retoma da actividade comercial. A vida parece estar a voltar aos poucos ao normal e grupos de pessoas voltam a animar as ruas de Macau. O vírus é transmitido por partículas de secreções. Os infectados podem facilmente transmitir o vírus. Como não surgiu nenhum caso após o regresso ao trabalho, deduz-se que, por enquanto, não existem doentes em Macau. Como é sabido, este vírus tem um período de incubação e por isso as pessoas são postas de quarentena sempre que existem suspeitas de contágio. Como tal, após estas duas semanas de regresso ao trabalho sem registo de novos casos, podemos supor, que o risco de existirem pessoas contaminadas em Macau é baixo; como tal, é possível reabrir as escolas sem grandes preocupações. Embora esta não seja uma das principais prioridades em termos económicos, é importante que os estudantes regressem às suas actividades normais. Claro que nesta situação, todo o cuidado é pouco e os pais têm de estar seguros de que não estão a colocar os filhos em perigo. Com o regresso dos estudantes, as escolas vão ter uma série de problemas para resolver. Enquanto os jovens estiveram em casa, muitas escolas optaram pelo ensino online, seguindo a política de “suspender as aulas, mas não suspender o estudo.” Foi sem dúvida um bom princípio. No entanto, os jovens que não têm computador, ou acesso à internet, não puderam beneficiar desta possibilidade. Como é que as escolas vão lidar com esta desigualdade? E em relação às férias de Verão, como é que se vão realizar este ano? Quando está na ordem do dia a revitalização da economia, vamos discutir algumas hipóteses que possam ser benéficas para todos. Apoiar os comerciantes a ultrapassar as dificuldades causadas pelo encerramento dos negócios e revitalizar a economia é o primeiro passo, após o perigo de a epidemia ser ultrapassada. Segundo os dados da Direcção dos Serviços de Estatística e Censos de Macau, o PIB em 2019 foi de 346.67 mil milhões de patacas, dos quais 25 mil milhões serão usados para revitalizar a economia, numa percentagem de cerca de 17.38%. A aplicação desta verba irá “sobreaquecer” a economia, ou irá produzir um crescimento moderado? É uma questão para ser colocada aos economistas. Os comerciantes de Macau precisam de saber aplicar os subsídios nos negócios e continuar a geri-los com uma melhor postura, “virada para o futuro”. É esperado que o volume de vendas do comércio local volte aos valores que se registavam antes da epidemia. A ideia dos cupões electrónicos não pode ser implementada em todas as lojas porque algumas não possuem computadores em que o sistema possa ser instalado. Além disso algumas pesssoas não têm smartphones, nem computadores, ou não sabem fazer o registo no website da Autoridade Monetária de Macau, o que implica que esta matéria tem de ser trabalhada com maior profundidade. Os equipamentos têm de ser instalados o mais rapidamente possível e as pessoas precisam de ser ensinadas, caso contrário esta medida está destinada ao fracasso. O vírus já se espalhou a nível global e já se registaram muitas mortes. Embora Macau se encontre no início de uma “reconvalescença”, não sabemos se o vírus não vai regressar. A atitude correcta é continuarmos a ter cuidado. O ideal é que surja uma vacina ou um tratamento mais eficaz. Caso esse cenário não esteja para breve, que medidas podem ser tomadas para já? Por exemplo, Macau deve considerar criar uma linha de produção de máscaras? Deve ser banido o consumo da carne de animais selvagens? Esta doença de ser considerada uma infecção de alto risco, e se for o caso, devemos notificar a China continental e Hong Kong? Todos sabemos que as doenças são inevitáveis. Cada nova epidemia acarreta uma nova crise para a Humanidade, mas também nos ensina novos métodos de prevenção e faz-nos descobrir novos tratamentos; apenas com a aprendizagem através da experiência e com a evolução constante, podem os seres humanos ultrapassar as doenças e continuar a viver neste planeta. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
João Santos Filipe VozesGrande poder [dropcap]N[/dropcap]os últimos tempos tem havido um rol de críticas às medidas de controlo e prevenção de países do Ocidente. Acaba por ser compreensível. Qualquer pessoa se sente mais segura em Macau, devido às políticas apresentadas, do que em qualquer país da União Europeia. Contudo, parece-me que a resposta à epidemia foi muito afectada pela inutilidade da Organização Mundial de Saúde. Até certo ponto, a questão foi sempre desvalorizada. Era um assunto da China. Isso fez com que a declaração de epidemia mundial fosse atrasada ao máximo. Já depois do vírus ser conhecido, enquanto a China se concentrava na luta contra a epidemia, a Organização Mundial de Saúde limitava-se a desvalorizar. Foi um triste exemplo dado por uma instituição que tinha a obrigação de fazer muito mais e melhor… Seria interessante perceber até que ponto foram as decisões “políticas” que impediram um esforço mais concertado de luta contra o vírus. No entanto, uma coisa parece muito clara, além das várias vítimas da doença, e o número ainda vai crescer muito, a credibilidade da OMS ficou igualmente extremamente afectada. Urge reformular a instituição e fazer rolar cabeças. Outro aspecto que merece ser questionado são os moldes da globalização. Todos gostamos muito da liberdade de circulação e acesso ao comércio mundial, mas este caso vem mostrar que é necessário um igual acesso à informação. As decisões nacionais, principalmente no caso das grandes potências, têm cada vez mais um impacto mundial. Esta tem de ser a grande lição de todo o caso. Com um grande poder vem uma grande responsabilidade. É bom que isso não fique esquecido.
Carlos Morais José VozesZero [dropcap]Z[/dropcap]ero. O zero demorou a inventar. Ou terá demorado a perceber a possibilidade de nada e a sua extrema utilidade? Zero é difícil de compreender, é esquisito, provoca ânsias… o vazio. Zero. Zero para quê? Nada é tramado. O vazio angustiante. Ninguém uma suave tragédia. E nisto andamos. Sem sobressaltos. Deslizamos. Curiosamente, a Terra chata continua o seu percurso de fresbee à volta do Sol e o Sol a sua dissidência láctea, aparentemente sem objectivo decifrável. Um destino de nada é um nada de destino. Ou vice-versa (com pronúncia francesa). Por isso o zero me fatiga, o zero me odeia e me atrai. Acabo por amar o que me cansa, o que me é familiar e incessante. Como o zero. E sabe a nada ou a vento que é o mesmo que nada mas tem uma textura, uma consistência, uma realidade que escapa ao zero. A boca órfã. Os dentes crentes. A língua vazia. O desdém franco pela telepatia que ao abismo me leva. A boçalidade do buraco negro. Não lhe adianta não servir para nada. Não chega ao zero. E sobra em treva. O zero dos maias, dos semitas ou lá de quem foi! Te arrenego, santo zero, querido vazio, mártir nada, pulga ninguém! O zero inquieta-me. Respiremos…
João Luz VozesPolítica virulenta [dropcap]Q[/dropcap]uase tão contagiosa e letal como um vírus, a política é infecciosa e tem inscrita na sua natureza o ataque à integridade de corpos sãos. O alcance viral da política também chega a todos os cantos da experiência humana, é uma pandemia. Muitas vezes citado fora do contexto, Thomas Mann escreveu uma frase emblemática do alcance universal da política: “Tudo é político.” Apesar de abominar assumidamente liberdades “excessivamente” democráticas nascidas do Iluminismo, Mann é o exemplo da complexidade de pensamento que é trucidada pelo monstruoso espectáculo político. A máxima de Mann foi mais tarde “corrigida” por Michel Foucault, que desconstruiu a asserção do alemão. Na óptica do francês, a máxima “tudo pode ser politizado” responde muito melhor à forma universal do alcance da política. Num dos seus últimos esforços na luta pela decência, Christopher Hitchens defendia que “a religião envenena tudo”. Acrescento a política ao ramalhete de doutrinas tóxicas, defendidas com fulgor fanático, contrárias à sobrevivência humana. Se acha que estou a exagerar permita-me duas palavras: Alterações climáticas. A questão agora, chegados a este parágrafo e depois do pesado name dropping, é saber de que porra estou para aqui a falar. Simples. Covid- 19 e política, ou a forma como a saúde pública é uma ninharia secundária face ao marketing político e à imagem. A começar pela China. Lamento muito caros adeptos do PCC, como não tenho cavalos nestas corridas posso ser objectivo, sem paixões quase-clubísticas. É verdade que Pequim agiu com firmeza e determinação quando a coisa se tornou feia em Wuhan. Mas não vamos andar a escamotear que durante semanas a fio, quase um mês, oficialmente só havia 40 infectados. Quando surgiram infecções na Tailândia e Coreia do Sul, a comunidade científica alertou para a possibilidade de os números oficiais não corresponderem à realidade. Ui, uma pança cheia de vilanagem, diabólica interferência estrangeira dessa ciência ianque que quer denegrir a pátria. Dias depois, os novos casos começaram a surgir à média de mais de uma centena a cada 24 horas. Um médico de Wuhan, que esboçou uma tentativa de alerta da comunidade médica para a possibilidade de um surto semelhante à SARS, acabou por cair nas malhas da polícia, num país onde a justiça é abertamente subordinada ao poder político. Este homem acabou por morrer e engordar a estatística das casualidades provocadas pelo novo coronavírus. Morreu a tratar quem sofria do mal para o qual tentou chamar a atenção. Mais ou menos por essa altura, Pequim deu um murro na mesa ao afirmar que não permitiria nada além de transparência no combate ao surto, recordando que também o SARS foi escondido por questões políticas, até ganhar uma dimensão preocupante. Não sei se alguma vez chegaremos a saber se o alcance global do Covid- 19 seria igual caso fosse tratado como ameaça à saúde pública, numa primeira instância, em vez de ser uma pedra no político sapato, em vésperas do arranque da Assembleia Popular Nacional. Pelo mundo inteiro, o Covid-19 tem sido arma de arremesso político, inclusive em Portugal. Mas agora, vou coçar a comichão chamada “atão e os amaricanos”. Não para apaziguar bicefalia, mas porque, de facto, nos Estados Unidos a politização do novo coronavírus tem sido um triste espectáculo, uma fossa séptica de imoralidade a tornar o ar irrespirável. As barbaridades proferidas por Trump são imensas. “Há quem diga que coronavírus é pior que a gripe e há quem diga que é melhor”, um pequeno exemplo das pérolas de ignorância que saem da Casa Branca. Além de nomear o seu vice para chefiar o organismo de resposta ao surto, um homem que acredita mais nas qualidades curativas da oração do que na ciência, Trump referiu que o vírus iria, miraculosamente, desaparecer em Abril com a subida das temperaturas, mentiu com todos os dentes sobre o número de infectados, culpou o Obama do desinvestimento que ele próprio fez do Centros de Controle e Prevenção de Doenças, entre outras alarvidades. Mais preocupado com os efeitos em Wall Street e na forma como o surto pode afectar o eleitorado nas presidenciais que se aproximam, Trump abertamente assumiu que tudo para si é marketing político, inclusive a vida dos americanos. Além de incriminar o partido democrata de desejar a morte de milhares de americanos para tirar dividendos políticos, e disparar à maluca contra a CNN, Trump confessou, em directo, que “não precisa que os números dupliquem devido a um cruzeiro que não é culpa nossa”. Ou seja, Trump está mais preocupado com as repercussões políticas dos números de infectados, do que com a vida dos tripulantes do cruzeiro, na maioria norte-americanos. Declarações proferidas na qualidade de Presidente dos Estados Unidos, mas ostentando o boné com o slogan de campanha. Um nojo. Podia estar aqui cinquenta páginas a desfiar exemplos letais da politização da saúde pública, ou como os partidários transformam a coisa numa luta identitária, mas já estou a rebentar a escala dos caracteres.
