Bons auspícios para 2020

[dropcap]N[/dropcapa]este primeiro artigo de 2020, desejo um feliz Ano Novo a todos os meus leitores e a concretização de todas as suas aspirações. Rezo também pela paz mundial e para que todos tenham saúde e sejam felizes.

Para Hong Kong, que tem vivido períodos conturbados, espero que seja possível reencontrar a paz neste ano que agora começa.

No dia 2, a Hong Kong TVB transmitiu uma notícia sobre quatro casos que estão a decorrer em tribunal. No primeiro, o réu está a ser julgado pela destruição do anúncio luminoso colocado na entrada da Hongkong and Shanghai Banking Corporation. O réu também terá entrado no edifício da administração central financeira do Banco e destruído uma máquina de depósito de cheques, duas máquinas de depósito de dinheiro e quatro ATMs. O réu foi acusado e considerado culpado desta ofensas. O juíz não aceitou a fiança e pediu que cumprisse a pena num centro de desintoxicação.

O segundo caso é conhecido de todos. Um indivíduo encapuçado agrediu, com uma grelha de drenagem, um trabalhador que se encontrava a desimpedir o acesso a uma rua bloqueda por barricadas. O agressor foi acusado de atentado grave à integridade física. O juíz recusou a fiança e encaminhou o caso para julgamento.

O terceiro caso foi muito falado na comunicação social. Umas pessoas que estavam a tirar fotografias foram atacadas por um casal que usava máscaras. O agressor atacou as vítimas com um pau, enquanto a mulher abria um guarda chuva para impedir que o ataque fosse visto. Foram ambos acusados de atentado grave à integridade física. O juíz recusou a fiança.

O quarto caso está relacionado com cocktails molotov. O réu foi encontrado com dois cocktail molotov, duas latas de gás butano e um martelo. Foi acusado de posse de armas ofensivas. Foi considerado culpado e condenado a 12 meses de prisão.

Para além destes quatro casos, a Hong Kong TVB também noticiou no dia seguinte mais três situações. Na primeira, várias pessoas foram encontradas na posse de armas ofensivas. Um dos réus, a quem chamaremos Mr. A, já tinha sido julgado em Setembro por um caso similar. Por ser reincidente, Mr. A não teve direito a fiança. O outro réu, a quem chamaremos Mr. B, era professor assistente numa Universidade de Hong Kong. O réu foi encontrado com 22 paus, dos quais 20 estavam afiados. Foi acusado de posse de armas ofensivas. O juíz concedeu-lhe fiança e o caso foi agendado para julgamento.

No caso seguinte, o réu tinha escrito “bestas” nas barreiras policiais, um insulto à polícia. Foi preso e acusado de danos criminosos. Foi condenado ao pagamento de uma multa de HK$2.000.

O ultimo caso refere-se a um homem que atacou um carro da polícia com uma mala com rodas, durante uma manifestação. O réu foi acusado de atentado à propriedade publica. Foi condenado a uma pena suspensa de 15 meses.

Todos estes relatos indicam que ultimamente a polícia de Hong Kong não tem estado apenas focada nos distúrbios provocados pelos manifestantes. Só combatendo o crime se lhe pode pôr fim. Espero que este início auspicioso indicie que Hong Kong está voltar gradualmente à normalidade no ano que acabou de entrar.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado do Institto Politénico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

7 Jan 2020

A harmonia

[dropcap]H[/dropcap]armonia é uma das palavras mais ouvidas nos discursos políticos da região. Procurar e atingir harmonia social! Ahhh, refastelem-se nesta chaise-longue conceptual, soa tão bem, como um desígnio celestial, uma aspiração ao divino. Uma forma quase holística de designar paz social. Na humilde opinião deste vosso escriba, a paz e a concórdia são algo que deve nascer de dentro de uma sociedade, tendo o Estado apenas a vocação de a proteger, não deve partir de cima, da supra-estrutura para a sociedade. Harmonia sob ameaça não é harmonia, é sequestro, branqueamento, uma fantasia política que mascara o autoritarismo.

Se quisermos viver nesta aparência, olhemos para a Coreia do Norte. Nunca vi fotografias com tão rasgados sorrisos, esgares de pura felicidade. Nunca ouvi falar numa greve, manifestação, contestação popular. Será que isso faz de Pyongyang uma cidade harmoniosa? Em contrapartida, dou um rebuçado a quem encontrar fotos com carantonhas mais sisudas do que as que retratam cidadãos do norte da Europa, onde prolifera a contestação social.

Tal como o amor, a harmonia não se impõe e importa distinguir harmonia do conceito de ordem de Estado imposta com punho-de-ferro. E não me venham dizer que para ter uma opinião, para abrir a boca, tenho de frequentar 50 licenciaturas e mais três vidas de pesquisa histórica, se não querem bater o recorde do elitismo de polichinelo. Isso não é um argumento, não se aproxima de uma réplica, mas é, apenas, um escapismo infantil que procura o silêncio apaziguador do poder alérgico ao ruído da rua. Uma rua silenciosa é uma rua morta, jamais harmoniosa.

7 Jan 2020

O crente

[dropcap]N[/dropcap]ão precisa fazer sentido, aliás, apenas funciona sem cabimento, desprovida de razoabilidade. A fé continua a dominar os homens, nas suas instâncias mais primárias, nos recessos da condição humana, substituindo a luz nos recantos mais escuros onde nem um raio de razão brilha.

Na ausência de resposta, o crente não se contenta com a digna e edificante ignorância, com o ponto de partida. O conhecimento virá de cima e de forma imediata, a rendição total é o preço a pagar. A ideologia funciona através de mecanismos semelhantes. Fundada em asserções sobre o indivíduo, o grupo social, o mundo e o além, a ideologia é um corpo musculado por doutrinas orientadoras. Tal como a sua mística irmã, a fé, os ideários políticos impõem-se de cima para baixo, numa verticalidade esmagadora da razão e do bom-senso, na aniquilação da máxima de Descartes “penso, logo existo”. Neste domínio, “sigo, logo existo” é a essência do crente e do ideólogo. A subjugação às palavras do líder funda a sua existência.

Até o homem mais temperado, sob a influência alucinogénica da ideologia acredita nas mais bárbaras monstruosidades. Precisa delas, precisa do sentimento de pertença a algo maior que si. Precisa da redenção gnóstica dos crentes.

Ambas as irmãs (fé e ideologia) actuam perversamente no mais belo e inexplorado enigma que a natureza nos ofereceu: a consciência. Algo que está muito para além da compreensão, que seduz os místicos, que confunde a ciência e que é um empecilho aos líderes espirituais e políticos.

Só com fervoroso dogma se pode acreditar nas mais estapafúrdias teorias, um intoxicante tão poderoso ao ponto de mascarar a mais óbvia e assumida propaganda numa verdade inabalável.
Hoje não quero sujar as mãos nesse lodaçal que é a política local/regional, mas apenas dirigir-me aos factores entorpecedores da razão que poluem os nossos dias.

A polarização política chegou a um ponto tão extremo que as intenções e acções de grupos antagónicos se confundem em alianças magnéticas, como dois imãs esquizofrénicos que se abraçam repudiando-se ao mesmo tempo.

Sem nuance de teatralização política, vemos teorias de neonazis que lutam por representação democrática, teses de comunistas que defendem com unhas e dentes cartelizações capitalistas rebentando recordes de pequena-burguesia, moderados a salivar por infinitas penas de morte por infrações de trânsito, pacifistas a encher os bolsos nos mercados do armamento pesado, vampiros a limpar o sangue dos queixos enquanto gritam slogans vegans.

O mundo virou-se de pantanas e a crença voltou a predominar lançando-nos, outra vez, para uma idade de trevas. Nada de bom pode surgir daqui, apenas ganância desmedida, sangue e morte. Até chegarmos a um novo iluminismo, será feita farinha dos ossos esmagados dos mais pequenos. Nada sobreviverá à autofagia deste monstro místico de duas cabeças. Polos sul e norte magnéticos unidos num abraço homicida/suicida.

Este é o fruto da era da ultra-ideologia, a atracção entre extremos e a asfixia de tudo o que está no meio.
A minha postura hoje é de niilista contemplação. Que se esmaguem, “que esta quilha rompa e me engula o oceano”, que ateiem todos os fogos e nos sepultem em mil sarcófagos de estrelas. Sinceramente, não me interessa. Se não posso viver em verdade, viverei feliz em alucinação, livre de amarras, sem dogmas ou crenças a ditar sabedoria suprema ou pertença tribal.

Se querem acreditar no que vos dizem, força nisso, fiem-se na supremacia da vossa verdade, na superioridade do dogma que habita debaixo da vossa pele, no mundo bipolar do irmão Karamazov caído em desgraça porque na ausência de Deus tudo é permitido. Vivam nesse sistema binário de 0s e 1s, preto e branco, norte e sul e multipliquem-se na demência de serem 0 e 1 ao mesmo tempo.

Por mim, tudo bem. Mas façam-me um favor: poupem-me a evangelizações, projeções absurdas e limpezas encefálicas. Há muito que deixaram de ter piada.

6 Jan 2020

Ai, o Irão!

[dropcap]A[/dropcap]i, o Irão. Tudo aflito com Hão Cão mas, afinal, quem está mal é o Irão. Até onde é que irão?, é a pergunta nas mentes e que faz tinir os dentes. E a Rússia, meu deus, e a China, gentil Confúcio, até onde é que eles irão? Dar-se-á uma explosão?

Vem aí o apocalipse, pse, pse? Ou talvez não? É perguntar ao Irão, à capital Teerão e, porque não, a Hão Cão? E já agora ao vizinho, ao que chamam Paquistão, cujas armas são das boas e estão ali mesmo à mão.

Isto é uma maravilha: nada se passa, tudo se enrodilha. A massa vai p’rá pandilha, a do costume, que das gentes faz curtume. E depois, perguntam os bois? E depois nada, a mesma e triste maçada, até me tocar na pele.

Aí é dor a granel, ai que queima, ai que se vai o papel. Não era nada comigo, menos com o meu umbigo, esta guerra de alto-ar: américas vermelhuscos, iranianos patuscos, tudo de pernas pr’ó ar. Vem daí, anda brindar, é tempo de alvorecer. Que neste mundo aziago já só nos falta morrer. Então para espairecer que esteja o copo na mão. Bota acima e bota abaixo. Quero lá saber do Irão! Vou mas é para Hão Cão!

