Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasJames Joyce | Metalinguagem, autobiografia e romance de iniciação Joyce, James, Retrato do Artista Quando Jovem, Difel, Lisboa, 1989 Descritores: Romance, Literatura Irlandesa, Autobiografia, Tradução e Prefácio de Alfredo Margarido, 269 p.:23 cm, ISBN: 972-29-0031-5 Cota: C-10-7-36 [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]enso que modestamente fiz a descoberta que se impunha para tratar este tema, ao inclinar a minha propensão para a obra de James Joyce, O Retrato do Artista Quando Jovem. Até porque por via de um pequeno pormenor que é contudo de uma relevância substantiva. É que o texto converteu-se imediatamente na abertura para uma dupla exposição, por que a personagem central do Retrato vem a ser também uma das personagens centrais da obra maior de Joyce, o Ulisses, ou seja nem mais nem menos que o alter ego do escritor, o incontornável Stephen Dedalus. Harold Bloom chega mesmo a considerar que é ainda Stephen Dedalus o narrador de alguns contos da colectânea, The Dubliners (em português, Gente de Dublin). Eu estava em Aix-en-Provence em 1989 e inscrevi-me numa cooperativa de cinema de arte e ensaio, das poucas ainda remanescentes em França depois do grande surto dos anos sessenta e setenta e um dia vi anunciado o filme de John Huston, The Dead, em português, Os Vivos e os Mortos. O filme baseava-se no último conto e seguramente o mais famoso de Dubliners (Gente de Dublin). James Joyce tinha 25 ou 26 anos quando o escreveu, na mesma época em que se dedicava à criação da versão inicial do seu romance de formação, que só seria publicado, depuradíssimo em 1916, com o título Um Retrato do Artista Quando Jovem. Os quinze contos de Gente de Dublin foram publicados dois anos antes. Se Stephen Dedalus, o herói, ainda resultava informe, e o texto ainda frouxo enquanto narrativa, os contos daquela época mostravam um Joyce que poderia ficar na história como um dos grandes do género, independentemente da sua reputação futura, Esta reputação e já o disse algures tem sido sobretudo calculada com base na capacidade de ruptura e na ousadia formal. São muitos os grandes escritores que nunca se renderam ao génio narrativo de James Joyce a começar pela sua conterrânea e contemporânea, Virgínia Woolf. Eu, com toda a modéstia também não. Entretanto ainda em França, segui pela televisão uma entrevista a Margarite Duras numa época em que a sua doença fatal estava já adiantada. Foi provavelmente a sua última aparição em público. Lembro-me bem do sentido global da entrevista que glosava uma das suas obras mais emblemáticas, L’Écriture (Escrever), mas lembro-me sobretudo que a dada altura e a propósito de cinema ela ter confessado no seu estilo radical e truculento que não conseguia ver um filme até ao fim, tal a decrepitude e indigência da Sétima Arte, à qual ela esteve sempre ligada, não o esqueçamos, quer como guionista, quer mesmo como realizadora. Como guionista não posso deixar de referir o Hiroshima meu Amor, realizado por Alain Resnais e o incontornável Moderato Cantabile, com Jean Paul Belmondo e Jeanne Moreau, realizado por Peter Brook. A par disso foram muitas as novelas que escreveu que passaram ao cinema, a mais conhecida terá sido O Amante, realizado por Jean-Jacques Annaud. Enquanto realizadora contam-se 19 obras entre curtas e longas metragens. Seria também uma injustiça não referir L’Homme Atlantique. Mas o que me trouxe a Marguerite Duras foi o facto de nessa entrevista ela ter referido que tinha aberto uma excepção, tinha ido ao cinema e tinha visto um filme até ao fim, e esse filme tinha sido justamente The Dead de John Huston baseado no conto homónimo de James Joyce da colectânea Dubliners, como já acentuei. Gostei tanto do filme que já o vi inúmeras vezes, que depois deste facto enchi-me de coragem pela segunda ou terceira vez e ataquei primeiro o Retrato do Artista Quando Jovem e mais tarde o Ulisses mas nunca o Finnegans Wake, que é ao que parece simplesmente ilegível. Voltemos agora ao Retrato e a Stephen Dedalus. Stephen Dedalus apresenta uma importância múltipla como chave de acesso à biografia de James Joyce, o facto de ser, como já disse, o alter ego de Joyce, o facto de ser uma das metamorfoses narrativas ou mesmo da narratividade literária do autor, o facto de ser também uma personagem, neste caso, com a responsabilidade de ser o protagonista e finalmente o facto ainda de se assumir muitas vezes como uma espécie de anti-herói mostrando o lado obscuro e quem sabe recalcado do artista. É em qualquer dos casos uma personagem complexíssima e rica, homóloga, no mínimo, do universo complexo e perturbado do próprio James Joyce em todo o seu processo formativo. E por falar em formativo, é o momento de não esconder e muito menos negar que o carácter de