João Romão VozesEstado de emergência [dropcap]N[/dropcap]unca tinha vivido tal situação mas calhou agora, ver decretado “estado de emergência” na região em que vivo, a ilha de Hokkaido no norte do Japão, quase do tamanho de Portugal mas com metade da população, dispersa por um território de majestosas montanhas e muito frio, pelo menos por enquanto, que as alterações climáticas já vão trazendo algum sinal de mudança. Nem esse relativo isolamento geográfico e climático, nem a dispersão populacional da zona evitaram, no entanto, que esta se tornasse a região japonesa com mais casos de infecção pelo coronavírus: 79, nesta quarta feira em que escrevo, 19 dos quais na cidade de Sapporo, onde vivo e onde se concentra a maior parte da população de Hokkaido (1,8 milhões dos 5,5 milhões de residentes na ilha). Hokkaido é uma região relativamente distante do centro económico e cultural do Japão, tardiamente ocupada por população japonesa no final do século XIX e por isso sem os tradicionais elementos do património arquitectónico que vão representam as diversas fases históricas de evolução do país. Talvez pelas magníficas paisagens naturais que resulta dessas particularidades geográficas e climáticas, a região é destino de referência para o turismo chinês, cujo extraordinário crescimento observado nos últimos dez anos teve sobre Hokkaido impacto significativo . Enquanto cidade capital da região, onde se localiza o aeroporto, Sapporo é o ponto central destes fluxos turísticos: ainda que se dirijam a diferentes pontos da ilha, todos os turistas passam por aqui. Esta especial atractividade turística no mercado chinês particular trouxe também uma particular vulnerabilidade e a região havia de se tornar relativamente depressa na primeira do país quanto ao número de casos de infecções pelo coronavírus, ultrapassando mesmo a capital, Tokyo, com muitíssimo mais gente e muitíssimo maior densidade populacional, uma combinação aparentemente mais favorável à propagação de vírus. Não foi assim – ou foi apenas numa primeira fase – e é em Hokkaido que está hoje o maior foco de preocupação das autoridades de saúde japonesas, que entretanto decretaram o encerramento por um mês de todas as escolas do país, duplicando o habitual período de férias primaveril – e promovendo, já agora, um imprevisto estímulo económico a salas de karaoke e outros estabelecimentos de entretenimento para adolescentes. Nota-se uma certa urgência em resolver o problema, não só pelas óbvias questões de saúde pública, mas também por outras (e também óbvias) implicações económicas que possam decorrer, por exemplo, da necessidade de cancelar os Jogos Olímpicos do verão que se aproxima (e que se realizará, eventualmente, a seguir ao original campeonato europeu de futebol que este ano se vai disputar em vários países europeus, todos eles actualmente a enfrentar o mesmo problema). Este impacto na vida quotidiana que estamos a viver, diga-se também, teria certamente sido muitíssimo maior se não fossem as drásticas medidas de contenção do governo chinês e a disciplina da respetiva população: mais de mil milhões de pessoas a viver nas grandes cidades da China estiveram durante algum período encerrados em casa, com cidades desertas e economias paralisadas. Muito largos milhares (ou mesmo milhões, que essas contas ainda estão por fazer com precisão) de viagens foram canceladas, com bilhetes pagos e reservas feitas. Um bom número dessas viagens tinha Hokkaido como destino e isso nota-se em Sapporo: o centro da cidade, com as suas lojas e infinitos restaurantes, quase completamente vazios, primeiro de turistas e depois também de residentes locais. Há já apoios financeiros públicos às empresas que demonstrem ter pelo menos 10% do seu volume de negócios dependente do mercado chinês, o que certamente inclui todos os estabelecimentos comerciais, hoteleiros e de restauração do centro da cidade. A propagação da doença a que vamos assistindo – 3 ou 4 novos casos por dia na última semana – é por isso pequena em relação ao que aconteceria se não houvesse estas drásticas medidas preventivas. O estado de emergência a que os residentes de Hokkaido estão sujeitos é sobretudo um apelo a uma certa disciplina colectiva – generalizadamente aceite, como é habitual por aqui – acompanhado de medidas de excepcionais de cuidados de saúde e apoios financeiros às economias e ao emprego locais. Não há sirenes a apitar ou militares nas ruas da cidade: há regras e informação sobre como lidar com o assunto. E televisões, naturalmente, todo o dia a bombardear pânico e terror, mas a isso sou relativamente imune, que já há muitos anos reduzi o televisor a um aparelho onde se exibem ocasionais filmes ou jogos de futebol. Por enquanto declarada por 3 semanas, é difícil prever quanto durará, na realidade, a dita situação de emergência. No meu caso familiar, até já tínhamos declarado com antecedência um certo estado de emergência doméstico, que incluiu reduzir as saídas ao máximo, sobretudo a sítios com grande concentração de pessoas ou cancelar viagens profissionais que já estavam marcadas. Temos, é verdade, uma particularidade que nos torna eventualmente mais vulneráveis e certamente mais sensíveis ao problema. Mas estes processos de contaminação são certamente um dos casos em que os nossos comportamentos individuais têm evidentes implicações sobre a vida dos outros e das comunidades: o isolamento é um antídoto inevitável para preservar a vida social.
João Luz VozesAi Portugal, Portugal [dropcap]R[/dropcap]egressei de Lisboa no final de Fevereiro, depois de um mês de piadas hilariantes sobre coronavírus e trocadilhos originalíssimos com cervejas mexicanas. Nessa altura, o Covid- 19 era inspiração para comédia caseira de qualidade duvidosa e alvo de relativização digna de QI de dois dígitos. Uma coisa distante, menos grave que a gripe ou uma unha encravada, algo que pode ser curado com um café e um bagaço, coisa de chineses e da histeria colectiva dos medrosos. O coronavírus começou por ser o fartote da época nas redes sociais e fermento do merecido escárnio em relação à sangria desatada do ciclo de 24 horas de notícias, da telenovelização da informação. Apesar de haver quem apelasse ao equilíbrio, à prevenção racional, Portugal parece ter passado da relativização ao pânico num passo único. É sempre assim. Com meia dúzia de pessoas infectadas à altura que esta coluna é escrita, a corrida desenfreada à compra de máscaras esgotou o stock nas farmácias. Entretanto, a corrida à bagaceira curativa parece que nunca aconteceu. Apesar das críticas à capacidade de resposta do SNS, a solução não passa apenas pelo Governo. Além do mais, o SNS teve de ser cortado face à necessidade maior de encher a pancinha de um sistema bancário com ética do Cartel de Sinaloa. A verdade é que sem uma sociedade civil informada e adulta, não existem políticas, ou redes de apoio social, que resistam. Que se saiba, o chicoespertismo não tem efeitos terapêuticos.
