Manuel de Almeida h | Artes, Letras e IdeiasMistérios de Factos & Estórias de Memórias [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]pós a fulgurante estreia ficcional em 2000, com o título “As Más Inclinações” e, tendo como subtítulo “Breviário do Jogo” – que a crítica apelidou de escrita “silenciosa”, construída com uma “agilidade vocabular perfeita e refinada”, de um autor “estranho, requintado e provocador”, E. Trovoada está de volta aos escaparates das livrarias, agora com “O Príncipe Encantado e a Oportunidade Perdida”, com a chancela da «Chapas Sínicas». Apesar do reconhecimento público, foi com “O Estranho Caso de Mr. Mao” de 2006 e de “A Chave da Casa Abandonada” de 2009, que o talento e o reconhecimento de Trovoada se consolidou. A crítica foi unânime – aclamou, aplaudiu – rendeu-se: “Uma obra importantíssima, das mais originais e poderosas no actual panorama editorial” – podia ler-se –, “destruição de mitos” de um autor que “reinventa, recria os factos, procurando transmiti-los de forma original, sem traumas, tormentos ou desilusões” , ou ainda, “acolhe memórias ,experiências e sensações de forma a preservar e conservar a identidade colectiva”. A obra de estreia de E. Trovoada, “As Más Inclinações – Breviário do Jogo” (2000), não é um livro de grande complexidade estrutural, nem de grande sofisticação intelectual, mas é um livro de uma prosa magnífica – escorreita, sadia, pura –, que vai do confronto pessoal ao político. O autor começa por reflectir sobre o lugar que habitamos, a construção da identidade, afectos, memórias – a relação umbilical entre as pessoas e o seu espaço –, não na teoria de Le Corbusier , onde “uma casa é uma máquina de morar”. É uma obra centrífuga – em vez de seguir em frente –, ela anda para os lados, avança para a periferia e, a partir do quarto capítulo a linearidade da narrativa estilhaça-se de vez. Passa a salpicar o texto com pormenores inconsequentes, pequenas aventuras, experiências vazias, diversificadas por vezes, mas banais, em viagens nocturnas ao submundo do crime e da aventura – registos crus, mas poéticos, com diálogos excêntricos, mas esplêndidos -, às saunas, discotecas, casinos e botecos ordinários. Ainda assim é um livro em que as boas intenções não contrariam a boa literatura. “O Estranho Caso de Mr. Mao” (2006) é uma introspecção, uma reflexão que nos leva pelo espaço físico dos tribunais, dá-nos a conhecer o seu funcionamento e as personagens com que o autor se vai cruzando – o mundo contraditório da razão, a irrealidade – , a confusão, o caos. O descortinar de factos recentes. O “Medo” faz parte da construção narrativa, é um “Ser” presente. Forte e robusto. O autor não fornece respostas directas, apresenta ideias e soluções, não as impõem, discute-as com o leitor – o leitor é cúmplice -, tudo de maneira serena, arrumada, educada. Com uma grande economia de tensão e considerações narrativas, E. Trovoada procura através das palavras atingir um grande alcance reflexivo, de grande exigência e fixa a discussão a um nível elevado do pensamento, com uma prosa lenta, complexa e meticulosa. Notável (condição social) o capítulo do julgamento, ao abolir a hierarquia dos discursos, ao não colocar num plano superior a explicação do juiz, relativamente ao do réu. O autor sabe – e, também porque sabe -, consegue desmitificar a importância da Justiça, sobretudo de uma justiça com várias questões por decidir, por resolver e fértil em suposições e inquietações. “A Chave da Casa Abandonada”, de 2009, é um livro para adultos de todas as idades , recheado de um humor mordaz e colorido, com fragmentos acutilantes e melancólicos. Com uma prosa telúrica – que tanto nos horroriza como nos faz soltar gargalhadas –, povoado por criaturas aborrecidas, imaturas e ilegíveis. A figura de Eunídes é disso um bom exemplo. Vive entre “ a imagem moral do fracasso” e o “símbolo físico do abandono” – dúvida e pânico. A obra duplica-se, desdobra-se num par de histórias paralelas: a do narrador e das personagens. Um e outros “vivem” os mesmos espaços, lugares, tempos, são coniventes. Aqui o que impressiona, é a forma `sage` como o autor consegue manter em suspenso o conflito entre histórias. A espantosa capacidade de síntese – torna o final soberbo -, os “zumbidos” dos carros a circular, o “ladrar” dos cães abandonados e, as pessoas de “máscara” a vaguear pela cidade – “é a vida do tempo a passar”. Finalmente, o ansiado livro acabado de chegar às Livrarias, “O Príncipe Encantado e a Oportunidade Perdida”, o autor escreve com a leveza habitual, um registo que mistura, humor, memórias, estórias, mas com uma acutilância precisa, feroz, que lhe advém do facto de conhecer bem a política, todos os meandros da política, mas infelizmente não ser político, apesar de ser inculto, provinciano, ignorante e melancólico. Trovoada usa palavras de arremesso contra a situação política e social, mas não escancara o horror da banalidade e da futilidade de forma amarga, selvagem, oca. Constrói um quadro com boa parte da sociedade civil farta dos desmandos políticos, do caciquismo, corrupção, das venalidades do poder, sem cair na tentação da grande eloquência, nem aspira a fazer da obra um testamento histórico. Usa os estratagemas narrativos tradicionais – para não perder o leitor, para conferir acção -, como conversas, telefonemas, pápeis, o que torna a obra ao mesmo tempo “compacta” e “porosa”. Vive entre hiatos e reconstruções documentais verídicas. Em todos os livros, os textos de E. Trovoada não são para afirmação ou acusação de ninguém, nem tão pouco são textos panfletários ou propagandísticos. São antes de tudo livros escritos com uma elegância rigorosa, com uma criatividade a roçar o mágico e, uma deslumbrante forma de olhar a sociedade – nua e crua. Uma prosa livre e estruturante, de um autor maldito e obrigatório. “Não criamos nada. Juntamos coisas.” Ana Teresa Pereira, em “O Lago” (2011)
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasOI, de Luís Brito [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]i é o quarto livro de Luís Brito. Três deles de prosa e um de poesia, embora este de poesia esteja dentro de um dos livros de prosa, precisamente o livro que aqui nos traz. Todos os três de prosa são livros imersos na vivência da viagem. O humano abre-se à viagem quando se abre ao outro. Abraçar o outro é começar a viagem. O livro está dividido em vinte e seis partes: vinte e quatro arrepios (é assim que o autor divide os capítulos, por arrepios) e dois interlúdios, um em prosa – “O Ser Português” – e outro em poesia – Jejum (e que teve entretanto uma edição autónoma pelas edições Tea For One). Mas antes de falarmos sobre o livro, é necessário uma breve nota acerca do título do mesmo. “Oi”, que aqui para nós é apenas o modo como os brasileiros cumprimentam os outros, no Brasil é uma interjeição que pede explicação. Porque no Brasil há “oi” com e sem ponto de interrogação. E o livro refere-se ao “oi” com interrogação. Oi? Quer dizer exactamente, “desculpe, não entendi”. E o não estou a entender, pode ter várias razões: ou porque você está a ser indelicado, “mas o que é isso?”; ou porque você não se fez ouvir claramente, “pode repetir, por favor”; ou porque simplesmente o que você diz parece não fazer sentido, de tão estranho que parece, “pode explicar, por favor?” Oi? Por conseguinte, o autor deixa claro que se trata de um livro imerso no Brasil, na sua cultura, na sua perplexidade. O livro começa no aeroporto de Lisboa e no de Madrid, muito cedo, de madrugada, quando os voos são mais baratos. E o narrador vai iniciar uma viagem ao Brasil com a sua ex-namorada, a X, com quem tinha já planeado e comprado os bilhetes muito tempo antes do tempo se fazer sentir. Agora a viagem, que deveria ser uma celebração, é uma tortura, uma espécie de pena a pagar. O narrador viaja com X, mas logo à saída do aeroporto de São Paulo, separam-se no táxi, depois dele a deixar em casa de familiares, e de ela o aconselhar a ir alojar-se num hostel em Vila Madalena. Ele está apaixonado por ela. Ela não está apaixonada por ele. Separam-se no início do livro, e ele irá percorrer todas as páginas com ela na cabeça, com ela no coração, com ela na imaginação, que é o lugar aonde nunca se deve levar uma ex-mulher. Mas como se diz no Rio, “não tem tu, vai tu mesmo”. Ou na letra de uma canção When I need to replace her / I am a eraser / anything goês, repetida ao longo do livro, como um refrão do próprio livro. Começa aqui uma viagem das mais estranhas que, hoje em dia, um homem pode encetar: ir ao Brasil em busca, num corpo, de um sentido para além do corpo. Provavelmente todos os livros, desde a Ilíada e a Odisseia, dividem-se entre livros de vingança e guerra, por um lado, e livros de viagem por outro; embora os livros de amor sejam também livros de guerra ou de vingança, e livros de viagem. E neste livro de Luís Brito, que é um livro de viagem, estabelece-se logo desde o início um paralelismo entre a viagem e a relação amorosa. Já não se trata apenas do paralelismo entre a viagem e a aceitação do outro, como em Alcatrão, que é um modo de nos entendermos a nós, aqui a viagem encontra um outro modo de nos fazer ver mais sobre nó mesmos: o nós no outro. Assim, as relações fortuitas, casuais, as “one night stand” são o modo de se ser turista e as relações duradoiras o modo de se ser viajante. Escreve logo na segunda página (página oito do livro): “O problema não és tu – sou eu –, ou o problema não sou eu, o problema é o mundo. É ele que nos torna incapazes de amar, ou talvez seja a pequenez asquerosa do nosso país que nos põe tão tristes e mesquinhos. Separações e divórcios trocados por envolvimentos efémeros. Shots de prazer que em nada compactuam com aquilo que deve ser uma vida a dois – paciência, perseverança, diálogo e caminho na infelicidade.” Já desde Alcatrão, o seu primeiro livro, Luís Brito traça uma ontologia do ser viajante em contraposição ao ser turista, mas aqui vai mais longe. Neste seu livro, a viagem é muito mais interior do que exterior, as paisagens traçadas são mais subjectivas do que objectivas, são mais acerca do humano que escreve do que dos humanos que são “escritos”. Não no sentido de um auto-centramento, mas antes no reconhecimento de que o outro descrito é uma extensão nossa, ainda que se faça da própria vida uma contínua viagem pelo mundo. Assim, quanto mais o mundo estica, mais o humano encolhe. Podíamos ler à página 169, de Alcatrão, o seguinte: “Saídos de casa começamos por prestar vassalagem à diversidade. Admiramos os tons de pele e as culturas, vivendo a excitação do incógnito e os choques dos momentos sempre novos. Depois, com o tempo e a prática, ganhamos profundidade na observação e desvendamos comportamentos mais parecidos com aqueles a que chamamos nossos.” Nesse livro, entendíamos o exercício de viajar como uma tentativa de se perder de si mesmo, isto é, como um dos caminho mais rápidos em direcção a nós mesmos. Mas aqui, em Oi?, a viagem é a viagem no outro. E também aqui, nesta terra que nos perdemos e nos encontramos. E viajar é parar. Viajar é ter atenção. Provavelmente, tudo aquilo que o turista evita, pois – escreve Brito, ainda na mesma página da anterior – “Não há nada mais terrível do que uma evidência erguida à nossa frente.” E esta evidência a que o autor se refere é a nossa própria existência, que assume contornos de factualidade na confrontação com o outro diante de nós, do outro em quem atentamos, realmente. Pois há na existência um tremendo paradoxo: a procura de alguém e a impossibilidade de ficar. Luís Brito começa o capítulo “Segundo Arrepio” com as seguintes palavras: “Porque nos juntamos em rebanhos? De quem estamos à procura quando nos pomos no meio da multidão?” Este ímpeto não é o da viagem, mas o do turista. Ir é o verbo turístico por excelência, ficar é o verbo do viajante. Só fica quem viajou, pois quem nunca partiu não fica, está ali agarrado ao lugar como uma árvore agarrada à terra onde foi plantada. Mas quem viaja, mais cedo ou mais tarde irá ficar em outro lugar. Desde o início, o narrador está perdido. Perdido de amores e perdido no mundo. E Luís Brito – penso que aqui podemos estabelecer esta intimidade entre narrador e autor – não se perde nele mesmo, porque não há um ele mesmo onde se perder. Ele perde-se no mundo a cada instante, neste caso na noite paulista, vertiginosa, como no exemplo radical de David, um sem-abrigo que tinha sido internado num manicómio pela sua tia, de modo a ficar-lhe com a herança, e que lá, no manicómio, foi violado por um enfermeiro e contraiu HIV. É o Brasil “hardore”, que o põe a duvidar, não apenas de si mesmo, mas da sua existência: “David, o homem que parecia um judeu fugido de um campo de concentração, foi-se embora e eu fiquei sozinho em São Paulo. Se é real nunca saberei. Se eu próprio sou real, também é uma questão sem resposta. Por isso aqui está o livro.” (p. 24) [continua]
Andreia Sofia Silva EventosIC | Lançado livro das dinastias Ming e Qing sobre Matteo Ricci [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Instituto Cultural lançou, em Xangai, um novo livro, intitulado “Documentos Chineses das dinastias Ming e Qing sobre Matteo Ricci”, da autoria de Tang Kaijian, docente da Universidade de Macau. A obra é fruto de uma parceria com a editora de clássicos chineses de Xangai. Foi padre jesuíta, missionário na China, renascentista, cartógrafo. O homem que nasceu em Macerata, Itália, e que viria a falecer em Pequim, em 1610, deixou uma enorme obra que ainda hoje é alvo de estudos e de compilações. Na China, foi missionário durante o reinado da dinastia Ming, onde tinha o nome chinês de Li Madou, e onde foi o grande responsável pela introdução do catolicismo. O Instituto Cultural (IC) acaba de publicar, com o apoio de uma editora de Xangai, mais um livro sobre o jesuíta, intitulado “Documentos Chineses das Dinastias Ming e Qing sobre Matteo Ricci”, da autoria de Tang Kaijian, docente da Universidade de Macau. Segundo um comunicado no IC, trata-se de uma “colectânea de materiais históricos relativos aos estudos sobre Matteo Ricci provenientes de arquivos documentais das dinastias Ming e Qing”, estando dividido em seis partes, com “biografia, prefácio e posfácio, documentos públicos, artigos de opinião, poemas, cartas e artigos variados”. O livro fala da vida de Matteo Ricci, relatando “acontecimentos concretos da sua vida na China”, além de apresentar “uma compilação do seu pensamento e repercussões e análise da sociedade chinesa”. O conteúdo da obra inclui “mais de quatrocentos documentos de todo o tipo provenientes de bibliotecas de todo o mundo, de diferentes bases de dados e colecções privadas”. O livro “procura reunir materiais de Matteo Ricci já publicados e traduzidos do italiano e de outras línguas ocidentais com registos do missionário em língua chinesa, a fim de permitir uma compreensão mais clara e precisa de Matteo Ricci e da sua época”, explica o comunicado do IC. Das dificuldades Reunir e analisar a obra de Matteo Ricci não tem sido fácil nos últimos anos, como denota o IC. “Uma dificuldade recorrente no passado era o facto de, por um lado, os académicos do ocidente não terem capacidade de compreender na totalidade e tirar pleno proveito dos materiais de Matteo Ricci escritos em língua chinesa.” Além disso, “os académicos orientais deparavam-se com os mesmos obstáculos relativamente aos materiais do missionário redigidos em línguas ocidentais”. Tang Kaijian, o autor da obra, dá aulas no departamento de história da UM, sendo também orientador dos cursos de doutoramento. Dedica-se ao estudo da história de Macau, debruçando-se também sobre a história do catolicismo na China. O académico já publicou um total de 21 obras e recebeu mais de dez prémios na sua área nas regiões de Cantão, Gansu e Macau. “Graças ao seu notável contributo para o estudo da história e cultura francesas, em 2009 foi galardoado com o título de Chevalier de L’Ordre des Palmes Académiques, sendo o primeiro académico das regiões de Macau e Hong Kong a receber tal honra”, explica o IC.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasArqueologia das marés [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]andelstam (1891-1938) e Vladimir Holan (1905-1980) são um exemplo manifesto de como um dia – dizia a Zambrano – todos os vencidos são plagiados. Seres de excepção, expelidos pelos caprichos da História e por sistemas sociais mesquinhos, cínicos e redutores, ei-los hoje inevitavelmente celebrados como figuras nucleares. Ocorre-me agora um terceiro caso, este africano, o do sul-africano Breyten Breytenbach (1939). Narremos rapidamente os percursos de vida dos três. Mandelstam, educou-se fora da Rússia – em Heidelberg e na Sorbonne – e voltou à Rússia depois de uma viagem por Itália e por outros países europeus, para se ligar ao movimento poético acmeísta e publicar em 1913 a plaquete A pedra, que o catapultou imediatamente na notoriedade. No imediato da Revolução, foi dos primeiros poetas a enveredar por temáticas sociais. Mas só publicaria o seu segundo livro, Tristia (coisas tristes), em 1922, simultaneamente em Berlim e em St. Petersburg. Ainda viveria cinco anos de relativa discrição antes dos inquisidores começarem a procurar nos seus versos o pêlo no ovo. E em 1927 declara-se frontalmente contra o regime soviético. A escrita de um poema onde zurzia em Estaline, «cujos dedos gordos parecem engordurados vermes», em 34, valeu-lhe ser desterrado para Vorónezh, e morreria 4 anos depois num campo de trabalho. É um dos grandes poetas do século XX mas se lhe conhecemos a obra completa foi porque a mulher, Nadezha Maldelstam, apesar da indigência a que foi exposta, lhe copiou os poemas e escondeu-os, ou decorou-os, até que os pôde publicar em Nova Iorque. Quando ela se lamentava da perseguição de que eram objecto, ele replicava com humor: «De que te queixas, este é o único país que respeita a poesia: mata por ela. Em nenhum outro lugar ocorre isso!». Hoje apodrecem no negrume os seus detractores ou são notas quase ilegíveis no rodapé das biografias de Mandelstam. Em Vladimir Holan, o grande poeta checo do século XX – que só tem rival no posterior Miroslav Holub – o encontrão que lhe deu a História conhece tonalidades grotescas. Holan começou como um poeta mallarmeniano, precioso, obscuro e de rimas rebuscadas. Teve depois uma conversão à poesia social, tornando-se na voz nacional de resistência à invasão dos nazis. Correu riscos físicos e militou no Partido Comunista e escreveu inclusive um livro alinhado, Soldados do Exército Vermelho. Paradoxalmente, em 48, o novo poder saído da guerra acusa-o de escrever de forma «obscura e decadente» e condena-o ao ostracismo. No mesmo ano, também o destino escarnece dele e nasce-lhe uma filha portadora do Síndroma de Down. É uma espécie de escalpe cósmico. Refugia-se na ilha fluvial de Kampa, no centro de Praga, e raramente saía de casa. Só noite dentro se entregava a longas passeatas, à hora em que na cidade só se ouviria o barulho dos seus passos. Chega a Primavera de Praga e querem recuperá-lo como poeta nacional, mas esmagada a reforma do regime fica mais isolado, até à sua morte em 1980. Hoje é o poeta nacional. E a sua poesia despojada, bruta, prosaica, dissonante, de palavras esculpidas, é inimitável, enquanto a dos seus rudes inimigos foi diluída pela espuma do tempo. Breytten Breyttenbach (1938) é um poeta sul-africano de um quilate inigualável. Foi preso durante o regime do apartheid por ter casado com uma indiana. Oito anos. Tornou-se amigo de Mandela. Mas uns anos depois da liberdade, não tolerando a direcção que o país tomava, mudou-se para Paris. Por ocasião dos 80 anos de Mandela dirigiu-se-lhe em carta no Le Monde, uma interpelação que interrogava os rumos do país e onde, no essencial, tocava nos pontos que com Zuma se potenciaram, arrastando o país para uma degradação triste e indesejável. Está condenado a ser postumamente o grande poeta de um país que hoje faz tudo para esquecê-lo. Três homens que não pactuaram com a mentira e tornaram mais exacta a proposição de Walter Benjamin, segundo a qual há uma arqueologia psíquica por detrás dos fluxos humanos que corrige a história, fazendo-a retomar com o máximo esplendor aquilo que primeiramente foi recalcado pela grosseira falácia do presente. Como aventava o Freud para os sonhos, o que importa afinal é o que está latente e não o que aparece manifesto. Pois «é ao ritmo dos sonhos, dos sintomas ou dos fantasmas, é ao ritmo dos recalcamentos e dos retornos do recalcado, das latências e das crises, que o trabalho da memória, antes de mais nada, se afina» (Didi-Huberman). No fundo, a dinâmica do presente é uma propulsão para inverter os sentidos da história e semear no seu manto os sinais da reversão. O Ying devém Yang, contra todas as aparências e a marcha linear do progresso. Neste sentido, não fiquei surpreendido que Putin tenha aproveitado a efeméride da Revolução de Outubro para insinuar que talvez a leitura oficial da sua História esteja equivocada e haja pouco a festejar. Uma meia verdade, pois há os factos e há os símbolos e estes mantém o seu capital de promessas. O que me chocou foi ter sido ele a dizê-lo. Porém os poetas, mesmo que momentaneamente reprimidos, reduzidos à indigência tinham a consciência desperta. Como Mandelstam: «a poesia é um arado que reinventa o tempo de tal modo que as camadas mais profundas, o seu húmus, afloram à superfície». Um poema breve de Holan: ENCONTRO: «Chuva no descampado… O feno húmido …/ Abertura do gás… Nuvem frita na frigideira da lua…/ Piscadelas… Carícias intermitentes… Desaparição das formas…/ Espantoso que não tenham tropeçado no carrinho de mão do cemitério…/ “Agrado-te?” – Sim, sim…/ – “Amas-me?” – Não.»