bildungsroman de O Retrato do Artista Quando Jovem também me apareceu muito atraente e sugestivo, pois as biografias devem começar pelos balbucios informes e quiçá ainda inconscientes do artista, justamente naquela fase da vida em que o ser estrebucha por se descobrir, por se encontrar com o seu genius ou se preferirmos por achar a sua subjectividade, encontro esse que é muitas vezes fatal e decisivo. É que, deixem-me dizê-lo já com clareza, num romance de iniciação, e este não foge à regra, pode aparecer com toda a nudez não apenas o processo de descoberta existencial mas ainda toda a panóplia de questões que há-de perseguir o artista ao longo da vida: temas, possibilidades retóricas, modulações narrativas, idiossincrasias estilísticas, modos e modelos expressivos, preocupações metafísicas e ideológicas, etc. Ora, é justamente isso que ocorre em O Retrato do Artista Quando Jovem do então jovem James Joyce. Muitos dos caminhos da sua obra e concomitantemente os caminhos de muitas das correntes do modernismo, ao longo do século XX, possuem aqui o seu momento inaugural. E para nosso gáudio, mas também para nosso desespero, encontram-se aqui em dédalo, isto é embrionários, no seio de um verdadeiro labirinto. Ou pensavam que o erudito e classicista James Joyce teria escolhido para personagem principal do seu primeiro romance a figura de Stephen Dedalus de modo acidental. Dedalus, ou Dédalo, possui uma riqueza multissémica que não foi alheia à escolha e onde eu ainda assim evidencio para além da ideia de labirinto, as ideias de enredo e de complexidade, sendo que ao mesmo tempo Dédalo pode ser capaz de sair das complicações em que se mete pois é também rico em artifícios e capacidades construtivas. Dédalo é um ser complexo e ambivalente como é toda a obra de Joyce. Segundo Bakhtin (Julian Nazario) o Retrato do Artista Quando Jovem parece consistir, no plano da sua arquitectura estrutural, numa longa citação, embora apenas implícita, de A Divina Comédia, de Dante, quando narra os três momentos da vida do protagonista central, Stephen Dedalus: a sua infância, a sua adolescência e finalmente a sua maturidade, que corresponderiam respectivamente ao Inferno, Purgatório e Paraíso da genial obra de Dante. Esta, por sua vez glosa o cânone clássico da morte, descida ao inferno e ressurreição. Seja ou não assim, a verdade é que a alegoria é possível e é apenas enquanto alegoria que nos interessa. O texto, por essa via, assume a valência de possuir a dimensão de uma metalinguagem, que ao proceder à narrativa de uma história e ao proceder à narrativa de uma autobiografia, pelo facto de que o autobiografado é um artista e um artista experimental inovador e revolucionário, acabar por nos dar o laboratório alquímico da sua prometeica experiência. O próprio Joyce se referiu a isso quando ao referir-se à arte e ao artista colocou na boca de Stephen Dedalus o seguinte: “A personalidade do artista, no início um pranto, uma cadência, um estado de espírito, e depois uma narrativa fluida e ligeira, refina-se no fim ao ponto de não existir mais, torna-se impessoal, por assim dizer. A imagem estética na forma dramática é a vida purificada através da imaginação humana e, por força desta, re-projectada. O mistério da estética como o da criação material, está consumado. O artista, como o Deus da criação, fica dentro ou detrás, além, ou acima de sua obra, invisível, aperfeiçoado e alheio à existência, indiferente, aparando as unhas” (James Joyce versus Julian Nazario) Neste sentido o artista, verdadeiro rival dos deuses, demiurgo e criador de um mundo absolutamente novo, criado tal como na criação divina ex-nihilo, daria razão a Bakhtin, no sentido em que na fase final da sua obra teria superado todas as vicissitudes terrenas e infernais para, por pura purga ascendente, se alcandorar finalmente à dimensão do Olimpo, ou seja do paraíso dantesco. A ressurreição e a ascensão ao Olimpo é aquilo que o artista persegue através do sofrimento existencial mas também através do trabalho laborioso do alquimista que no seu laboratório põe em perigo a própria vida para um dia poder lograr o flogisto salvador do génio, avatar glorioso do divino. Há um texto de Alfredo Margarido, que não cabe citar aqui, mas que, numa brilhante síntese, resume a dimensão experimental e portanto metalinguística da obra de James Joyce no seu todo e onde ele designa por exílio o que eu designo por reino e Bakhtin por paraíso. Mas, em boa verdade todas estas palavras, no âmbito da criação artística possuem o mesmo significado enquanto arquétipos da busca solitária do caminho que conduz o artista à descoberta e à afirmação da sua voz. Porém, o reino dos artistas possui uma limitação, que é também a sua grandeza humanista, digamos assim, uma vez que o que se visa através da arte é um mundo que só se torna possível a partir da viagem iniciática da formação do artista. Mas essa viagem e esse caminho começam por ser a demanda de Si, a descoberta do Eu, e do Genius que o Eu alberga e só essa descoberta pode abrir as portas para a ‘transcendência’ e é por isso que o Retrato do Artista Quando Jovem “é mais do que uma obra autobiográfica. Ela é o relato da trajectória de um homem em busca do pleno conhecimento de si mesmo”, ou seja, da transcendência que o habita.