6 Jan 2020

O adeus a 2019

[dropcap]E[/dropcap]m Hong Kong, 2019 marcou a transição da paz para a turbulência. A forma eficaz de “parar a violência e a curva ascendente de tumultos”, será através da criação de uma comissão de inquérito independente, uma aspiração da maioria dos residentes de Hong Kong, e não através do estabelecimento de um “comité de análise independente”. Mas porque é que a criação desta comissão de inquérito parece gerar tantos receios? Se estes problemas forem ultrapassados, os tumultos em que Hong Kong se encontra imerso irão acabando, as relações entre a polícia e a população vão melhorar e vai ser possível amenizar as clivagens sociais. As situações devem ser consideradas no seu todo, quem não consegue ter um perspectiva geral dos acontecimentos não merece ser líder de Hong Kong.

E em Macau, que balanço podemos fazer? A cidade acabou de celebrar o 20º aniversário do estabelecimento da RAEM e o Presidente Xi Jinping passou aqui três dias, durante os quais efectou diversas visitas e presidiu à cerimónia da tomada de posse do V Governo. Numa primeira análise, Macau apresenta-se próspero e estável, tendo sido louvado como um modelo do princípio “Um país, dois sistemas”, mas, na realidade, subsistem muitos problemas por resolver.

Mesmo antes da vinda do Presidente Xi, a classificação da agência de crédito Fitch Group sobre Macau passou de “estável” a “negativa”. A classificação baixou devido à erosão da autonomia do Governo da RAEM na cena política, à continuada perda de receitas da indústria do jogo, das quais o Governo local depende em larga escala, e à crescente ligação económica, financeira e sócio-política à China continental.

Durante a visita de três dias do Presidente Xi a Macau, considerou-se que o controlo de segurança tinha sido efectuado com sucesso, porque todos os seus encontros e percursos tinham sido cuidadosamente verificados e preparados com antecedência. O controlo de segurança é necessário sem sombra de dúvida, mas isolar o Presidente da população retira-lhe a oportunidade de ter contacto com a realidadede. Por essa altura, vi uma foto tirada em frente ao Largo do Senado, que estava a circular online. Na foto, vê-se uma pessoa que parece ser o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, vestido informalmente, com diversos homens à sua volta a andar em direcção à Praia Grande. Depois de ter visto esta imagem, lembrei-me de um artigo intitulado “Após regressar a Xingyi, tive saudades de Hu Yaobang”, escrito em 2010 pelo antigo Primeiro Ministro da China, Wen Jiabao. No artigo, Wen falava dos ensinamentos de Hu Yaobang, que defendia que os líderes e os quadros superiores devem ir ao encontro das bases, para, pessoalmente “experienciarem e observarem as dificuldades do povo, escutar a sua voz e conhecer em primeira mão a sua realidade”. O maior risco que qualquer líder corre é distanciar-se da realidade.

Em lugar algum do mundo existem controlos de segurança 100% eficazes. A calma e harmonia que o Presidente Xi testemunhou em Macau deriva do facto de a maioria dos residentes da cidade não ter qualquer intenção de se manifestar contra ele, isto, para lá dos múltiplos controlos de segurança implementados. Em relação à situação actual de Macau, não se vislumbra qualquer possibilidade de mudança, “as coisas são como são”.

Os novos líderes da RAEM, que tomaram posse em Dezembro de 2019, são no seu conjunto um grupo de novos dirigentes designados para os cargos de Secretários e membros do Conselho Executivo. No entanto, uma renovação das equipas não significa necessariamente um estilo novo de administração, o qual depende das competências e da experiência dos seus elementos. Experimentar novas jogadas com uma certa relutância pode ter efeitos adversos. Apesar de tudo, Macau tem recursos escassos e poucos técnicos qualificados e continua a depender das receitas do jogo e do turismo. A cultura social assente na tradição ancestral das múltiplas associações locais, moldou uma certa morfologia social e travou o desenvolvimento. Num local sem competitividade como Macau, a inacção é a escolha mais fácil.

Para me despedir de 2019, decidi desfazer-me de muitas coisas. Enquanto arrumava, deparei-me um um artigo retirado do Hong Kong Economic Journal, datado de 12 de Janeiro de 2019, que fazia uma previsão da situação de Hong Kong para esse ano, a partir da perspectiva do “Yi Jing” (“O Livro das Mudanças” – um clássico da antiga filosofia chinesa). Embora seja cristão, tenho um profundo interesse pela filosofia tradicional chinesa. Após uma análise das normas sociais e da natureza humana, o artigo concluia que “Não nos devemos impôr aos acontecimentos”. Quando fazemos algo, devemos primeiro avaliar a situação, analisar os prós e os contras, não agir de forma precipitada, de forma a termos campo de manobra”.

Hong Kong e Macau têm de ter noção dos seus posicionamenros, vantagens e limitações. É preciso aprender com os mais fortes para contrabalançar as nossas fraquezas, de forma a invocar a sorte e esconjurar o infortúnio. Quanto ao que espera as duas cidades em 2020, apenas posso dizer que vai depender da forma como os seus dirigentes souberem conduzir os actuais acontecimentos.

3 Jan 2020

Costa Malheiro – Meteorologista em quatro continentes

[dropcap]E[/dropcap]stou certo que muitos dos portugueses que vivem ou viveram em Macau nos primeiros seis anos da década de noventa do século passado se lembram da figura popular que foi o director dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos (SMG), António Pedro Fernandes da Costa Malheiro.

Costa Malheiro, a quem podemos apelidar de um verdadeiro meteorologista dos quatro costados, desenvolveu a sua atividade profissional em quatro continentes.

Homem de grande honestidade, competência, dinamismo e capacidade de trabalho, pai de seis filhos, foi não só uma figura popular da meteorologia, mas também um cidadão de mão-cheia que se dedicou a outras actividades como autarca no bairro onde vivia, Olivais (onde nasceu em 10 de julho de 1933), contribuindo para que muitos jovens ocupassem os tempos livres a praticar desporto, encaminhando-os para uma vida mais sã do que eventualmente seguiriam se não se dedicassem a esta actividade.

Com muita dignidade e competência desempenhou altas funções em Portugal, Brasil e Macau, onde pelo seu dinamismo e simpatia granjeou numerosos amigos entre os colegas, instruendos e pessoal sob a sua direcção. Antes, ainda muito jovem, desempenhou funções de meteorologista em Angola, onde se familiarizou com a meteorologia tropical, o que lhe viria a ser muito útil mais tarde, como professor de meteorologia no Brasil.

Em Portugal as funções mais relevantes que desempenhou foram as de instrutor de meteorologia, em estágios no Serviço Meteorológico Nacional (SMN), juntamente com o Professor Pinto Peixoto (mundialmente conhecido nas áreas da meteorologia e Climatologia), de coordenador da Divisão de Instrução e de Chefe do Centro de Análise e Previsão do Tempo do Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica (INMG). Mais tarde, após o regresso de Macau, foi presidente do Instituto de Meteorologia (1996-1998), lugar que ocupou por mérito e não por qualquer influência político-partidária.

Na Divisão de Instrução do INMG desenvolveu actividade meritória pondo em prática as recomendações da Organização Meteorológica Mundial (OMM) no que se refere aos curricula para a formação de profissionais de meteorologia. O nível atingido na preparação do pessoal foi tal que alguns colegas, com um certo ar jocoso, se referiam àquela divisão como a “Universidade do Malheiro”.

Com pouco mais de trinta anos foi contratado como perito da OMM para lançar o Curso de Meteorologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Brasil, onde foi docente de 1967 a 1973. Neste último ano, em sua homenagem, uma das salas desta universidade foi designada com o seu nome.

Após o seu regresso do Brasil foi um popular apresentador do Boletim Meteorológico na RTP, tendo colaborado com esta estação durante alguns anos.

Como director dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos de Macau, o penúltimo sob administração portuguesa, de 1991 a 1996, teve papel preponderante na modernização destes serviços, apetrechando-os de equipamento moderno e preparando o pessoal para a transição do território para a administração chinesa. Também em Macau, já após o seu falecimento, foi alvo de uma homenagem com o descerramento de uma placa numa sala dos SMG a que foi dado o seu nome.

Durante a sua vigência como diretor dos SMG desenvolveu grande actividade no sentido de que Macau fosse admitido como membro de pleno direito do Comité dos Tufões (ESCAP/WMO Typhoon Committee – organização intergovernamental cuja atividade se desenrola no sentido de minimizar as consequências dos ciclones tropicais no noroeste do Pacífico e Mar do Sul da China), em 1992, e território membro da OMM, em 1996. Foi presidente do Comité dos Tufões durante o ano 1995.

Tendo havido decisão irrevogável do Governo de Macau de construir de raiz o Museu de Macau no local das instalações da antiga sede dos SMG, na Fortaleza do Monte, Costa Malheiro foi intransigente na negociação, exigindo como contrapartida a construção de um edifício moderno e bem apetrechado na Ilha da Taipa, inaugurado em 1996.

Costa Malheiro, enquanto director dos SMG usufruiu de grande prestígio no meio da meteorologia não só em Macau e China, mas também nos outros países e regiões membros do Comité dos Tufões (catorze ao todo – Camboja, China, Coreia do Norte, Coreia do Sul, Estados Unidos da América, Filipinas, Hong Kong, Japão, Laos, Macau, Malásia, Singapura, Tailândia e Vietname). Por onde passou desenvolveu actividade merecedora do reconhecimento do pessoal com quem trabalhou, tendo sido alvo de homenagens que ficaram para sempre a marcar a sua presença.

Para ilustrar a faceta humana de Costa Malheiro relembro o conselho que me deu quando me apresentou, como subdirector, ao pessoal dos SMG: “quando cumprimentares o pessoal começa por apertares a mão ao pessoal menos classificado profissionalmente”.

Devido à sua contribuição para a meteorologia e à obra em prol dos jovens de Olivais, a Câmara de Lisboa atribuiu o seu nome a uma rua da capital, conforme o Edital da edilidade de Lisboa de 26/12/2001.
Nesta ocasião, em que se celebraram recentemente os vinte anos da integração de Macau na China, é de toda a justiça relembrar Costa Malheiro, que muito contribuiu para o prestígio internacional de Macau na área da meteorologia.