Pedro Arede VozesPrioridades [dropcap]N[/dropcap]uma altura em que Macau está a lidar com as inúmeras e (algumas ainda) imprevisíveis ondas de choque provocadas pelo Covid- 19, um dos temas escolhidos por Si Ka Lon para a comissão de acompanhamento para os assuntos da administração pública acompanhar nos próximos meses é a lei de salvaguarda do património cultural. Os pais, de volta ao dia a dia laboral, podem até nem saber o que fazer aos filhos que continuam sem agenda escolar, as falências podem continuar a suceder-se (trazendo consigo todos os dramas familiares adjacentes), os ainda muitos residentes de Macau continuam em Hubei pedem ajuda, mas um dos pontos de trabalho que estará em discussão nos próximos tempos na Assembleia Legislativa, prende-se com o facto de, para poderem vender os seus imóveis situados em zonas históricas, os proprietários estarem actualmente obrigados a obter do Instituto Cultural um comprovativo sobre o não exercício de direito de preferência na compra. Si Ka Lon, que preside à comissão, afirmou que esta lei “perturba os cidadãos”, mas confesso ter muita facilidade em encontrar muitos outros temas perturbadores (e mais urgentes) nos dias que correm. A abordagem é ainda mais incompreensível, quando o trabalho do Governo, no que diz respeito ao controlo e prevenção do novo tipo de coronavírus, tem sido na minha opinião, assinalável e pautado pela capacidade de antecipação, frontalidade e ponderação. Veremos as prioridades que se seguem.
Olavo Rasquinho VozesClima e migrações [dropcap]E[/dropcap]ntre as principais razões que têm levado à deslocação de quantidade significativa de migrantes contam-se, entre outras, desemprego, trabalho mal remunerado, regimes ditatoriais, guerras, discriminação religiosa e desastres naturais. Desde há algumas décadas vieram juntar-se as alterações climáticas às diferentes causas mencionadas. Segundo a Organização Internacional para as Migrações (International Organization for Migration – IOM) migrantes climáticos são as pessoas que se deslocam dentro ou fora do país, devido às alterações progressivas nas condições do clima ou do meio-ambiente. Talvez o caso mais dramático de migração devido às alterações climáticas é o que tem vindo a ocorrer nas Ilhas Carteret, um conjunto de pequenas ilhas com a área total de cerca de 0,6 quilómetros quadrados, que fazem parte de um atol localizado na região equatorial do Pacífico Sul, pertencente à Papua-Nova Guiné. A subida do nível do mar tem provocado grande preocupação na população deste território com altitude média inferior a 2 metros. Quando ocorrem ventos fortes, as águas oceânicas invadem as zonas mais interiores do atol, o que implica o aumento da salinidade dos terrenos agrícolas. Como consequência, verifica-se uma diminuição da produção agrícola, constituída essencialmente por coqueiros, árvores de fruta-pão e bananeiras. Perante estas condições, em 2007, os cerca de 2000 habitantes destas ilhas foram deslocados para a ilha de Bougainville, a cerca de 90 km. Esta migração foi alvo de notícias dos órgãos de comunicação social, alguns dos quais classificaram os deslocados como os “primeiros migrantes climáticos”. Ainda no Pacífico, as populações de outros territórios insulares sofrem dramas semelhantes. É o caso de Kiribati, Tuvalu e Ilhas Marshall. O primeiro destes países, com cerca de 110.000 habitantes, é constituído por 33 ilhas, das quais 32 são atóis. Com uma área total de 811 quilómetros quadrados, as ilhas estão dispersas por uma vasta região a norte e sul do equador e a leste e oeste do meridiano 180 graus (oposto ao meridiano de Greenwich), o que faz com que o Kiribati seja o único país de mundo com território situado nos quatro hemisférios (norte, sul, oriental e ocidental). Os territórios das Ilhas Carteret, Tuvalu e Kiribati localizam-se próximo do equador, o que faz com que estejam fora das trajetórias dos ciclones tropicais, o que não impede que sejam esporadicamente afetados por linhas de borrasca cujos ventos associados provocam marés de tempestade, ou seja a invasão das zonas costeiras por água arrastada pelo vento, o que, num território com baixa altitude, contamina os escassos lençóis freáticos e afeta gravemente a agricultura. Perante esta realidade, os dirigentes de Kiribati e Tuvalu estabeleceram conversações com o governo da Austrália, no sentido de discutirem a possibilidade de serem assistidos na deslocação das respetivas populações para este país. O governo de Kiribati chegou mesmo a comprar terrenos nas Ilhas Fiji, tendo em vista a futura instalação de deslocados. As Ilhas Marshall, com cerca de 58.000 habitantes e aproximadamente 1.200 ilhas dispersas por 29 atóis abrangendo cerca de 1.800.000 quilómetros quadrados, enfrentam também as consequências da subida do nível de mar. Situam-se no Pacífico Norte, a noroeste de Kiribati. São afetadas por ciclones tropicais e consequentes marés de tempestade, o que é uma agravante para as condições de vida. Ou se tomam medidas drásticas de adaptação às alterações climáticas, ou a população terá de migrar para outros territórios. Uma das medidas de adaptação, de acordo com o Professor Chip Fletcher, da Universidade do Havai, poderia consistir em prescindir da laguna de Majuro (capital das Ilhas Marshall), a qual seria sujeita a drenagem e preenchida com terra de modo a aumentar a altitude da ilha. Outra hipótese seria a construção de ilhas artificiais, o que, aliás, não seria inédito, na medida em que a China tem recorrido a este processo no Mar do Sul da China, embora com finalidade diferente da adaptação às alterações climáticas. Também no Índico, em alguns territórios insulares, a subida do nível do mar é dramática. Foi notícia nos meios de comunicação social, aquando da tomada de posse do primeiro governo eleito democraticamente nas Maldivas, em 2008, que havia a intenção de comprar terras não só na Índia e Sri Lanka, países com culturas e clima semelhantes, mas também na Austrália, a fim de nelas estabelecer futuramente a população maldiva (cerca de 400.000 habitantes). Nessa altura o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) previa uma subida do nível do mar da ordem de 25 a 58 centímetros até 2100. Esta situação, a tornar-se realidade, implicaria a submersão de grande parte do território das Maldivas, país constituído por 1.192 ilhas agrupadas em 26 atóis. Compreende-se a preocupação do governo, na medida em que o ponto de maior altitude do território maldivo é da ordem de 2,5 metros. O então primeiro ministro das Maldivas, Mohamed Nasheed, chegou mesmo a encenar uma reunião ministerial submarina, em 2009, a qual foi amplamente divulgada pelos meios de comunicação social, a fim de chamar a atenção da comunidade internacional sobre as ameaças colocadas pelas alterações climáticas. A Papua Nova Guiné, Kiribati, Tuvalu, Ilhas Marshall e Maldivas fazem parte da organização intergovernamental intitulada Aliança dos Pequenos Estados Insulares (Alliance of Small Island States – AOSIS), cujo principal objetivo é coordenar os esforços dos pequenos Estados insulares em desenvolvimento para combater as alterações climáticas. Esta organização abrange ao todo 43 membros efetivos e observadores de todo o mundo, e dela fazem parte a maioria dos países insulares distribuídos pelos oceanos Atlântico, Índico e Pacífico. Como a existência de migrantes climáticos é, segundo interpretação da ONU, consequência das alterações climáticas, e estas são causadas pela injeção de gases de efeito de estufa (GEE), conclui-se que são necessárias medidas drásticas de redução da utilização de combustíveis fósseis. Como os principais emissores de GEE são as grandes potências, é justo que se criem mecanismos de proteção dos países em vias de desenvolvimento, em especial os pequenos países insulares, na medida em que, sendo os menores emissores de GEE, são os que mais estão em risco. As populações dos pequenos estados insulares devem ser tratadas com dignidade, criando-se condições para se adaptarem às alterações climáticas nos locais onde vivem ou, caso tal seja impossível, apoiá-las nos seus movimentos migrantes, evitando que se tornem refugiados climáticos.