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasGirar Sobre o Eixo Santa Bárbara, Lisboa, 6 Novembro [dropcap style≠‘circle’]N[/dropcap]ão deixou ainda de dar voltas, não sei se a minha vida, se a vida à volta. Talvez por isso, este livro e não outro, me preencha. Pequeno formato, deitado à italiana, com plastificação baça na capa, anuncia um «Circle of Life» e contém umas vinte fotos do Flávio [Andrade]. (Podem ser vistas aqui https://www.flavioandrade.com/circle%20of%20life.html, mas sem a ordem que é a matéria do livro…) Um engenho explosivo faz de cada foto cruzamento de sentidos, cujo nexo se descobre apenas na foto a seguir, aqui por via da luz, ali da textura, além do motivo, mais além do movimento, das sombras, da perspectiva, do tema, da humana figura. Findo um percurso, logo a mão e o olhar nos exigem novo. Versos de poema visual, as subtilezas encaminham-nos na direcção que estivermos dispostos a percorrer. É uma cidade (há outra além de Lisboa?) percorrida às três pancadas: start, middle e end, ou como ecoa nestas ruas: partida, largada e fugida. Mais uma voltinha no carrocel que começa nuvem e acaba mar? Horta Seca, Lisboa, 6 Novembro A Jaguatirica, editora do Rio, abriu a sua colecção Lusofonias com as cuidadas edições de «Gnaisse», do Luís [Carmelo], e «Auto-retratos», do Paulo [José Miranda]. Não contente com isso, atravessou de um pulo o Atlântico para se transfigurar em Gato Bravo, escolhendo a Abysmo galeria para se apresentar de peito aberto e a poesia de Luís Filipe Cristovão e Fernando Machado Silva. Auguri! Santa Bárbara, Lisboa, 8 Novembro Arrasto os pés, maneira de sacudir o pó do dia e reparo, apesar da desatenção, que perdi um dente, meio braço, medas de cabelo. Certos metais, com o passar dos dias e das mãos, ganham o que parece brilho, mas afinal se faz mancha baça, ilha de cor ausente. Por estes dias parvos, devia desligar a sensibilidade. Se de súbito fiquei invisível, pulo ou desfaço-me na racha da parede? Se me insultam com a melhor das intenções, respondo ou agradeço a atenção? Quando próximos sobem ao ringue do disparate, visto calções ou ponho estetoscópio? Se o amigo acena entredentes a distância de um adeus, fingindo o contrário, corro ao encontro ou sento-me pesadamente? Se percebo finalmente que o meu lugar deixou de ser o habitual, exijo que se repita a história ou bebo um gole para ajudar a engolir? 300° /RTP3, Lisboa, 9 de Novembro Assusto-me: minuto a minuto passaram décadas. Spam Cartoon regressa à antena, agora da RTP, sempre às quintas, primeiro no seu ambiente natural, em espaço informativo (e nobre) na 3, e depois na 1, algures perto do humor noctívago. O filme não chega ao minuto, mas o esforço para pôr a mexer o comentário humorístico tradicionalmente fixo na página, esse dura há cerca de dez anos – a começo meu e do André [Carrilho], logo depois acompanhados pela Cristina [Sampaio], que já havia tentado pôr a mexer as suas ilustrações, o João [Fazenda], todos no desenho, e o José Manuel [Condeixa], na sonorização. O que nos parecia óbvio, que as novas plataformas pediam outros dinamismos nos modos de desenhar a opinião, esbarrou com a realidade do sempiterno preconceito, da gorda preguiça, da mera desatenção. Com a honrosa excepção do António José Teixeira que tem lutado tanto como nós e que viu, há cerca de um ano, a sua encomenda para assinalar a tomada de posse de Trump tornar-se viral. Como em álbum de recortes, já manchado pelo ácido e o labor dos lepisma saccharina, desculpem, peixinhos-de-prata, saltito pelos filmes que fomos fazendo nas diferentes circunstâncias (https://www.spamcartoon.com/) e ainda me divirto com as metáforas e os figurões (e com a memória das discussões). Talvez tenha chegado a hora de disparatar um pouco mais. Coincidência: pela manhã, mergulhei na cave com vista (Lisboa tem destes paradoxos) que, em tempos, foi o estúdio do José Vilhena. Controlei-me, por ser assunto sério, e não desatei aos pulos no meio dos despojos de uma batalha ainda não completamente vencida pelo tempo. A minha adolescência não teria sido a mesma sem Vilhena. E temo até que a minha admiração pelo seu trabalho de lepisma saccharina da nação me tenha custado, há décadas, o periclitante lugar de cronista da revista Ler. Cometi o erro de incluir «A Hora da Verdade» na lista dos livros que explicavam os dias, não apenas os da ditadura, mas os da ditamole. O tema? «Procurando não pecar por exagero derrotista vou tentar analisar a situação do país em matéria de instalações sanitárias, mas com objectividade e utilizando, claro, um ponto de vista sócio-económico como convém a qualquer pessoa que se preza ao abordar assuntos sérios.» Que filme escreveria pondo o Trumpalhão no lugar de protagonista (nesta página vai aquele que André Carrilho desenhou para este nosso primeiro filme)? Casa da Cultura, Setúbal, 10 Novembro Ainda antes do oficial atiramento na capital, fomos plantar prosa um pouco mais a sul, com o Bruno [Portela] e o Zé Teófilo [Duarte], tomando por pretexto o rutilante «Consciência de Situação – Um Ensaio sobre The Falling Man», do António [Araújo]. O fotojornalismo e a força simbólica da imagem, ou a estetização do horror, foram apenas alguns dos temas abordados em conversa viva e solta. Em cada tema que desenvolve, o António oferece inacreditável súmula de informação, abrindo na passada reflexões nos mais diversos sentidos e direcções, passe o trocadilho e a rima. Neste, sobre o 11/9, está muito presente o enigma da salvação com o que contém de perturbador: os jumpers limitaram-se a fugir ou tomaram corajosa e reflectida decisão? Quanto de humano há nesta subtil diferença… O seu ritmo de trabalho fascina-me, crónico desorganizado. No espaço de um ano, foram três os ensaios dados à estampa em livro, e sabe-se lá quantos mais terá prontos a sair do forno. «Matar o Salazar» (ed. Tinta-da-China) escalpeliza «O Atentado de Julho de 1937», compondo a síntese de referência sobre este notável episódio. E sublinhando o que me parece fulcral: mais do que conspiração de forças políticas, capitaneadas pelos anarquistas, com apoio de militantes comunistas de base, tratou-se de um gesto de desespero dos estratos mais baixos da sociedade de então. E que tornou patente o supremo paroquialismo da nação, com uma das polícias a condenar inocentes, outra a descobrir, em conflito aberto, os verdadeiros autores, e ambas internamente investigadas sem consequências. Só a propaganda soube aproveitar o pretexto para pintar aura de santo inoxidável no ditador. Tudo perante a passividade dos jornalistas e do arremedo da opinião pública. António não esconde um dos seus amores e trata de afixar melancólico retrato de duas lisboas: a burguesa e a popular. Como que passeando pelas suas ruas, surge ainda o libertário Emídio Santana, impressiva figura com a qual também me cruzei e de quem aprendi o valor explosivo da liberdade.
António Cabrita Diários de PrósperoIntervalo 07/ 11/ 2017 [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje, com a falta de tempo para me entregar ao “espírito do sério” faço um intervalo nas reflexões que andava a fazer para me entregar ao devaneio do instante e ao que o quotidiano me oferece, como, neste preciso momento, a visão daquela penca tão grande e adunca que ao beber a bica, antes que os lábios toquem o café, lhe fica o nariz pingue. “Tinha o rosto branco de cólera”, leio, e eis coisa que não temo encontrar nesta cidade de acácias vermelhas. Contudo, deparei, numa banca de rua, com um volume dos diários de Mircea Eliade, Fragments d’un Journal, 1970-72, e custou-me euro e meio. A chatice é que vou atrasar tudo, para me alimentar deste naco. E a 19 de Outubro de 72 deparo com uma entrada sobre Allan Watts. Antes de a transcrever, conto a morte deste senhor. Dava uma aula e no meio de uma digressão esfuziante que entusiasmou os alunos, anunciou, Quando terminar este raciocínio, vou-me sentar em lótus e vou morrer. A extensa maioria considerou o anúncio mais uma charada do mestre, até pela energia física que dimanava. E, em calando-se, Allan Watts pôs-se em posição de lótus e não mais se levantou. Narra agora Eliade: «Acabo de ler a autobiografia de Allan Watts. Lembro-me das primeiras conferências sobre o Zen que ele fez aqui, em Chicago. Achei-as simplesmente extraordinárias. No entanto, na época, em 1956, eu não tinha captado bem a sua “mensagem”. E como prova disso conto a nossa surpresa, minha e de Christinel, quando ele nos veio visitar uma manhã e, contrapondo ao café que lhe oferecíamos, Watts nos perguntou se nós não tínhamos antes vodka…» Este espiritualista heterodoxo, como Lao Tsé, gostava da sua pinga. São os que prefiro, os que prescindem do ascetismo e não iludem a embriaguez de ser humano. No mesmo livro, um apontamento sobre Gide e o seu diário, de 1946: «O mundo não será salvo, a poder sê-lo, senão pelos insubmissos. Sem eles, etc.» Hoje Gide teria necessidade de corrigir a coisa, substituindo insubmissos por insones. Só os insones não cabulariam na transformação de si porque a lâmina em que atravessam a vida não lhes deixa. Só nessa desesperada urgência dos insones antevejo uma pureza que não pode ser pervertida pelos meios. Telefona-me a minha mulher, Como vai a revisão, pergunta. Trabalhamos na revisão de um grosso livro do arquitecto José Forjaz. Aí se reúnem palestras, dadas em todo o mundo, conferências, textos de reflexão vária, dirigidas à academia (ele foi professor em vários países e director da Faculdade de Arquitectura em Moçambique) ou a outros públicos. Espantoso, neste tijolo de condensada sabedoria, é que raramente o Forjaz cita. Embora todo o saber aí esteja implícito e haja alusões, há um pudor em exibir o conhecimento. Atitude aliás comum aos livros de artistas. Creio que estas reflexões aparentemente mais ancoradas no empírico do que no confronto com o teórico (está lá, mas refractado) resultam do facto de que a arquitectura exige uma grande habilitação técnica e uma minúcia da ordem do fazer. Naquela as teorias são consecutivamente testadas – o que dá ao arquitecto uma visão holística. É o que acontece neste livro excelente, e gosto especialmente dos capítulos em que Forjaz relaciona a arquitectura com a medicina ou apela a uma contenção da “arquitectura espectáculo” em detrimento de um respeito para com a paisagem e o ambiente. Uma lição que talvez fosse pertinente levar a Macau. O Forjaz é o contrário de mim, que cito muito, e isso nem sempre é compreendido. O meu material afinal não é a pedra, o vidro, a coluna ou a abóbada, mas os livros, o pensamento alheio que interpela o meu e o nutre. Tal como o sapateiro não pode deixar de citar o formão, a cola, o martelo, o prego, o x-acto, seria desonesto eu não citar os meus materiais, aqueles que me permitem a aceleração do pensamento. Através deles penso com, e empreendo no que acredito: que a cultura seja sobretudo um acto de relação, uma plataforma em que o vivido e o lido se imbricam e irmanam. Novo telefonema. É o Jonas. Dia catorze, a complementar a inauguração da exposição do ceramista Jonas Donato, Saudades da Lata, será lançado o livrinho que fizemos juntos, O blue da Majika (o nome popular para as violas de lata). Ele recriou quinze instrumentos musicais tradicionais e eu fiz um poema para cada um deles, tendo inventado uma Cosmologia em que no princípio era o Vento – o qual vendo como a desarmonia e a indiferença cresciam entre os homens inventou o ritmo e os instrumentos musicais para os unir e lhes alimentar a empatia. E perderam os animais a fala porque rejeitaram a música. Segue o poema para o Pankwé: «DO QUE ME CONTOU UM RÉGULO EM TETE: O PANKWÉ// Até o pénis e a vulva terem caído do céu a minha mãe tapava / um buraco que ela tinha com caril de amendoim/ e o meu pai ia à caça cada vez mais intrigado/ com a forma das setas por não conhecer nada parecido/ no seu corpo que desse a vida/ enquanto o seu passo projectava no chão uma sombra.// E viviam tristes, de lágrimas e vitualhas insípidas porque se sentiam sós. // Então nesse dia choveram milhares de pénis e as vulvas. / Eram de barro mas amoleciam se manejados. /A minha mãe punha-se a cantar e ululava quando o pai se acercava./ O meu pai passou a ornamentar-se com plumas.// Louvado seja o Senhor que levou o mar aos búzios! // Aí a minha mãe criou o Pankwé. / As duas cordas são os grandes lábios/ a cabaça o útero/ – do que aí ressoa nasci eu! / Eu e mais um cento de cabritos. // E desde então o meu pai só faz o que gosta:/ sobe aos imbondeiros e abre cisternas.»
António Cabrita Diários de PrósperoA culpa é do Pitágoras [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando o José Rodrigues dos Santos publica um livro proliferam no FB os posts dos que “não leram e não gostaram”, dos desiludidos, e os posts com citações que se prestam a ser escarnecidos. Uma minoria revela lê-los com satisfação do conteúdo. Contudo, os romances vendem cem mil exemplares – facto que leva o seu editor a estampar na última contracapa, a atrevida frase que se realça na foto – apesar de JRS, nas redes sociais, ser reivindicado por uma partícula de gente. Infira-se então haver dimensões paralelas à literatura que contagiam a sua recepção. Talvez o ar de Peter Pan que exibe o JRS – nunca envelhecendo a olhos vistos –, e a sua voz jovial de adolescente, ajudem: há lá avó que não quisesse aquele neto para si, um menino inexpugnável à morte. Traquinas para vestir fatos de astronauta e colocar chapéus de texano e dizer piadas no fecho do telejornal que vão directas ao coração do seu público, mas que como um verdadeiro queque sabe o seu lugar (- JRS é hábil nessa construção do afecto). Acrescente-se o que Gadamer referiu quanto ao “volume” da linguagem, por oposição ao seu conteúdo proposicional ou apofântico, ou seja, na televisão, enquanto realidade física, a linguagem falada não toca nem afecta apenas o nosso sentido acústico mas também o nosso corpo na sua totalidade. Na televisão, a linguagem envolve-nos de um modo menos invasivo, é como um ligeiro toque do som na nossa pele. Daí que a televisão recupere uma “magia” atribuível à cultura oral, uma certa corrente de presença, sendo o ecrã uma fonte de mediação entre o nosso desejo de epifanias e o cepticismo que nos rodeia. Há uma última dimensão, mais cínica. Esbocemo-la assim: juro que se houver um editor que coloque vinte mil livros de um romance meu nas livrarias com uma tarjeta que diga “3ª edição, mais de cinquenta mil livros vendidos” (e é irrelevante se é verdade ou não: o truque funciona), em mês e meio imediato esgotará os vinte mil porque é efeito dos números incitar à imitação e ninguém quererá subtrair-se à oportunidade de pertencer ao círculo que encontrou a panaceia para o seu vazio. Melhor ainda e mais rápido, se, sob pseudónimo, eu fizer publicar um artigo soez a atacar-me (método que usou o Camilo) ou se tiver muitos detractores porque um reparador sentido de justiça é acicate. Está visto, eu mesmo devia promover os meus livros mas só tenho tido editores que confiam no poder da literatura – ingénuos! A literatura não vende. Digam-no os editores da Maria Velho da Costa, dos últimos Lobo Antunes, dos primeiros onze livros de José Saramago. O que de facto promove o livro são “dimensões ocultas” que despromovem a literatura, e quem tem culpa é o Pitágoras. Achado um culpado passemos ao segundo aspecto Vivo em Moçambique onde embati na mentalidade corporativa comum aos países do socialismo revolucionário; a qual se manifesta em aspectos medonhos. Por exemplo, o mérito e a qualidade de algo nunca são mencionados como vectores de critério. O que importa é o colectivo, sobrepõe-se, e por isso nenhum indivíduo que faça algo de meritório pode esperar um elogio, um reconhecimento. A mediocridade não será igualmente objecto de alusão; porém, o caviloso é que os dois tipos de silêncio valham o mesmo. Este comportamento visa um objectivo claro: nivelar tudo. Não importa se é por baixo. Da mesma estratégia faz uso a corrupção: se esta se estender a todos e não houver sombra de inocente quem possui legitimidade para apontar o dedo ao comportamento de um terceiro? O sistema não autoriza que o mérito seja mencionado porque há que evidenciar que aos olhos do poder todos são iguais – ou seja, dispensáveis. O que gera uma perversa rede de dependências e esclarece porque há uns anos um inquérito de rádio junto a estudantes universitários sobre se consideravam mais importante acabar o curso com mérito ou ter o cartão do partido inclinava-se obscenamente para a segunda hipótese. Ora, é extraordinário verificar que “a lógica de reconhecimento” que se instalou na sociedade de mercado dos países democráticos tem um cariz semelhante. Os números comandam e aplainam tudo, a mixórdia e os bens culturais de valor equivalem-se nos azimutes do menor quociente cultural que pauta a cultura de massas. Estranharmos que Erza Pound venda por ano em todo o território dos USA quatrocentos exemplares enquanto José Rodrigues dos Santos no nicho português vende cem mil exemplares, é inútil, pois a comunicação social colabora com esta distorção. O mercado capitalista conseguiu transformar em fascínio e realizar com um fulgor único o que os sistemas socialistas tentaram mercê de tanto custo e sacrifício de gerações: decapitar o mérito, o trabalho intelectual, moldar na maioria a ideia de que todos os espíritos e bens se equivalem. Só o anonimato da expressão numérica conta. Que importa que o romance de JRS seja mau (caso seja, nunca li)? Não é nem o nome dele nem a literatura que estão em jogo nesta aposta. Pelo contrário, na literatura «a forma é a satisfação de um conteúdo» (José Forjaz) que exprime precisamente aquilo que não se pode exprimir de outro modo. Entendem? Quando abro um canal brasileiro e vejo que depois do samba, da bossa nova, duma plêiade de compositores extraordinários, o que se oferece agora como espectáculo é a música brega ficam evidentes os riscos deste triunfo do Pitágoras (brinco), do fascínio dos números, e desta paisagem de um regime cultural a “um só sabor”, como a propagada pelas indústrias culturais – as quais já vendem por música meros padrões sonoros. É necessário uma nova espécie de crítica, uma espécie de urbanismo caosmótico que – dilucidando as linhas de nível de cada paisagem cultural e, reconhecendo-lhe as intersecções e os contágios – desenhe uma morfologia para os valores na pauta heteróclita das sociedades democráticas, sob risco de tudo sucumbir ao mais infame relativismo. Vejamos como o sistema de ensino tem contribuído para esta hecatombe.