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasApresentação de Autismo (2ª Edição) [dropcap style=’circle’]V[/dropcap]ou começar a apresentação deste livro por um filme recente, de Tom Ford, Animais Nocturnos. Numa cena do filme, em que o casal ainda está junto, a mulher diz ao homem, acerca da sua escrita: “tu estás sempre a escrever sobre ti” e di-lo de modo depreciativo, mostrando-lhe que isso é entediante, com pouco interesse. Ao que ele contrapõe, deste modo: “todos os escritores só escrevem sobre si mesmos.” Anos mais tarde, muito depois dela ter terminado a relação com ele, o homem faz-lhe chegar um livro onde descreve o modo como ele viu a separação deles, mas pondo a cena num lugar e numa circunstância completamente distinta. Aquilo que o homem finalmente entendeu, e por isso escreveu aquele livro que agora tocou tanto a sua ex-mulher, é que um escritor não escreve o que lhe acontece; um escritor escreve com o que lhe acontece, o que faz toda a diferença. Esta introdução para dizer que Autismo de Valério Romão é as duas coisas. Ele escreve com o que lhe aconteceu, sem dúvida, mas também escreve o que lhe aconteceu. E é nesta dobra que o incómodo da leitura se instala. Ele é o livro que não é. Dito de outro modo: o livro é ele amplificado. Antes de mais, amplificado pela arte – e toda a arte é mais do que o indivíduo, é uma amplificação deste –, e também amplificado pelo que não aconteceu fora dele, mas dentro dele. Amplificado, não pelos factos, mas pela vida, isto é, amplificado pelo que sentiu e ninguém viu, pelo que pensou e não disse, pelo que imaginou e nunca manchou a realidade e ainda pelo que apareceu no mundo apenas literariamente. Por isso, podemos dizer que ele é o livro que não é. A pergunta acerca da veracidade da narrativa é secundária. O que é que é verdade e o que é que é mentira, não tem qualquer importância para apreciação de uma obra literária ou para a fruição de um romance. Pois, onde há verdade, os factos recolhem-se com vergonha. Entenda-se verdade, aqui, não como qualquer ultimato religioso ou científico, mas como profundo, humano, entenda-se verdade como aquilo que é património de todos aqueles que carregam as suas próprias vidas ao longo dos dias. Por isso, neste livro, Autismo, o narrador sou eu. O narrador é cada um dos seus leitores. Evidentemente, isto acontece com quase todos os livros em que as narrativas são na primeira pessoa, como é o caso, mas principalmente acontece porque o tom do livro é trágico. E a tragédia, sabemo-lo bem, é a verdade, isto é, é o que é de todos. No fim do dia podemos não ter uma cama onde nos deitar, mas temos tragédia. Podemos não ter o que comer, mas temos tragédia. Podemos até ter tudo, pois a tragédia arranja sempre modo de aparecer: ou por um filho que se mata, ou que morre precisamente ao volante do bólide que lhe oferecemos, ou o próprio escuta a notícia de que tem uma doença incurável, e não consegue trocar o tudo que tem por dias de vida. Isto é a tragédia. Os negros do Mississípi do século passado diziam: this is the blues. Voltando ao livro que aqui nos reúne, acompanhamos as desventuras do narrador, através da descoberta do autismo do filho, do fim do casamento e da ruptura com o pai. Caímos do narrador abaixo até ao medo de aquilo sermos nós ou de ser algo que nos possa acontecer, ou eventualmente que já nos aconteceu e só agora nos damos conta, que é o modo de ficar a saber mais traiçoeiro que existe. E isto, que acontece ao longo das páginas de Autismo, é a passada larga da tragédia grega. Não é uma tragédia, porque não há herói, mas o tema é sem dúvida o da queda. O tema é sem dúvida este: estamos vivos, logo isto vai correr mal. Pois se não fosse para correr mal não se escrevia, como os gregos antes de nós também já sabiam. Há escritores que têm a capacidade de nos mostrar exteriores de um modo interior. Quando Valério Romão descreve a sala de espera num hospital ou um consultório médico, estes não ficam apenas palpáveis, concretos diante de nós, eles passam a ser partes de nós, recordações nossas. Hoje, posso dizê-lo já com dias de prova, quando recordo o meu tempo de espera nesses espaços, recordo-me das descrições do Valério no Autismo. Um grande escritor diz-se de muitas maneiras, mas a mais cruel de todas é esta: fazer das suas memórias trágicas as de todos