Andreia Sofia Silva VozesA efémera cultura [dropcap]É[/dropcap] oficial: temos dois casos confirmados de infecção com o Covid-19 em Portugal e, pelas ruas, não se fala de outra coisa. Muito antes de haver infectados já havia uma corrida às máscaras e desinfectantes e é muita a informação errada que corre de boca em boca. Mas esta pequena crónica pretende chamar a atenção não apenas para o Covid-19, mas para o contributo que este deu para a cultura. Para a cultura? Perguntam vocês. É verdade. Foi graças ao Covid-19 que, provavelmente, muitos ficaram a saber quem é o escritor Luís Sepúlveda, um dos infectados que esteve na cidade de Póvoa do Varzim para participar no festival literário Correntes D’Escritas. O mesmo festival que, incrivelmente, fez abertura de telejornais. E agora dizem: mas as pessoas estão a ler mais em Portugal? Não. O que há é uma histeria colectiva com o Covid-19 fomentada também pelas redes sociais e pelos próprios media. Duvido, no entanto, que aqueles que partilharam notícias sobre a infecção de Sepúlveda tenham tido o interesse de ver que livros escreveu. Temo, também, que quem não conhece o festival do norte do país tenha ido pesquisar autores e respectivas obras. É a cultura efémera, um mero título de jornal, uma frase num rodapé de um televisor. É quanto basta.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO Brexit americano “Russia may very well be front and center again in 2020 as they were in 2016 regarding interference in America’s presidential election. But the Trump administration is seeking to use its power of diplomacy to bring other countries into the act as well.” Richard Painter [dropcap]V[/dropcap]ivemos com crescentes níveis de risco geopolítico por quase uma década, mas sem uma verdadeira crise internacional. Afora da geopolítica, as tendências globais têm sido fortemente favoráveis, mas a situação está a mudar. A globalização é fundamental e a característica mais importante do cenário da era pós-guerra como as pessoas, ideias, bens e capital movem-se cada vez mais rapidamente através das fronteiras ao redor do planeta, criando riqueza e oportunidade extraordinárias. Aumentou a igualdade global (mesmo quando criou mais desigualdade em muitos países), reduziu a pobreza, prolongou a vida activa e apoiou a paz e prosperidade. Todavia, com a China e os Estados Unidos a separarem-se em termos tecnológicos, uma fracção crítica da economia do século XXI está a fragmentar-se em duas partes. Os países do mundo desenvolvido tornaram-se mais polarizados, aumentando o poder do tribalismo. É de acrescentar o contracção das cadeias de fornecimentos com mudanças na política, economia e tecnologia de bens e serviços manufacturados, e de subitamente a globalização apresenta uma personalidade dividida. Ainda há que considerar as tendências económicas e geopolíticas. Ambas estão a diminuir. A economia global, depois de emergir da grande recessão de 2008 com a maior expansão do período pós-guerra, está a abrandar e intensificar-se-á com o aparecimento do inesperado COVID-19 que se alastra insidiosamente pelo mundo, sem que a fraca OMS a declare como pandemia. Assim, é de esperar uma maior recessão que se iniciou e se prolongará até 2021. O mundo está a entrar em uma recessão geopolítica cada vez mais profunda, com a falta de liderança global como resultado do unilateralismo americano, a erosão das alianças lideradas pelos Estados Unidos, a Rússia em declínio que quer minar a estabilidade e coesão da América e dos seus aliados, e a China cada vez mais fortalecida com uma liderança consolidada, que está a construir uma alternativa competitiva no cenário global. As mudanças climáticas estão a começar a restringir o crescimento económico e a impor-se no cenário político global como nunca antes tinha acontecido. Tal aumentará com o tempo (diferentemente das tendências económicas e geopolíticas cíclicas, que mais cedo ou mais tarde se tornarão mais favoráveis). Assim, em 2020, temos uma combinação de linhas de tendência negativas que não vivíamos há gerações. O ambiente em deterioração tem muito mais probabilidade de produzir uma crise global. Os recursos disponíveis para os governos e sector privado, facilitam mais as respostas no presente em detrimento do considerado assente no passado, mas a escala dos desafios é maior e a recessão geopolítica mina a cooperação global e por essas e outras razões, 2020 parece ser um ano realmente preocupante. A política interna dos Estados Unidos nunca constituiu um risco, mas em 2020, as instituições do país serão testadas de forma sem precedentes. A decisão da China e dos Estados Unidos de se separarem na esfera tecnológica é o desenvolvimento geopolítico mais impactante para a globalização desde o colapso da União Soviética. A política interna dos Estados Unidos constitui um risco dado que as instituições americanas estão entre as mais fortes e resistentes do mundo. Os americanos enfrentarão os riscos de uma eleição nos Estados Unidos que muitos consideram ilegítima, incerta como efeito e em um ambiente de política externa menos estável pelo vácuo derivado. As restrições institucionais impediram o presidente Donald Trump de realizar grande parte da sua agenda política (da mesma forma que os presidentes que o precedem), mas não o impediu de dividir o país. Será que um país que está polarizado pode progredir? O presidente Trump teve um “impeachment” na Câmara dos Deputados e foi absolvido pelo Senado, e essa dinâmica deslegitimará as eleições presidenciais de Novembro de 2020. Os democratas sentirão que o “impeachment” foi politicamente anulado para colocar o presidente acima da lei, enquanto o presidente Trump se sentirá habilitado a interferir nos resultados das eleições, pois o “impeachment” não é mais um instrumento credível de restrição política. Ao mesmo tempo, haverá interferência externa nas eleições dos Estados Unidos, especialmente da Rússia, e o presidente e o Senado pouco farão para minimizar os danos, com a aplicação de medidas mais rigorosas de segurança nas eleições, ou seja, haverá uma eleição que, com antecedência, será percebida como “fraudulenta” por uma grande percentagem da população. As pesquisas de opinião pública mostram que esse risco está a aumentar e de acordo com uma pesquisa de 2019 da Ipsos Grupo S.A, que é uma empresa de pesquisa de mercado e consultoria com sede em Paris, que revelou que apenas 53 por cento dos americanos acreditam que a eleição presidencial será justa, mas a maior queda de confiança ocorreu entre os eleitores democratas, pois em 2016, 84 por cento dos mesmos acreditavam que a eleição seria justa; tendo caído para 39 por cento em Setembro de 2019, quando inquiridos sobre a eleição de 2020. Os desafios legais, que provavelmente fracassarão em um Supremo Tribunal de tendência conservadora, podem até levar a pedidos de alguns trimestres no sentido da votação ser adiada ou boicotada, o que seria um mau acontecimento, que minaria ainda mais a legitimidade eleitoral. Alternativamente, se o presidente Trump sentir que provavelmente perderá, poderá culpar actores externos como a Ucrânia por interferências e tentar manipular os resultados (especialmente em estados vulneráveis, onde os aliados do presidente Trump têm influência política) em nome da garantia da segurança eleitoral. Será o pior clima político para uma eleição nacional que os Estados Unidos vão viver desde a (efectivamente fracassada) eleição de 1876. Quando as eleições terminarem, surgirão problemas sérios, pois se o presidente Trump vencer no meio de acusações credíveis de irregularidades, o processo eleitoral será contestado e o mesmo acontecerá se perder, especialmente se as votações dos dois candidatos mais votados estiverem próximas, o que provavelmente acontecerá. Tal levaria a processos idênticos aos das eleições de Al Gore-George W. Bush em 2000, que foram decididas pelo Supremo Tribunal. Ao contrário de Gore-Bush, é difícil ver um cenário em que o Tribunal Federal decida e o perdedor graciosamente aceite o resultado como legítimo, especialmente se o perdedor for o presidente Trump. A eleição de 2020 é um Brexit americano, ou seja, uma votação polarizada ao máximo, onde o risco é menos o resultado do que a incerteza política do que o povo votou. É um terreno político desconhecido, e desta vez em um país onde a incerteza cria ondas de choque no exterior. O descontentamento social significativo (ao estilo da França) torna-se mais provável nesse ambiente, assim como a violência interna, de inspiração política. Além disso, um Congresso que não funciona, com os dois lados a usar as suas posições para maximizar a pressão política sobre o resultado final das eleições, deixando de lado a agenda legislativa, torna-se em um problema maior se os Estados Unidos estiverem a entrar em uma desaceleração económica, apoiados em gastos alargados e outras medidas no período que antecede as eleições. O desafio também se estende à política externa, porque qualquer decisão que o presidente Trump tome sobre questões comerciais ou de segurança nesse ambiente seria vista como falta de autoridade. Os inimigos verão a presidência dos Estados Unidos como a mais fraca desde que Richard Nixon se envolveu no caso “Watergate”, e desta vez não existe Henry Kissinger. A procura imprudente pela diplomacia é mais segura do que a procura irreflectida pela guerra que é a preferência do presidente Trump de “acariciar o cachorro” em vez de o “abanar” (fazer maus negócios com governos estrangeiros em vez de arremessar ataques), mas mesmo assim ainda significa esforços sem precedentes do presidente Trump de alinhar a política dos Estados Unidos, com os interesses de antagonistas e inimigos como a Rússia e a Turquia e com aliados e parceiros. As suas políticas, aliadas à turbulência na América, confundirão e desestabilizarão relacionamentos de longa data, com grandes pontos de interrogação sobre países que se sentem particularmente expostos como a Coreia do Sul, Japão e Arábia Saudita. O presidente Trump também está mais inclinado a calcular mal (e cada vez mais de forma incondicional pelos conselheiros quando o faz), arriscando criar riscos à volta dos confrontos geopolíticos que ocorrem de forma mais imprevisível e perigosa, como o Irão. Assim, de forma mais ampla, tanto os aliados quanto os inimigos dos Estados Unidos nos últimos anos, começaram a interrogar-se se o país pretende ser um líder mundial e apresentar propostas para um acordo pacífico e no meio de uma disputa competitiva em 2020, muitos desses países ainda perguntarão se os Estados Unidos tem capacidade para liderar. É um período de vulnerabilidade geopolítica incomum. É de realçar que a preocupação não é com a durabilidade a longo prazo das instituições políticas dos Estados Unidos. O país não corre o risco de perder a sua democracia em 2020. Também não existe alarme quanto aos mercados sobre uma “guinada para a esquerda” na política dos Estados Unidos, pois uma presidência de Bernie Sanders ou Elizabeth Warren permanece plausível, mas improvável; e mais importante é que o próximo presidente enfrentará as mesmas restrições do Congresso e outras institucionais que o presidente Trump tem. O mecanismo do “impeachment” quebrado, questões de ilegitimidade eleitoral e uma série de desafios judiciais fará de 2020 o ano mais volátil da política que os Estados Unidos viverão nas últimas gerações. Após uma série de mudanças na política dos Estados Unidos em 2019, a China concluiu que a separação é inevitável. A China surpreendida pelas acções dos Estados Unidos, fez