3 Jan 2020

Bom ano novo

[dropcap]A[/dropcap] passagem de testemunho do poder executivo em Macau transmitiu por contágio os mesmos vícios de sempre. Ainda com os dias de governação no dígito único é impossível fugir ao sentimento de déjà vu. Já vimos este filme nesta vida. Macau é a terra onde se coloca em perigo um projecto de sucesso – a Cinemateca Paixão – por aparente negligência.

Depois é ver a mesma sucessão de acontecimentos. A situação é noticiada e daí gera-se consternação social, um burburinho que aviva o desdém jocoso dos governados. Vai daí, soam alarmes para arrepiar caminho, prolonga-se por seis meses o prazo da concessão à entidade que geria o espaço e lança-se um novo concurso público na esperança de que já ninguém se lembre deste filme a meio dos créditos finais. Fica na boca um travo amargo a marosca, a coisa pública gerida com badalhoquice.

Por outro lado, inaugura-se um sistema bilionário de transportes públicos para cumprir calendário político, expondo a cidade inteira ao ridículo e a desculpas esfarrapadas que doem só de ouvir. Claro, esta foi a primeira vez na virginal Lótus, nunca antes neste terceiro calhau a contar do Sol se tentou esta coisa futurista do transporte por carris. Mas não faz mal. Herda-se do chefe deposto a habilidade de comprar complacência. Mais um mês de bilhetes grátis para o povo e mil vivas às indulgências governativas, ao silêncio e a apatia política comprados nos saldos do civismo. Enfim, lamúrias surdas de fim de calendário. Não liguem. Feliz 2020!

31 Dez 2019

Quem gastou mais?

[dropcap]H[/dropcap]o Iat Seng começa o seu primeiro mandato como Chefe do Executivo a lançar farpas a Alexis Tam por ter gasto demasiado enquanto secretário para os Assuntos Sociais e Cultura. Ho Iat Seng vai mais longe e diz que o excesso de despesas na Administração também pode ser equiparado ao crime de corrupção, deixando no ar algo que ainda não percebemos exactamente o que é.

Convém lembrar que, antes dos gastos de Alexis Tam, já o Governo havia esbanjado imensas patacas em empresas de capitais públicos, aquelas que ninguém percebe exactamente o que fazem ou onde investem, ou em derrapagens orçamentais de obras públicas. Não faltam exemplos na Administração de despesismo.

Acusar agora Alexis Tam de gastar muito, tendo em conta que este teve a tutela da saúde, da educação, da cultura e do turismo é deveras estranho. Convém lembrar que só as áreas da saúde e da educação representam enormes gastos em qualquer orçamento, de qualquer país ou região. Macau continua a não ter um novo hospital público, mas mesmo assim Alexis Tam fez por contratar mais médicos e inaugurar novas infra-estruturas. Além do mais, se Alexis Tam esbanjou tanto dinheiro, porquê escolhê-lo para a Delegação Económica e Comercial de Macau em Lisboa e Bruxelas?

30 Dez 2019

Isto começa bem…

[dropcap]O[/dropcap] ataque de Ho Iat Seng a Alexis Tam foi tão inesperado quanto violento, fugindo e muito ao tom habitualmente usado pelos políticos de Macau. A coisa é de tal modo assim que muitos se interrogam se o alvo de Ho Iat Seng era mesmo Alexis Tam ou se pretendia atingir mais acima, isto é, a gestão de Chui Sai On. Afinal, Tam foi chefe de gabinete de Chui e depois o seu Secretário.

Neste caso, a ser assim, será que o novo Chefe do Executivo estava criticar o “despesismo” relacionado com o Hospital Kiang Wu e a falta de investimento no hospital público? Será que Ho Iat Seng estava a pensar no “despesismo” com a universidade conhecida por MUST? Ora estas são as áreas de Alexis Tam, embora todos saibam que o Secretário nelas pouco riscava, pois que nos lembramos ter o director dos Serviços de Saúde sempre despachado directamente com Chui Sai On, deixando Alexis Tam a pregar no deserto.

Uma coisa é, porém, certa: Ho Iat Seng não se devia estar a referir à área da Cultura, já que o investimento do Governo nesta área, com a excepção dos grandes eventos, tem sido ridículo. O Alexis leva para o tabaco, mas será que o ataque tão incisivo lhe era mesmo dirigido? Isto começa bem…

30 Dez 2019

Descubra as diferenças

[dropcap]A[/dropcap]gora que acabou a festa e se limparam os confetes, é tempo de passar a outra fase. E a fase poderá chamar-se “descubra as diferenças” entre este Governo, ontem empossado, e o Governo cessante. Claro que no discurso nunca se deixará de sublinhar a continuidade.

Afinal, o princípio “um país, dois sistemas, com características de Macau” foi elevado a sucesso nacional e (com referência a Portugal) a sucesso mundial. O que resgata a governação de Chui Sai On. Mas a roda não pára e as pessoas não são iguais.

Certamente que vamos, aos poucos ou de repente, notar diferenças de estilo nos novos ocupantes das cadeiras do poder. E, numa terra em que a política é feita em lume muito brando e geralmente longe do alcance dos olhos do vulgo, pouco mais temos a fazer do que ir detectando as diferenças, falando sobre isso e, por vezes, fazer mesmo umas piadas. Assim pode queimar tempo, quem tem tempo para queimar. E nós não temos de nosso senão tempo. Por isso, não se esqueça: descubra as diferenças.

21 Dez 2019

Olhos no caminho

[dropcap]N[/dropcap]ão chegámos a nenhuma encruzilhada, nem hoje é o fim ou o princípio de alguma coisa. Houve um caminho que nos trouxe até um dia redondo onde se comemora o 20º aniversário da RAEM e para alguém como eu, que ainda está a apalpar terreno numa nova realidade, penso que nunca é demais fixar os olhos no caminho.

Não no objectivo. Pois, no limite, este pode até nem existir. Há quem chegue, há quem vá e há quem fique retido no caminho. E houve caminhos também que nos últimos dias terminaram em postos fronteiriços ou jornalistas que tiveram de caminhar de volta para onde vieram.

Não me cabe dizer se está certo ou errado mas acredito que nunca é demais apostar naquilo que retiramos quando estamos dispostos a pecorrê-lo e, abstraindo-nos do resto (e do objectivo prático), tal como aqueles dias que antecedem uma grande viagem que nos vai levar, por exemplo, ao nosso destino de férias, continuar. Sem esquecer que, mesmo que não cheguemos, o caminho em si nunca nos pode ser retirado e tem de valer a pena por si só. Porque é o nosso e ainda há muito para percorrer. O resultado será o melhor possível.

20 Dez 2019

Sistema de amor

[dropcap]M[/dropcap]acau tem sido citado múltiplas vezes como o exemplo a seguir no que toca à implementação do princípio “Um País, Dois Sistemas”. Visto como o território bem-comportado, que não tuge nem muge, dócil e agradecido pelas oportunidades concedidas e que, por isso mesmo, tem acesso a liberdades que não existem no resto da China.

Deixem-me repetir mais uma vez. Macau faz parte da China! Macau é China, mas não é, ainda, um território como Zhuhai. Tem um estatuto administrativo especial, como atesta o E em RAEM. Dizer que Macau é um exemplo da boa implementação de “Um País, Dois Sistemas” enquanto se persegue, ameaça e condiciona a vida de jornalistas e dissidentes políticos é antagónico. Além de ser uma terrível mensagem para Hong Kong e principalmente para Taiwan, é uma postura política que se coaduna mais com o princípio “Um Só País”.

Não é por se repetir muito uma coisa que ela se torna realidade. Mas, enfim, estes exemplos de ditadura repressiva vão ser relativizados como um exagero securitário circunstancial, sem repercussões no segundo sistema. Apenas um conjunto de dias em que os direitos, liberdades e garantias foram suspensos, como que por magia.

É assim que se aplica o Segundo Sistema escrupulosamente? Perseguindo pessoas, ameaçando, dizendo para “serem bons meninos”? Sem querer, a mensagem transmitida para Hong Kong e Taiwan é a oposta da pretendida. A posição política e administrativa de Macau é o resultado de uma negociação e do consenso que levou a esta bela experiência que é a RAEM, à vida que se tem nesta cidade que todos amamos. Será muito pedir respeito pelo acordado? Pedir o cumprimento de compromissos assumidos com honra e respeito não é uma posição radical, mas um imperativo de amor.

20 Dez 2019

As perspectivas ridículas

[dropcap]C[/dropcap]omparar Macau a Hong Kong é a última moda, derivada das comemorações dos 20 anos da RAEM. E nestas comparações ressaltam, sobretudo, a miopia quando não a ignorância de quem as produz, normalmente com o fito de nos diminuir face à ex-colónia britânica.

Que HK tem uma sociedade civil vibrante e Macau não. Que HK luta pela democracia, enquanto aqui se luta para enriquecer. Que HK resiste à investida de Pequim, enquanto Macau obedece como um bom filho. Que os portugueses deixaram aqui um caos, enquanto os ingleses entregaram uma cidade arranjadinha. E muitos outros disparates a que estamos habituados desde o século XIX, momento em que os britânicos assentaram arraiais na China, com o intuito de vender droga.

Sim, porque nada disto é novo, tudo isto é fado. E os fadistas vão ocupando o lugar deixado por outros, sempre com o mesmo objectivo de menosprezar Macau e incensar os tristes restos da colónia da pérfida Albion.

Contudo, estes disparates têm sempre algo em comum, algo de ridículo, que nem quem os emite talvez compreenda. É que são construídos com base numa perspectiva do mundo radicalmente fundada nos valores do Ocidente, que surgem como divinos e incontornáveis, como se para eles não existisse alternativa, muito enquadrados no pensamento do fim da História de Fukuyama (que ele, por acaso, já abandonou, mas parece que não deram por isso…) e na superioridade inequívoca do homem branco, capaz de levar a salvação ao resto do mundo, ainda que o resto do mundo não esteja interessado. Dantes era o Cristianismo pelas goelas abaixo, agora é o que chamam de democracia.

São, por isso, perspectivas ridículas. Neste movimento, o importante para esta gente é sentir-se de algum modo superior ao que a rodeia, ainda que não o compreenda, nem faça um verdadeiro esforço para o compreender. Orientalistas do acaso, mas avessos à cultura alheia, impantes de certezas fundadas em artigos de propaganda, despejam opiniões e insultos como se eles não fossem apenas provas do exercício da sua iniquidade.