nós. Nesses espaços, consultórios, salas de espera nos hospitais, a angústia, o sem sentido da vida, a miséria de estar ali cresce como os embondeiros nas florestas tropicais, rasgando o céu. A nossa vida, de algum modo, pelo menos a partir dos trinta anos, é uma espécie de sala de espera de um hospital. E o Valério Romão não só viu isso muito bem, como no-lo disse exemplarmente. Leia-se um excerto do capítulo “Urgências”: “Rogério aproveitava para perguntar se era possível obter mais elementos, porque aquilo das urgências era um bocado vago, mas a rapariga dizia que dali lhe era impossível, tinha de lá ir ao local, perguntar, em suma, fazer pela vida, e Rogério saiu, despedindo-se com pressa, virando–se apenas para apontar para uma direcção e perguntar se era por ali o caminho, se ia bem, porque a direita variava consoante se estava de costas ou de frente e ele não queria ir parar à radiologia, do lado oposto do complexo de edifícios, só por ter desprezado perguntar pelo norte a quem soubesse dele. Rogério entrava por um complexo de veredas onde floresciam ocasionalmente umas placas com direcções e encaminhava–se para as urgências. Passados alguns carreiros quase a correr, Rogério deu com um edifício cor–de–rosa, a modos que pequeno, e à entrada do edifício estava um segurança, fardado, a ocupar–se, pelos vistos, da regulação do rádio. Rogério dirigiu–se–lhe, Olhe, desculpe, estou à procura das urgências, disseram–me que era um edifí́cio assim como este, para não confundir com as urgências gerais, pode dizer–me se é aqui, e onde posso conseguir informações, é que tenho o meu filho nas urgências, internado, sabe, um acidente. O segurança, a manusear o rádio para vazar o vagar das mãos, Sim, de facto é aqui as urgências, mas não lhe sei dizer se o seu filho está aqui, mas se conseguiu essa informação no balcão geral é porque deve estar. O melhor é esperar que entre ou saia alguém; aqui não há recepção, há uma campainha ali dentro, e apontava para o interior do hall de entrada das urgências, uma espécie de corredor largo ladeado por cadeiras e horas de espera, onde as pessoas se deixavam afundar sob o peso da preocupação. Pode experimentar tocar e talvez venha alguém abrir a porta e falar consigo, nem sempre acontece, eles são muito ocupados, sabe, estão sempre a entrar pessoas em situações muito urgentes, pelo que é preciso ter paciência aqui, porque aquela campainha nem sempre dá resposta.” Toda esta longa passagem é memorável, mas acho esta pequena parte muito querida: “Rogério aproveitava para perguntar se era possível obter mais elementos, porque aquilo das urgências era um bocado vago (…)”. Como se na vida pudéssemos pedir mais elementos e como se ela não fosse vaga (um bocado é o lado humorístico do autor). E esta é a nossa tragédia, a de estarmos à espera. Estamos à espera de nós, e nós nunca chegamos. Estamos à espera dos que amamos e eles escapam-nos por entre a vida. Estamos à espera de notícias e elas são vagas. Estamos à espera. E, como se sabe, isto só pode dar merda. Pois sabemos bem que não se faz nada de bom quando somos obrigados a ficar à espera. Escreve Valério Romão: “É preciso ter paciência aqui, porque aquela campainha nem sempre dá resposta.” E eu digo-vos: é isto é a vida, quero dizer, o Autismo.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasOs olhos e a carne Álvares Cabral, Lisboa, 31 Março [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a dedicatória ao seu saborosíssimo «Como Fernando Pessoa Pode Mudar a Sua Vida» (com Carlos Pitella, ed. Tinta da China), diz o Jerónimo Pizarro que foi «uma noite de grandes palavras do caraças». Dou-lhe razão, que o debate regado fechou de boa maneira este mês desatinado. O Jerónimo abriu na fossa abissal dos estudos pessoanos uma lufada de ar fresco, com as ideias que trouxe, pela quantidade de trabalho e energia, além da generosidade, convém sempre sublinhar, de tão rara. Faça-se deste volume, aqui à mão, exemplo. Piscando irónico olho aos livros de auto-ajuda, oferece com grande rigor uma colecção de pinceladas, maiores e menores, que ajudam ao retrato sempre movediço do poeta da desdobra. Não deixa de me surpreender a quantidade de inéditos, de degraus que podem ser mundos, de minudências capazes de mudar a vida. A lista do inclassificável detalha, com bom gosto e humor, listas, muitas listas, claro, de projectos e livros e antologias, esquemas de passar tempo em namoro, as inevitáveis cartas astrológicas, mas também desenhos e ideias, traduções e episódios, correspondências que se cruzam e descruzam ora para divertimento ora para interpelação. Pessoa arde ainda em efervescências. Nada do humano lhe foi estranho. Nem o insulto, que jeito dá, por alturas em que as redes sociais se fazem cloacas: «De ti se suja a imaginação/Ao querer descrever-te em verso. Tu/Fazes dôr de barriga á inspiração.