que o presidente Xi Jinping pedisse uma nova “Longa Marcha” para acabar com a dependência tecnológica do país em relação à América. Ao mesmo tempo, a China irá alargar os esforços para remodelar a tecnologia internacional, o comércio e a arquitectura financeira para promover melhor os seus interesses em um mundo cada vez mais bifurcado. A separação, que interrompe fluxos benéficos de tecnologia, talento e investimento entre os dois países, vai além do conjunto de sectores estratégicos de tecnologia que estão no centro da disputa (semicondutores, computação em nuvem e 5G) em uma matriz mais ampla de actividade económica, o que afectará não apenas todo o sector de tecnologia a nível global avaliado em cinco triliões de dólares, mas uma série de outras indústrias e instituições, desde a média e entretenimento a pesquisa académica, criando uma divisão comercial, económica e cultural difícil de retroceder. Quanto ao sector da tecnologia, a atenção do presidente Xi dirige-se para a construção de “cadeias de provimentos resilientes” que fará aumentar os riscos da competição de tecnologia entre os Estados Unidos e a China e que é uma má notícia para as empresas de tecnologia americanas com grande presença na China. A Huawei começou a fabricar estações base que fornecerão energia às redes móveis 5G da próxima geração que, não contêm tecnologia americana O processo dos Estados Unidos e da China de “projectar” as tecnologias uns dos outros continuará. A Huawei e outras empresas chinesas também desenvolverão ecossistemas de “software” alternativos, perdendo os Estados Unidos a liderança em sistemas operacionais móveis e “software” corporativo. Os mercados estão preparados para controlos mais rígidos sobre as exportações de tecnologia dos Estados Unidos para a China e o uso de componentes chineses em sistemas de TI que ajudam a executar a infra-estrutura crítica americana, mas não estão preparados para os efeitos da resposta da China, a um aumento dramático no apoio à inovação local por meio de iniciativas, como o seu novo fundo nacional de semicondutores estimado em vinte e nove mil milhões de dólares e o seu esforço para promover a criação de um novo “Vale do Silício Chinês” na área da “Grande Baía” com setenta milhões de habitantes. A grande questão é de saber para onde irá o novo muro de Berlim virtual? Qual o lado que os países escolherão? Taiwan assumirá uma importância estratégica crescente para a China como fonte principal de equipamentos de origem não americana, especialmente os semicondutores de ponta em que empresas chinesas como a Huawei contam para competir na vanguarda global. A Coreia do Sul inclinar-se-á cada vez mais para a China pelo mesmo motivo. A mudança para a China será mais palpável no Sudeste Asiático, África Subsaariana, Europa Oriental e América do Sul. Os países de todas essas regiões tornar-se-ão campos de batalha, onde os Estados Unidos e a China concorrem para decidir quem fornecerá aos consumidores ferramentas para navegar na economia do século XXI, não apenas “telefones inteligentes” e redes que os alimentam, mas pagamentos móveis, comércio electrónico e serviços financeiros. Os Estados Unidos e a China demonstraram que estão dispostos a arquitectar o comércio global e as cadeias de provimentos. E para os americanos inclui a proibição de exportação da Huawei e de outras empresas de tecnologia chinesas. A China considera o bloqueio de importações de parceiros comerciais envolvidos em disputas de política externa com o país (por exemplo, o Canadá e as suas exportações de canola). Quando as duas maiores economias politizam as suas relações comerciais mais importantes, os sistemas de inovação e cadeia de provimentos tornam-se mais regionais e menos globais. À medida que as brechas aumentam, correm o risco de se tornar permanentes, lançando um tremor geopolítico sobre os negócios globais.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesHábitos alimentares [dropcap]A[/dropcap] semana passada, o Governo chinês tomou uma decisão de vital importância no combate ao novo coronavírus. Esta decisão poderá efectivamente travar a propagação do vírus, mas irá mudar os hábitos alimentares ancestrais dos chineses. Desde a antiguidade, que a China acredita que “a comida tem um carácter divino”, e que a sua gastronomia é intocável. O segredo desta cozinha, mais do que na técnica, está nos ingredientes; devem ser usados os animais mais raros para preparar os pratos mais requintados. Os chineses têm um ditado que diz: “Podem comer-se todos os animais que voltem a coluna para o céu”, como esquilos, doninhas, javalis, elefantes, civetas, pangolins, etc. É por este motivo que os chineses têm o hábito de comer animais selvagens. Existem muitas lojas na China onde se vende caça. Segundo uma notícia publicada a 28 de Fevereiro, a fim de combater a propagação do vírus, mais de 350.000 destas lojas vão ser encerradas. Foram detectados 690 casos de violação da legislação, encontraram-se 2.919 utensílios ilegais e apreenderam-se 39.000 animais selvagens. O surto da síndrome respiratória aguda grave (SARS sigla em inglês) em 2003, ficou a dever-se a uma bactéria transmitida sobretudo por civetas e morcegos. O costume de comer estes animais pode ter estado na raiz do problema. Depois do surto desta infecção ter sido ultrapassado, os hábitos alimentares ancestrais foram retomados por muitas pessoas. Com o aparecimento deste novo vírus, o Comité Permanente do Congresso Nacional do Povo (CPCNP) decidiu por ponto final a esta situação. Mas será que uma folha de papel pode acabar com os hábitos de milhares de chineses? No dia 24 de Fevereiro, o CPCNP implementou a “Decisão de Banir Definitivamente o Comércio de Animais Selvagens e Eliminar o Hábito de Comer sua Carne, para Salvaguardar Eficazmente a Vida e a Saúde do Povo Chinês”. Esta Decisão deverá ter efeitos imediatos. Segundo este documento os animais são divididos em duas categorias. Na primeira encontram-se os que podem ser consumidos como peixe, porco, vaca, cabrito, ovelha, etc. Em relação ao consumo da carne de animais como o pombo e o Coelho, vai haver um conjunto de regulamentos. Os conteúdos mais significativos desta Decisão são os seguintes: Em primeiro lugar, animais marinhos selvagens, como o peixe, marisco e moluscos não são proíbidos. Segundo, a criação de porcos, vacas, ovelhas, cabritos, galinhas, patos, gansos e outros animais de capoeira, passará a obedecer à legislação consagrada nos Regulamentos da “Lei da Pecuária” e da “Lei da Prevenção de Epidemias de Origem Animal”. Terceiro, pombos, coelhos e outros animais que passaram a ser criados para consumo doméstico, estarão incluídos no “Catálogo dos Recursos Genéticos Pecuários e Aviários” ao abrigo da Lei de Criação de Animais, que regulará de forma estrita a sua criação e o consumo da sua carne. E porque é que o porco, a vaca, o cabrito, a ovelha, a galinha e o peixe não são proíbidos? As bactérias podem afectar tanto os seres humanos como os animais. Algumas doenças desenvolvem-se sobretudo nos animais, mas, em alguns casos, podem ser transmitidas aos humanos. Os animais criados pelo homem para fins alimentares, se forem sujeitos a controle sanitário, não são, à partida, um perigo para a saúde pública. Mas os morcegos, as civetas, os pangolins, etc. não são criados pelo homem, nem são sujeitos a nenhum tipo de controle sanitário. De facto, não existe qualquer prova científica de que esta carne seja adequada para consumo. A “Lei de Protecção da Vida Selvagem” na China proíbe o consumo de: a. espécies protegidas; b. animais caçados ilegalmente c. outros animais que não tenham sido sujeitos a inspecção. Os morcegos, pangolins e civetas não são regulados pela Lei de Protecção da Vida Selvagem. Para além disso, até aqui, não estava proíbido o consumo da carne dos “animais selvagens terrestres de importante valor ecológico, científico e social” nem de outras espécies não protegidas. Assim, esta Decisião veio colmatar as lacunas da lei, proibindo o consumo da carne de animais selvagens. As medidas tomadas nesse sentido são as seguintes: Primeiro, o consumo da carne de animais selvagens terrestres, regulamentado ao abrigo da Lei de Protecção da Vida Selvagem, está proíbido. Segundo, é proibido consumir a carne de animais selvagens terrestres, mesmo quando mantidos em cativeiro. Terceiro, é proibido caçar, comercializar e transportar animais selvagens terrestres, para fins alimentares. Quarto, a utilização de animais selvagens em laboratório, para pesquisa médica e científica, fica sujeita a aprovação, após terem sido submetidos a inspecção e quarentena. A julgar pelos conteúdos da Decisão, basicamente, os animais selvagens terrestres, quer tenham sido criados na natureza ou em cativeiro, estão protegidos pela Lei, desde que sejam valiosos, que estejam em perigo, ou sejam necessários para pesquisa económica ou científica. Assim, de futuro, comer animais selvagens na China passará a ser ilegal. A Decisão despertou as consciências para os riscos para a saúde pública e para as questões de segurança, abolindo o mau hábito de consumir carne de animais selvagens e garantindo a segurança dos animais selvagens. Precisávamos desta lei. Esperemos que esta epidemia torne as pessoas mais conscientes do perigo que este hábito alimentar representa para a saúde pública. Os costumes há muito enraizados não vão mudar de um dia para o outro com um conjunto de leis. Esperemos que com o tempo essa transformação seja possível. O Departamento de Pescas e Conservas de Hong Kong anunciou no passado dia 28 de Fevereiro, que um cão cujo dono adoeceu devido ao coronavírus também está infectado. Embora não existam provas científicas de que os animais de estimação possam contrair o vírus, esta notícia é preocupante. Em face do que foi dito, deve o Governo de Macau implementar uma lei para proíbir a caça, comercialização e o transporte de animais selvagens para fins alimentares? Devemos também considerar a forma de tratar os animais domésticos se vierem a ser infectados pelo coronavírus? Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
João Santos Filipe VozesRespeito [dropcap]H[/dropcap]á quem nesta praça goste muito de pregar a cantiga do princípio da igualdade e da pureza moral. Só que na altura de assinar os trabalhos “jornalísticos” se acha muito acima do outro, que mais não é visto do que, no alto da arrogância, como um “tradutor”. Por esse motivo, apesar do trabalho não poder ser feito sem o rapaz que fala chinês, ou de este ter sido obrigado a trabalhar a altas horas da noite a ir de lugar em lugar, a peça é assinada como se fosse o trabalho de um único ser. É melhor assim, dá-se mais destaque aos “jornalistas de reportagem” e, caso o objectivo seja ganhar prémios, como é quase sempre, não é preciso andar a partilhar dinheiro com “o desconhecido” lá da redacção. É pena que o mesmo critério não seja utilizado quando trabalhamos num jornal e o nosso trabalho sai numa revista do mesmo grupo… Nessas situações achamos que estamos a ser injustiçados e que o nosso trabalho está a ser desprezado… Quando andava no secundário tive uma disciplina denominada Técnicas de Tradução de Inglês. Confesso que foi muito útil, não só pela parte técnica, mas porque ensinava a respeitar a profissão de tradutor e principalmente a de intérprete. Mais gente devia ter frequentado essas aulas, mais não fosse para perceber que “one aperture” não significa “uma abertura de página”. No entanto, o mais importante talvez fosse para aprender a respeitar os outros, ou pelo menos o trabalho deles.