Ou então chineses cuja visão da História, infectada pelos britânicos, procuram na diferença de Macau razões para se julgarem alguém melhor. O facto é que habitam numa terra ilegalmente conquistada no passado, brutalmente injusta no presente e socialmente desesperante em termos de futuro.

Em Macau, 20 anos depois, salvo alguns maus momentos, respeitou-se o princípio “um país, dois sistemas”, conservou-se a liberdade, os direitos civis e políticos, e só não demos mais passos para uma maior representatividade democrática por causa dos acontecimentos de Hong Kong. A comparação é simples: aqui estiveram portugueses, ali ingleses. E quase tudo deriva disto. Sim, ingleses, esses que não sabem estar em lado nenhum.

20 Dez 2019

Para a população

[dropcap]U[/dropcap]ma das grandes vantagens da História face ao Jornalismo é o distanciamento temporal. Ao contrário de quem está próximo dos acontecimentos, quem faz a análise mais à frente no tempo tem outros dados e consegue ver a floresta, por oposição com o jornalista que está atrás todos os dias atrás de uma árvore diferente.

Tal não significa que o jornalista não veja pontualmente a floresta, também vê, só que na maior parte das ocasiões as copas das árvores são mesmo demasiado altas. Dito isto, não faço a mínima ideia do que vai acontecer nos próximos 30 anos da RAEM, não tenho experiência para analisar os últimos 20 e falta-me o distanciamento para uma boa análise. Por isso, espero apenas que o que está para vir faça a população feliz.

20 Dez 2019

Macau, um modelo a seguir?

[dropcap]U[/dropcap]m amigo enviou-me há pouco do seu telemóvel a foto de uma grande fila de carros junto a uma bomba de gasolina. Esta afluência deve-se à visita do Presidente Xi Jinping, que vai estar em Macau de 18 a 20 de Dezembro e, por este motivo, as bombas só podem ser abastecidas entre a meia-noite e as 6.00 da manhã. Como já enchi o depósito do meu carro, não vou ter de ir para as filas e enfrentar a confusão. Segundo os comunicados do Governo de Macau, o Corpo de Polícia de Segurança Pública e os Serviços de Alfândega vão inspeccionar em conjunto todos os veículos que circulem nas estradas que fazem a ligação aos postos fronteiriços terrestres de Macau, no período compreendido entre 17 e 21 de Dezembro.

Os pontos assinalados são a Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau, as Portas do Cerco, Cotai e o Parque Industrial Transfronteiriço Zhuhai-Macau. Porque é que estas inspecções conjuntas não são feitas todos os dias, mas apenas durante a visita do Presidente Xi? Será que as autoridades tiveram acesso a alguma informação privilegiada que indicasse que segurança do Presidente poderia vir a estar em risco?

Faz sentido intensificar a inspecção dos veículos nos postos fronteiriços terrestres para aumentar a segurança, dado que, nesta altura, o volume do tráfego aumentou imenso. Mas porque é que foi suspenso o serviço de passageiros do Metro Ligeiro entre 18 e 20 deste mês, quando se encontrava no período experimental apenas há uma semana? Será que a manutenção deste período experimental iria afectar de alguma forma a segurança do Presidente Xi? Como é que o funcionamento do Metro Ligeiro de Macau ia pôr em risco a integridade do líder nacional? Será que Macau não é uma cidade segura?

Saliente-se ainda que, a este propósito, o Governo da RAEM anunciou “devido à realização de Actividades Comemorativas do 20º Aniversário do Estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, entre 18 a 20 de Dezembro de 2019, serão aplicadas medidas de controlo e de interdição à navegação no Canal do Porto Exterior, no Canal da Taipa, no Canal de Acesso ao Porto Interior e Canal de Acesso ao Porto de Ká-Hó”. Relativamente ao controle do espaço aéreo, penso que as entidades competentes também já tomaram medidas nesse sentido. Todas estas medidas de segurança criam instabilidade na população. Devíamos estar a viver um momento de festa e de alegria, durante a visita do líder nacional a Macau para presidir à inauguração da cerimónia do estabelecimento do novo mandato do Governo da RAEM. Porque é que o Governo lida com esta situação como se houvesse um perigo em cada esquina? Desde quando é que Macau passou a ser uma cidade hostil?

Mas além de Macau, as autoridades de Zhuhai também criaram pontos de controle na Ilha articifual de Leste da Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau, para que quem atravessa a ponte de Hong Kong para Macau possa ser inspeccionado. Pelo menos uma pessoa já foi detida nesta operação. O secretário para a Administração da Região Administrativa da RAEHK, Cheung Kin-chung, declarou que o exercício de jurisdição na Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau, por parte da China continental é, não só razoável como legal. A afirmação de Cheung é correcta. Mas o que está aqui em causa é a brevidade deste posto de controle e o facto da sua existência se ter ficado a dever apenas à visita do Presidente Xi. É sabido que “o modelo de controle fronteiriço da Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau, será adoptado o modelo de construção em separado por cada Governo de três postos fronteiriços individuais”. É certo que a Ponte se encontra sobre a jurisdição da China continental na sua totalidade, mas todos os condutores sabem que não é permitido parar um veículo que a esteja a atravessar, porque a ponte é um ponto de ligação entre as três RAEs. É possível exercer jurisdição sobre a Ponte, desde que se recorra ao tacto e à inteligência. Não é necessário inspeccionar todos os passageiros, porque só lhes poderá dar a sensação que podem vir a ser “extraditados para a China”. Se a China continental tivesse criado logo de início um posto de controle de segurança na Ilha artificial de Leste, penso que as pessoas teriam compreendido e cooperado. Mas de facto o controle de segurança é só uma medida temporária, que só funciona durante o período da visita do Presidente Xi a Macau. Esta actuação demonstra claramente uma falta de confiança por parte das autoridades.

Recentemente Macau foi elogiada como um modelo de sucesso do conceito “Um País, Dois Sistemas”, por comparação com o que se passa em Hong Kong. Macau promulgou legislação sobre segurança nacional, de acordo com o Artigo 23 da Lei Básica, no início de 2009. Para além da “Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado”, Macau fez em 2017 uma emenda à Lei n.º 5/1999 (Utilização e Protecção da Bandeira, Emblema e Hino Nacionais) em consonância com a “Lei do Hino Nacional da República Popular da China”. Mesmo uma “cidade modelo” como Macau, teve de ser tão monitorizada e controlada! Bom, será que Macau é verdadeiramente um “modelo” de cidade?

Para tornar Macau um verdadeiro modelo do ideal “Um País, Dois Sistemas”, além de vir a promulgar com sucesso leis que não passaram em Hong Kong, também será necessário levar por diante a reforma política que Hong Kong não conseguiu alcançar. Desta forma, a população de Hong Kong vai poder constatar que Macau irá eleger o seu Chefe do Executivo por sufrágio universal, sob condições específicas, e que a reforma da Assembleia Legislativa irá gradualmente garantir que todos os deputados ocuparão o seu lugar por via da eleição directa, ou seja “uma pessoa, um voto”. Quando Macau conseguir alcançar o que Hong Kong não conseguiu, será um verdadeiro modelo do ideal “Um País, Dois Sistemas”.

20 Dez 2019

同人 A Comunidade de Macau

[dropcap]P[/drocpap]ara tentar não repetir o que se vem escrevendo sobre os 20 Anos da RAEM, fiz a pergunta ao Yi Jing [Livro das Mutações] e a resposta dada foi o hexagrama Tongren, 同人 Comunidade com os Homens, cuja imagem é o trigrama Céu sobre o trigrama Fogo. Pela natureza do fogo a chama arde em direcção ao Céu e tal sugere a ideia de comunidade. Este hexagrama é o oposto do hexagrama Shi, que significa Exército e simboliza Terra sobre Água, tendo como Imagem algo perigoso no interior e obediência no exterior a exigir disciplina, assim como a necessidade de um homem forte entre muitos fracos.

Já para Macau, “a clareza encontra-se no interior e a força no exterior, o que caracteriza uma pacífica união entre os Homens, que para manter sua coesão necessita de uma pessoa suave entre muitas firmes”, em tradução de Richard Wilhelm, que segue para o Julgamento: “A comunidade com os Homens em espaço aberto tem sucesso. (…) A verdadeira comunidade entre os homens deve basear-se em interesses de carácter universal. Não são os propósitos particulares do indivíduo, mas os objectivos da humanidade que criam uma comunidade duradoura entre os homens. (…) Para que se possa formar uma tal comunidade, é necessário um líder perseverante e lúcido que tenha metas claras, convincentes, que despertem entusiasmo e que possua força para realizá-las.”

Pela Imagem dos trigramas encontrados entende-se: “O Céu movimenta-se na mesma direcção que o fogo e, no entanto, são diferentes um do outro. Assim como os corpos luminosos no Céu servem para a articulação e divisão do Tempo [na China o Tempo é uno, mas como método pode desdobrar-se pelos ciclos da História que se repetem em diferentes níveis de complementaridade e sincronia], a comunidade humana e todas as coisas que pertencem à mesma espécie devem ser estruturadas organicamente. A comunidade não deve ser um símbolo conglomerado de indivíduos ou coisas — isto seria um caos, e não uma comunidade —, mas para que a ordem se estabeleça é necessário que haja uma organização entre a diversidade dos seres.”

Ao deitar as três moedas para encontrar os dois trigramas, que formam o hexagrama, na primeira linha saiu o número 9 e respeitante a essa linha lê-se: “O início de uma união entre homens deve ocorrer diante da porta. Todos encontram-se igualmente próximos uns dos outros. Ainda não existem divergências e nenhum erro foi até então cometido. Os princípios básicos de qualquer tipo de união devem ser igualmente acessíveis a todos os participantes. Acordos secretos geram infortúnio.”

Harmoniosa comunidade

Passeava por Macau quando, em frente às ruínas de S. Paulo, encontro um jovem a explicar a História do monumento e cada um dos símbolos da fachada a um enorme grupo de estudantes mais velhos. Seguiram depois o jovem guia, em Actividade Formativa sobre o Património Cultural, para o Templo de Na Cha e daí para o Museu de Macau. Espanta a profundidade das explicações e a sua desenvoltura rivaliza com os guias profissionais. Espelha o excelente trabalho que em Macau se vem fazendo na Educação.