//Quér faças bem ou mal, hyper-sabujo,/Tu fazes sempre mal. É como um cú,/Que ainda que esteja limpo é sempre sujo!» CCB, Lisboa, 6 Abril Mais uma conversa de estalo, a desta quinta, entre Mário de Carvalho e Valério Romão, gerida com a discrição habitual pela Maria João Costa, no ciclo Obra Aberta. Sobre livros, que outro assunto haverá? O Mário, invocando o esquecido Aquilino Ribeiro, defendeu o contacto com o difícil, seja texto ou autor, nos bancos da escola. Mas haverá, em período de mastigado didactismo, capacidade de atirar à cara dos educandos o enigma explosivo dos textos que nos resistem, que se impõem, que exigem regressos, que nos acompanharão pela vida fora? Mergulhei em apneia nas memórias que vou perdendo à procura do exacto volume que me abanou, irritou, encantou. Raul Brandão, talvez, o de Humus, em vetusta edição. O Fialho ou o Gomes Leal? Álvaro de Campos, com certeza, ilha no oceano Pessoa, que me foi apresentado nas aulas do liceu, sim, nas aulas do João Nogueira Costa, na Luísa de Gusmão. Aulas? Não sei se se deviam chamar assim, que aquelas sessões continham o espírito e a oficina do teatro, com cenários e figurinos, leituras em voz alta e pesquisas em voz baixa. Prolongaram-se de imediato para os intervalos e depois por longuíssimas horas e centenas de livros e cartas. Dá jeito que seja o Pessoa, mas de par veio o Sá-Carneiro e depois os surrealistas e o Herberto e. A vida mudou-se-me por ali, mas só o saberia décadas e milhares de páginas depois. Dito isto, se tivesse que escolher, punha nesta estante outro continente que o João me fez descobrir, essa deslumbrante continuação dos Lusíadas: as Quybyrycas – poema étbyco em oitavas, que corre como sendo de Luis Vaaz de Camões em suspeitíssima atribuiçon de Frey Ioannes Garabatus. Não, Mário, mais importante que os clássicos era termos professores na escola. Monumental, Lisboa, 7 Abril Discutíamos ideias, desdobrávamos projectos, comentávamos os cactos, os vivos e os mais vivos pelo desenho do Manuel San Payo, ali sob o limoeiro, na primeira das grandes noites de Primavera. O olhar-câmara do mano Luís Gouveia Monteiro gravou-nos a ser percorridos pelas sombras. E derepentemente apanha-se um sentido, tal o perfume do limão, que abafa a dureza de não saber que responder a tantos, como pagar tanto ou o que resolver entretanto. Valha-me Pessoa: «O rio corre bem ou mal/Sem edição original./E a brisa, essa,/De tam naturalmente matinal/Como tem tempo não tem pressa.» (Como ser Livre, pág. 212) CCB, Lisboa, 8 Abril Tive o privilégio de entrever este impressionante projecto do António Gonçalves (detalhe na ilustração) em vários momentos da sua incarnação e subida ao altar. O esplendor da obra vista quase apaga a carpintaria do esqueleto onde as carnes se ergueram: os esboços e das maquetas, o cheiro das tintas e os cadernos, as madeiras e as dobradiças e o peso das folhas, a disciplina de trabalho, as hesitações e a indispensável dança em busca dos apoios. Fui contemplando particularmente, portanto, mas só agora vivi a experiência. Sendo pintura, ao relacionar-se com a escala e a tradição do sagrado, torna-se paisagem teatral. Uma sala, construída com este propósito a partir do desenho de Maria Eduarda Souto de Moura, para que fosse despida e neutra, nem igreja nem museu. No miolo, o vazio e a escuridão interrompe-se com o políptico, que se revela em crescendo ao longo do dia. Cada face apresenta aspectos distintos de um combate de carnes, coreografias das brutas musculações do desejo. Em ocasiões escolhidas, será tocada ao vivo a composição para piano de António Celso Ribeiro. A primeira afirmação do António diz respeito ao tempo. Precisamos parar, abrir lugar na agenda revolta dos dias para experimentar a Contemplação Particular. Na inauguração, o silêncio foi impossível, mas o restolhar dos sussurros e das movimentações espelhava bem o que acontecia perante os nossos olhos. Preciso voltar por causa do silêncio, que, temo, será sempre contaminado pelos turistas de época. Os turistas desta época tendem a perturbar-nos, essa será a sua santíssima identidade. Avancemos. Mergulhando raízes na leitura atenta de Tentações de Santo Antão, de Flaubert, o corpo desfeito em abstracções chega-nos logo pela temperatura de cor, depois pela textura até nos perdermos na dinâmica das volutas, que parecem em movimento perpétuo. Que há de erótico nisto? A visão do para além da pele, lugar onde perderemos o eu na paisagem do outro, a identidade no grande oceano dos corpos. O desejo faz-nos arder em absoluta liberdade, a de que o homem pode ser universo.