João Paulo Cotrim PolíticaCorpos celestes Horta Seca, Lisboa, 20 Outubro [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hega no último minuto, enfunado de mares e acordes, de ventos e carnes e bravezas e terra, este «Rua Antes do Céu», do José Luiz [Tavares]. Por continuar celebrando os cinquenta, desdobra-os para regalo de quem se dê ao esforço de andar descalço nas pedras de quase tantos poemas quantos anos de (muita) vida: «entre as sombras do recreio/ és tu que desces pelo meio/ de um mês de sol cheio// e como tudo o que nomeio/ vens de noites caladas/ duma solidão/ inda mais entranhada/ que ensina/ ao seco som da pancada// que morres porque vivo/ somes porque verme/ no meio das pedras/ que te sabem indemne// desamigado dos pasmos/ que sempre foram/ uma comprida conta/ no rosário da infância». Embrenhamo-nos no território do imponderável, guiados pelo metálico da voz que esculpe, como nenhuma outra, a golpes de navalha na carne da nossa língua materna. Sabendo da relação do autor com a fotografia, chamámos à capa uma chapa do Flávio Andrade (que ilustra esta crónica), e que sinaliza bem as múltiplas sombras e direcções deste andamento. A estrada feita lugar-comum, mas ninguém por ela passa da mesma maneira. Toca-me mais fundo por ser esta a nossa primeira co-edição, disparada, com a Rosa de Porcelana, na direcção de Cabo Verde celeste. «Boa viáji!» Escola de Mulheres, Clube Estefânia, Lisboa, 20 Outubro Dia gordo, este, que acaba sob o signo da perturbação. Em vale desaguando no escuro, as cadeiras desenhavam as colinas que predispunham os corpos para experimentar o rio que aconteceu ali em baixo, mesmo à frente dos nossos olhos. O Nuno Moura respigou restos de vida a dois, amorosa, afectiva, conjugal, matrimonial. A Marta [Lapa] não procurou narrativa, antes deslaçou ainda mais as palavras, deu ao texto tratos de laboratório e dele extraiu, com a participação dos actores Margarida Cardeal e Vitor Alves da Silva, uma segunda voz para o fio musical do Pedro [Moura]. O combate virou dança. Ou terá sido o inverso. Passei dias mergulhado em pintura, talvez abstracta, homem e mulher a desdobrarem-se em músculo e suor, carne e espírito, consentimento e aversão, entrega e desapego, fuga e comunhão, relâmpago e monotonia. Leves e soltos, por instantes, para logo se fazerem de chumbo. Líquido, por força da temperatura, regressando à forma dos corpos, por via da palavra. Uma intensidade minimal de grande risco, onde cada peça de marcenaria encaixou, da luz ao trabalho dos actores, da orquestração das figuras à melodia. Há muito que não saía de um espectáculo* assim, desorientado, sem saber bem o que pensar. (*Escreveria experiência, se a palavra não tivesse sido roubada pelo marquetingue). Ainda não sei bem se gostei, mas isso interessa? Ah, tinha por título, de que desgostei, «AAC – Associação Amizade no Casamento». Sou homem casado, sei da amizade no casamento. Aprecio bastante o risco, como à mesa com ele. Praça da Criatividade, Óbidos, 22 Outubro No meio do desarranjo destes meses, contribuímos para a baderna do Folio com umas «rapidinhas», que as circunstâncias foram reduzindo a mínimos, mas cujo modelo gostaria de aprofundar: intervenções de 15 minutos, nas quais os autores, ou alguém por eles, se atrevem a extrair tema de um livro. E metidas a martelo na programação. Foi um ensaio, mas há que insistir em desenrascar outras formas de festivalar. Folia, mas melancólica, aconteceu na subida ao palco dos «Tomara Tu Ter uma Tia Assim (TTTTa)» para cantarmos loas ao desvario dos corpos. Sem copos, por razões que se não explicam. Horta Seca, Lisboa, 23 Outubro Desde sexta que, a cada pausa arrancada a ferros, me atiro a «Cento e Onze Discos Portugueses – A Música na Rádio Pública Portuguesa» (ed. Afrontamento/RTP/Antena 3/Cultura FNAC). Com coordenação do Henrique Amaro e do Jorge Guerra e Paz, a lista começa em 1936, com duas marchas de Beatriz Costa, para marcar o início da Rádio Pública, e segue até Capitão Fausto Tem Os Dias Contados, do ano passado. Estrutura e desenho simples, mas apetecível: capa do disco, comentário ao lado, ficha técnica, conjunto devidamente acompanhado por cronologia, pequenos textos de enquadramento e índices. Que mais precisamos para o deleite? Da rede, além da rádio. As listas possuem uma dinâmica curiosa: exigem logo opinião, artistas que faltam, trabalhos que podiam ser outros, discussão de critérios, etecetera. Nenhuma será perfeita, mas esta apresenta-se de talhe bem equilibrado, nos gostos, estilos, épocas e formatos. Oferece matéria para desilusões, que o afecto adolescente não é dos melhores críticos. Há rugas, claro, mas serão de expressão. Podemos ler as capas só por si, a ver se o que sobrou ainda diz bem ontem ou se desfez em nada. Mas serve sobretudo para revisitações e até descobertas. Diz-me ao ouvido que ter a minha idade pode ser consolo. Quando não estava distraído, assisti a uma série de pequenas e médias revoluções. A de Zeca e Sérgio e Zé Mário e Paredes e Fausto, a dos Telectu, Mler If Dada, Variações, Pop Del Arte, a dos Mão Morta ou Palma, a de Camané e dos Ornato Violeta. E por aí fora, em altas rotações, até à enorme riqueza deste presente pobre. Horta Seca, Lisboa, 24 Outubro «Contemplação Particular». Depois das desafiantes pinturas, que transcendiam o corpo, que o elevavam na sua mais pura materialidade, em abstracta dança de formas carnais, expostas depois em «Delubro», espaço do sagrado que parava o tempo ali para os lados do Centro Cultural de Belém, eis o livro, a tornar portátil o experimento. O António [Gonçalves] fecha com a inteireza da madeira (carvalho?) este seu deslumbrante e desafiante projecto, ignorado pela crítica. Aliás, que bem se cruzaria a peça da Marta com as telas do António! São da mesma massa, do mesmo risco: traço e navalhada. Por isso me irrita sobremaneira esta indigente falta de curiosidade. Serão cometas, mas podemos dar-nos ao luxo de ignorarmos a sua passagem por nós? Fecho parêntesis. Este objecto, ao menos, continuará a dizer do erotismo muito para além da inevitável morte, essa irmã chegada. Não será de igual modo, apesar de se estender a álbum, que a pintura se vê com o corpo todo, mas permite aproximações. E atira muita lenha para o desejo, com dvd e tudo. Tudo, que nasceu da leitura corpo-a-corpo de Flaubert e Bataille.
Miguel Martins h | Artes, Letras e IdeiasDo prazer Time is what you make of it. Anúncio aos relógios Swatch, 1996 [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á muitos tipos de prazeres. Há os prazeres prazerosos, claro. Há os prazeres que acarretam algum sofrimento. E há, também, o prazer da dificuldade. Este, regra geral, decorre de dois aspectos: o trabalho que foi necessário à sua fruição e o facto de esta implicar o encontro com outro – o criador – que trilhou esse caminho, incomum no seio de um tempo de facilitismos. É esse o prazer que sempre me deram algumas obras de arte. E, a dado momento, quando esse mecanismo está em nós bem oleado, funcionando por si só, sem necessidade de manutenção, esses prazeres tornam-se imediatos, físicos, exactamente como os prazeres menos exigentes. Blake, Pound, Joyce, Beckett, Lowry, o dadaísmo, o letrismo, etc, cabem, claramente, nesta categoria. (Permitam-me que lhes acrescente um português, quase desconhecido: Alberto Velho Nogueira). O mesmo acontece, na música, com Kurt Schwitters, Luigi Russolo, John Cage, Luciano Berio, Mauricio Kagel, Frédéric Acquaviva, etc. Ou com o free jazz e a música improvisada. Sem Leroy Jenkins ou Kazushige Kinoshita, sem Derek Bailey ou Hans Reichel, a minha vida seria bem mais pobre e menos prazerosa. Nas artes visuais, o mesmo sucede com Marcel Duchamp, Joseph Beuys e as suas extensas descendências. Mas, claro está, estes prazeres não devem excluir o enorme prazer que nos dão a limpidez ascética, preclara, da música de Bach ou de Sainte-Colombe, ou dos versos de Camões, ou a pureza lúdica, essencial, dos pincéis de Raoul Dufy, Miró ou Calder. Nada nasce de nada. E o sentido das vanguardas funda-se, profunda e solidamente, nas razões destes. Quando não, estamos no território do vómito sem sentido, que, oportunista, sempre alaga algumas frestas das vanguardas. E para esse não deve haver tolerância. O mesmo acontece com a comida. A grande cozinha de autor é rara. A má cozinha de autor é ridícula. Serve, normalmente, para disfarçar a preguiça. Um grande cozinheiro não tem, necessariamente, de saber fazer uma perdiz à Convento de Alcântara, mas tem, pelo menos, de saber que ela existe e como é feita. Quando não, dêem-me, mil vezes, uma boa sertã de iscas e guardem para os CEOs as espumas e as granitas. Há, ainda, outro tipo de prazer, que se vai tornando raro neste tempo de seriedades cosméticas, e que é, porventura, o que me cala mais fundo e melhor me individualiza. Falo do diletantismo, do apego a certas artes e ciências sem que se pretenda obter qualquer proveito pessoal que não o esclarecimento da curiosidade e, portanto, sem grandes preocupações estruturais e, sobretudo, sem qualquer remuneração. Mais uma vez, os britânicos (alguns, claro está) servem-me de exemplo: O birdwatching, a observação de aves, empenhada e informada, contará no Reino Unido com cerca de um milhão de praticantes. O mudlarking, esmiuçar das lamas das margens dos rios em busca de antiguidades é, também, uma prática popular, desejavelmente realizada em articulação com arqueólogos e museus, cujas colecções amiúde enriquece. A malacologia e a lepidopterologia amadoras, a recolha e o estudo de gastrópodes e bivalves e de borboletas, se praticadas conscienciosamente, são actividades extremamente gratificantes. A filatelia, se saltar do patamar da mera acumulação para o da verdadeira curiosidade organizada, é um instrumento pedagógico valioso. Muito jovem, com ela aprendi, entre muitas outras coisas, boa parte do que ainda hoje sei de geografia política e da sua evolução. Em todas estas actividades, existe o prazer de ir entendendo cada vez melhor o que se observa e os factores que o determinam, mas, à partida, tudo começa pelo simples prazer da contemplação. Da silhueta de uma pega rabilonga ou de um fragmento de cuspidor em porcelana, das pregas radiantes de uma concha de vieira ou dos padrões laranjas e negros das asas de uma monarca, ou, ainda, de um selo representando qualquer uma das coisas anteriores… Recordo-me de, quando era miúdo, passar horas a olhar um conjunto de selos das ilhas Ryukyu estampados com belíssimos gastrópodes. E onde seriam as ilhas Ryukyu? Era imperativo esquadrinhar o globo terrestre até dar com elas, e que alegria ao encontrá-las! Esse fascínio inicial por um objecto ligou-me, ao primeiro encontro, ainda numa ilustração de um livro, a algo que a maior parte das pessoas considerará tétrico, quando não mesmo repugnante — as cabeças humanas mirradas pelos índios jivaros da América do Sul. Trata-se de cabeças de inimigos, a que são retirados os crânios e que tomam então as dimensões de um punho fechado, mantendo, contudo, as suas feições e as longas cabeleiras. Mais tarde, no Museu da América, em Madrid, e nos fundos do Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, tive a oportunidade de vê-las ao vivo. Que alegria, também então! A surpresa, o inesperado, sobretudo numa época em que, desde tenra idade, somos bombardeados por informações que nos retiram quase todas as virgindades e, por conseguinte, a probabilidade dessas surpresas, têm um valor intrínseco, nas artes ou em quaisquer outras matérias. Convém, pois, estarmos abertos às surpresas ou deixaremos a vida passar-nos ao lado. Uma história que ilustra bem este princípio é a seguinte: Quando Georges Simenon propôs a primeira novela protagonizada pelo Comissário Maigret ao seu editor, Arthème Fayard, este respondeu-lhe: — Estou disposto a publicar os seus “Maigret”, mas digo-lhe de antemão que não obteremos qualquer resultado. E isso por quatro razões: a) as suas histórias não são técnicas o suficiente; b) não há intriga amorosa; c) não existem nelas personagens suficientemente simpáticas ou antipáticas; d) acabam todas mal. Os livros de Simenon, e os Maigrets em particular, tornar-se-iam, em breve, dos livros mais vendidos do mundo, para mais com um sem-número de adaptações cinematográficas e televisivas, em diversas línguas. Com os Maigret, Simenon fez-se um homem muito rico e enriqueceu muito os seus editores. Fayard estava erradíssimo, é certo. Mas, honra lhe seja feita, editou o que lhe era proposto.
Andreia Sofia Silva EventosMaria João Belchior, fundadora da Livros de Bordo: “Faltam conhecimentos sobre a China antiga [em Portugal]” Saiu de Pequim para criar uma editora de nicho em Portugal, que só publica livros que versam sobre esse grande país que é a China e todo o continente asiático. Em entrevista, Maria João Belchior fala dos desafios que é publicar livros do outro lado do mundo no mercado editorial português [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]olaborou com vários meios de comunicação em Macau, viveu em Pequim, até que decidiu ir para Portugal e fundar a Livros de Bordo. Porquê publicar livros sobre a China e a Ásia? Eu vivi durante 12 anos em Pequim onde trabalhei como correspondente para Portugal e Macau. Regressei a Portugal no último dia do ano 2013 (tinha chegado em 2002). A ideia de abrir uma editora focada em temas sobre a Ásia já vinha de há algum tempo, porque, apesar de haver muitos livros bons sobre a Ásia e o Oriente, encontrei vários que nunca tinham sido publicados. A Livros de Bordo nasce de um amor aos livros e de uma experiência bastante longa de vida na Ásia. Apesar de ter passado muito tempo na China, estive também no Japão, Coreia do Sul, Coreia do Norte, Tailândia, Laos, Cambodja, Índia, Taiwan. Fui encontrando livros e temas que nunca tinham sido publicados, ou que se encontravam há muito esgotados em Portugal, e decidi arriscar no mundo da edição. Publica livros académicos sobre a sociedade, cultura ou sistema político da China, ou mais obras de escritores chineses? A editora só conta até agora – Outubro de 2017 – com sete títulos publicados dos quais dois são reedições da obra de Wenceslau de Moraes. Cinco dos livros são inéditos. Os temas não têm sido exclusivos da China. Um deles apenas “Quando Mil Milhões de Chineses Saltam” é uma viagem pela China atravessando todas as províncias e registando os problemas ambientais e as soluções que têm sido encontradas. O autor, Jonathan Watts, foi correspondente do The Guardian na China durante 12 anos. Outro dos livros “A Antiga Rota do Chá e dos Cavalos” é uma viagem de um explorador canadiano pela história do comércio do chá desde as primeiras trocas que se faziam entre a província de Yunnan e o Tibete. Os outros três livros passam pela Mongólia, pelo Tibete e pela Índia. Não são livros académicos mas registos históricos de viagens feitas, nomeadamente desde o século XIII. “A História dos Mongóis aos Quais Chamamos Tártaros” é uma obra traduzida pela primeira vez do latim com o registo de viagem de um frade franciscano, Giovanni da Pian del Carpini, que chegou à corte Mongol em 1247. O livro “Cartas do Tibete” reuniu pela primeira vez na íntegra as quatro cartas escritas pelo padre jesuíta António de Andrade sobre a sua viagem até ao reino de Guge, no Tibete, e a criação da primeira missão jesuíta naquele território na primeira metade do século XVII. Quais os grandes desafios de publicar estas obras em Portugal? Prendem-se com a tradução, sobretudo? Publicar livros históricos tem sempre alguma dificuldade por serem livros específicos, que num sentido geral se podem considerar literatura de viagens, quando se fala na viagem feita há poucos anos pela Rota do Chá e dos Cavalos. No entanto, viagens do século XIII ou do século XVII têm um pendor histórico, tanto pela linguagem utilizada como pelo cenário descrito. As dificuldades de edição estão sobretudo ligadas à escala, porque sendo uma editora pequena é mais difícil entrar nas grandes redes de livrarias, o dito “mercado”. De qualquer maneira, já temos dois títulos em segunda edição o que mostra que tem havido interesse no trabalho por parte do público. Quais os temas ou obras que mais interessam aos leitores portugueses? Querem compreender a China de hoje ou querem ler mais autores chineses? É sempre complicado generalizar. Creio que existe um interesse por todos os temas, sendo que há formas mais comerciais de vender livros ou temas. A Livros de Bordo é uma editora de nicho e apenas posso dizer que existe de facto interesse na China, mas também na Ásia e na sua história antiga. Há ainda um grande desconhecimento em relação à China e à Ásia, apesar de existir uma maior publicação de livros nos últimos anos? Esta é outra resposta que não consigo dar com certeza. Há momentos em que determinados assuntos se tornam mais apelativos, seja pelos acontecimentos da actualidade, seja pelo momento criado pelos media, como por exemplo a divulgação de filmes históricos. É natural que a China ocupe um grande espaço, mas também é verdade que há já muitos títulos no mercado sobre a nova realidade chinesa. Por vezes, até o que falta mais é conhecimento sobre a China antiga. Aqui existe certamente o desafio de tradução de, por exemplo, textos clássicos, que é algo quase inexistente em Portugal pela dificuldade que representa. Só que também aqui tem havido uma grande mudança à medida que existe mais curiosidade sobre o país e a sua cultura.