Esse processo civilizacional que a educação tem dado ao estar dos jovens residentes de Macau transborda para os visitantes e, por isso, encontramos as ruas mais limpas e mais respeito e valorização do património.
Também um dos vectores trabalhados durante os últimos vinte anos diz respeito à educação artística e sobretudo musical, dando gosto ver os progressos feitos, tanto ao nível de executantes como dos ouvintes.

Nos concertos de música clássica são agora os espectadores vindos do exterior de Macau a mostrar não terem sido educados para assistir em silêncio e ter a delicadeza de não usar os telemóveis, mesmo quando no início dos espectáculos lhes é pedido para os desligar. Já os comportamentos dos jovens locais e mesmo das crianças nos concertos dá para observar como escutam a música e esta os coloca com o espírito no patamar do grande prazer.

Um dos maiores atractivos de Macau é apresentar um alto nível de segurança, tanto de dia como à noite, para todos os que nela vivem e a visitam, complementado por um estar familiar a envolver quem pela cidade anda, onde ainda é normal haver quem delicadamente se cumprimenta com uma saudação, mesmo entre pessoas que apenas se conhecem do cruzar quotidiano. Existe ainda uma entreajuda e solidariedade encontrada entre e nos seus residentes, assim como disponibilidade para esclarecer as dúvidas dos turistas quando precisam dalguma informação. Já quanto aos taxistas, que são o cartão-de-visita de qualquer cidade, encontrei sempre muitos ao longo dos anos de uma extrema educação e respeito para com os clientes e os que não apresentavam tão elevado grau de atitude têm vindo rapidamente a melhorar o seu comportamento, muito devido à acção de penalização que lhes tem sido aplicada. Essas mudanças registam-se também na maior parte dos condutores de autocarros na forma da sua condução e respeito pelos mais idosos.

Outro factor muito positivo e do agrado dos residentes é o atendimento nos serviços da administração pública, cujo nível de excelência é pouco habitual em outras cidades do mundo e assim, ter de tratar de assuntos ligados ao quotidiano deixa os residentes com um elevado grau de satisfação a fazer esquecer algumas agruras ainda existentes.

Falta vedar um conjunto de algumas poucas ruas secundárias para se poder atravessar a pé a maior parte da cidade sem se ser importunado pelo trânsito de veículos motorizados. Essa via verde pedonal não seria difícil de criar e para se usufruir de um tranquilo caminhar era só preciso ser arborizada e ter esplanadas para tornar a cidade mais viva e saudável.

A diferença entre os jovens de Macau e os de Hong Kong – e mesmo da maior parte do resto do mundo – é sentirem existir aqui o momento com futuro, enquanto esse sentimento não existe para os outros que vivem já sem esperança.

Apesar dos quase trinta anos que levo de Macau, a cidade surpreende-me cada vez que saio de casa e a pé me deixo enredar pelos esquecidos pátios, becos, travessas e ruas, ainda a perpetuar a tradição, mas que não merecem a atenção das multidões. Estas, apenas ocupam poucos lugares centrais da cidade e não perturbam pois, com um pequeno desvio, logo nos conseguimos colocar fora dessa onda, se for caso de querer evitar as multidões.

Considero Macau a minha terra e gosto de aqui viver e bastavam pequenos arranjos para se tornar um lugar de eleição, como poucos existentes pelo mundo.

20 Dez 2019

Macau e o futuro

Por João Miguel Barros, advogado

 

[dropcap]1.[/dropcap] 20 anos depois da transição não é necessário ser-se profeta para se perceber que estamos a meio do caminho para a integração efectiva de Macau na China. Aliás, o projecto da Grande Baía é, em si mesmo, um pretexto excelente de atenuação de diferenças a justificar que, cumpridos os 50 anos de período de transição, se entre na fase da tranquilidade institucional e política.

“Amar Macau, amar a Pátria” é um slogan válido em 2019, como o será em 2049. Mas é um slogan com variantes equivalentes: ”Amar Guangdong, amar a Pátria”. Ou “Amar Hubei, amar a Pátria”, ou “Amar Fujian, amar a Pátria”. E assim sucessivamente para as 22 províncias chinesas e as 5 regiões autónomas.

 

2. Não é preciso ser-se profeta para se perceber que a partir de 2049 Macau deixará de ser uma região administrativa autónoma e será, quanto muito, uma região autónoma. Livre de compromissos assumidos pelo tratado assinado com Portugal, a China não deixará de cumprir em pleno o seu desígnio de unificação de todas as “unidades” chinesas. Sobrará, talvez, Taiwan, mas essas são contas que não cabem nesta breve e simplificada reflexão.

“Um país, dois sistemas” é a fórmula mágica que tem servido para tudo.
Serviu inteligentemente para a abertura económica da China nos idos anos 70 do século passado. Serviu depois para dar o mote às negociações sobre a transição política de Macau e Hong Kong. Serve actualmente para mostrar a boa fé chinesa em relação ao futuro das duas cidades. E servirá para alimentar a alma dos cegos!

Dúvidas não há sobre o sentido de “Um país”. Mas o sistema de pesos e contrapesos em relação aos “dois sistemas” é de medida variável, e é ajustável às conjunturas económicas e políticas do momento.
Esse sentido único de integração plena é natural, inquestionável e legítimo.

3. Os regimes autocráticos, geridos por partido único, exercem o poder de forma efectiva a partir das decisões políticas e judiciais, tendo como pressuposto garantir três princípios fundamentais: ordem, autoridade e hierarquia.

Quem olhar com cuidado para a evolução do discurso político e para a praxis político/administrativa de Macau verá que o sentido é o de aproximação aos valores tradicionais de Pequim. Aliás, por alguma razão o homem forte da governação tem sido, pelo menos até agora, o Secretário da Segurança, que até decide, sem escrutínio nem justificação pública, quem entra, ou não, em Macau. E é da sua área que tem saído o grosso dos diplomas legislativos que garantem a ordem e o controlo da sociedade, restabelecendo o caos social e a criminalidade que existia nos últimos anos da governação portuguesa (qualificação feita pelo Secretário da Segurança em entrevista recente).

Por outro lado, quem estudar com cuidado e detalhe a jurisprudência dos tribunais de Macau perceberá que há um núcleo duro de decisões que nunca contraria o sistema, e o sustenta. Aliás, se dúvidas houvesse sobre essa praxis bastaria ler a entrevista ao Presidente no Tribunal de Última Instância publicada no Diário do Povo (citado em Hoje Macau, de 16.12.2019) quando afirma que “a função dos tribunais é manter a estabilidade social”. Note-se que não é aplicar a lei, mesmo que ela contrarie a “ordem, ou a autoridade, ou a hierarquia”! O que importa, vinque-se, é “manter a estabilidade social”, fazendo a necessária interpretação da lei que garanta os princípios de funcionamento do sistema.

As declarações do Presidente do Tribunal de Última Instância são perigosas e incompatíveis com os princípios de total independência do sistema judicial, tal como os configuramos à luz da matriz portuguesa adoptada. Mas nós estamos em Macau, num processo paulatino de absorção dos valores e princípios da China e, portanto, sobre essa matéria, só tem ilusões quem não quiser ver!
Mais uma vez, e sem pinga de ironia: tudo isto é normal e legítimo, até necessário, na lógica do processo de integração plena na mãe pátria chinesa.

4. Nós portugueses (quer na seja na variante de expatriados, quer seja na variante macaense, dos nascidos na terra) não temos de esperar privilégios no futuro que Macau está a construir. Provavelmente não se percebe, até, porque é que eles teriam de existir.

As regras são cada vez mais claras e os sinais evidente. Sim, acreditar no futuro, só que ele não será construído no respeito efectivo pelas diferenças das comunidades, nem no respeito pelo passado português.

E a famosa “identidade de Macau” é um conceito que tenderá a esbater-se com o tempo até passar a uma ideia a ser incluída, quanto muito, apenas nos manuais de História.

A Comunidade Macaense está em declínio acentuado e tenderá a perder o sentimento de pertença a uma terra que já não reconhece como sendo a sua. E em 2049 as novas gerações de macaenses terão laços efectivos e emocionais a outras realidades socioculturais, perdendo os seus traços identitários.

A língua portuguesa será, por sua vez, uma espécie em vias de extinção e um ornamento na toponímia de Macau.
Olhemos, mais uma vez, a realidade dos tribunais (em 2019) e as afirmações do Presidente do TSI, segundo a mesma notícia de jornal: “Sam Hou Fai tem tido como prioridade o domínio da língua chinesa nas decisões dos tribunais. Na entrevista, elogiou os resultados alcançados. Segundo o juiz, desde 1999 os tribunais têm feito o esforço para que o chinês seja a língua oficial da justiça e que por isso mais de 70 por cento das decisões são nessa língua”.

Não vai ser preciso esperar muito para que essa percentagem aumente significativamente: basta saírem do sistema os juízes portugueses. São eles que, provavelmente, ainda garantem os 30% de decisões em língua portuguesa. Isto porque mesmo mantendo-se em actividade advogados portugueses não falantes da língua chinesa, esses já quase nada contam para a ponderação da utilização da língua portuguesa nos tribunais!

5. A especificidade do sistema jurídico de Macau não está garantida para o futuro, por mais juras que se façam e artigos da Lei Básica que se invoquem.

A Grande Baia tenderá a uniformizar procedimentos, mesmo judiciários. E Macau, como bom aluno que é e sempre será, é o parceiro ideal para provar que essa integração é possível. Basicamente por uma razão: porque a matriz do direito existente é a continental, assente na codificação das leis, a mesma da China, e muito diferente da estrutura legal de Hong Kong, assente no precedente judiciário.

É evidente e inquestionável que existe uma diferença enorme entre a praxis judiciária de Macau e a da China. E isso acontece porque a cultura das profissões judiciárias é (ainda) estruturalmente diferente. Mas o tempo irá fazendo o seu caminho e os extremos tenderão a aproximar-se. E o pragmatismo chinês conseguirá encontrar, com segurança, um ponto de equilíbrio nesse processo de absorção do sistema judiciário de Macau pelo sistema dominante na Grande Baía.

6. Tudo somado, não é preciso ser-se profeta, e muito menos da desgraça, para se perceber que o caminho está traçado há muito e que a sua execução se mede por uma unidade tempo que não é igual à dos ocidentais. É uma inevitabilidade. Talvez uma virtude. Mas seguramente um caminho normal e positivo para a China que conseguirá alcançar, depois de cumprido com o rigor possível o processo de transição, o legítimo desígnio de “Um país, um sistema”.