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasMortais e outros voos Torre do Tombo, Lisboa, 20 Março Poema de Mário Cesariny (1968) [dropcap style≠’circle’]Ú[/dropcap]ltima reunião de um grupo de trabalho sobre livrarias independentes, a ideia da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, que reuniu profissionais do sector para reflectir e sugerir medidas práticas ao Ministro da Cultura capazes de travar o seu definhamento e morte. Se bem que algumas tenham surgido nos últimos meses, e na sequência das conversas que tivemos, não consigo afastar esta sensação de miúdo com dedo no buraco do dique. O óbvio desamor ao livro e à leitura, a inexorabilidade de práticas comerciais tóxicas e selvagens, se não cultivadas, pelo menos ignoradas pelo Estado, e o nosso atavismo organizativo condenam-nos à sempiterna dependência da bondade de estranhos. Alinhavaram-se definições, na vã tentativa de circunscrever o sentido de independente, e propuseram-se medidas de alcance variável, mas o que está por fazer depende afinal da capacidade de cada actor construir independências. Cesariny dizia: «Faz-se luz pelo processo /de eliminação de sombras». Vou ficar à espera de uma rede que se faça cama elástica e permita pulos, cambalhotas, mortais e outros voos. Horta Seca, Lisboa, 22 Março Que crueldade! Seres tão frágeis não deviam andar para aqui e para ali, de trás para frente, de casa para o escritório. Outras formas há de preservar as formas além do museu. São frágeis, mas de todo o terreno. Um fotógrafo dado à moda que pouco vem a Lisboa, Sal Nunkachov, criou editora, a Paper View, não apenas para dar corpo às suas visões de um punk benigno, mas para acolher projectos, sobretudo fotográficos, de outrem. Por exemplo, os nus de praia de Leonor Ribeiro, esculturas a preto-e-branco que parecem tintadas de bronze, reflexos de sol a brutalizar as massas, a dançar nas águas, a desfazerem-se com suave raiva no fim, afinal: a areia. Matéria que nos fica nas pontas dos dedos, pois a capa deste Sand está impressa em lixa. Não se trata apenas de fotografia, mas de impressão. Sal experimenta. Em periódica Newds, no caso a #10, imprime a negro sobre papel preto explodindo em pleonasmo. No tradicional jogo das escondidas de quem se despe, a escuridão acrescenta luzes. Lá dizia o mesmo Mário: «Ora as sombras existem/as sombras têm exaustiva vida própria/ não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela /intensamente amantes loucamente amadas /e espalham pelo chão braços de luz cinzenta /que se introduzem pelo bico nos olhos do homem». Em Pin Hole, soma-se o verde e o desfoque e a objectiva sublima o desejo, amachuca o ser no parecer, ou pelo contrário. Fulgurantes são ainda as sobreposições de Here’s How To Do It e Round Abount. Sempre corpos femininos, rostos, torsos, cabelos e atitudes, mas por cima de moldes da Burda, no primeiro, e de cartas e mapas arrancados a atlas, no segundo. Estas sedes abrem-me o apetite. CCB, Lisboa, 23 Março Ainda Cesariny, o de Pena Capital (Assírio & Alvim): «Por outro lado a sombra dita a luz /não ilumina realmente os objectos/os objectos vivem às escuras /numa perpétua aurora surrealista /com a qual não podemos contactar /senão como amantes /de olhos fechados /e lâmpadas nos dedos e na boca». Após a gravação de mais um Obra Aberta, com Nuno Saraiva e António Gonçalves, descemos para visita guiada à exposição que homenageia Mário Cesariny, sublinhando a sua veia experimental, libertária e iconoclasta. E lá vimos as sismogravuras, os aquamotos e os objects trouvées, figuras onde o acaso vai de mão dada com o impulso artístico. Quem diz acaso diz a água, movimento dos eléctricos ou recolha do lixo. Interessa-me, sobremaneira, a colagem, essa faculdade de romper cortes no visto para deixar surgir o imprevisto. Fico horas ouvendo esta homenagem a Satie (ao lado, na imagem) e acabo a perder os óculos. Perder as lentes na noite, quem me manda mensagens? No aniversário da morte, ressuscito pedaço de texto antigo. «Cesariny vem de um tempo em que viver era rasgar possibilidades, Mário, e as contas não foram ainda feitas, de Vasconcelos, pelo que não sabemos quanto lhe devemos em desejo e ventania, em confusão e lucidez, em verticalidade e camisolas de alças, inteireza e veludo com nódoas. Afiou cada âncora como palito, de maneira que os dentes acabaram por se tornar estrelas. Lugares irrequietos onde só se vislumbram regressos, como este, fazem-se difíceis de atracar aos mapas e só com muita sorte e acaso se conseguem indicações capazes de levar o viajante ao encontro da sua perdição, aquela que buscamos com íntimo desespero ao fugir-lhe. Noite e dia, trabalham algures os pianos escravos a escrever no chão com navalhas as maldades, que são outros tantos caminhos. Esta personalidade geográfica caracteriza-se pela aguda magreza que explode mais tarde, por vezes antes, em largueza de vistas.» Museu Bernardo, Caldas da Rainha, 25 Março Paulo José Miranda anima com extrema facilidade qualquer