Miguel Martins h | Artes, Letras e IdeiasAs listas [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ra o século XV. Jacques Coeur, rico mercador da corte de Carlos VII, explorava, entre muitas outras actividades proveitosas, a mineração de prata de Pampailly, perto de Lyon. Em inícios dos anos 90, era eu um jovem adulto, candidatei-me a participar nas escavações arqueológicas desse complexo mineiro, dirigidas por um professor da Sorbonne, de longas barbas brancas, arquétipo do soixante-huitard. Recordo-me de que, quando nos encontrámos pela primeira vez, brindou-me com esta tirada, seguida de um abraço: — Portugal? Otelo Saraiva de Carvalho! Creio que trabalhei nessas escavações cerca de dois meses, de que guardo hoje, apenas, uma meia-dúzia de imagens e sensações, coadas pelo tempo: o cheiro da terra húmida, repleta de minhocas que o nosso trabalho repetidamente amputava; a bondade das refeições, em que aprendi a apreciar esses pequenos pepinos em vinagre chamados cornichons; uma breve aventura sexual com uma jovem franco-cabo-verdiana, de volumosíssimos cabelos loiros, encarapinhados, quase sempre contidos por um lenço, mas esplendorosos quando soltos; um par de visitas a um château próximo, propriedade de um casal de velhos anacoretas, que, quando estavam de feição a receber visitas, içavam uma bandeira branca num mastro, e que, a propósito da sua assumida xenofobia, me afirmaram: “Sabe, nós detestamos estrangeiros, em teoria. Mas temos tido o azar de gostarmos de todos os que conhecemos”; uma breve viagem a Belfort, quase na fronteira com a Suíça e a Alemanha, cidade em que os caracteres franceses e germânicos se confundem; um fim-de-semana em Paris para visitar uma namorada colombiana, que trabalhava na UNESCO e morava na recatada Rue Serpente, no Quartier Latin, e com quem continuo a contactar de vez em quando, embora não nos vejamos há anos. Dessa viagem tinha, ainda há algum tempo, uma recordação física: uma cassete de Archie Shepp, saxofonista de jazz, comprada no Quai des bouquinistes. Ora, há alguns anos, não tendo como aceder-lhes ao som, deitei para o lixo um saco cheio de cassetes, incluindo a dita. Suponho que esse desprendimento, extensivo a todo o tipo de bens materiais, signifique que compreendi que os objectos não fazem falta à memória. Pelo contrário, creio que a limitam no que tem de mais estimulante – a capacidade de se desconstruir ou destruir, de se reconstruir ou reinventar. De facto, nos últimos anos, tenho dado ou vendido quase tudo o que tinha, a começar pelos livros, a maior parte deles imediatamente a seguir a uma única leitura. Faço-o não tanto por necessidade mas por ter a noção clara de quais os que me voltarão a interessar no futuro, que são, percentualmente, bem poucos, até porque, se, por um lado, tenho este desapego à propriedade, por outro, gosto de ler quase tudo, mesmo coisas que sei serem muito pouco valerosas ou das quais tenho consciência de ter pouca capacidade de entendimento. Assim, de alguns milhares de livros que cheguei a possuir em dados momentos, e dos muitos milhares de que, ao longo do tempo, fui proprietário, guardo, agora, poucas centenas. Muito menos, ainda, são os discos. Fotografias, por razões que não importa precisar, fiquei com pouquíssimas (a minha infância, por exemplo, ficou, para mim, quase indocumentada). Tenho, também, alguns desenhos e fotografias de autoria de artistas amigos. E, quanto a outros objectos, se excluirmos a roupa, em que também não sou pródigo, não ocuparia muito espaço a lista exaustiva de quanto possuo! Voltando aos livros, gosto muito mais dos que partilham a vida vivida do que dos que têm o despudor de impor aos demais a entropia do escritor, isto é, a quantidade de energia deste que não é convertida em trabalho mecânico. Ou seja: desconfio daquilo a que se costuma chamar Literatura. Um dramaturgo que conheço desde que éramos crianças, isto é, há mais de quarenta anos, escreve, a dado passo, no seu único livro de poemas: “estou já demasiado anglo-saxónico para escrever coisas que não sejam listas”. Às vezes, também eu sinto que as listas – sem acréscimo de comentários – bastam a cumprir a função do texto, tanto junto do próprio escritor como junto dos leitores: fixar a memória sem recurso a objectos.
João Luz Entrevista Eventos ManchetePessanha, 150 anos | Valério Romão, escritor: “O amor já existia antes da literatura” Valério Romão está prestes a encerrar o capítulo final de uma trilogia de romances, Paternidades Falhadas, com um livro, que terminou recentemente, sobre o Alzheimer. Tem também no currículo dois livros de contos. O escritor que gosta de temas arriscados esteve por cá para celebrar os 150 anos de Camilo Pessanha [dropcap]C[/dropcap]omo se começa a fazer um livro? Normalmente a coisa impõe-se de uma forma bastante natural. Quando dás por ti tens um projecto na cabeça que nasceu como uma espécie de revelação, uma iluminação. De repente há qualquer coisa que faz sentido e sobre a qual achas que podes passar alguns meses, ou alguns anos, a trabalhar sem que isso chateei, porque o romance é uma maratona. Começas agora e acabas muito tempo depois, portanto, tem de ser qualquer coisa que seja suficientemente apaixonante para te motivar. Acho que é bastante análogo ao trabalho académico, no princípio tudo parece muito bonito mas assim que começas a escrever surgem as dúvidas, pensas que está tudo uma grande merda. Tens oscilações, com amplitudes enormes, entre “eu sou muito bom” ou “eu sou uma grande porcaria” durante todo o processo, até que chegas a um ponto em que já nada importa a não ser acabar aquilo. Como o corpo do maratonista que já está tão anestesiado que já não lhe dói, já não é cansaço, já não é nada. É, pura e simplesmente, uma espécie de mecânica cuja inércia nunca mais termina e que faz com que ele chegue até ao fim da corrida. Entras num estado de semi-hipnose em que a cabeça se concentra num único objectivo e na única coisa que, de facto, te pode salvar naquele momento que é chegar ao fim. Como é que se sabe que o processo de escrita chegou ao fim? Tu decides. Há vários fins, ou seja, quando acabas de escrever a primeira versão, quando voltas a trabalhar naquilo. Havia um gajo qualquer que dizia: “sabes que está terminado quando já não consegues olhar para aquilo”. É mais ou menos isso. No meu romance “O da Joana” fiz sete revisões, cheguei ao fim e decidi entregar aquilo a alguém porque já estava a tirar vírgulas do sítio onde as tinha posto e a pô-las onde as tinha tirado. Corria o risco de estar naquilo, tipo Sísifo, o resto da vida. Acho que no fundo já não consegues fazer muito dano porque te estás a repetir. As partes de que não se gosta cortam-se, modificam-se, essa são fáceis de resolver. As difíceis são aquelas em que não tens a certeza. Depois também chegas a um ponto em que estás demasiado perto para poder avaliar aquilo, já não tens clareza suficiente para mexer nas coisas. É muito mais fácil quando estás a rever o livro de outra pessoa. Não é uma questão de ligação emocional ao que está escrito, tem a ver com o facto de haver uma espécie de opacidade que turva as coisas quando escreves qualquer coisa e vais revê-la ao fim de algum tempo. O que é muito bom e muito mau é fácil, o que está no meio é muito mais difícil e é a maior parte. Como é que começou a escrever? Começas a escrever porque gostas muito de ler e gostas muito de ler porque, normalmente, tens um problema social qualquer, ninguém te liga. A vida é muito mais interessante que a leitura. A maior parte das vezes não tens muito jeito para estar com pessoas, as pessoas não te interessam muito e refugiaste um bocado ali na leitura. Depois de estares nesse refúgio descobres que podes fazer um caleidoscópio do mundo e encontrar muitos mundos dentro deste mundo através da leitura e apaixonaste por aquilo. Com alguma naturalidade, vais tentando imolar aqueles de que mais gostas. Que são… Eu comecei, como julgo que imensos escritores da minha geração, com os Lobos Antunes da vida. É uma referência, mas também um eucalipto que seca tudo à volta porque, de facto, não se pode jogar no campo dele. Os temas centrais dos seus livros são duros, extremados. Porquê? Tenho algumas coisas, mais ou menos, simpáticas em contos, por exemplo. Mas, normalmente, vou à procura das coisas menos simpáticas. Primeiro, porque as acho mais interessantes, depois porque estão pouco trabalhadas, outras estão à espera que alguém pegue e faça alguma coisa. A literatura contemporânea tende a ser um bocado neutra a este tipo de temas, não os aborda, ou fá-lo de uma forma mais neutralizada. Interessa-me o desafio de pegar em matéria muito complexa. Pegar num tema destes e trabalhá-lo mal implica teres um livro que manipula uma determinada carga emocional e que redunda num livro delico-doce, ou num dramalhão. É um risco muito grande pegares no autismo, que é o tema do meu primeiro livro, ou numa gravidez falhada, que é o tema do segundo, corres o risco sempre de estar a manejar mal aquilo e de se tornar insuportável de ler por ser pornográfico. Porque expõe em demasia aquilo que as personagens estão a sentir, a desgraça alheia como finalidade, como no Big Brother. A minha finalidade não é essa. A minha finalidade é tentar perceber em que condições é que ocorre uma determinada experiência e tentar devolver essa experiência de uma forma intersubjectiva, de uma forma que faça sentido para mim e para ti sem que isso redunde em voyeurismo. A sua estreia no romance tem uma recepção muito interessante, inclusive foi finalista do Prémio Femina, em França. Pensou que tinha alcançado um patamar interessante e estava no certo caminho para ser escritor? Senti quando acabei aquele livro que era um bom livro. Precisava, talvez, de mais tempo para resolver alguns problemas de que ele enferma. Naturalmente, por ser um primeiro livro e por ser muito colado a uma vivência pessoal, mas senti que era um livro bom. Senti ainda mais isso no “O da Joana”, porque, na minha opinião, estruturalmente ainda é mais arriscado e não tendo falhado nesse risco acho que ainda é melhor. Mas percebes quando um livro é bom. Depois tens o teste do primeiro leitor, do editor, mas percebes quando é bom. Sente que está a fazer o seu caminho e a conseguir o seu lugar? Acho que ainda não cheguei lá, que ainda falta algum tempo para chegar ao meu lugar, seja lá o que isso for. Aquela coisa de encontrar a minha voz já está resolvida. Acha que há uma geração nova de escritores portugueses? Um movimento pressupõe algumas condições… O movimento característico desta geração é termos temas comuns. Muitas vezes o tema é uma espécie de incapacidade de encontrar um sentido para isto onde nós estamos a viver, o que não é nada de original mas que se acaba por repetir. A originalidade das coisas não pode estar no tema. Por exemplo, o amor existe antes de haver literatura, a morte também. O tema não pode ser diferente, mas a forma como o envelope lhe cai em cima, como é vestido é que pode ser diferente, a forma como pode ser vivido e expresso. Neste caso temos uma geração de pessoas que estão ligadas a essa incapacidade de encontrar sentido, que resulta também nalguma incapacidade de haver um movimento porque todo o movimento surge sempre como contraponto a qualquer coisa e aqui não há contraponto. Não é uma questão de realistas e românticos, não é uma questão de neo-realistas e simbolistas, não há isso. Para quê criar um movimento quando não há nada para ir contra? Claro que temos aquelas tricas, que não chegam sequer a ser dignas de menção literária, tipicamente lisboeta e portuguesa. É uma pequena cidade num país muito pequenino, em que as pessoas todas se conhecem e acabam por gostar e detestar-se mutuamente, com a mesma força. Mas há, ou havia há um ano, um renascimento da poesia em Lisboa. Há coisas interessantes a acontecer. Nunca tivemos tanta leitura de poesia, a poesia ficou sexy. Terá contribuído para isso a forma como é lida, porque a poesia era lida de uma forma em que acabava tudo a soar sempre a Manuel Alegre. A forma, a técnica, eram muito solenes e estamos numa altura em que as coisas solenes, para o bem e para o mal, não têm piada. Foi bom poder pegar em poetas e lê-los com uma guitarra eléctrica por trás, com piano, com o quer que seja, às vezes sem nada. Temos uma perspectiva muito desempoeirada do que pode ser uma leitura. Vais para um bar e não estás à espera de ver um gajo em modo lírico a noite toda a declamar como se estivesse a ser possuído por, sei lá por quem… Pelo fantasma do Viegas… Exacto. O que nos pode dizer acerca do seu próximo livro? Acabei de escrever a primeira versão antes de vir para cá. É um livro que ainda não sei muito bem como descrevê-lo porque é muito pulverizado. Tem como pano de fundo o Alzheimer. Gosto de adaptar uma forma específica de escrita a cada livro que escrevo. O “Autismo” tem uma série de capítulos que suportam e fazem a coluna dorsal do livro, que são as partes que se passam numa sala de espera de um hospital. Tudo o resto decorre daí, intercala-se como membros daquela construção que vão encaixar nessa coluna dorsal, em que há analepse, prolepse, para fazer essa sequência e uma espécie de bailado por dentro da história. É sinuoso, mas perfeitamente lógico. “O da Joana”, como é um livro que se passa numa noite, não tem capítulos, é vertiginoso, obriga o leitor a não parar. Como é um livro pequeno eu queria que a experiência fosse assim. Sem paragem, respirar só quando acabar o livro, é um shot de sofrimento. Este, como é sobre o Alzheimer, não tem ordem cronológica. Pode-se começar a ler do meio para o fim, e do meio para o princípio, a experiência não é igual mas pode ser feita. O livro está pulverizado, atomizado em capítulos de página, página e meia, que são uma espécie de ilhotas que simbolizam, de certa forma, as memórias do Alzheimer, que aparecem e desaparecem. Imaginemos um campo de dunas, em que as memórias aparecem em sítios diferentes, em dias diferentes. Queria que fosse uma coisa tão perigosa, tão frágil quanto isso. Não sei se vai resultar, vamos ver, mas já está acabado.