20 Dez 2019

A cidade nunca existiu

[dropcap]E[/dropcap]is a mulher entregue, cercada, enrugada de prazer. Cidade da sorte, sem norte, infectada, julgada, repudiada. E ainda assim, para surpresa geral da multidão, verdejam lótus nos explícitos pântanos e crianças sossegam as mães num estertor. Não há amor porque o amor nunca existiu. Só a raiva e o descanso.

Só a raiva de não ter ou o descanso de sossegar a cabeça num seio farto e esquivo como as ruas de uma cidade aparentemente real. Como se fosse assim em todo o lado. Ou não houvesse mais lado nenhum porque todo o mundo se desvanece e perde importância com a minha presença em ti.

Entrei na cidade sem a precaução do preservativo. Não olhei a males congénitos nem a seus recentes vícios. Fui certamente contagiado mas o corpo criou defesas que a mente ainda hoje não consegue entender. Ou sequer aceitar. Sobrevivi. No sentido forte da palavra. Foi há 20 anos. E eu nunca fui tanto eu como aquilo que hoje sou. Já a cidade nunca existiu.

20 Dez 2019

O coração dos homens

[dropcap]N[/dropcap]o final dos anos 90 do século passado, pouco antes da transferência de soberania de Macau, uma tese de doutoramento publicada em Lisboa previa que, não sem algum fundamento tendo em conta os dados presentes, depois de 1999, da imprensa em língua portuguesa apenas sobreviveria “O Clarim”, por ser um jornal sustentado pela Igreja Católica. Felizmente que, vinte anos depois, as previsões revelaram-se erradas, e o Hoje Macau aqui está e de boa saúde.

Não foram lineares estas duas décadas. Mas a mudança radical, para a nossa comunidade, aconteceu em 2003 com a criação do Fórum Macau e o objectivo assumido por Pequim de tornar Macau numa ponte para os Países Lusófonos. Deste modo, o Governo central indiciava-nos contar com a nossa presença e mesmo apreciá-la. A verdade é que nos anos que se seguiram não tivemos quaisquer razões de queixa.

Entretanto, o Hoje Macau cresceu e amadureceu. A nossa aposta passa, sobretudo, por sermos um jornal voltado, por um lado, para as notícias locais, e por outro, para o desenvolvimento de uma plataforma cultural/literária em língua portuguesa que torne Macau num lugar de referência das letras lusófonas. Isto sem esquecer as constantes traduções de clássicos chineses, nas áreas da poesia, filosofia e artes plásticas, que consideramos uma espécie de obrigação da nossa parte.

Para realizar estes dois objectivos, fizemos questão de manter uma redacção preenchida por profissionais proficientes em português e outros capazes de decifrar a escrita chinesa, para assim nos mantermos a par de dos acontecimentos nas várias comunidades que compõem Macau. Lutando muitas vezes contra a incompreensão dos poderes instituídos, que por vezes não compreendem na sua total extensão o papel fulcral da imprensa no âmbito do segundo sistema ou, pelo contrário, a compreendem muito bem, o Hoje Macau tem-se batido pelos interesses da população, pela transparência governativa e pelo aprofundamento racional do segundo sistema, no quadro definido pela Lei Básica.

Por outro lado, orgulhamo-nos de contar como nossos colaboradores alguns dos escritores e pensadores mais relevantes das letras em português. Escritores como António Cabrita, Paulo José Miranda, Gonçalo M. Tavares, Valério Romão, Gisela Casimiro, António de Castro Caeiro, Luís Carmelo, Paulo Maia e Carmo, Fernando Sobral, Rui Cascais, José Simões Morais, Rita Taborda Duarte, Amélia Vieira, Anabela Canas, João Paulo Cotrim, José Navarro de Andrade, Michel Reis e Nuno Miguel Guedes dão todos os dias às nossas páginas um brilho especial que nos projecta a um lugar ímpar no mundo da imprensa em português.

Em 2017, não quisemos deixar morrer o ano sem comemorarmos os 150 anos do nascimento de Camilo Pessanha, poeta indissociável da identidade de Macau. Para o efeito, trouxemos até à RAEM alguns dos nossos colaboradores que, durante uma semana, participaram nas celebrações que de novo trouxeram à superfície a figura incomparável do bardo. Além disto, o Hoje Macau tem publicado suplementos junto de grandes festivais em Portugal, como é o caso do FOLIO, que se realiza anualmente em Óbidos, pequena vila onde Camilo Pessanha trabalhou como jurista antes da sua vinda para Macau e a quem dedica um famoso poema.

Contudo, como diria Mário Cesariny, “o mais importante não é a literatura”. Pois não: é a vida. É este desfilar quotidiano de alegrias, tristezas, euforias e chatices. De gentes de toda a espécie e feitio. De notícias de dentro e de fora desta pequena e pouco usual cidade. E, neste aquilatar dos dias, pensar sobretudo no futuro, como se fôra um vício, um destino ou mesmo uma obrigação.

Os anos da transição foram espectaculares e irrepetíveis. Mas, desde então, Macau melhorou a olhos vistos e, acima de tudo, tornou-se mais real. Não que tenha sido mau viver naquele sonho, extrair daquele momento único tudo aquilo que a imaginação eventualmente teria para nos dar. Contudo, desde a fundação da RAEM que a cidade se encontra dotada de uma energia dantes inexistente, na medida em que se olhava o horizonte de 1999 como se significasse o fim. Não foi. Foi um novo começo, um renascimento dentro de novas regras, com novos poderes e novas gentes.

A nós agradou sobremaneira o facto de não serem os portugueses os responsáveis pela administração deste território. Tal facto libertou-nos e libertou alguns dos nossos complexos. Paradoxalmente, como quase tudo nesta terra, deu-nos muito mais margem de manobra e tirou-nos dos ombros parte de uma responsabilidade imaginária. Hoje olhamos principalmente para o futuro e as nossas expectativas mantêm-se iguais. Acreditamos nas palavras dos governantes desta região e deste país. Não temos razão para delas duvidar. Antes pelo contrário.

Nestes 20 anos tudo correu para nós muito melhor do que se esperava. E é por isso que acreditamos piamente que estaremos aqui a comemorar com a população de Macau os 30, os 40, os 50 anos da RAEM. É esse o nosso destino, que não está escrito nas estrelas mas no coração dos homens, porque nele se inscreve com igual peso o desespero e a esperança.

20 Dez 2019

A natividade de Jesus

“Christmas is not a time nor a season, but a state of mind. To cherish peace and goodwill, to be plenteous in mercy, is to have the real spirit of Christmas.”
Calvin Coolidge

 

[dropcap]O[/dropcap] Natal já não é o que costumava ser pois perdeu o seu significado religioso em muitas partes do mundo ocidental e tornou-se o auge de uma época de gastos excessivos, de comer demasiado e de exultações sem controlo. O novo Natal espelha o seu antecessor pagão, que celebrava o solstício de inverno. O Natal é a festa preferida das crianças durante o ano, e para os adultos é um tempo para se entregarem às doces lembranças dos velhos tempos. Existem três versões da peça de teatro Natividade.

Os fiéis de todas as idades estão familiarizados com a primeira. É regularmente esboçado, cada Natal, em sermões pregados no púlpito e pode ser encontrado e admirado nas grandes telas da Natividade criadas com amor por artistas cristãos ao longo dos séculos. Vê-se um velho barbudo andando ao lado de um burro seguido de uma jovem grávida. As torres de Belém são ligeiramente visíveis à distância. Na cidade cheia de gente, as pousadas estão lotadas, e José, depois de muito brigar, irar-se e procurar, pode descobrir apenas um modesto barracão no bairro para que Maria dê à luz o seu filho.

O recém-nascido Jesus é colocado pela sua mãe na manjedoura entre uma vaca e um jumento. O velho José observa a cena com benevolente e desprendida admiração. Os pastores locais são alertados por um anjo e aprendem sobre a chegada ao mundo do Salvador dos judeus, e logo três reis se aproximam, vestidos com trajes gloriosos que foram conduzidos do longínquo Oriente, via Jerusalém, até Belém, por uma estrela misteriosa. No palácio real, perguntam onde o recém-nascido rei dos judeus pode ser visto, mas ninguém sabe e seguindo o conselho dos peritos convocados por Herodes, os reis são enviados a Belém e, com a ajuda da estrela que reaparece, encontram o estábulo, saúdam e adoram Jesus, e oferecem-lhe presentes reais.

A cortina desce e é o fim do primeiro acto e como o conto de fadas de uma criança, o conto de Natal consiste numa mistura do encantador e do terrível. No segundo acto, geralmente não presente nos jogos da Natividade, a doçura e a alegria desaparecem de repente e o desastre paira no horizonte quando Herodes, sedento de sangue, entra na contenda. Percebendo que os reis o enganaram e escaparam do país, Herodes lança os seus cruéis soldados sobre os meninos de Belém e todos perecem, de recém-nascidos a crianças pequenas, excepto a criança que deixou Herodes tão ansioso. De repente, a cena muda novamente e José adormece e sonha com um anjo, que soa o alarme; o pai, mãe e filho devem fugir imediatamente.

E vemos novamente o velho na estrada, acompanhado do seu fiel burro, mas desta vez carrega o bebé e a sua mãe. Evitando habilmente os guardas de fronteira de Herodes, escapam da Judeia e chegam ao porto seguro do Egipto, a terra do Nilo. No último acto, o cenário fica um pouco atolado. As fases finais do drama tornam-se nebulosas. É mostrada a circuncisão de Jesus e a sua apresentação no Templo de Jerusalém, mas não se sabe quando aconteceram em relação à fuga para o Egipto, e também não se especifica a razão e o tempo da mudança de Jesus para a pacífica Galileia e para uma infância feliz.

A mente cristã não parece estar muito incomodada com estas questões. A sua perspectiva é compacta e o seu quadro cronológico é abreviado e para os fiéis comuns, todos os acontecimentos são espremidos entre o Natal e a Candelária. Segundo a liturgia da Igreja, Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro. Os inocentes de Belém foram assassinados três dias depois. Jesus foi circuncisado a 1 de Janeiro. O Dia de Ano Novo ainda é designado como a festa da circuncisão, mas infelizmente nos missais católicos romanos, revistos depois do Concílio do Vaticano II, uma solenidade de Maria, Mãe de Deus, foi substituída pelo antigo latino rito “Circumcisio Domini” (a circuncisão do Senhor), e em consequência o Evangelho que diz “E ao fim de oito dias, quando foi circuncidado, foi chamado de Jesus” desapareceu do serviço diário.