João Luz VozesA máscara [dropcap]S[/dropcap]orrisos de felicidade e esgares de discórdia depreendem-se nos dias mascarados que correm. A máscara tornou-se num objecto essencial no dia-a-dia dos residentes de Macau, um bem fundamental, alvo de enorme procura, a derradeira protecção contra um inimigo invisível. Não querendo entrar no campo científico no que toca à eficácia das máscaras para evitar a propagação de um surto viral, é impossível escapar à preponderância que este objecto adquiriu nas vidas de todos nós. Não passamos sem elas, ao ponto de o Governo ter de assegurar o fornecimento regular de máscaras, são essenciais para acedermos a transportes, parques, estabelecimentos comerciais, por aí fora. Mesmo ao ar-livre, uma cara destapada é um insulto à unanimidade mascarada, uma petulância individual que esbarra no colectivo. Este fim-de-semana fui dar uma caminhada pelos trilhos de Coloane, fui respirar fundo, desfrutar do grande exterior, do céu imenso e do ar fresco. Nos trilhos, a percentagem de mascarados e caras destapadas dividia-se em partes iguais. O suor e a respiração ofegante humedecem a integridade das máscaras, tira-lhes eficácia. Máscaras e exercício físico são incompatíveis. Porém, o seu uso nesse contexto é meramente social, não tem nada de clínico. Cobrimos as vias respiratórias com aquele aglomerado químico de não-tecido de polipropileno, um composto derivado do petróleo, por uma questão de cortesia. Aposto que as máscaras cirúrgicas serão um dos itens mais encontrados no lixo que sem piedade enchem mar e terra, mas essa será outra epidemia. Atalhando a minha ignorante foice numa seara que não domino, este passeio por Coloane recordou-me leituras que fiz há uns largos anos. Perto do final da carreira académica, um dos maiores vultos da antropologia moderna, Claude Lévi-Strauss, esmiuçava as diversas facetas simbólicas e identitárias de máscaras no livro “A via das máscaras”. Obviamente, não fiz qualquer trabalho de campo, estive fora de Macau durante o período mais apertado da “prisão domiciliária” a que a prevenção votou as gentes de Macau, e, acima de tudo, não tenho qualificações para tecer considerações de natureza antropológica. Ah, e estas máscaras não têm uma vocação simbólica, ritualística ou identitária. O seu propósito é completamente pragmático. Ainda assim, apertem o cinto e sigam-me neste rally tascas das ciências sociais e perdoem este exercício de excesso de reflexão. Em “A via das máscaras”, Claude Lévi-Strauss escalpeliza as relações entre objectos artísticos, as suas funções ritualísticas e acepções míticas num contexto social. O célebre antropólogo francês teorizou que “uma máscara não existe em si; ela supõe, sempre presentes ao seu lado, outras máscaras reais ou possíveis que poderiam ser escolhidas para substituí-la”. E conclui argumentando “uma máscara não é inicialmente o que ela representa, mas o que ela transforma, isto é, a escolha de não representar”. Quando coloco a minha máscara estou a estabelecer um diálogo sem palavras com o resto da sociedade. Estou a exclamar: sim, a minha proximidade é relativamente segura e eu tenho em consideração a sua esfera “imunológica”. É um gesto que assegura, que tranquiliza, algo que vai além da representação social, é um gesto que me transforma numa “não-ameaça”, mesmo que a minha máscara esteja comprometida com humidade. Cobrir parte do rosto com a máscara é quase uma manifestação ritualística, uma espécie de acto carregado de uma indefinível religiosidade unificadora, como um sacramento purificador. Além disso, a ausência de um rosto inteiro concentra toda a expressividade na percepção do olhar. Estimam-se sorrisos, presumem-se expressões carrancudas, intuem-se olhares preocupados, sempre com uma carga de incerteza. A única coisa que se projecta ostensivamente é o sentido de segurança, escondendo o semblante emocional. Não se pressente aquilo que se sente (incha Gustava Santos!). Atenção: Estas tolas e despropositadas considerações não pretendem desencorajar ou menosprezar o uso de máscara. A microbiologia está-se nas tintas para significados, simbolismo, representações sociais ou gajos que pensam em excesso. Todos devemos fazer o que está ao nosso alcance para travar a escalada do surto, é algo que nos une enquanto tecido social, independentemente dos muros culturais e das barreiras linguísticas.
João Luz VozesElogio merecido [dropcap]M[/dropcap]uitas vezes esta canina coluna serviu para apontar o dedo à incompetência e à displicência perante a forma como se gere a coisa pública em Macau. Hoje não é um desses dias. Apesar de ter acompanhado de longe, não posso deixar de felicitar a determinação da resposta do Executivo de Macau para conter, dentro do possível, o surto de uma doença desconhecida até agora. Como é natural, não vivemos num mundo perfeito e o Governo, que tomou posse há pouquíssimo tempo, tem tomado decisões difíceis sob imensa pressão. Por exemplo, os critérios usados para determinar que tipo de negócios ou serviços precisam fechar as portas, a questão da entrada e saída de pessoas do território numa das fronteiras mais complexas do mundo em termos jurídicos e políticos, ou a forma como o Governo tem lidado com os residentes que se encontram ainda na província de Hubei. Estes são alguns dos problemas de resolução mais complicada que o Executivo de Ho Iat Seng enfrenta. Mas a seriedade com que lidou com esta ameaça contrasta com a relativização perigosa que, por exemplo, os governos europeus têm demonstrado. Em oito semanas, o Covid- 19 fez quase o triplo das vítimas mortais que o SARS fez em oito meses. O número de infectados é quase 10 vezes superior. Vamos todos respirar fundo e reflectir um pouco sobre estes números. Obviamente que não é razão para pânico, circunstância que nunca ajuda. Ainda assim, a desvalorização e a comparação perigosa à simples gripe espalham-se na Europa quase ao ritmo da propagação do surto.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesEpidemia [dropcap]D[/dropcap]esde o aparecimento do surto do novo coronavírus em Wuhan, continua a ser difícil conter a propagação da epidemia. Em muitos países já se registaram casos de infecção, que confirmam a possibilidade de uma epidemia a nível mundial. Para já, é difícil prever quando é que a situação pode vir a ficar sob controle, nem mesmo Tedros Adhanom Ghebreyesus, Director Geral da Organização Mundial de Saúde, que se tem mostrado optimista, consegue adiantar uma data. No momento em que escrevo este artigo, estão confirmados cerca de 80.000 casos na China continental e já se registaram perto de 3.000 mortes. Os média têm transmitido vídeo-clips com cenas comoventes e inúmeras histórias trágicas. Em Macau, o Governo tem sabido tirar partido do modelo “Um País, Dois Sistemas”. Numa cidade privada de recursos naturais e de tecnologia avançada, tem sido possível encontrar um caminho para garantir a saúde da população. No entanto, o surto do novo coronavírus em Wuhan, fez vir à luz do dia os pontos fracos de Macau. Com os casinos temporariamente fechados e a política de “Vistos Individuais” suspensa, o número de turistas desceu drásticamente. Os locais turísticos estão agora praticamente vazios, fazendo lembrar o panorama que se vivia há trinta anos. Quem é que disse que o desenvolvimento de Macau já não poderia voltar atrás? Uma epidemia pode reverter todo o progresso obtido nas últimas décadas. Face à adversidade, o novo Governo da RAEM tem feito tudo o que está ao seu alcance para conter a epidemia, e as medidas de controle e prevenção que foram tomadas revelaram-se mais eficazes do que as acções desenvolvidas em Hong Kong. Sem os milhares de turistas que normalmente a visitam, a cidade tem um ar fantasmagórico. Até que se declare o fim da epidemia, mesmo que os casinos retomem a sua actividade, os efeitos nefastos provocados na economia de Macau não poderão ser revertidos. Embora as verbas que o Governo está a investir possam garantir o funcionamento da cidade por mais algum tempo, como é que as pessoas vão conseguir manter o seu estilo de vida num clima de recessão económica, com a indústria do jogo seriamente afectada? Se a população de Macau passar a depender das verbas do Governo para garantir a sua subsistência, a cidade vai perder autonomia. Mesmo que Macau consiga ultrapassar os efeitos do surto deste novo coronavírus, ficará numa posição muito mais difícil se voltar a ser atingido por outra epidemia. Muitas pessoas acreditam que a brutalidade com se espalhou este novo coronavírus em Wuhan se ficou a dever a falhas de informação e à ineficácia na implementação de medidas de contenção da infecção, o que fez com que as autoridades tivessem deixado escapar a altura certa para conter o surto e impedi-lo de se tornar epidémico. Mas os surtos no Japão e na Coreia não se deveram a falta de informação. A negligência humana e os erros institucionais podem ter efeitos mais devastadores do que os desastres naturais, e podem criar as condições para o surgimento de uma nova epidemia. Na sua obra, “A Terceira Vaga: A Democratização nos Finais do Séc. XX”, Samuel P. Huntington assinala que não se pode afirmar que venha a haver uma quarta vaga de democratização no séc. XXI. A julgar pelos acontecimentos do passado, os dois factores chave que influenciarão a expansão da democracia no futuro serão o desenvolvimento económico e a liderança política. O surto do novo coronavirus é um sério revés para a economia da China continental, quebrando as suas cadeias de produção global e fazendo disparar os alertas vermelhos da recessão. Quanto à cena política, da qual constam em termos imediatos; a próxima convenção da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, o desenvolvimento político de Hong Kong e de Taiwan, a eleição do sucessor de Najib Razak, para Primeiro-Ministro da Malásia, as eleições presidenciais nos EUA e o Brexit, as falhas e os maus procedimentos cometidos por cada um destes líderes resultarão numa nova epidemia de grande magnitude. Perante a aproximação de uma epidemia, para além de confiar na protecção do Governo, a população deve sobretudo reconquistar um papel primordial no desenvolvimento económico e no domínio da situação política!