Sofia Margarida Mota Eventos MancheteCamilo Pessanha, 150 anos | António Cabrita: “Sou um filho da dificuldade” Escolheu o tempo ao dinheiro. Foi para Moçambique após mais de uma década como jornalista no Expresso e desde aí a sua vida é escrever. António Cabrita está hoje no Edifício do Antigo Tribunal para uma conferência integrada na comemoração dos 150 anos do Camilo Pessanha Publicou o seu primeiro livro de poesia aos 17 anos. Sim, mas é um horror. Tenho quatro livros que não cabem na minha tábua bibliográfica. Foram absolutamente retirados. Ali só coloco os livros que publiquei a partir dos 38 anos. São poemas de uma imaturidade absoluta e não tenho nenhum prazer nem em revê-los. Até me custa falar disso. Ainda muito novo também conheceu o Al Berto. Sim. Conheci o Al Berto devia ter uns 18 ou 19 anos. Ele tinha mais dez anos do que eu. Conheci-o pouco depois de ele ter chegado da Bélgica onde esteve numa espécie de exílio. O Al Berto tinha sido enviado para fora para estudar, para não ir à tropa. Também tinha outra condição que nessa altura era complicada de ser declarada, a homossexualidade. A família mandou-o para fora. Começou como pintor e depois rompeu com toda a pintura e figuração e dedicou-se à escrita. Teve também uma pequena editora. Andei com ele na altura a distribuir alguns dos livros pelas livrarias o que causava um certo escândalo. Tinha alguns livros ousados. Eram livros de afirmação da sexualidade o que causava escândalo diante dos livreiros que, nessa altura, não estavam habituados ainda a tais liberdades cívicas. Ele publicou um livrinho, o meu segundo livro. Era um poema de 17 ou 18 páginas que eu há uns anos reduzi a sete. Era uma longa verborreia lírica. Enxuguei as águas e ficou um vão mais potável, mas ainda assim com pouco sol. Só aos 38 anos é que achei uma voz. Na altura, e curiosamente, publiquei um livro. Queria-me candidatar a um prémio que ganhei. Precisava de pagar dívidas. Foi assim que realmente apareceu o primeiro livro. Como é que se deu a passagem da poesia para a ficção? Essa mudança acaba por ocorrer por uma circunstância simples. Fiz o curso de cinema e fui logo identificado como um tipo que tinha um jeito especial para fazer diálogos e nas aulas era recrutado para os fazer. Mais tarde, tinha formação técnica e sabia como realizar um filme. Acabei por fazer guiões mas ficava sempre chocado com o que via. Achava que eles eram uns grandes nabos. Não consigo escrever um guião sem imaginar como é feito. Nunca tive esses despojamento. Escrevo um guião imaginando-me um realizador. Depois de escrever uns sete ou oito filmes e ficar sempre com um sabor amargo face ao resultado percebi que, para a reconstituição do meu ego em clivagem, precisava de começar a comandar alguns dos processos. Tinha de estar diante de uma narrativa que tivesse controlado do princípio ao fim. E foi assim que comecei a escrever ficção. Comecei por um livro de contos que correu muito bem. A ficção começa também como um desafio. Eu escrevo porque não sabia escrever. A dificuldade é que me fez continuar. Na adolescência, fazia parte de um grupo de amigos, alguns deles famosos e que são pessoas consideradas, e que fizeram uma carreira. Todos eles escreviam poesia ou ficção e acabávamos a discutir esses assuntos. Era uma coisa engraçada em que eu era inevitavelmente o mais desajeitado. Eles desistiram todos, porque tinham facilidade. Eu como tinha dificuldade tinha de trabalhar para contornar os problemas e as deficiências e isso acabou por me melhorar. Mas, de facto, sou um filho da dificuldade. Venho de um meio pobre e tive de recobrir séculos de ignorância genética. Ainda hoje tenho lacunas graves. Está em Moçambique. Depois do jornalismo e de muitos anos no Expresso, resolveu abandonar tudo e ir. O que é que aconteceu? Estive no JL, depois estive na Elle e depois no Expresso. Fui para Moçambique ganhar um terço do que ganhava. Sou um caso do mundo emigrante que sai para ganhar menos. Depois tive de remontar a vida. Quis ganhar tempo. Perdi dois terços de tudo o que é pecuniário mas ganhei dois terços de tempo e isso mudou tudo. Desde que estou em Moçambique já publiquei treze livros. Mudou também a sua maneira de escrever? Sim. Mudou, entre outras razões, por causa do anonimato que encontrei em Moçambique. Estive cinco anos absolutamente anónimo e isso foi absolutamente extraordinário. Permitiu que rescrevesse tudo, que escrevesse de outras formas, experimentar outros modos sem ter nenhuma cabecinha atrás do ombro a dizer-me que estava a trair o meu estilo. Isso deu-me uma liberdade imensa. Quando reapareci, toda a gente ficou surpreendida. Quando fui para África as pessoas consideraram a minha opção muito estranha. Chego a África e desato a trabalhar como um doido e, de repente, apareci renovado e com uma densidade que ninguém estava à espera. Tive de fazer o percurso. Os primeiros livros que editei depois de ter ido para Moçambique foram uma novela juvenil, um livro de poesia e um livro de contos grande. Na altura saíram quatro coisas muitíssimo boas nos jornais acerca deste livro, que não no Expresso, coisa que me magoou muito. Depois fiz o meu primeiro romance e mandei-o para a Porto Editora que me pediu uma versão light. O livro é a “A Maldição de Ondina”. Enviei-o para o Brasil que me mandou um contrato. O livro foi editado lá e depois acabou por ser finalista de um prémio. Recuperei uma ressonância mediática em Portugal. Mas teve de vir de fora, dar a volta ao Brasil, para ser reconhecido. Porque é que acha que esse tipo de situação acontece? Por inveja. Uma das coisas que distingue a editora Abysmo é que todos os escritores que ali editam são amigos uns dos outros, não se invejam. Ficamos contentes com os êxitos uns dos outros, lemos os livros uns dos outros e discutimos. Isso foi uma espécie de revolução coperniciana durante algum tempo na adição portuguesa. Falando em escritores portugueses. Como é que vê a produção literária em Portugal neste momento? Estou fora e há coisas que não acompanho. Mas, do que me é dado a conhecer, mais na ficção, neste momento acho que há uma coisa espantosa. Há uma geração de mulheres escritoras, tal como nos anos 70. Estou-me a lembrar, por exemplo, da Maria Velho da Costa, da Teresa Horta. Surgiram uma série de mulheres ao mesmo tempo naquela altura, o que era uma espécie de banco de coral muito enriquecido. Acho que do melhor que se está a fazer na literatura portuguesa tem que ver com a pressão feminina. Além disto parece que há uma série de gente nova muito boa. Não vou estar aqui a falar dos meus amigos (risos). Há sempre um discurso sobre a crise em que estamos em crise em tudo. Sou muito mais positivo. Acho que estamos num período difícil porque estamos numa encruzilhada entre regimes de cultura e existe uma grande confusão em relação a isto. Normalmente não damos conta no nosso quotidiano, mas enfrentamos signos de diferentes regimes de cultura. De cultura popular, de cultura erudita ou humanística, de massas, digital e por aí fora. Isto são regimes diferentes que implicam, não só imaginários diferentes, como valorizações e pautas valorativas diferentes. Confundimos a cultura pop com a cultura. É a mesma coisa que confundir a cosmética com a beleza natural. Há uma grande confusão sobre o que é cultura. Isto é um problema. Vivemos de frivolidade, de pouco esclarecimento e de pouco discernimento precisamente porque estamos neste caldo dos vários regimes culturais que coexistem ao mesmo tempo. Se formos para a globalização temos confusões ainda maiores. Temos aqui um guionista, um escritor, um poeta, um ensaísta e um jornalista. Como é que estas pessoas convivem entre si? Ainda devo cerca de 10 mil dólares ao ensaísta (risos). Às vezes reencontramo-nos todos e jogamos a dinheiro. Mas, falando mais a sério, o ensaísta acontece por duas razões. Tenho um percurso solitário. Não tenho um percurso integrado numa geração. Cada geração cria os seus escritores e os seus críticos. Cada geração também tem os seus santinhos que são as chaves da decifração para o estilo de cada geração. Eu surjo como um ovni. Comecei por ficar surpreendido com as coisas que escreviam acerca dos meus livros. Achava que eram, na maior parte das vezes, um disparate. Às vezes intuía que era um disparate sem saber de forma racional e articulada explicar que o era. Com o ensaio, surgiu em mim, uma necessidade de me explicar. Mas nem gosto muito de escrever sobre livros, gosto de escrever sobre temas. Gosta do vento e pensa ter um livro acerca do assunto. Tenho este fascínio pelo vento. Penso que será o meu fim, que um dia serei levado por ele, para qualquer lado. Cada um tem a pancada que pode, eu tenho esta. Tenho já reunidos um cinquenta poemas de poetas que escreveram sobre o vento para uma antologia. Um dia gostava também de ter uma conversa com o vento. Não sei porquê mas desde miúdo que tenho este fascínio pelos elementos. De um ponto de vista académico dir-se-ia que é uma espécie de entronização com o sublime. O sublime é uma espécie de angariação com as forças que são maiores do que nós. Provavelmente é isso. É a primeira vez que está em Macau e integra as comemorações dos 150 anos do Camilo Pessanha. Como está a ser a experiência? Estou aqui há pouco tempo mas estou agradado. Até posso dizer que já tenho um projecto doido que tem que ver com Macau. Vou escrever uma peça de teatro acerca das relações difíceis entre o Camilo Pessanha e o seu arqui-inimigo, Silva Mendes. O Camilo pode representar um tipo humano periférico e difícil como a relação do poeta na cidade. O Silva Mendes representa aquilo que tenho encontrado muito. É o português que vive de irreais e que chega aos territórios sempre para tentar fazer réplicas da sua aldeia. Penso que pode dar uma boa comédia e vou tentar ter dois meses para vir cá fazer esta peça.
Sofia Margarida Mota Eventos MancheteCamilo Pessanha, 150 anos | Antønio Falcão apresenta “Kleptokronos” e “Morri”, um livro de crónicas “Se existir um deus, é o tempo” Antønio Falcão é Ring Joid, mas podia ser outro qualquer. De regresso a Macau é também Pessanha e os muitos que vão habitando dentro de si. Está no território com a exposição “Kleptokronos”, que é inaugurada hoje e para apresentar o livro “Morri”, amanhã. É um dos artistas que integra as comemorações dos 150 anos de Camilo Pessanha do Edifício do Antigo Tribunal e vem mostrar a sua concepção de tempo [dropcap]O[/dropcap] que é que vamos ter em “Kleptokronos”? Quando recebi o convite comecei a pensar no que fazer. Não queria ir buscar imagens que já tinha nem recorrer a paisagens de Macau. Acabei por ter esta ideia, de jogar com o tempo da própria fotografia e tentar, trazer com a técnica, o tempo do Camilo Pessanha. “Kleptokronos” que dizer ladrão do tempo. Uso a técnica da fotografia em que a luz constrói a imagem durante o tempo necessário até ter uma imagem possível. A maioria das fotografias aqui presentes são feitas com várias exposições, e muitas delas, longas. O próprio processo incorporou o conceito de tempo? Sim. A exposição longa traz o tempo para trás e, tecnicamente, é um método em que o tempo se demora pela fotografia adentro. Como é que isto se materializa na exposição? A minha ideia era pegar neste tempo que se comemora do Camilo Pessanha e juntá-lo ao que também se passa agora, à contemporaneidade. Por exemplo, com a questão dos refugiados. Também se lançam ao mar e muitos acabam por naufragar. Faz um paralelo com as situações da actualidade? Sim, tenho uma imagem referente aos fogos que têm passado por Portugal e que se pode relacionar com o poema “Vida” do Pessanha. Fala disso, do lumaréu, de tudo a arder e das flores que deixam de existir. O arder, mais uma vez, também é referente à luz fotográfica que queima. Não foi pegar no poema e fazer uma imagem que se parecesse. Foi outra coisa. Tem alguns auto-retratos. Os auto-retratos têm que ver com outro processo. É um reencarnar-me como uma espécie de Camilo Pessanha de agora no sentido do delírio, da fuga, da própria erosão da pessoa que está fora, num sítio que não é dela mas que acaba por lhe pertencer. Isto passa também pela minha experiência por Macau. O que vivi e não vivi aqui. A ideia é tentar ser uma personagem, mais do que alguém que escreve ou que fotografa. É criar este embrulho para que tudo o que estou aqui a apresentar faça um certo sentido para que saia da realidade e traga outros elementos. Vamos ter uma mistura de Camilo com Ring Joid, uma outra personagem sua? Um pouco por aí. Mas sem rigor nenhum. O Ring Joid – e não interessa o nome porque foi quase aleatório – é o ideal de mim que não consigo representar na vida real. E por isso mantenho-o vivo artificialmente como complemento de uma vida com limites. Ele sou eu à solta. Vai também lançar o livro “Morri”. Porquê o título? Tem tudo que ver com a questão do tempo. Se existir um deus, é o tempo. É a única omnipresença que existe no mundo e da qual todos fazemos parte. “Morri” foi o título que me apareceu. Comecei a escrever, para o Hoje Macau, em 2004, numa altura da minha vida em que quase tinha uma necessidade da escrita para que pudesse continuar a viver ou a ficar perto do chão. Escrevia com outro nome, o de Ring Joid. Acabei por inventar essa personagem. Há sempre duas coisas a viver dentro de mim. É como se andasse com uma companhia. Um puxa para o desvio, para ir por outros caminhos mais longos e mais difíceis. Depois há as histórias ao longo do livro que têm esse carácter da morte. Aliás, o livro acaba com um pequeno texto em que sou eu dentro de um avião a cair, e relato os últimos momentos antes da sua queda. A morte. O livro têm alguns textos actuais também em que, mais uma vez, está presente o tempo. A introdução, em que relato uma situação de quando tinha três anos, representa tudo o que se passa agora. É uma situação biográfica em que tudo o que nós vivemos já vimos acontecer. É como se vivêssemos numa dimensão em que tudo está mais ou menos programado e que já vimos isso mas que não conseguimos perceber e agora, como o tempo se estendeu, tudo se descodificou. “Morri” fala também da história contemporânea de Macau. Os portugueses, as despedidas, as passagens, mas muitas vezes uma história idealizada. Por exemplo, os governadores que eram seres de uma dinastia superior, que passavam por um processo de estudo do oriente, da língua, da filosofia e quando chegavam integravam-se na vida do “outro” e eram admirados por toda a população. Eram textos escritos para um jornal na pressão semanal do fecho. Experiências de temas e de métodos de escrita. Coisas que via, cinema, música, noites. Sempre com o meu outro ser a testar as minhas capacidades, se conseguia realmente escrever alguma coisa. Uma escrita que parte de um trauma que se vai cosendo ao longo dos tempos. Vivemos num mundo isolado dentro deste território e era preciso soltar-me. E na escrita tudo é possível. Tudo existe. Não há freio. E a fotografia? Qual a sua relação com ela agora? A fotografia só funciona se de algum modo participar nela. Não pode ser apenas uma composição visual de elementos exteriores. Isso é uma espécie de malabarismo, tem de estar tudo no lugar para que as bolas não te caiam na cabeça. Eu fico à espera que elas caiam. E depois logo se vê. O que acha das comemorações dos 150 anos do Pessanha e da sua representatividade para Macau? O Camilo Pessanha é um dos poetas mais válidos da literatura portuguesa e também dos mais esquecidos. Já Fernando Pessoa o admirava mas depois houve este tempo todo em que parece que esteve adormecido. Em Macau, penso que nunca foi devidamente reconhecido e por isso é importante tanto a obra como a sua figura e a sua passagem pelo território. É preciso que resista para que as pessoas possam, algumas continuar a relembrar o homem e outras o puderem conhecer. Viveu aqui 17 anos e está de regresso. Como está a viver a visita? Não tenho bem a noção do tempo, quando olho para trás, passaram 17 anos em Macau, passaram seis desde que fui para Portugal. Está tudo compresso na cortina do engenho que capta imagens para dentro do nosso cérebro. Fui embora em 2011 e sempre que volto sinto como se me tivesse ido embora na semana passada. É sempre um sentir-me em casa. É bom e mau mas como estou sempre de partida, e não venho de armas e bagagens para ficar, também não desespero. É a sensação de estar num sítio inóspito. Macau é inóspito? Sim. O mundo é inóspito.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA narrativa do crescimento “Pinóquio: um livro paralelo”, Giorgio Manganelli, Cavalo de Ferro, 2004. Todas as citações da obra “As aventuras de Pinóquio, história de um boneco”, de Carlo Collodi, foram extraídas da edição portuguesa. [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] preocupação de crescer é subjacente a tudo, já que somos se crescermos, já que se conquista expandido, toda a vida se impulsiona nesse domínio de tal modo acelerado que umas coisas expandem matando hospedeiros de finitudes variáveis que levam no aluvião os vitoriosos com eles. Se está ordenado para viver, a desordem da expansão é cega e sempre expandido exerce a força contrária. E a morte alarga ainda o mecanismo mas só o da modificação, dado que o tempo se torna não urgente na vaga das transformações. De resto, estamos em aceleração constante na casual forma que nos é dada viver com velocidades tais que nem damos conta do quanto existe em nós de fabulosa urgência. É de tal ordem que até a dor se torna sinónimo de crescimento: não queremos perder nada da sua essência e, por isso, se para tanto passarmos por vicissitudes, elas são fixadas como lutas “crescimentistas”. Crescer! Eis o slôgane. Multiplicar em abundância, eis a vontade que orienta o organismo vivo, mas, dado que a função não pode pôr em causa a duração, temos mecanismos de defesa como a contenção, a economia do esforço e até a hibernação, que é uma morte terna e faz da permanência um sonho e está unido a uma ordem vital. Não podemos estilhaçar-nos em milhões de átomos inundantes e fecundadores do mundo sem colidir com os milhões de outras vontades, todas voltadas para o mesmo lado: seria insustentável. Por isso e dado o gigantismo de cada ser, existe nele a vontade de resistir a um domínio cósmico que traz certamente de uma qualquer estrela. Dir-se-ia que mesurar estes aspectos faz o Homem. Sem eles não teríamos chegado até aqui, tantos, e com tantas ideias e tão elaborados. Teríamos sido engolidos pela volúpia da expansão. Esta constante ordem que inscrevemos na defesa do nosso vazio circundante é uma manobra que aprendemos a cultivar, deitar fora o excesso, não nos deixarmos invadir, tomar conta do que restou de uma funda memória que só a quietude pode levar ainda pela mão. Esvaziarmos os cálices, ficar em sóbrio imobilismo, ter a liberdade de não querer saber, e estarmos a centralizar a esfera que nos foi prometida desde o princípio dos tempos. Mas independentemente disto e a ver pela carga que existe em expandir, há neles, expansionistas, formas terríveis de serem vítimas de encantamentos, pois que eles se esgueiram para todos os lados de onde lhes parece vir a força e, como súbditos de um sol menor, entram em órbitas desgovernadas, que só pode ser o lastro de uma magia aplicada às suas febris e famintas condições. O mito de Pinóquio é verdadeiramente actual, muito embora o seu autor não o tivesse adocicado como a «Disney» até porque era um homem que não gostava de crianças. Carlo Collodi, nascido em 1826, pessimista, mas um grande pedagogo, não teve tanta energia a fazer crescer, a denunciar a protuberância do apêndice nasal, a procurar o ventre da baleia por antítese à fada azul. Ele foi descrevendo a relação da criatura com o criador e pondo nas personagens femininas arquétipos de forças várias que assomavam ao herói como as aparições. Senhora, menina, irmã… Pinóquio é aqui uma figura desgovernada criada por uma mente saturnina em busca do seu humano que tarda, uma vez que não se revê em nenhum dos trabalhos da espécie. Há mesmo uma passagem deveras inquietante: Nesta metrópole da euforia não há alegria (queria