grupo, em girândola de assertivas observações, leituras selvagens e ditos de espírito. Mal se desloca para um palco recolhe-se, encolhe-se, isola-se, hesita-se. Passa a mão pelo rosto à procura da frase certa e a coreografia rima com gaguejo. Depois a gargalhada põe fim à fase do aquecimento e o poeta solta-se. Voltou a acontecer em «Bem em Tempos de Mal», sessão dos encontros íntimos que José Ricardo Nunes anima em descomprometido e irónico Museu Bernardo, com a cumplicidade de, entre outros, Henrique Fialho. Gente que ama a poesia das mais activas formas, pelo comentário em tertúlia ou pela leitura em voz alta. Às tantas, Fialho (atentíssimo leitor, a conferir no seu blogue Antologia do Esquecimento) sublinha a (omni)presença de Deus na obra do mano convidado e pergunta-lhe em que ponto está essa produtiva relação. «Sou viciado em Deus, estou em recuperação, mas a qualquer momento posso ter uma recaída», respondeu. A noite chuvosa ganhou esplendor acetinado, à maneira da impressão de preto sobre negro: precisamos mexer corpo e colagem para detectarmos mancha e brilho.
João Luz Entrevista MancheteNuno Rogeiro, analista de política internacional: “Macau tem evoluído num caminho delicado” Com um novo livro nas bancas, “O Pacto Donald”, sobre a ascensão do fenómeno Trump, Nuno Rogeiro regressa às publicações. Uma presença assídua na emissão da SIC há anos, assim como em colunas de muitos jornais, tem sido uma voz incontornável em matérias de política internacional. Deu uma volta ao mundo com o HM, sobre algumas das crises que têm marcado a actualidade [dropcap]C[/dropcap]om a confusão permanente em Washington, acha que o “impeachment” de Donald Trump é uma realidade incontornável? A impugnação do Presidente só se pode fazer por vontade do Congresso e com base em delitos praticados no exercício das funções presidenciais. Ainda não vimos a conjunção desses factores, mas é verdade que havia boatos de “impeachment” ainda antes de Trump tomar posse e, portanto, ainda antes de ser “impugnável”. Escreveu um livro, “O Pacto Donald”, sobre a ascensão do fenómeno Trump. O que nos pode dizer sobre esta obra? O livro foi um pesado fardo, mas tinha de ser feito. Trata-se de averiguar se o famoso “Novo Contrato com a América”, um programa de dezenas de pontos, anunciado por Donald Trump enquanto candidato, em Gettysburg, é mesmo um pacto de mudança, ou uma simples fraude. O livro começou a ser pensado em Janeiro de 2016, quando se desenhou a importância política de Trump no sistema americano, ganhasse ou perdesse as primárias e as nacionais. Foi, portanto, um trabalho intenso que se tornou ainda maior a partir de Setembro-Outubro de 2016 e, sobretudo, durante os meses de Dezembro e Janeiro. Em quase 500 páginas, o livro trata de muitos temas: o processo eleitoral de 2016, seus incidentes e consequências, o papel das sondagens, dos media e das minorias (com uma história pouco conhecida sobre a escravatura nos EUA, que surpreenderá muitos). Explica o federalismo eleitoral e as razões da sua não substituição por um sistema de sufrágio unitário nacional, a história do populismo, da demagogia e dos insultos nas campanhas, desde o século XVIII, a possibilidade de resistência ao trumpismo, possíveis líderes dessa revolta e formas da mesma, uma reflexão histórica sobre o papel da violência política na história dos Estados Unidos. Também faço uma análise das razões das perdas e ganhos de Clinton e Trump, contada através de dezenas de testemunhos dos seus planeadores e estrategos, uma análise sobre as promessas de Trump e uma parte, de cerca de 120 páginas, só sobre a nova equipa governativa e os seus planos de política externa, de segurança e defesa. Quais as suas principais preocupações quanto ao efeito Trump no plano geopolítico mundial? A preocupação de uma guerra comercial sem limites, com países como a China ou o México, o que parece algo afastado com as nomeações no Departamento de Estado, e a preocupação do afastamento ou desinteresse dos assuntos europeus e da NATO, o que parece também afastado, depois das declarações solenes do vice-Presidente Pence e do Secretário da Defesa James Mattis, na Conferência de Segurança de Munique. Mas há outras preocupações desligadas do “efeito Trump” e que se prendem com a gestão de crises herdadas: a Síria, as relações entre a Rússia e a Ucrânia e, sobretudo, o papel da Coreia do Norte na (in)segurança asiática. Como vê o futuro da Aliança Atlântica com os Estados Unidos a assumirem uma postura isolacionista? Como disse antes, o isolacionismo americano face à NATO, apesar de temido, tem sido desmentido em palavras e actos. Palavras, pelo que já disse, actos pelo envio, desde Janeiro, de muitos contingentes americanos para as repúblicas bálticas e Polónia, em exercícios militares mesmo em frente do