Pedro Arede VozesAquilo que importa [dropcap]P[/dropcap]or estes dias Macau parece regressar timidamente às suas rotinas. Na verdade, não sabemos se alguma vez voltará a ser o que era ou se voltará ao seu dia a dia habitual. Mas isso não tem de ser necessariamente mau a longo prazo. Ao mesmo tempo, o fantasma do coronavírus parece estar a chegar em força a outras regiões do globo como à Europa ou ao Médio Oriente. O Mundo treme, e antevêem-se mais casos, medo e mortes, à semelhança daquilo que a China e sobretudo o Sudeste Asiático começou a sentir na pele há cerca de um mês/mês e meio com o encerramento de escolas e actividades públicas, shutdown de cidades e “clausura caseira” de prevenção. Esta deve ser uma experiência que deve ser tida em conta pelos países onde o surto ameaça agora chegar. No entanto, quer seja de um lado ou do outro do globo, uma crise desta natureza, que nos afecta directamente, quer porque os nossos movimentos passam a estar limitados, porque interfere com as nossas decisões, somos impedidos de apanhar um avião para ver a família ou simplesmente, porque tem o efeito de nos fazer pensar como a vida era mais simples antes de tudo isto, pode também ser uma oportunidade para encarar o nosso dia a dia daqui para a frente com outros olhos. Até porque, talvez, aquilo que importa mesmo, tem estado sempre ao nosso alcance e vai além dos problemas do quotidiano que nos deixam ciclicamente frustrados, quer seja nos no emprego, em casa ou até no trânsito que teima em não andar quando decidimos fazer-nos à estrada. Com os nossos “azares” relativizados cabe-nos ir à procura de fazer melhor quando a conjuntura assim o deixar. Assim como Macau.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA crise da fertilidade masculina [dropcap]N[/dropcap]os últimos cinquenta anos os homens ocidentais diminuíram a sua contagem de esperma em 50%. Há quem encare isto com mais alarmismo do que outros. Pode ser o início de um futuro distópico de valores de fertilidade estrondosamente baixos, o início da extinção humana ou a justificação para regimes autoritários se apoderarem dos corpos, como nas estórias da Handmaid’s Tale. Independentemente dos potenciais efeitos, vivemos uma crise silenciosa da fertilidade masculina. Há pouca investigação científica sobre o assunto e há pouca divulgação nos canais de informação populares. O declínio generalizado do esperma viável no mundo ocidental corre sérios riscos de ser levado a sério quando for tarde demais. Não sabemos ao que se deve à pouca atenção dada ao tema. Não há como não fantasiar as razões para este silêncio. A culpabilização para uma fertilidade fraca normalmente é de quem a concebe dentro de si, de quem tem úteros e ovários. Esta premissa tem dificultado olhar para o outro elemento da díade na concepção. As pessoas com úteros e óvulos são tradicionalmente responsabilizadas para procriar e são criticadas se não o fizerem. Que pessoa tida como mulher já não foi questionada acerca da sua vontade, e capacidade, para trazer bebés a este mundo? Que pessoa com pénis e testículos já foi interrogada do mesmo? O facto de que se assuma a parentalidade como uma questão mais feminina do que masculina tende a recusar as dinâmicas emocionais envolvidas na procriação também. O declínio na fertilidade masculina pode não ser o grande problema social e de sobrevivência da espécie como alguns insinuam, mas pode ser uma desilusão pessoal. As pessoas com pénis podem estar a contar participar no mundo dessa forma: assumir-se como pais, contribuir para a formação de um ser, trazer algum pedaço dos seus genes ao mundo. Não ver realizada a expectativa de ter uma criança pode ser muito difícil. Se nos focarmos nestas expectativas individuais, ainda mais frustrante é saber que nada tem sido feito para perceber como é que esta contagem decrescente de esperma tem acontecido – nem como pode ser evitada. Talvez tenham sido estilos de vida, roupas interiores (e não só) progressivamente mais justas. A toxicidade não declarada dos produtos que consumimos e com os quais lidamos, ou o consumo de álcool e de drogas ilícitas. Ninguém sabe. Há algo na vida urbana, desenvolvida e híper-conectada que tem contribuído para os espermatozoides se produzirem menos, ou que sejam produzidos com pouca mobilidade. O facto de se ignorar uma possível crise é um indicador, entre muitos, de dinâmicas enviesadas da fertilidade e do género. O não apoio das estruturas sociais e institucionais para a divulgar e a perceber só mostra que não é (socialmente) expectável que as pessoas com pénis se importem. Os homens também querem ser pais, ainda que não existam representações que o sugiram – não da mesma forma como representações sugerem a maternidade nas mulheres. Este tema também pode continuar a ser tabu porque contesta a hegemonia de uma tal masculinidade impossível e exagerada. A tal que assume que não há espaço para a fragilidade, o desapontamento e até o cuidado. Discutir esta crise – e reunir esforços para resolvê-la – é só mais um passo para desconstruir masculinidades e feminilidades que já não se querem inflexíveis. Contestar estes pressupostos, fazendo uso dos mecanismos biológicos que os trouxeram à luz, é uma boa maneira. Os homens no ocidente não estão a conseguir procriar como antigamente, e não deveria ser surpresa interessarmo-nos sobre isso.
Andreia Sofia Silva VozesA crise dominó [dropcap]T[/dropcap]udo é cíclico nesta vida. Vivemos períodos de imensa euforia e felicidade para depois levarmos um tombo que nos ensina qualquer coisa. Isto é válido para seres humanos e para países e regiões. A crise do coronavírus trouxe a Macau uma grande lição, a vários níveis. Com um Governo que ainda agora tomou posse, é altura de ver quem tem verdadeiramente capacidade de liderança, mesmo que os cofres públicos estejam cheios, e como é que o território reage a esta crise. É também altura para ver como reage a sociedade na sua relação com o outro e como é que o tecido económico se comporta. Se da acção do Governo pouco podemos apontar, diria que esta crise trouxe à tona quase tudo o que Macau tem de mau: comportamentos discriminatórios e racistas, más condições laborais e uma economia dependente do jogo. Perante isto, são necessárias soluções, novas perspectivas de governança, uma nova forma de olhar para as minorias, para aqueles que todos os dias trabalham em prol dos outros. É necessário rever formas de trabalhar na Função Pública e no sector privado e perceber quais as lacunas do sector da saúde que têm ser revistas. O que deve ser feito para melhorar o funcionamento de instituições sociais de apoio? Tudo é cíclico e tudo acontece por uma razão. Esta crise com efeito dominó servirá para mudar Macau? Esperemos para ver.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesDiversificação moderada [dropcap]N[/dropcap]o momento em que escrevo este artigo, não há notícia de qualquer novo caso de coronavírus em Macau desde há dezoito dias. Este facto prova que na cidade não existe um surto desta doença. Felizmente as pessoas estão saudáveis. O Governo da RAEM anunciou recentemente que iria injectar 20 mil milhões de patacas na cidade para ajudar nos esforços de prevenção da epidemia e para revitalizar a economia depois de o perigo passar, o que é sem dúvida uma boa notícia. Durante este período de prevenção, muitas lojas fecharam e por agora é impossível calcular os prejuízos sofridos. Os fundos do Governo vão ajudar os comerciantes a resolver os problemas imediatos. Todos sabemos que as pequenas e médias empresas auferem lucros limitados e que o encerramento dos negócios as deixou sem receitas durante vários dias. Sem a ajuda do Governo, teriam ficado na miséria. Os 20 mil milhões de patacas que o Governo vai investir derivam dos impostos pagos pela indústria do jogo. Presentemente vale a pena reflectir sobre esta questão. A indústria do jogo tem sido desde há muito a principal fonte de rendimento de Macau, em comparação com a restante actividade económica que ocupa um papel muitíssimo secundário. As receitas do Governo da RAEM provêm também, em grande parte, desta mesma fonte. Imaginando que, por qualquer motivo, o sector do jogo venha a ser afectado, o Governo seria o primeiro a perder a maioria dos seus proventos, e Macau deixaria de poder contar com a sua protecção. Mas a sociedade de Macau sempre teve capacidade para desenvolver outros sectores de actividade. Isto não quer dizer que se deva substituir a indústria do jogo. Pelo contrário, o que seria desejável era que surgissem outros ramos de actividade que pudessem partilhar com o Governo a responsabilidade social, que actualmente depende quase exclusivamente da indústria do jogo – a bem da sociedade de Macau. Presentemente, com as medidas tomadas para prevenir a propagação da epidemia, os casinos não vão estar a funcionar em pleno tão depressa. As receitas do Governo de Macau também serão afectadas. Quantos 20 mil milhões de patacas vão ser necessários para revitalizar a economia e garantir o bem-estar das pessoas, num futuro próximo? É uma questão a considerar. Se o Governo de Macau quiser apostar no desenvolvimento do sector secundário, para criar uma diversificação moderada da economia da cidade, o primeiro passo a dar será “pesquisar”, o que pode levar de um a dois anos. Depois da pesquisa feita, é preciso levar a cabo uma consulta exaustiva junto dos vários sectores da sociedade, e mais tempo será necessário. É certo que não se vai poder chegar a nenhuma conclusão a curto prazo. Com a carência de máscaras de protecção a nível global, Macau não consegue sobreviver sozinho. Embora o Governo tenha desenvolvido esforços para importar máscaras de Portugal, daqui a algum tempo voltarão a faltar. Alguma comunicação social já avançou que o Governo de Macau criou uma linha de produção de máscaras na China continental, esperando vir a conseguir produzi-las em número suficiente para suprir as necessidades da cidade, durante a quarta ronda do “Plano de Garantia de Abastecimento de Máscaras”. Para além disso, esta produção pode também vir a abastecer a área da Grande Baía. Um projecto deste género, se for bem-sucedido, além de resolver a carência de máscaras provocada pela epidemia, a longo prazo, permitirá que Macau se torne auto-suficiente neste aspecto. Claro que só existem cerca de 650.000 pessoas em Macau. Em circunstâncias normais, o número de máscaras necessárias, na totalidade do sistema de saúde, é muito inferior. Quem se dedicar a este negócio não fará grande lucro. No entanto, esta abordagem representa uma diversificação moderada da pequena indústria; além disso pode ir ao encontro das necessidades do Serviço de Saúde e contribuir para o progresso do nosso país – a China. Sabe-se também que Macau produz álcool e desinfectante para as mãos. Se não surgir uma indústria maior nos próximos tempos na cidade, poderemos dar um passo atrás e reconsiderar várias possibilidades de diversificação moderada das pequenas indústrias?