ele dizer do crescimento); na verdade tinha escrito matrópole; e não sei se esta cidade é mais notável pela recusa de acesso a todas as mães, ou pela contínua presença negativa; esta cidade esta cheinha de fantasmas de mães. A solidão masculina desvenda a manipulação que se exerce nesta cidade ruidosa, projectada pelo falsificador do mundo. O herói passa por metamorfoses, sim, mas o mito do crescimento quase se esconde. O aprendizado da dor como manobra de crescimento não tem aqui significado. A sê-lo, será mais por aquilo que vai fazer dele um ente sociabilizado, que é o crescimento das orelhas e do nariz e que embora sem espelho – uma cautela vigilante da providência da Cidade – ele vai buscar uma bacia com água e fica horrorizado e conhece então três sentimentos: dor, foi alvo de violência que o deformou de si; vergonha, pela metamorfose a que dá um significado; e desespero, porque sente o terror de ter ido demasiado longe ao rejeitar o humano. Todos estes apêndices eram à partida elementos harmoniosos. Ele também se censura por ter abandonado a Fada que era para ele uma mãe. Vemos aqui o quanto andamos à volta do mito do crescimento sem estrutura para nos engradecermos, sair do plano da manobra; observamos como a dureza do pai é um martelo de bigorna na ascensão do filho, oscilamos entre temores de uma Cidade cinzenta em que criamos a imagem e não damos forma à plástica tenacidade da alma. Então ela cresce de descontroladamente, de modo a não ser reconhecida no invólucro. É um longo desenrolar de conceitos quase filosóficos e sem dúvida absolutamente poéticos, nevrálgicos como as auroras que estão sempre do mesmo tamanho em qualquer latitude do mundo. Se a grandeza de um nariz associada à mentira desse frutos, nós seríamos os grandes herdeiros da falsa questão a ver por onde correram as verdades todas a partir de um ponto tão reduzido, mas que alguns têm tão grande. E que não se pega um ser pelo nariz como não se toca na barba de ninguém. Há subtis intenções que são disfarces pois que subtilmente nos fazem ir até anatomias bem desenvoltas nesta matéria. Podem ter produzido grandes mitos e talvez pais temíveis mas não se lhes nota uma grande ausência de verdade. Creio por isto tudo e muito mais que a aceleração “crescimentista” possa ser uma super- masculinização do tecido social que se vê impulsionado para a conquista sem freio de quase tudo o que mexe e trespassa de morte organismos e vidas inteiras na mesma escala de valores que faz disparar a sua proliferação em massa. O crescimento conquistado pela perda de vidas é um naufrágio que só a quimera do movimento dá ensejo e encoraja. De resto creio que tudo está bem. Aquele que acabou de levar a termo uma criação é acusado de ser um torturador, um matador. A acusação é socialmente contraditória, mas filosoficamente não é senão a repetição de uma denúncia de que todos são alvo: aceitou ser pai. Finalmente, por um instante faz-se luz sobre o parentesco entre «crianças» e «bonecos». Um grande tratado ontológico, portanto. E talvez o momento de nos firmarmos na nova substância em crescimento de uma ideia humana que é um propósito intermédio na longa e ainda crescente marcha da sua transformação.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasDesenhar com lâmina Horta Seca, Lisboa, 11 Julho [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]bre anunciando-se sem nome ou corpo, mas não encontro na poesia contemporânea outra boca que diga assim corpo, uma forma de o ser inteiro pela palavra com que desenha e rasga. «Sou esta fenda extasiada que pensa/ e estou longe como uma ruína alta/ guiando palavras à minha vontade.» «1025 mg» (ed. Douda Correria), o livro mais recente de Cláudia R. Sampaio, é um torrencial monólogo em XVII poemas que vieram para pôr cores berrantes na raiva e novos sabores na lucidez. O discorrer dos versos faz no branco que sobra as sombras da carne. Subo-os como degraus de casa devoluta e digo-os em voz alta. Sobrevoam agora os telhados até encontrarem a carne onde se tatuar. Imagens encadeadas e incandescentes que vão e vêm, para marcarem com nódoas negras a nossa leitura, mariposas contra a lâmpada. A medicina que o título anuncia não atenua a dor, não se faz unguento, não acalma nem a ferida da vontade, não cura a doença de sermos para aqui assim. «Quem sabe se não é agora que/ possuo toda a loucura/ e me faço mulher// Eu que da cintura para cima sou triste/e daí para baixo uma praia/ a quem explodiram o mar/ para depois o transformarem em/ homem e em assombro também/ Eu que desfolhada em abismo/regressei à ânsia e aos mortos/ por lá se encontrarem os vivos». Depois, a casa da voz da boca de um corpo sem nome ou substância está tão bem mobilada pela delicadeza da Mimi Tavares! Os nossos móveis possuem secretas e ingénuas convivências. (Descobri no «Carlos Bica + Matéria Prima» (ed. Clean Feed) banda sonora inesperadamente apropriada). Mymosa, Lisboa, 12 Julho Pode um desencontro frutificar? Vou apostar (um almoço) que sim. Há uns meses, cansada do silêncio que irradio, a Joana Bernardo entregou-me maqueta que, de tão impressionante, era logo ali um livro. Sem tirar nem pôr. A ideia de «30 anos | 8 Dias» continha a mesma simplicidade elegante do desenho gráfico, abundante de brancos, sem nada gritar, desenrolando coisas e nomes e entradas de diário com suave delicadeza: «13 pessoas que vivem em Lisboa chegam agora aos 30 anos e descrevem, nestas páginas, 8 dias das suas vidas.» Quando lhe assinalei o meu interesse já estava em marcha o processo da autoedição, que achámos melhor não travar. Está feito, ainda que sem o logotipo abysmo. Acontece. De igual modo, acontecerá sequência. Tem qualquer coisa de solar esta preciosa cápsula do tempo. O futuro parece menos sombrio se contarmos com o presente desta geração, afinal, desenrascada, que insiste no que vai fazendo em neurociência, em design ou música, engenharia ou bailado. Difícil, precário e tal, mas haverá outro modo de se vestir o mundo? Ainda que «sem ambições literárias», descobrem-se textos brilhantes, por exemplo os de Catarina Vasconcelos, e o conjunto explode em variedade de tons e vozes e maneiras e temas sem perder equilíbrio. Espreitamos fragmentos de vidas, em momento algum banais, ainda que comuns. E que revolucionário pode ser o facto destes quotidianos serem usuais! Joana desenhou mais do que as páginas, escolheu notícias, sublinhou locais na pele de Lisboa, pediu e fotografou objectos, enfim compôs algo que rola como círculo virtuoso, LP em prato de gira-discos. Ou seja: livro, singelo e luminoso. Os 30 põem fim à juventude, diz ela. Talvez não, se depender deles. (Pareceu-me boa companhia o som «único e delicado» dos Durutti Column, apresentado pela própria Joana, no seu «Álbum de Família», na Radar (https://radarpodcasts.podbean.com/)) Horta Seca, Lisboa, 13 Julho Por mais que olhe nas múltiplas direcções, os dias continuam a atropelar-me na passadeira. Será por estar sentado quando devia correr? Receber peças do calibre de «Mutations», do mano João [Fazenda], significa, portanto, salvo-conduto para o máximo recolhimento. Na dedicatória vem um monociclista a fugir do traço encimado pela afirmação de que escrevo desenhos e invento livros. Comovo-me e travo a fundo enquanto o olhar se perde nas linhas impuras do prazer e da inteligência. Estes desenhos são lições de bem ver: uma pedra, uma paisagem, um corpo podem esconder inúmeros. Traços simples que despertam as formas adormecidas no branco, que as movimentam, que as misturam: pétalas são lascas de granito, cabelos soltos fazem nuvens, paisagens que crescem no vestido, um mineiro surge-nos da barriga, árvores viram tejadilho e locomovem-se. Podem ser apenas pensamentos pedindo a encenação do lápis ou corpos juntos pelo puro gozo do desenho. Na maior parte dos casos, vejo ideias, isto é, poemas. Riscos e pequenas nuvens de cinza a desdobrarem-se nas infinitas possibilidades do mundo que se vislumbram para lá destas portas-páginas. Bendito demiurgo, que até nas mais negras ideias, colocas o incêndio de um sorriso! Podia pegar em cada um destes poemas e lambê-lo com palavras, carimbá-lo com a desnecessária metáfora das sombras que ardem (como a que ilustra algures a página). Sabes bem que descrever as imagens são afagos no artista. Devia chamar-te ruy-belo-da-ilustração, e por aí fora, desde que poetas do mar e do vento e das inocências perdidas, até te irritares. Melhor ficar por aqui à procura da tristeza que há-de andar algures. Preciso de a alimentar. (Eu reconheci o Tom Waits, mas puxei do «Espaces Baroques», do Frederic Galliano, e deixei-o desdobrar os recantos enquanto via). Horta Seca, Lisboa, 14 Julho Como no desenho do João [Fazenda] em que um gato faz de papagaio no meio dos pássaros com avião ao fundo, assim me senti eu hoje. Convergiram amigos que há muito não via. Difícil reconhecermo-nos no âmbar daquele olhar. Nenhum de nós é ainda aquele. Ou ainda algum fio nos prende aos gestos de um puto, de um jovem? Baixa Chiado, Lisboa, 15 Julho No metropolitano, pela primeira vez em muitos meses, mas mesmo muitos, todos os lances de escadas rolantes que ligam a Baixa ao Chiado estão funcionamento. As carruagens, essas, pelo menos na linha verde, continuam à pinha em qualquer hora do dia. Para memória futura.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasViver as paisagens Alportel, 3 Julho [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esço, em boa companhia, à serra algarvia ao encontro do crocodilo-mor, João de Azevedo. Fomos recolher as cores fortes, primárias, solares que assombrarão a galeria nos próximos dias. Acabadinho de cumprir meio século a pintar com diletante militância, o seu percurso não se resume ao trabalho sobre a cor, ainda que ela tenha a importância de um mergulho nas raízes, de um encontro com os primitivos de sempre e de agora, os que procuram o sabor do orvalho, o poiso do olhar da aurora nas coisas. As cores, bebidas das muitas paisagens onde se desfez, começando pelo mar natal, servem temas de sombra e assombro: os barcos, os barcos logo carregados de refugiados, os barcos-caixão, o corpo, nossa paisagem portátil, erotismo, o rosto, autorretratos, o garrote, depois ícaro, sinal maior das utopias onde se fez e desfez, depois os crocodilos, por causa de Timor e de um regresso à pintura largamente simbólico. Agora, e também isso mostraremos, regressam os empurrados da vida, mas em fundo negro, corpos atirados para a frente, com as mulheres nuas a rasteirar quem foge (ilustração algures na página). Sentámo-nos a mesa, de que outro modo podia ser?, a mastigar paisagens, a das ervas aromáticas que temperaram a noite, outras de verduras vizinhas, mas sobretudo as das muitos lugares (Níger, Moçambique, Holanda, Itália, Timor) e pessoas onde foi montando tenda. E semeando, que trabalhou muito com sementes. Juntou-se a nós um velho professor, o comum amigo Eduardo Campos Martins, que quase me empurrava para as sociologias, há muitas luas. Tantas luas e tantas vidas perdidas pelo caminho. Andámos desencontrados, por ser ele também da tribo dos nómadas, sendo eu mais árvore. E refrescado limoeiro me senti a beber os ventos naquela noite do princípio dos tempos. Joaquim Casimiro, Lisboa, 5 Julho São as coincidências que nos governam. O Pedro [Salgado], que anima o Grupo do Risco, em viagens de olhos e mãos atentas às paisagens de selvagem natureza, oferece-me o resultado da expedição mais recente, em Junho de 2016, ao Príncipe. E que contém o volumoso álbum além das ilustrações de aves e caranguejos, de pássaros e árvores, registos dos que caminham sobre a atenção? O mangal, em todo o seu sombrio esplendor. Ora, por estes dias, ando encantado com Ponta Gea, o mais recente – que dizer, romance? Talvez, mas não explica tudo. Livro de viagem a um lugar chamado infância? Memórias do que só agora existe? – de João Paulo Borges Coelho. Um dos fragmentos relata a travessia do… mangal, lugar onde a terra e o mar se cruzam de um modo tal que deixam de ser um ou outro! Deslumbrante viagem iniciática, contada como se de ilustração científica se tratasse, sendo a ciência aqui a da aventura e ao nível de um Melville ou de um Stevenson. Não há por ali moral, claro, mas tomo nota que somos obrigados a atravessar as movediças paisagens para descobrir o rosto da morte. Desencontrei-me do João Paulo, por exemplo, em Moçambique, aqui há atrasado, mas a elegante Maria Helena convocou-nos para a sua mesa. Falámos, conversámos, historiámos. Recuperámos, quem sabe, algum do atraso. O dia vinha tintado de tristeza, mas a noite mudou-lhe o tom. CCC, Caldas da Rainha, 9 Julho Naquele tempo, não via necessidade de fazer colecções na abysmo. Ei-las que surgem, de modo orgânico, ou não se tratasse de silvestre jardim. Na capa, o Sal [Nunkachov] coreografou pequena e desfocada dança de corpo nu e ramo. Ajudou a fazer um programa. Não a nomeámos, mas existe doravante, esta dedicada aos micro-contos, e existe mais ainda por se iniciar com Insanus, do Carlos (duplamente) Querido. Ou talvez seja nome seu a epígrafe roubada a Flaubert, afinal, a entrada para «livro» do seu Dicionário das Ideias Feitas: «Quel qu’il soit, toujours trop long.» Este livro vai durar, vaticino, de tão longa que será a sua permanência nos leitores. Nestas peças de relojoaria onde nada sobra ou falta, o absurdo toma as vezes de pano de fundo para o encaixe em movimento das personagens. Breves, mas intensas. Gente que consegue viajar no tempo, tornar-se invisível, perder as palavras, enlouquecer por via de um quotidiano gesto. As minhas segundas leituras floresceram no horto do absurdo, com plantas e jardineiros como Beckett ou Henrique Leiria, Jarry, Camus ou Mário de Carvalho. Descobrimos que o dito cujo cresce como espelhos de circo da nossa relação com o mundo. Por ele acedemos à matéria primeira dos objectos e dos gestos. Com a subtileza da maresia, sente-se ainda a ruralidade, essa peculiar atenção à terra, a rimar ironicamente com um Deus que protege quem se aproxima das margens, dos precipícios, dos abysmos. O Carlos, sendo mais homem bom que juiz, foi sendo, nos andamentos mais recentes, um verdadeiro mecânico de paisagens. Curiosamente, ou nem por isso, com ele os timbres mais graves da liberdade. Personagens e autores, andam presos pelo umbigo, bem o sabemos. No conto «Sombras», sublinho, portanto regressando a uma das muitas infâncias: «Fazíamos os mesmos gestos, em simultâneo, numa harmonia sem arestas, até que um dia comecei a perceber de que era ela quem tomava a iniciativa. Percebe o que lhe digo? A minha sombra movia-se, e eu imitava-lhe o movimento.» Imitar o movimento das sombras, não será vocação para um editor? Horta Seca, Lisboa, 10 Julho Começo a semana de costas, a mirar a que passou. A minha-terra-agenda fez-se confluência de rios-projectos, ao mesmo tempo adubada de desilusões e amarguras. Clássicas tragédias cheias de futuro de par com contemporâneos do risco, fotografia e ensaio, talvez ensino. Dá-me jeito a melancolia, nas manhãs de segunda… E Lucebert, traduzido por Jos van den Hoogen, que desceu, com Daniel Rocha, de outra serra ao meu encontro: «o abraço deixa-nos num jogo desesperado/com o vazio/ por essa razão procurei /a língua na sua beleza/ onde ouvi que de humana não tinha mais/ do que os defeitos de pronúncia da sombra/ da luz ensurdecedora do sol».
Isabel Castro EventosIsabel Valadão, autora de “O Rio das Pérolas”: “As palavras são o que restará de nós” Viveu aqui na década de 1980, uma passagem de três anos que a marcou. África tinha ficado para trás, Lisboa foi o destino que se seguiu à vida no Oriente. Mais de três décadas depois, Isabel Valadão regressa a Macau através da literatura. “O Rio das Pérolas”, romance recentemente lançado pela Bertrand, conta a história de Mei Lin, uma mulher que existiu e que agora ganha uma nova vida Viveu em Macau durante algum tempo, tendo deixado o território em 1986. Como é que surge este regresso, através da escrita, 30 anos depois? Macau não foi mais uma passagem por um lugar que desconhecemos e que nos desperta curiosidade. Claro que também foi isso. Mas foi, sobretudo, uma etapa importante da minha vida. Angola tinha ficado para trás mas estava sempre presente nos meus pensamentos. Portugal, Lisboa, Cascais tinham apenas sido locais de passagem, apeadeiros impostos pelas circunstâncias. O regresso a Macau por este livro – uma forma de regressar que talhamos à medida dos nossos desejos e não pelos caprichos do tempo – talvez tenha a ver com a saudade mas está, muito certamente, relacionado com a minha formação em História e com o hábito de investigar o que o tempo guardou dos locais, das terras e das gentes por onde passo. Tem obra como romancista sobretudo em torno de África, onde viveu, continente que em muito a marcou. “O Rio das Pérolas” obrigou a uma mudança na geografia. Foi fácil esta transição? Não foi, exactamente, o Continente que me marcou, mas Angola – embora exista uma relação de afecto entre mim e toda a África. “O Rio das Pérolas” é uma memória como são de memórias todos os livros que escrevi – frequentemente romanceadas. Se um dia deste nosso futuro tão incerto me for oferecida a oportunidade de passar por qualquer outro ponto do mundo e por lá me detiver por algum tempo voltarei a sentir-me emocionalmente compelida a investigar e a escrever sobre esse lugar e as suas gentes. A geografia é importante para o contexto. Mas o que é realmente importante são as pessoas, mesmo que algumas delas tenham de regressar da eternidade para as páginas dos romances que vou escrevendo. Em “O Rio das Pérolas”, há uma mulher no centro da narrativa. Convida os leitores para uma viagem entre os anos 1940 e 1960. De onde partiu esta história? Quem é a Mei Lin? Mei Lin existiu na história de Macau. É um personagem que resgatei da vida real e coloquei no meu livro porque é um dos símbolos da mulher chinesa daquele tempo. Provavelmente, dei-lhe o brilho romanceado de uma história de encantar, emprestei-lhe uma personalidade que talvez nunca tenha tido, envolvi-a em mistérios orientais eternamente indecifráveis e ofereci-lhe um coração que ela talvez nunca tenha tido a oportunidade de conhecer. O resto da história é um romance sobre um lugar e as suas gentes… Uma espécie de fresco. Estamos perante uma obra de ficção, mas com uma componente histórica. É licenciada em História de Arte. Sente que a sua obra ganha significado por partir de factos reais? Como é fazer este exercício de encaixe da história e da ficção? Não existe nada na ficção que não seja, tenha sido ou venha a ser um dia uma realidade. Antes de ser historiadora sou, sobretudo, escritora e romancista. Mas é na História que me inspiro. E nela, das gentes desse mundo fora. Não existe nada de mais belo e de mais inspirador para um escritor do que as pessoas que se cruzam connosco num determinado momento ou numa esquina por onde o tempo já passou. Cada um de nós é um templo, tantas vezes misterioso na singularidade das nossas vidas, livros abertos que ninguém lê, exemplos de coragem, de altruísmo, de genialidade que o anonimato esconde na morte e enterra na campa mais profunda. Eu gosto muito de descobrir os heróis do passado e emprestar-lhes por um instante a homenagem que a vida lhes negou. Viveu em vários continentes e teve actividades profissionais completamente distintas. Como é que surge a escrita, no meio de todas estas vivências diferentes? A escrita chega quando tudo o mais se aproxima do fim. Chega-me numa idade mais madura, depois de todas as experiências que a vida me proporcionou. Chega-me também da necessidade de me ocupar e de me manter viva. De me manter, sobretudo, alerta. E da necessidade imperiosa de não esquecer! É a última casa de quem sobe na direcção da saída grande. Tenho 72. Faz investigação na área da defesa e conservação do património. Escrever sobre o passado de locais onde viveu é também, de certo modo, uma forma de preservar outro tipo de património? Sim. O património imaterial que todos nós somos. As nossas palavras são tudo o que restará de nós para as gerações futuras. Sei que tem planos para voltar a Macau nas suas obras. Podemos esperar para breve um novo livro? Provavelmente voltarei a Macau – um dia. Mas o meu próximo romance terá o antigo Reino do Congo como chão. Uma princesa-escrava. Heróis avulsos. Guerreiros, estrategas e generais. Mártires e defuntos. Despojos. Escravatura. Epopeias, algumas que a História esqueceu. E uma história de amor, como não poderia deixar de ser.