Jesus e Maria (e talvez José) visitaram o templo no dia 2 de Fevereiro e o episódio egípcio deve ter ocorrido entre o final de Dezembro e o início de Fevereiro, e a viagem à Galileia imediatamente a seguir. Tudo se torna limpo e arrumado, excepto na maior parte que poderá ser lenda ou ficção e com todo o respeito pela tradição cristã, alguns dos elementos essenciais do complexo de Natal, parecem estar a um milhão de quilómetros de distância do facto e da realidade e por exemplo, as possibilidades de que Jesus tenha nascido em 25 de Dezembro são de uma para trezentos e sessenta e cinco (ou trezentos e sessenta e seis em anos bissextos).

Esta data foi inventada pela igreja ocidental no século IV, com o imperador Constantino como forma de substituir o festival pagão do “Sol Invicto”, e é primeiro atestado, para ser mais preciso, num calendário romano em 334. A maioria dos cristãos orientais celebra o nascimento ou manifestação de Jesus ao mundo na festa da Epifania (6 de Janeiro), enquanto de acordo com o Padre Clemente de Alexandria, da Igreja do segundo século, outras comunidades orientais comemoraram o evento em 21 de Abril ou 20 de Maio.

A procura de esclarecimento, é de começar por eliminar as três características da representação tradicional do Natal que não têm antecedentes escritos no Novo Testamento. Por mais que se procure, nada se encontrará nos Evangelhos que sugira que José, repetidamente referido como o pai de Jesus, era um homem velho. Não se sabe nada sobre a sua idade, quando nasceu, ou mesmo quando morreu. A ideia de um José idoso deriva de um Evangelho apócrifo, o Proto-Evangelho de Tiago, o Irmão do Senhor e nele é descrito como um viúvo de anos avançados que teve filhos e filhas de um casamento anterior. Estes são então os membros da família de José e Maria, a quem o Novo Testamento designa como irmãos e irmãs de Jesus.

Nem os Evangelhos contêm qualquer alusão às bestas amigas, ao boi e ao jumento, partilhando o estábulo com Jesus. A imagem destes animais é emprestada ao profeta Isaías: ” O boi conhece o seu possuidor, e o jumento a manjedoura do seu dono; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende” (Isaías 1:3).

A Igreja viu nesta passagem a prefiguração da posterior rejeição de Cristo pelo povo judeu. Finalmente, o Novo Testamento em nenhum lugar sugere que os visitantes orientais que seguiram a estrela até Belém fossem reis.

O texto grego de Mateus designa-os não como governantes ou mesmo “sábios”, mas como “magos” ou mágicos. A elevação destes astrólogos orientais à dignidade real deve-se a outra associação artificial de um texto do Antigo Testamento com este episódio do Evangelho da Infância. Uma passagem tirada do Livro de Isaías diz: “E os gentios caminharão à tua luz, e os reis ao resplendor que te nasceu” (Isaías 60:3).

É completado por outro versículo, mais adiante, no mesmo capítulo do mesmo livro: “A multidão de camelos te cobrirá, os dromedários de Midiã e Efá; todos virão de Sabá; ouro e incenso trarão, e publicarão os louvores do Senhor” (Isaías 60:6). Não está escrito em nenhum lugar que havia três reis. Esta figura é sem dúvida deduzida do número de dons listados em Mateus, “ouro, incenso e mirra” (Mateus 2:11), com a suposição de que um presente foi oferecido por cada visitante. Os outros dois quadros de Natal são inspirados no Novo Testamento. O primeiro, surgido da narrativa de Mateus, começa com a árvore genealógica de Jesus (Mateus 1:1-17) e é seguido pela intenção de José de se divorciar da Maria grávida (Mateus 1:18-19).

O seu plano é alterado quando um anjo o tranquiliza num sonho em que a condição da sua noiva se deve à intervenção milagrosa do Espírito Santo (Mateus 1:20) e com efeito, o nascimento virgem é o cumprimento de uma profecia de Isaías (Mateus 1:22-23) pelo que José dá crédito a este sonho-revelação, casa com Maria e leva-a para a sua casa (Mateus 1:24-25). A chegada de Jesus a este mundo é marcada pela aparição de uma estrela a Oriente no horizonte que conduz os “magos” do Oriente a Jerusalém (Mateus 2:1-2) que vão ao palácio real para conhecer o paradeiro do rei recém-nascido dos judeus (Mateus 2:3).

O estupefacto Herodes consulta os chefes dos sacerdotes judeus, que identificam Belém como o lugar de nascimento previsto do Messias esperado, em conformidade com uma profecia de Miqueias 5:2 (Mateus 2:4-6). Herodes então extrai dos “Magos” o tempo da primeira aparição da estrela e canonicamente exige que compartilhem com ele tudo o que aprenderem sobre a criança (Mateus 2:7-8). Assim, com a ajuda da estrela, os “Magos” encontram Jesus e prestam-lhe homenagem antes, de acordo com a instrução que recebem num sonho, regressam a casa sem voltar a Jerusalém (Mateus 2: 9-12).

Mais uma vez José é instruído por um anjo, em mais um sonho, a levar prontamente Jesus para o Egipto a fim de escapar do massacre dos filhos de sexo masculino de Belém, decretado pelo ciumento e irado Herodes, em cumprimento da profecia sobre Raquel, a esposa do Patriarca Jacó, lamentando a perda dos seus filhos em Jeremias 31:15 (Mateus 2:13-18) e com a morte do rei, o mesmo anjo, num penúltimo sonho, ordena a José que volte à terra de Israel, realizando assim outra predição (Oseias 11:1), que anuncia que Deus chamará o seu Filho do Egipto (Mateus 2:19-21). No entanto, quando José descobre que Arquelau sucedeu a Herodes, seu pai, em Jerusalém, um grande sonho revê a instrução anterior e o orienta a residir na Galileia. Uma profecia não identificada, “Ele será chamado de Nazareno”, é citada para explicar a associação de Jesus com Nazaré (Mateus 2:22-23).

Na terceira versão dos acontecimentos da Natividade, Lucas tem uma história substancialmente diferente para contar que encerra dois anúncios em que no primeiro, o sacerdote ancião Zacarias, residente na Judeia, é informado pelo anjo Gabriel que a sua esposa idosa e estéril, Isabel, dará à luz milagrosamente um filho, João Baptista (Lucas 1:5-25). Isto é seguido por outra mensagem do mesmo Gabriel a Maria, uma virgem noiva vivendo em Nazaré, que conceberá e dará à luz Jesus, e que não é mais difícil para Deus engravidá-la e mantê-la virgem do que permitir que a sua parenta Isabel dê à luz um filho na sua velhice (Lucas 1:26-38). Maria logo visita Isabel na Judeia e fica até ao nascimento de João Baptista (Lucas 1:39-80). Ela viaja de volta para Nazaré, retomando a estrada dentro de poucas semanas.

O censo ordenado pelo imperador Augusto é dado como explicação da viagem de José e Maria a Belém, onde Jesus nasceu num abrigo para animais fora da cidade de David, onde os albergues da cidade estão cheios até à borda por multidões de pessoas que chegam para se registar (Lucas 2:1-7). A criança recém-nascida é saudada por pastores locais e por um coro celestial que canta glória a Deus (Lucas 2:8-20). Oito dias depois, em conformidade com a lei judaica, Jesus é circuncidado e, no quadragésimo dia seguinte ao seu nascimento, é levado ao templo e é realizada a cerimónia da redenção do primogénito, enquanto a sua mãe completa o ritual de purificação obrigatório, após o nascimento de uma descendência masculina.

No santuário Jesus é reconhecido por dois velhos adoradores como o Messias dos judeus e o redentor dos gentios (Lucas 2:25-38). Após terem cumprido os seus deveres religiosos, José, Maria e a criança retornam imediatamente a Nazaré, sua cidade natal original (Lucas 2:39-40). Os discípulos Mateus e Lucas raramente fornecem a mesma informação na mesma ordem. Algumas vezes os temas não são diferentes em substância, mas na maioria das vezes os dois evangelistas oferecem dados totalmente independentes.

A essência da boa nova anunciada pelos relatos da Natividade é que Deus enviou o seu Filho, nascido sobrenaturalmente de uma mãe virgem, para salvar o seu povo dos seus pecados e trazer paz a todos os homens favorecidos por Deus. Esta é a mensagem feliz que o mundo cristão identifica com o Natal e para isso é necessário aplicar uma leitura selectiva aos Evangelhos de Lucas e Mateus. A gloriosa tradição da Natividade da Igreja é construída sobre a doce e simples história de Lucas com anjos, pastores e vizinhos alegres. O feliz Natal que as pessoas desejam umas às outras é expurgado dos efeitos prejudiciais do drama de Mateus com a tortura psicológica de José diante do dilema do que fazer com Maria grávida e o medo, pânico e lágrimas causadas pelo édito de Herodes ameaçando com extinção prematura a vida nascente do Filho de Deus.

Feliz Natal e Próspero Ano Novo 2020

19 Dez 2019

Não queiram apagar a luz

[dropcap]A[/dropcap]o que parece, há por aí gente que veio para a China sem saber ao que vinha e para onde vinha. A ignorância é desculpável. Afinal, Portugal fica praticamente do outro lado do mundo e não há muita informação disponível. Por isso, será normal que muito pessoal aqui aterre sem saber onde está a aterrar e fique aterrado com o que encontra (ai, afinal são comunistas!… e outras coisas do género). Não obstante, a malta não recusa o ordenado que, no limite, vem de bolsos chineses, nem as mordomias que esse ordenado lhe permite.

Contudo, numa espécie de pacificação da consciência, vai plasmando nas redes sociais o seu ódio ou desprezo ou lá o que é pelo país que — não só lhe paga o pão e a casa — está muito longe de conhecer ou compreender, na medida em que, em geral, ainda não saíram da terrinha. Ou a terrinha não saiu deles. Confessemos que o espectáculo da ignorância e da inveja, é chato. E é duplamente chato quando a ele assistimos protagonizado por um dos nossos.

O que não se compreende é como é que se atura tanta repressão, tanta iniquidade, tanta falta de liberdade. E (imaginem!) dói-lhes ver aquilo a que chamam “Macau a tornar-se chinês”. Como se alguma vez tivesse sido outra coisa!