João Santos Filipe VozesObediências [dropcap]U[/dropcap]ma investigadora da Universidade de Macau afirmou que o facto de as pessoas serem mais obedientes na RAEM faz com que a resposta ao Covid-19 seja melhor do que em Hong Kong. Primeiro, o elogio: há um académico na UM que não culpa os “brancos” pelas desgraças das RAEs. Pode parecer que não, mas sempre é um ar fresco. Mas, não compro o argumento. É desligado da realidade. Quantas pessoas correram para as farmácias, supermercados e andaram nas ruas, apesar dos apelos do Governo? Também esta agenda política do “nós obedientes, eles maus” desvaloriza o trabalho do Governo da RAEM. Foram tomadas medidas de antecipação que inspiraram confiança. Em Hong Kong, as medidas foram sempre tardias. Carrie Lam gere HK como Nero geriu Roma, está a deixar arder. No início da epidemia ficou em Davos. Não conseguiu comprar as máscaras, que ela criminalizou. No meio da paródia, quis impedir os funcionários públicos de utilizarem essas máscaras… Ao mesmo tempo que chegavam infectados de Wuhan por comboio à RAEHK, ela recusava fechar a fronteira. Meteu a política acima da saúde pública. Só tomou as medidas nas fronteiras quando foi forçada por uma greve do pessoal de saúde. Greve essa que foi que um sinal de desespero de quem tinha de tirar a água do porão do Titanic com uma colher de açúcar… Neste contexto de um Governo totalmente falhado, criticado por “azuis” e “amarelos”, vir falar que a diferença está na “obediência” é só cegueira ideológica.
Carlos Morais José VozesSamarra [dropcap]O[/dropcap] mundo desaba em Abu Dahbi e recompõe-se em Samarcanda. Um terramoto afunda uma cidade no Chile e um vulcão soterra de cinzas nas Filipinas. O Covid-19 mata nas Fidji, em Madagáscar e Santa Helena. Um tornado atinge o centro dos EUA, enquanto há dissidências na casa real britânica e o Benfica não ganha há quatro jogos seguidos. O que hei-de fazer? Nas ruas, as máscaras riem-se do reconhecimento facial. Os becos permanecem teimosamente vazios. Travessas enfadadas prendem cabelos. Avenidas de presunção deslizam por ecrãs. Autoestradas cintilam vistas do espaço. Um atentado terrorista ocorre em Islamabad. Outro não terrorista desaloja uma família em Samarra. O que vim eu fazer a Samarra? Fica no Iraque Samarra. Dantes fazia parte do império sassânida, como fez parte do de Alexandre, um dos mais rápidos da História. De Bagdad a Samarra não é muito longe mas a viagem demora uma vida. Eu finalmente cheguei, embora não saiba ao que vim. Ninguém sabe o que vem fazer a Samarra. Na melhor das hipóteses, encontrarei um amigo.
João Luz VozesApocalipse, não [dropcap]P[/dropcap]ermitam-me um devaneio de ficção na direcção oposta à tranquila racionalidade com que as autoridades locais têm tratado a epidemia do coronavírus. Acabei de chegar a Macau (sexta-feira), depois de umas férias largas que começaram na última semana de Janeiro. Quando parti para Portugal estávamos longe dos cenários de ruas vazias e de toda a fantasmagoria subsequente. Passados alguns frangos assados e imperiais em Lisboa, começaram a chegar notícias do encerramento de casinos, da corrida às farmácias na busca de máscaras, quarentenas forçadas e escassez de tudo e mais alguma coisa. Entretanto, as imagens de Wuhan sugeriam um cenário de apocalipse zombie a lembrar os clássicos do mestre George Romero. No dia que regressei a Macau, um amigo contextualizou o timing das minhas férias uma forma simples: “agora as coisas já estão a voltar ao normal”. Parece que escapei a uma espécie de pena de prisão domiciliária, que não testemunhei no contacto com amigos mais próximos, que não se coibiram de tomar uns copos. Outro aspecto que importa referir é o alarmismo com que os média portugueses trataram este assunto, sedentos de sensacionalismo que veremos se será saciado com a confirmação do primeiro infectado português. Visto de Portugal, parecia que Macau estava a morrer de fome e sede, sem mantimentos, sem máscaras, sem esperança. Realidade contrariada com publicações nas redes sociais de prateleiras de supermercado cheias. Outro lamentável episódio foi o triste circo que fizeram com o retorno dos portugueses retidos em Wuhan e da relativa desilusão face à ausência de infectados. Uma vergonha completa. Feito o contexto, hoje sinto-me um personagem de um filme de zombies, com uma ligeira diferença. Em vez de despertar de um coma no pico do apocalipse, depois do total colapso de todas as instituições fundamentais da sociedade, (como Cillian Murphy em “28 Days Later”, ou Andrew Lincoln em “The Walking Dead”), abri a pestana já com situação controlada. É precisamente aqui que vou injectar um pouco de ficção nesta crónica, com uma pitada de crítica política. Imaginemos que não existe Estado, Governo e esferas de protecção pública num caso destes (o sonho molhado dos libertários e anarcocapitalistas). Em quanto tempo desceríamos para a total barbárie? Sem querer tecer grandes comentários à reacção das autoridades de Hubei, e Pequim (que cometeram erros gravíssimos no início da epidemia), o que seria de Wuhan sem um poder público forte. Sinceramente, alguém consegue imaginar um cenário em que privados, movidos pelo propósito basilar da busca de lucro, seriam chamados a intervir num cenário destes? Seria o apocalipse zombie. A natureza não discrimina entre ricos e pobres, entre membros de conselho de administração e empregadas de limpezas e está-se nas tintas para os mercados. Nunca escondi a minha veia “trashy” em termos culturais. Um gajo não pode só encher a pança de clássicos, não se come filet mignon todos os dias. Às vezes apetece mesmo um prato de bifanas. Os filmes de terror orgulhosamente maus, especialmente os de zombies, fazem parte do meu imaginário desde criança. Assim sendo, face às notícias alarmistas que chegavam a Portugal, depressa comecei a imaginar um cenário de “salve-se quem puder” em Macau. Quem viu filmes como “Dawn of the Dead” sabe que a sobrevivência num apocalipse zombie depende de quatro requisitos. Acesso a comida, água e medicamentos, um arsenal considerável de armamento, a segurança de um local fortificado e de difícil acesso a zombies e não esbanjar confiança a todos os que aparecem a pedir ajuda. Sobreviver ao desespero humano, por vezes, é mais difícil do que sobreviver aos avanços de uma horda de mortos-vivos. A Torre de Macau parece-me um dos locais ideais para montar fortaleza, com a possibilidade de isolar pisos caso as portas de entrada cedam. Restaurantes e acesso a mantimentos não faltam. A estrutura oferece também um ponto de vantagem para vigilância e defesa, se juntarmos à equação um par de carabinas sniper a coisa até se poderia tornar divertida. Importa referir que este tipo de cenário, roubado à ficção mais tola, é para muita gente uma espécie de nirvana ideológico preferível ao pavor de ter de pagar impostos e à brotoeja dogmática nascida da mais paranóica alergia estatal. Como é óbvio, estou a brincar. Mas, não me leiam mal, a possibilidade de uma coisa destas resultar em caos é bem real, principalmente face à gula humana por antibióticos e ao factor multiplicador das alterações climáticas na microbiologia. Até lá, aproveitem ao máximo a estabilidade social e a segurança de vivermos numa sociedade estruturada capaz de responder a ameaças invisíveis.