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasRicardo Ben-Oliel (Contista que vive há 40 anos em Israel” Ricardo Ben-Oliel [dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]icardo Ben-Oliel é aquilo a que podemos chamar de um autor tardio. Se não na escrita, pelo menos na publicação. Em 2013, e já com mais de sessenta anos, publica na Abysmo o seu primeiro livro, um conjunto de contos intitulado Silêncio. Com formação em direito e muitos anos de estudo de música e piano, aos vinte e oito anos de idade muda-se de vez para Israel onde passa a viver e a exercer o cargo de professor universitário de direito, até aos dias de hoje. A sua escrita está impregnada do lugar onde habita, contrariamente a muitos escritores emigrados ou exilados, que tantas vezes escrevem tão-somente acerca de onde vieram e não acerca de onde estão. Não se veja, contudo, nesta minha afirmação uma qualquer crítica velada, mas tão somente uma constatação, até porque não sabemos o que seja melhor para aquele que escreve e para o leitor, se uma escrita acerca da prisão de onde se fugiu ou uma escrita acerca da prisão a onde se chegou. Assim, Ricardo Ben-Oliel neste seu segundo livro – O Quarto Trancado Onde Nem A Morte Entrava – e apesar de ter dois contos, os primeiros, que são passados em Portugal, remete-nos para um livro tão não-Ocidental como o seu primeiro livro, Silêncio, onde se lia à página 26: “Muito gosto eu dessas largas avenidas que há pelas capitais europeias. Sobretudo numa manhã límpida e azul. // A vida parece tornar-se, aí, mais fácil e leve. Prometedora. Alegre. São as esplanadas, os arvoredos, as largas montras envidraçadas a oferecerem um quase-tudo. Há um luxo disseminado, uma conjugação de esforços a criar um cenário optimista, uma risonha mentira consensual.” Trata-se efectivamente de uma visão de alguém que vem de fora da Europa, da calma e segura Europa das últimas décadas, das décadas do pós-guerra. E tal como algumas funções da vida nos ficam coladas à pele, como escreve o autor logo na segunda página do primeiro conto deste livro – “Era ele o magistrado-mor. Ou melhor, fora-o durante o tempo de uma vida; e quando tal acontece, é sabido que a função fica colada à pele como a crosta de uma insarável ferida.” – também um país ou uma zona geográfica nos fica colada à pele, quando aí vivemos mais de quarenta anos, como é o caso de Ricardo Ben-Oliel em Israel, nesse singular país, nessa singular região do planeta Terra. Quem tem a experiência de viver anos fora da Europa, em continentes e em países onde a violência faz parte da paisagem, não pode deixar de se sentir em casa ao ler estes contos. Aqueles que vivem o seu quotidiano sem tiros, sem sangue na rua, ou a sua possibilidade a cada instante, podem chegar a estes contos com alguma desconfiança. Não pelas descrições de violência, que as não tem, mas, por um lado, pelo ambiente contínuo de preocupação que se faz sentir nestes relatos e, por outro, pela omnipresença de um passado recente de dor, de fim do mundo que une as pessoas retratadas. Estas contínuas preocupação e memória colectiva da vivência ou iminência do fim do mundo percorrem todos os contos deste livro. Mas veja-se este exemplo no último conto do livro, já nas suas últimas páginas, e a que voltaremos mais tarde: “Uma mina, e o jipe que saltou. E com ele Yair, pai. Como é possível, ainda há dias, e na semana passada, e no último Verão, e quando há uns anos fomos os três a Varsóvia, a Auschwitz, depois a marcha a Birkenau…” Posso afirmar mais: a iminência do fim do mundo percorre todos os contos deste escritor, que até agora tem apenas dois livros publicados, contando já com este que aqui nos traz. Assim como também a precisão e a beleza da linguagem, aqui acerca de um vilarejo no Alentejo: “O vilar era um desses à maneira de pueblo blanco, onde as calçadas angustas serpeiam, libidinosas, por entre o casario. Baixo e acotovelado. Quase até ao castelo. Este, recortado como um brinquedo, pleno de infantil altivez, vinha do tempo em que os reis eram todos Sanchos e Afonsos. Mas, quando olhado de perto, já o mesmo parecia acanhar-se do seu pano de muralhas remendado, das ameias por terra esquecidas.” Aqui, e apesar de em um vilarejo alentejano, o assunto é algo tão universal e intemporal quanto é o humano: “Estirado na sua enxerga, as mãos sob a nuca, deleitava-se o velho magistrado com a quietação em redor, enquanto para si repetia, com sentido júbilo, já nada ter a ver com o vulgar mundo em que se sua e labuta. Finalmente, dava corpo ao grande sonho da sua vida. Que era pará-la, sustê-la, a ela e à morte também. // Conseguira quanto almejara. O gozo da imobilidade. A paragem no tempo.” As fronteiras que limitam a escrita deste autor, e que podemos ler logo de início no primeiro conto, são estas: um olhar de além-Ocidente e inquietações bíblicas. O território que é limitado por estas fronteiras mostra-nos uma linguagem precisa e bela como raramente se encontra em nossa língua. Leia-se, por exemplo, e logo nas primeiras páginas do livro, para além do já aqui transcrito: “Em baixo, para sul, uma lasca de rio verde-lodo, por onde, assim se dizia, coleavam, incessantes, as cobras-d’água.” ou “Num repente, assustou-se. Eram estilhaços a embater na pequena ventã. Uma chusma deles. Incessantemente. Uns tantos caíam inertes à altura do parapeito; outros aí se quedavam revirados, de patas no ar, num último esforço. Saltões. Os gafanhotos. De novo a morte, disse para consigo. Passou a espiá-los. Com o escoar dos dias, a ressequirem mais e mais.” Ou ainda: “Ficou-se a ouvir o zunido do vento suão. Era um silvo que crescia e recuava, que ganhava fôlego, e que o perdia, que se esgueirava pelas ruelas do povoado, para logo trepar montes e espraiar-se pela planície longa. Mas que voltava, como o respiro de um fogoso gigante a vogar no espaço. Vento fugido. Vento cigano.” e ainda mais esta “Comprara-o no mercado quinzenal. De caule franzino, folhas parcas, raiz bebé. Um pé de limoeiro. Vieram plantá-lo ao fundo do quintal. Mas mal começaram a rasgar a terra, logo deram com objetos duros e estranhos. Envoltos em terra mais que ressequida. Resquícios soltos, uma mandíbula, ainda uma outra, uma tíbia, logo uns fanecos de vasilhame. Ficou uma tarecada dispersa pelos cantos, aos montículos.” Muitos são também os momentos em que a metafísica se levanta, como já vimos anteriormente, mas veja-se mais um exemplo em que a linguagem para além da beleza e da precisão, levanta os pés do chão. Veja-se, e ainda nas primeiras três páginas: “Havia muito que a morte o intrigava. Que o atormentava até. Sobretudo pelo mutismo que se lhe segue. Qual o enigma por detrás daquela insondável, provocante quietude, tão próxima e tão remota, qual a razão para logo tudo se silenciar? Era quanto o alto magistrado inquiria em momentos de maior cogitação, que os tinha. O “após” sempre fora para ele o grande mistério, sobretudo depois que um dia…” Tudo é uma verdadeira relíquia. E não só pela linguagem, mas também pelo mundo que se abre diante de nós daquilo que fomos, ainda não há tanto tempo atrás, pois desde o tempo em que o conto nos mete até agora, passou-se não mais do que uma mão de décadas. E veja-se esta maravilha, onde a metafísica se torna bela só para se rir de nós, humanos: “Seguiu-se a audiência, quem lá estava era a Laldinha, em tempos rica de curvas, quem diria ser a mesma quando ao peito já só trazia penduradas como que duas alforrecas dadas à costa, veja-se no que a natureza dá volvidas as idades (…)”. No segundo conto, Sorrindo ao Cristo-Rei ou Simplesmente Perversa, a precisão e beleza da linguagem não nos abandona. Quase de início deparamo-nos com este curto parágrafo: “Passeamos junto ao rio, que ondula molemente. Súbito, é um sol de Agosto que se liberta de umas nuvens vagabundas e que nos ataca, esbraseado, impiedoso.” E estamos no meio de um passeio com um homem e uma mulher, o narrador Leo Blaustein, e Dafna. Um passeio de domingo ao Cristo-Rei. E o logo de seguida “Temos duas esplanadas à escolha. Uma lá mais ao fundo, de onde vem um intolerável banzé electrónico (…)”, mostra-nos claramente já não tratar-se de um outro tempo, como no conto anterior, mas deste nosso tempo de barulho ensurdecedor. Este conto corta-nos a direito. O modo como o narrador nos mostra o humano nas suas actividades de lazer, hoje, e ao mesmo tempo ligando-as sempre a uma ontologia, e como tal de sempre, é magistral. Leia-se as seguintes passagens: “Decorridos uns momentos, há um casal de jovens que se aproxima, a quebrar o letargo envolvente. Sentam-se diante de nós. Ela, elegante nos seus jeans, coçados à moda, e de uma deslumbrante cabeleira fulva; ele, atrapalhado na vestimenta, cabelos na vertical, olhos protuberantes e mortiços à Homer Jay Simpson.” Saltando um parágrafo, o narrador massacra-nos com aquilo que tantas vezes acontece na vida e só quem está a viver esse acontecimento não vê: “Então é o jovem quem, depois de fotografar o cenário, desata a disparar a máquina sobre a companheira – um clique, e mais outro, outro ainda, depois um último, já de muito perto – enquanto ela volteia instantemente os já desgrenhados cabelos áureos. Depois, é-lhe encontrada a mão. Porém, não obstante os carinhos, era notório o cunho de efemeridade que emanava daquela ralação, esteticamente tão díspar.” O autor sempre a lembrar-nos que a vida só a sabe quem a não vive. Só aquele que a observa pode julgar e saber convenientemente, ou mais aproximado da verdade humana, aquilo que acontece. Nunca aquele que vive. Nunca se sabe o que se vive. Há ao longo de todo este conto uma espécie de “Mil e Uma Noites”, e aqui então a narrativa retrocede no tempo, não como entretenimento do sultão, mas como artifício de pôr o outro a escutar a sua história. O artificio é simples, o mesmo usado na sedução, fazer parecer que vai beijar, contar, mas adiar continuamente o beijo e derramar a história um pouco mais para diante, ao ponto de Dafna chegar a perguntar-lhe directamente: “Mas diz-me uma coisa, Leo: será que, de facto, tencionas responder à minha pergunta, ou apenas entreter-me com mais uma das tuas histórias?” Este beijo que Dafna tanto espera, a resposta à sua pergunta logo no início do conto – “Importas-te de me esclarecer o porquê desse teu sorriso?” – será tão mais adiada quanto a maestria do contador. Assim, e tal como Sherazade vai adiando a sua morte, ao contar histórias ao sultão, também Leo vai adiando a resposta na certeza de com isso ter toda a atenção de Dafna, que é também um modo de adiamento da morte. Porque todos precisamos de contar a nossa história àqueles de quem gostamos. Porque narrar não é apenas uma necessidade; narrar é fazer viver o vivido, fazer-nos viver de novo. Quem não narra não ressuscita.
Hoje Macau EventosLançado livro sobre diáspora judaica lusófona [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s comunidades de matriz judaica portuguesa espalhadas pelo espaço lusófono são o tema do livro “Judeus e Cristãos Novos no Mundo Lusófono”. “São conjuntos de textos que organizei, estando uma parte alinhada pelo tema da pesquisa histórica dos judeus de matriz portuguesa na diáspora. Há ainda alguns textos centrados na literatura produzida por autores que tenham alguma ligação ao judaísmo português”, explicou à Agência Lusa a coordenadora do trabalho, Marina Pignatelli. De acordo com a investigadora do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), “há um texto, que está um pouco desgarrado mas que tem interesse e está ligado ao tema do judaísmo, que trata da imagem dos judeus no cinema português”. “O livro tem ainda textos mais etnográficos e antropológicos como o meu, centrado em Moçambique, que tratam mais das comunidades judaicas do presente”, sublinhou a coordenadora, doutorada em Ciências Sociais com especialidade em Antropologia Cultural. Marina Pignatelli adiantou que o livro contém textos de 17 autores, em quatro línguas, nomeadamente português, espanhol, francês e inglês, que retratam as comunidades de matriz judaica portuguesa no Brasil, São Tomé e Príncipe, Moçambique e outros locais, como em Hamburgo ou na costa ocidental de África. “A diversidade das línguas dos autores dos textos do livro reflecte bem o interesse internacional que existe na área dos estudos judaicos em relação à matriz portuguesa do judaísmo”, referiu a autora. O investigador Tudor Parfitt, professor de estudos judaicos da Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) da Universidade Londres e membro do Centro de Estudos Hebraicos e Judaicos de Oxford, considerado o “Indiana Jones” britânico, pela sua procura por comunidades judaicas em todos os cantos do mundo, é um dos autores presentes na obra. Macau presente A coordenadora disse que a ideia do livro surgiu em 2010, quando decidiu pesquisar as comunidades sefarditas portuguesas, tendo descoberto uma pequena sinagoga em Maputo, com uma pequena comunidade e contactou Tudor Parfitt que a orientou a investigar as comunidades sefarditas em Moçambique e sugeriu que após isso, organizasse um congresso e escrevesse um livro sobre o tema. Marina Pignatelli acabou por realizar o congresso em Novembro de 2015, que contou com a presença de centenas de investigadores. Os textos do livro coordenado por Marina Pignatelli são de investigadores que participaram neste evento, realizado em Lisboa. “Os investigadores escreveram sobre as suas pesquisas mais recentes em torno do judaísmo de matriz portuguesa, no contexto de antigas colónias portuguesas ou noutros pontos da diáspora sefardita portuguesa”, disse a investigadora. “Quando se fala no termo sefardita, fala-se muito, em geral, da diáspora judaica espanhola que fugiu da perseguição da Inquisição em Espanha”, acrescentou. Para Marina Pignatelli, este livro serve para “marcar a presença e a importância da diáspora judaica de matriz portuguesa, os sefarditas portugueses, no mundo, tanto quanto a espanhola”. Em 1946, o rei Manuel I assinou o decreto de expulsão dos judeus de Portugal, como havia acontecido anos antes com os judeus em Espanha, que foram expulsos daquele país em 1492. “Esta matriz portuguesa mostra que o mundo sefardita não é só espanhol, está em paralelo 50/50 (português e espanhol), se quiser. Isto é visível no Brasil, Angola, Moçambique, Macau, Japão, Índia, entre outros locais”, afirmou. Outros investigadores que participam no livro são Florbela Veiga Frade, investigadora na Universidade Nova de Lisboa, Nancy Rozenchan, da Universidade de São Paulo, Asher Salah, da Universidade Hebraica em Jerusalém, o escritor são-tomense Orlando da Glória Silva Piedade, o pesquisador independente Saul Kirschbaum, o investigador da Universidade de Córdoba Marcos Pelayo e o autor francês Gérard Nahon, entre outros. A obra, de 388 páginas, é publicada pelas Edições Colibri e já está a venda ao público português.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasNotas acerca do livro A Urna, de David Oscar Vaz Para Valério Romão [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]avid Oscar Vaz é um escritor brasileiro, de São Paulo, que recebeu em 1997 o prestigiado prémio de revelação da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), um dos mais importantes prémios brasileiros, com o seu livro de contos Resíduos (Ateliê Editorial). Em 2000, e também pela Ateliê, edita o seu segundo livro, também de contos, A Urna. Livro que iremos ler aqui através de alguns dos contos que o compõe. “A CASA” “A Casa” acaba connosco. Acaba connosco a recolhermo-nos ao cérebro e a perguntar: é verdade ou não? E, com esta pergunta, voltamos atrás no canto, atrás no texto. Talvez seja esta a mestria dos grandes contistas: a capacidade de nos fazer voltar atrás, sempre para trás. Voltar atrás, perguntar se é verdade ou não, aqui, não é do foro dos factos, nem tão pouco ontológico. Voltamos atrás e perguntamos pela veracidade estética do conto. Independentemente da sua veracidade ontológica. A factual é que não é sequer p’r’aqui chamada. Verdade factual interessa tanto ao conto como a água interessa ao vinho. Conto bom, dá à ré! Tão contrário ao romance, com a sua seta afiada em direcção ao futuro do tempo! Ainda que continuemos o romance, depois dele acabar, não voltamos atrás, pelo contrário, vamos para a frente. No fim de um romance, o que ficou para trás não causa perplexidade. No fim do conto, é o que já lemos que causa perplexidade, isto é, o que lemos e que agora se nos é revelado como “se calhar não lemos”. Este conto, de David Oscar Vaz, de apenas meia dúzia de páginas, mostra de um modo extraordinário a peculiar arte do conto. Independentemente do seu conteúdo, excelente, de resto, é na sua formalidade que encontro a razão que me faz começar por ele, na curta leitura deste livro. “A URNA” Conto que dá título ao livro e com o qual se começa. Tem a particularidade de se centrar num tempo muito anterior ao nosso: há um século atrás. E, talvez por essa mesma razão, a comparação com a tradição machadiana torna-se inevitável. Sem dúvida, lembra Machado no seu melhor. Lembra Machado, no seu melhor, no uso preciso da linguagem; preciso das metáforas, preciso como um relógio, e é tão difícil acertar uma metáfora; no uso preciso do ritmo; no uso preciso dos desequilíbrios narrativos, no uso preciso da lei universal do conto: o que é dado por certo ao leitor, no início, é directa e proporcionalmente retirado no fim. Por conseguinte, uma vez mais, ao terminarmos a leitura do texto, todo o conto é posto em causa. Lá vamos nós outra vez para trás à procura de onde nos enganámos, de onde nos deixámos enganar. “TALAGARÇA” Este é um conto dentro de um conto. Sem dúvida, uma técnica clássica de narrativa. Mas difícil é sustentar o clássico na contemporaneidade, como uma mulher que entra hoje num clube nocturno vestida como nos idos anos vinte do século passado e, ainda assim, ninguém consegue tirar os olhos dela; não por excentricidade, mas precisamente porque ela e o vestido fazem todo o sentido. Quem ainda não viu uma mulher assim, nunca viu uma mulher. Pois estou convicto de que somente nas revelações em contra-posição se chega realmente a ver alguma coisa. Depois, o conto, antes mesmo da sua formalidade clássica, começa com uma frase pré-clássica, isto é, uma frase antes do conto, antes do clássico, antes dos espartilhos de género literário. O conto começa assim: “Você pergunta se eu acredito em fantasma! Mas, se veio me procurar é porque já sabe a resposta.” Para as senhoras e os senhoras mais familiarizados com a obra de Platão, torna-se claro o ponto de vista da reminiscência. Reminiscência, porque já trazemos em nós uma resposta daquilo que perguntamos, isto é, já trazemos em nós um conhecimento prévio daquilo que desconhecemos. Imagine-se um homem que chega de Portugal a São Paulo e pergunta onde fica a Avenida Paulista. Ele pergunta por algo que não desconhece de todo, embora não saiba disso, claro. Ele não sabe onde fica, mas sabe que fica em São Paulo e que se trata de uma avenida, e que fica “não sei onde”. Ele pergunta, não por aquilo que desconhece de todo, mas por aquilo que vislumbra. Ora, e o que é um vislumbre senão um fantasma. É o próprio Platão que diz que há fantasmas, ao afirmar que se sabem coisas em forma de simulacro. Simulacro em Grego Antigo é precisamente phantom (fantasma). Assim, todo aquele que pergunta, pergunta por um fantasma, pergunta por aquilo que o assombra, isto é, pergunta pelo conhecimento que deseja. E só se deseja o que não se tem, mas que, de algum modo, lhe acedemos, que vemos, nem que em sonhos. Por conseguinte, DOV (David Oscar Vaz) começa o seu conto com um projecto iminentemente platónico. Correcto será dizer: com um projecto de