A parte que talvez não compreendam é que só pisam este solo porque ele foi regado durante séculos por sangue, lágrimas e suor de uma comunidade minoritária que soube respeitar os legítimos habitantes desta terra e por isso aqui permaneceu, quantas vezes em temíveis equilíbrios, durante quatro séculos e meio. E que pretende continuar aqui por muito mais tempo. Prosseguir o milagre. Que, por acaso, é inusitado e lindo. Macau chama-se em chinês “Porta da Baía”: tanto se entra como se sai. Liberdade total. Não se caia é na tentação de ao sair querer apagar a luz.

19 Dez 2019

Disponível para amar

[dropcap]O[/dropcap] amor, numa perspectiva mais madura e complexa, depende de pessoas disponíveis para amar. Há quem esteja mais ou menos disponível para mergulhar nesta confusão. O amor como lugar de encontro de fragilidades – confuso e de difícil gestão.

Aprender a vincular desta forma será, certamente, um processo individual, mas as estruturas culturais parecem não ajudar a oferecer uma visão realista da complexidade deste processo. Como em tudo, na verdade. Há a tendência de julgar que o amor simplesmente ‘acontece’ como uma seta de cupido que nos ataca sem aviso; ou que o amor é para sempre e incondicional, independentemente de quem somos, de como estamos e de como interagimos. O amor está cheio de mitos que dificultam a consciência do seu potencial disruptivo.

O mito do amor como acontecimento mágico tende a gerar muita desilusão. Isto porque existem confusões conceptuais das quais o amor, a paixão, o sexo e o tesão fazem parte. Não que seja necessário definir cada um destes domínios ao milímetro, mas é importante perceber que as sensações que o corpo e a mente sentem vêm de muitos lugares e estão em constante sobreposição. Perceber o amor como um acto de partilha e de ligação é quase um trabalho a tempo inteiro. Este não aparece (somente) como uma reacção fisiológica às circunstâncias à nossa volta. Necessita de trabalho amoroso – e reflexividade – que nem todos têm disponibilidade para fazê-lo.

O mito do amor incondicional é daqueles também bem persistentes. Quando assentamos com um parceiro romântico esperamos que o amor seja uma ligação duradoura e incontestável. Tenta-se usar essa relação como uma rede de segurança caso tenhamos uma queda. Uma queda de qualquer tipo, emocional ou física – porque sabe-se o quanto precisamos dos outros para a nossa sobrevivência. A fantasia é de que as pessoas nos podem amar sem condições ou exigências. Simplesmente. O mais próximo que se está do amor incondicional acontece quando somos bebés ou crianças. Aí por muito (ou pouco) que façamos, os nossos pais amam-nos sem qualquer expectativa. Mesmo que o bebé suje tudo, não interaja muito, não fale ou satisfaça expectativas mais sofisticadas, o bebé simplesmente existe para ser cuidado e amado. Aliás, até mesmo nessas condições, o amor incondicional não é garantido, como se sabe na quantidade de traumas de infância que perseguem muitos até à idade adulta. É desse lugar que depois se procura outro tipo de vinculação. O outro, com os seus medos e desejos, nunca nos pode garantir disponibilidade total às necessidades (e vice-versa). O amor incondicional precisa de ser redefinido para permitir que existam momentos fortes de desencontro que podem não o pôr em causa. Mas para fazê-lo é preciso disponibilidade para lidar com muita confusão, e muita frustração também.

É difícil explicar o que a disponibilidade para amar pode querer dizer para além de que é a condição necessária para encontrar amor nos outros e conseguir mantê-lo ao longo do tempo. Mesmo que o amor se transforme em outras formas de expressão. A disponibilidade a que me refiro não se limita a uma decisão instrumental de que ‘agora estou pronta/o para uma relação’. Trata-se da disponibilidade de cuidar e permitir ser cuidado, e poder estar disponível para mexer com o que aflige e satisfaz. O amor é construído no espaço do desencontro entre humanos, através de pontes e formas de comunicação ao longo do tempo. Um trabalho emocional, por vezes, muito intenso. Daí que a disponibilidade seja muito importante, para garantir que não nos perdemos na intensidade de que o amor nem sempre é aquilo que esperamos.

18 Dez 2019

Porreiro, pá!

[dropcap]P[/dropcap]or ocasião dos 20 anos da RAEM e a visita de Xi Jinping, as forças de segurança têm apertado o cerco e, ao contrário do que por aqui costuma acontecer, aparecem com grande visibilidade, seja a proibir a entrada a jornalistas e activistas de Hong Kong, seja a revistar todos os que pretendem entrar em Macau, vindos da ex-colónia britânica. Todos os dias surgem notícias deste tipo, incluindo a seca que deram a uma equipa da RTP, na fronteira de Macau quando esta regressava depois de uma visita a Hong Kong.

Claro que estes factos não contribuem em nada para a boa imagem de Macau nos media internacionais, sobretudo numa altura em que decorre uma intensa campanha anti-China, suportada quer por factos e quer por invenções. Mas, ao que parece, valores mais altos se levantam e nada deve, no entender das autoridades, perturbar a festa e a visita do Presidente.

Na tentativa de estragar a dita festa, juntam-se artigos como o do Financial Times sobre os 20 anos da RAEM no qual debitam três portugueses. E, surpresa (?), todos grandes arautos da democracia eleitoral, com acintosas afirmações anti-China, já para não falar do perigo amarelo. Isto, lido em Pequim, dará uma imagem específica de uma comunidade portuguesa descontente, desconfiada, inimiga de quem lhe paga o pão e a cerveja.

Os outros que falaram, mas cujas afirmações não interessavam à jornalista do FT, simplesmente não aparecem na reportagem porque não se enquadravam no ataque cerrado a Pequim — a ideologia do artigo. É d’homem! Porreiro, pá!

18 Dez 2019

França em greve

[dropcap]A[/dropcap]s greves voltaram a França, como protesto contra a reforma do sistema de pensões que prevê o aumento da idade da reforma e a redução do montante das aposentações.

Na nova proposta, apresentada quarta-feira, o Governo francês simplificou o antigo sistema que previa 42 planos de aposentação distintos, substituindo-o por um método quantitativo que irá determinar o valor da pensão a que cada cidadão tem direito. Embora o Governo afirme que este sistema é mais equitativo, as pessoas com direito a reformas mais elevadas, ou com direito a reformas antecipadas, consideram-se prejudicadas com as novas disposições. Afirmam que irão receber menos e que terão de trabalhar até mais tarde.

A greve deixou apenas 20 por cento dos comboios a funcionar e mais de 25 por cento dos voos domésticos não se estão a efectuar. Na cidade de Lille, no Norte de França, estudantes do secundário atiraram pedras à Polícia, que se viu obrigada a usar gás lacrimogéneo para os dispersar. Os sindicatos continuam a convocar greves noutros sectores, afirmando que continuarão a lutar até que o Governo retire a proposta de reforma do sistema de pensões.

Através dos noticiários, podemos constatar a dimensão desta greve. Houve algumas acções incendiárias, manifestações e os apelos à greve continuam. O Governo convocou a polícia para dispersar as multidões. No entanto, os manifestantes não lançaram cocktails molotov contra os agentes, nem danificaram instalações públicas. No geral, estas acções podem ser encaradas como manifestações pacíficas. Mas a suspensão dos serviços ferroviários e a redução dos voos domésticos está a afectar seriamente o dia a dia dos cidadãos.

Apesar de tudo, as pessoas não se estão a queixar dos inconvenientes sofridos, mesmo que tenham de andar uma hora a pé ou de usar o carro por distâncias muito maiores que o habitual. Em geral mostraram-se compreensivas e solidárias com os grevistas. Esta reacção da população demonstra que os franceses são um povo com maturidade política, com ideias formadas sobre o valor da greve, dos interesses privados e da segurança e interesses públicos.

Embora através dos noticiários não tivéssemos ficado a conhecer o antigo e o novo plano de reforma em detalhe, é de supor que a maior parte das pessoas não terá acesso a reformas avultadas ou a reformas antecipadas. Aumentar a idade da reforma e reduzir o valor das pensões, deixou os franceses insatisfeitos.

As pensões são uma das vertentes do sistema de segurança social, que permitem aos cidadãos continuarem a auferir de um rendimento de sobrevivência depois de deixarem de trabalhar. Este conceito de reforma é o que se pode chamar de sistema de pensões básico. Mas algumas pessoas têm acesso a mais do que isso, usufruem dinheiro suficiente para viverem confortavelmente. Digamos que têm acesso a um sistema de pensões mais complexo. A quantia que garante uma boa qualidade de vida também pode ser variável de pessoa para pessoa.

Desde há muito que os sistemas de pensões na Europa e nos Estados Unidos proporcionam reformas muito diferentes, consoante os casos. Em muitas situações permitem que as pessoas usufruam de um rendimento que ultrapassa o necessário para cobrir as necessidades básicas. No Ocidente, os trabalhadores e as entidades patronais descontam um valor entre 35 por cento a 45 por cento dos salários, que posteriormente garante o pagamento das pensões de reforma. Tendo em vista a reforma e a cobertura das despesas de saúde, o que pagam hoje transformar-se-á no que virão a receber amanhã.

O Governo francês pretende aumentar a idade da reforma para obter mais receitas e pretende diminuir algumas pensões para reduzir custos. Não há dúvida que este é o seu objectivo. Pode também ser entendido como uma forma de reduzir as discrepâncias entre as pensões mais baixas e as mais elevadas. Do ponto de vista da administração pública, a proposta do Governo visa estabilizar as contas e garantir a continuação de um sistema de pensões que garanta aos reformados o rendimento para cobrir as despesas básicas. Se as pessoas quiserem obter mais rendimentos durante o período da reforma, terão de pensar noutro tipo de investimentos. É evidente, que se os impostos que pagam enquanto estão no activo forem muito elevados, não sobrará nada para investir no futuro. Assim, mesmo que o novo sistema de pensões francês consiga garantir os rendimentos básicos, não deixará de ser um “plano falhado” .

Os franceses opõem-se à reforma do sistema de pensões. Estão a lutar para garantir a manutenção das suas reformas. Os protestos não vão abrandar para já; o Governo precisa de negociar com os sindicatos e procurar um consenso para resolver os conflitos sociais.

 

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau
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17 Dez 2019