filiação a Platão. De qualquer modo, e a apesar da profundidade do seu início, trata-se de um conto e não de um texto filosófico. Por isso mesmo, a terceira frase é: “O que você quer saber é da minha estória, não é?” DOV não pretende enganar o leitor, vendendo gato por lebre, dando conto por filosofia. O autor engana-nos apenas na justa medida do que nós merecemos; na justa medida de cada um como leitor. E quanto mais treinado, mais enganado. Todo o texto que vale a pena ser lido trai o seu autor, põe-lhe os cornos, é sabido, mas neste caso particular o texto também põe os cornos ao leitor. Pois durante toda a narrativa do conto o leitor fica preso aos acontecimentos relatados, à relação entre aquele que relata e a sua falecida mulher, embora na verdade, no final, leve com um grande par de cornos, isto é, no final explode todo o sentido formal deste conto: “Às vezes penso que o fantasma seja eu, preso a minha casa e ao labirinto das minhas lembranças. Já tem minha estória, moço. Agora, aperte minha mão.” Terá sido coincidência o autor terminar o livro precisamente com essas duas frases, não apenas o conto, mas o livro? Parece-me pouco provável. Em relação ao conto, a transladação do fantasma para o próprio, recupera o sentido original de Platão e das primeiras duas frases do conto, à revelia de toda a narrativa. O fantasma não é ninguém senão o próprio. O fantasma não é ninguém senão a reminiscência que nos habita, que nos enforma. Mais: é o fantasma que escreve contos. É o fantasma que escreve poemas. O filosofo é precisamente o caça-fantasmas, aquele que ambiciona e esforça-se por estar acima do seu próprio fantasma; ele luta contra o fantasma que é. O escritor, não. O escritor assume a sua condição de fantasma. O escritor diz: Platão você tem toda a razão, mas eu não consigo ser de outro modo, não consigo ir para além do meu fantasma. Mas, e isto parece-me evidente, quem escreve as frases que escreveu neste conto, tem consciência clara e aguda disto mesmo. Entre a verdade e a verdade há uma estória. A estória que é narrada no conto intromete-se entre a verdade das primeiras frases e a verdade das últimas. De qualquer modo, e isto parece exemplar neste conto, a estória é sempre uma reminiscência, uma imagem da verdade, um simulacro, embora não seja mentira, não seja um embuste. Assim, parece-me claro que fazer “Talagarça” ser o conto final deste livro não é por acaso. Pois que melhor conto nos faria andar para trás no livro todo, na reflexão acerca do livro e da própria escrita? “O OUTRO” Talvez este não seja o conto que eu prefiro, mas é seguramente o mais perfeito. A técnica narrativa, a beleza de expressão e a filiação a Platão atingem aqui o seu ponto máximo. O que importa, ou o que parece ser recorrente (obsessivo?) em DVO é precisamente o lugar da reminiscência: o lugar do que está em nós, não estando; do que se faz sentir, sem conhecer; do que nos aparece, sem aparecer. A reminiscência, em Platão, é precisamente esse lugar intermediário entre o que há e o que não há, entre o que se tem e o que não se tem, entre nós e nós mesmos. Usando as palavras de DOV “quando o outro é você mesmo.” O outro nós-mesmo é esse lugar intermédio, esse lugar a meio caminho entre saber e não saber, isto é, o lugar humano. O lugar que poderia ser descrito hoje como que o lugar da revelação fotográfica, como aparece escrito no conto: “qual solução de nitrato de prata a fazer surgir em papel lavado de branco a imagem que não havia, mas que ele, o papel possui sem saber”. E se essa imagem é escrita para mostrar o amor pelo outro a aparecer na poeira do dia, também podemos usá-la para mostrar tudo o que aparece em nós. Nós somos o que não sabemos que somos. E esta é a grande obsessão destes contos. Mas, se para Platão, há uma saída, não para a condição humana, mas para uma melhoria da sua condição, através do conhecimento, para DOV isso nem sequer é secretamente pensado. Viver não tem saída, isto é, não tem uma seta na direcção do melhor, pois nunca se sai da reminiscência. A reminiscência não é um modus operandi que através de uma tenaz perseguição do conhecimento nos põe num estádio diferente de consciência. Não. Reminiscência é o que somos sempre, o que não podemos deixar de ser. Viemos ao ser como reminiscência e vamo-nos de igual modo. Como se lê no conto: “Renato tentou se ver vendo, saber o que sentia ao vê-lo.” Tentar pode-se, mas não leva a lugar nenhum diferente daquele em que se está. Adiante, escreve: “Quando deu por si, se é que de fato deu por si”. Diria que toda a escrita de DOV é este movimento de nos fazer dar por nós, mas sem que de facto isso altere o nosso estádio de reminiscência. Dar por nós é compreender a prisão reminiscente em que nos encontramos. Por isso, o conto assume a certa medida desta verdade. O conto é, em si mesmo, uma contínua e perpétua reminiscência, pelo menos neste autor. O ser humano está claramente, nesta escrita, entre sucinto e explicativo, entre o poema e o romance, entre o fragmento e o ensaio. Concordemos ou não, o humano tem na escrita de Vaz a dimensão do conto. Humano e conto são uma e a mesma coisa. Não há uma seta na direcção do melhor; há uma recorrência do que há. E nesta recorrência se faz a vida e a pomos a pensar e a escrever, que é pensar pra fora.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasVirgens e meninos rabinos 05/05/2017 Max Ernst – “Virgem que espanca o Menino Jesus observada por três testemunhas” (1926) [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma vez, pensava na vida olhando a minha filha mais pequena que brincava com um pato amarelo, de plástico, e perguntei-lhe de chofre: Filha, o que é a mentira? Ela, entretida com o pato, atirou: Uma tartaruga. Não me desmanchei: E quantas patas tem? Respondeu firme: Duas. Depois, sob pretexto de lhe ler uma história, mostrei-lhe uma gravura com uma tartaruga. Ela concluiu o resto, não precisei de lhe dizer uma palavra. Chama-se a isto a racionalidade: a capacidade de mudarmos as nossas concepções quando confrontamos aquilo em que acreditávamos com a experiência da realidade. O que se denota pelo comportamento de Trump é que para ele as tartarugas ainda têm duas patas e continuarão a ter. Dizia o presidente americano que os EUA abandonam o acordo por ser mau para o emprego nos Estados Unidos, pois afecta a indústria do carvão e de outros combustíveis fósseis. O que ele não diz – eis uma personagem em quem até as omissões mentem – é que o acordo, simultaneamente, estimula outras indústrias bem mais florescentes na economia dos EUA. Elucidam os jornais: «Segundo números do Departamento da Energia, citados pela CNN, a indústria do gás natural emprega 362 mil pessoas, a solar 374 mil e a eólica 102 mil. Já a indústria do carvão dá emprego a 164 mil funcionários, um número que tem vindo a descer há décadas. Os dados mostram ainda que a empregabilidade na indústria solar cresceu, em 2016, 17 vezes mais que o crescimento total do emprego.» Não são recicláveis os operários americanos? A tal da perna curta, etc. Na verdade, a única coisa que lhe interessa são duas. A primeira é exibir músculo para ver se ganha ao resto do mundo a discussão sobre quem estabelece as regras da relação, o vulgo “quem manda em casa!”. E as coisas não estão a sair-lhe bem. A segunda é a que resulta disto: em Trump, neste momento, por detrás da máscara da arrogância, existe uma criança tremendamente assustada. Alguém que deu conta de que pode haver despistes mortais num triciclo. Em estudando-lhe as expressões faciais, nos momentos chaves da sua exposição mediática, nota-se alguém tremendamente dividido entre o papel de que ele se acha investido e a mortificação de já não saber que máscara adoptar com precisão em cada ocasião. A urgência pomposamente solene com que empurrou Montenegro (a macia matéria do mundo) para depois apertar um botão do casaco em Grande-Plano não é congruente com o ar de pilhéria com que anuncia que se está nas tintas para que o planeta fique estufado – um ar de puto radiante por contrariar os outros. A lição dura que Trump está a ter através de humilhações sucessivas, dentro e fora – e proporcionais à irrealidade com que as nega no twitter – é a derrota do homem comum americano: a sua impropriedade para enfrentar a complexidade do mundo actual, dado padecer da inércia de nunca se interrogar se a tartaruga terá mesmo duas patas. Por isso jamais poderá agir Trump como diplomata e nunca almejará ser mais do que o ladino intermediário de alguns negócios, não coincidindo exactamente o seu primeiro interesse com os interesses da América, antes fixando-os na manutenção do rating da sua imagem. Será que o triciclo se aguenta na curva? Só este pânico explica a inadequação dos tuites em que desqualifica o mayor londrino. Não é a pertinência, a justeza da palavra que ele visa, isso é irrelevante, ele apenas roga, desesperadamente, por atenção e, quiçá, ternura. Apetecia convocar aqui a “Virgem que espanca o Menino Jesus observada por três testemunhas”, de Max Ernst (o quadro que ilustra a crónica)” – são imensamente friáveis as nádegas do Menino, seu filho. E, para já, tirar o triciclo a Trump. Quanto a mim prometo não voltar ao tema dos meninos rabinos. 06/05/2017 Esta Virgem e a crónica de há duas semanas do Valério sobre as 72 Virgens que aguardam por mártir de um Islão no Paraíso, fez-me pensar no tipo de virgens que quereria para mim, depois duma minha virtual conversão. Eis algumas que já me ocorreram: a) Têm todas de ter um certificado de garantia de que nunca estiverem em hotel russo ao mesmo tempo que um milionário americano, não quero hímenes restaurados; b) quero uma virgem com uma genitália que seja uma espiral de quatrocentos e cinquenta metros de diâmetro, com rochas negras de basalto, para que eu exercite os meus dotes de montanhista; c) outra com uma (sic) como a que descrevi exaustivamente num conto: com quatro cantões como a Suiça. Já que a nomeei mereço frequentá-la; d) uma virgem, como pediria o filósofo Agamben, de “uma beleza-por-vir” mas que não seja demasiado linguaruda como a Xerazade, podendo no entanto herdar-lhe as axilas, que diziam aromatizadas em jasmim. Melhor, que seja só axilas… e) uma virgem que, como queria o gnóstico Valentim, não obre e não urine e saia ilesa de todas as minhas fantasias; f) uma virgem cuja palavra menstrue, para que me lembre. Outra g) tão inteligente que, de cada vez que me veja nu, não sinta logo necessidade de chamar os bombeiros; h) uma virgem que tenha pomares nas virilhas e exsude em aparos moles; i) uma virgem tão feliz em sê-lo que a cole num postal para o Papa Francisco; j) uma virgem especialista sobre o vasto mundo do paguro; k) uma virgem inautêntica, até sincera nisso, e duma fantasmagórica vacuidade para que eu possa dormir lá dentro; l) uma especialista em sânscrito que me possa ler o Kama Sutra, na língua que o incarna, sem precisarmos de nos cansarmos no espaldar; m) uma não-virgem, que pode ser a minha mulher (troco-a por vinte e cinco virgens), pra que naquela imensa eternidade tenha alguém que me diga que não; n) uma virgem que respeite a minha decisão de não querer ser informado sobre os pormenores da incandescente cópula do gafanhoto (16 horas de labor operático). Por favor, recrutadores, passem a palavra.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasPerplexidades e equilíbrios 28/05/2017 [dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]eio no DN, com perplexidade: «Nesta semana, o candidato derrotado nas primárias republicanas, o neurocirurgião Ben Carson, atual secretário da Habitação e do Desenvolvimento Urbano, responsável pelos programas de habitação social, afirmou que “a pobreza é um estado de espírito”. Ontem, um congressista republicano, questionado numa entrevista radiofónica sobre se considerava a alimentação como um direito de cada americano, hesitou, demorou e acabou por recusar subscrever essa afirmação. Trump é apenas a face mais visível de uma América que sempre existiu, mas que com o novo presidente parece ter perdido a vergonha.» Leio e cogito: é difícil imaginar pior e um cenário mais tenebroso. Porque nos começamos a situar numa orbe perigosamente próximos desta descrição: «Não se dá os mortos à sua mãe, aqui, mata-se a mãe conjuntamente, e come-se o seu pão, e arranca-se o ouro da sua boca para se poder comer mais pão, e faz-se sabão com os seus corpos. Ou então enfeita-se com as suas peles os abat-jours das fêmeas SS». Quem o conta é Roberto Antelme, no seu livro A Espécie Humana, onde testemunha a monstruosa desumanização do universo concentracionário. Políticos para quem a pobreza não passa de um estado de espírito e que não consideram a alimentação como um direito, já podiam ser carcereiros de um campo de extermínio. Já estamos a lidar com diferenças de grau mas não de natureza – isso é que se me afigura assustador. Falta pouco para começarem a falar de castas. E quando se pensa assim, igualmente o consentimento para se obter de uma mulher o que se pretende é um percalço menor, que se ultrapassa com a violência. Ē desta massa que se forma a personalidade dos novos líderes da direita. Se se associar a esta mentalidade a abstracção algorítmica, fica o futuro duro de roer. Isto pedia aqui uma tirada de génio de Groucho Marx, mas (não digam a ninguém) o comediante perdeu a dentadura e nenhum osso se rói por delegação. 30/05/2017 A Maria João Cantinho ganhou o Prémio Glória de Sant’Anna com o seu excelente livro de poesia Do Ínfimo. Para se entender o que isso significa teria de se começar por saber quem foi a Glória de Sant’Anna, uma estupenda poeta portuguesa que teve “o azar” de ter feito toda a sua carreira poética em Moçambique. Ē uma poeta da geração da Sophia de Mello Breyner e não lhe deve em rigor e talhe poético. Terá menos volume de trabalho (a sua obra completa não ultrapassará as duzentas páginas), mas a qualidade pede-lhe meças. O problema é que poucos sabem e quando regressou a Portugal o seu caminho estava condenado a ser discreto. Do Ínfimo é um livro à altura da sua patrocinadora. A Maria João Cantinho é muito mais conhecida como ensaísta e crítica, e agora como directora de revistas literárias (cf. revistacaliban.net), mas este é o seu quarto livro de poesia. Como poeta, apareceu numa altura que lhe era adversa, nos anos noventa, um período em que tudo o que não fosse “poesia do quotidiano” era claramente descriminado. Houve uma ditadura do quotidiano e a sua poesia mais metafórica e de laivos existenciais e mesmo metafísicos foi silenciada. Até por causa das suas influências, mais alemães e francesas, contra a vaga anglo-saxónica que sobraçou o país. Do Ínfimo é uma magnífica oportunidade para a conhecer. É um livro de grande equilíbrio, que tem arquitectura e é meditado, denotando ampla consciência do seu ofício. Sendo discursivo não cai no vício da retórica; o seu léxico medido e uma expressividade controlada não perdem de vista os seus efeitos emocionais embora prescinda de se meter em ponta dos pés, no afã de cativar o leitor por um “sensacionalismo das imagens”. Para além do conjunto, coeso, Do Ínfimo alia duas coisas que raramente casam com esta eficácia: a sobriedade não neutraliza a capacidade digressiva de quem reflecte e faz o poema reflectir-se. Como disse atrás, nestes poemas a ênfase não está no brilho (as imagens fulgurantes) mas antes na justeza das palavras. São versos que testemunham um desencontro com as idealidades, disfóricos, versos de onde se parte ou nos quais se vinca que algo se perdeu e que quando encenam um retorno recortam um céu plúmbeo em fundo. Contudo, a tristeza que neles se plasma foge de consolidar-se como a abstracção de um saber, ou da congelação melancólica. Daí que surdam laivos de revolta e vários poemas reclamem um certo cariz social. E, característica tanto mais curiosa quanto o poeta alemão tem sido um dos objectos de estudo dos seus ensaios, dir-se-ia que contra o Paul Celan, estes poemas desencadeiam-se discursivamente, de forma articulada, por vezes apoiados em refrões que lhes marcam o ritmo, com Cantinho a procurar ainda balbuciar uma unidade (na sua leitura do mundo), um rosto, mesmo que amarrotado, como é o que se alude no primeiro poema do livro. Se este é um livro que coou de alguma tristeza (o mundo não está bonito) a autora não se lhe entrega num trânsito irreversível e final, da mesma forma que a clausura do círculo se liberta pela espiral, impondo a sua dignitas, uma ética. E aqui deixo um dos seus poemas, DA VISÃO EM FILIGRANA: Desdobra-se o nojo, o sangue, a vida/ que se celebra no avesso da noite,/ o olhar acossado no nada, esta raiva/ uma bomba prestes a detonar/ na flor amaldiçoada/ de um silêncio esventrado.// Porque passas tu sem ver/ as sombras e o escuro incêndio da folhagem/ o cheiro e o dia, onde tudo se entorpece/ as ruas antigas de um muro/ onde sentiste que as palavras/ te tinham abandonado em definitivo.// Para que nos serve a língua, o coração/ em salmo adiado, se a linguagem nos abandonou/ e nos sentámos na grande pedra/ a olhar o vazio/ a decifrar modos de sentido/ que nos traem, sempre/ fugindo na sombra dos dias.// Ē esta a pobreza/ que nos faz voar/ ao encontro das árvores/ e do céu.”
Isabel Castro EventosLivro “Olhares Amendoados”, de Óscar Gomes da Silva: Da memória que não foge Encontrou na escrita a forma de dar a volta ao texto dos anos. Para não esquecer, para que outros também não esqueçam, Óscar Gomes da Silva, antigo residente de Macau, escreveu um livro que transporta o leitor para outros dias do território [dropcap style≠’circle’]“U[/dropcap]m mar de juncos oprime as águas do rio, que sofre com a sua pequenez. De vários feitios e tamanhos, as embarcações amarram-se umas às outras. Mulheres cozinham arroz ou lavam roupa. Homens arrumam o convés, secam peixe e armazenam mercadorias. Crianças choram e brincam.” Quando Óscar Gomes da Silva chegou a Macau, em 1978, o território ainda era um sítio de barcos, pescadores, mulheres e crianças no rio. Da sua segunda vida na cidade, as recordações são outras, mais próximas do “império que chegou ao fim”. As memórias das passagens por esta Ásia estão agora reunidas em livro, um conjunto de apontamentos a que deu o nome “Olhares Amendoados – Reminiscências do Extremo Oriente”. “Não me considero escritor, mas gosto de escrever”, conta Óscar Gomes da Silva. “É uma forma de ocupar o tempo e de exercitar a mente. Depois de ter publicado em 1993 ‘Civilizações e Especiarias’, um trabalho sobre o antigo Estado Português da Índia, iniciei um conjunto de crónicas sobre Macau e o Extremo Oriente com base nas minhas observações e vivências.” O autor diz que hesitou em avançar para a publicação, mas acabou por considerar que “deveria dá-las a conhecer aos eventuais leitores”. Os anos da diferença Gomes da Silva nasceu em Goa, onde viveu até ir para Portugal estudar na então Escola do Exército. Licenciado em Ciências Militares, esteve na Índia, em Moçambique, Angola e em Macau. Aqui viveu, pela primeira vez, de Janeiro de 1978 a Setembro de 1980. Com o posto de Major, tinha o cargo de Chefe do Estado-Maior das Forças de Segurança de Macau. Voltou em 1993, já coronel na Reserva. Foi director executivo de uma empresa de segurança durante um ano. Entre 1994 e 1997, foi secretário-geral do Gabinete Coordenador de Segurança. Poucos anos depois do regresso a Portugal, foi viver para o Brasil. “Conheci diversos países ao longo da minha vida. Mas os anos que vivi em Macau foram de um enorme enriquecimento cultural, de uma experiência notável e aprendizagem singular, quer em termos profissionais, quer do ponto de vista sociológico, bem como de relações com as comunidades macaense e chinesa”, afirma. Depois de 1997, Óscar Gomes da Silva não voltou a Macau, por questões de saúde que o têm impedido de fazer viagens longas. “Olhares Amendoados” é, também por isso, um livro que parte de recordações. “É como um álbum de memórias, reflexões e ensinamentos, onde a ficção se funde com a realidade e a história”, resume. “Olhares Amendoados – Reminiscências do Extremo Oriente” é uma publicação da Chiado Editora.