território da federação russa. Por outro lado, Washington quer que os europeus contribuam mais para a NATO, e isto está a provocar dois fenómenos: o aumento dos orçamentos defesa, da Alemanha à Polónia, mas também o aumento de planos europeus para a construção de uma defesa autónoma, com meios estratégicos que até agora faltavam. Passando agora para a Europa. As sondagens dizem que Le Pen não ganha na segunda volta, apesar de ter boas hipóteses de vencer a primeira. Como perspectiva este embate eleitoral? Em França, a tragédia é a de poder ter na segunda volta candidatos com problemas judiciais. Ou seja, depois da política, a criminalização. Acho quase impossível Le Pen não passar à segunda volta, e quase impossível que ganhe a segunda volta. Macron ou Fillon serão, em circunstâncias normais, os vencedores finais. Mas França ainda não vive circunstâncias normais. Qual o perigo do crescimento da Frente Nacional para a coesão da UE? A FN é um dos rostos do populismo e o populismo é sinónimo de disfunção na representação política. Daí que todos os avanços populistas obriguem os representantes políticos “tradicionais” a mudar de vida e de discurso. Na Holanda, por exemplo, o primeiro-ministro Mark Rutte compreendeu o problema, e tomou, face ao desejo turco de campanha ministerial pelo referendo, uma posição “populista”. Aliás, Rutte disse, na noite eleitoral, que com o senhor Wilders tinha sido derrotado o “mau populismo”. O que quer dizer que há um “bom”. Com vários movimentos populistas anti-integração europeia a ganhar protagonismo, e face à inacção institucional de Bruxelas, como perspectiva o futuro da União Europeia? Teme mais algum “exit”? A União Europeia é uma construção permanente, uma promessa permanente e uma crise permanente. Por enquanto, consegue dar aos seus cidadãos paz, prosperidade e desenvolvimento. A questão é a de saber o que acontecerá, quando deixar de dar tudo isto. Nesse sentido, o problema da imigração é apenas mais um teste. Que não poder ser minimizado, mas que não é o único problema. No plano chinês, todos os sinais indicam consolidação de poder e afastamento de possíveis vozes contrárias a Xi Jinping. Acha que o secretário-geral do Partido Comunista Chinês se manterá no poder? Não se vê alternativa em Pequim a não ser a via institucional. Mas poderão crescer, dentro dessa via central, interpretações diferentes. Como perspectiva a continuidade de uma veia militarista, que se tem fortalecido, em Pequim? A China quer ter um poder militar que corresponda, ao menos em parte, às suas capacidades e responsabilidades globais. Mas não vejo que esse poder militar possa, num futuro próximo, ter verdadeiramente uma capacidade global. E, na sua esfera imediata, cresce ao mesmo tempo que se desenvolve um rearmamento defensivo do Japão. O que acha que pode sair do futuro encontro entre Xi Jinping e Donald Trump que, provavelmente, acontecerá à margem da próxima cimeira do G20? Prevejo a promessa de um novo diálogo, em bases mais realistas, em que o problema de Taiwan, que parecia enorme, fica minimizado. Como vê o progressivo afastamento da Turquia em relação à União Europeia e ao Ocidente em geral? Com extrema preocupação. A Turquia é o cartão-de-visita da Europa no Médio Oriente, e a porta que filtra todos os movimentos de estabilização e desestabilização dessa área. Há uma Turquia que vive fora da UE e outra que vive dentro, com largas massas de migrantes, geralmente bem integrados (na Alemanha, no Benelux, na França e Polónia, etc.). Portanto, a UE tem de desejar que a Turquia deixe de ser o “doente da Europa”, como se dizia na expressão novecentista, e passe a ser outra vez um parceiro saudável. Mas a Turquia tem de fazer por isso. Entretanto, a Coreia do Norte aprofunda o isolacionismo internacional. A morte do meio-irmão do líder norte-coreano preocupa-me, porque mostra a facilidade de trânsito internacional de matérias perigosas, preparadas em laboratórios militares, e destinadas a ataques cirúrgicos. Se o rasto do crime for até Pyongyang, e se ficar confirmado que se trata de uma tentativa norte-coreana de punir um alegado circuito de ajuda a dissidentes (o Grupo de Defesa Civil de Cheollima), entramos numa nova era de instabilidade regional, onde a China terá o grande ónus de intervenção correctiva. Exercê-lo-á? E no plano da leitura, o que tem lido? Estou a reler o “Silêncio”, do clássico Endo, e outras obras do mesmo sobre cristãos clandestinos. A história da adaptação de “Silêncio” ao ecrã, pelo Martin Scorsese, começa, claro, em Macau. O que conhece da realidade política de Macau? Como vou com alguma frequência a Macau, conheço o panorama político e a sua evolução desde o fim da administração portuguesa. Acho que a RAEM tem conseguido evoluir num caminho delicado entre autonomia política, económica e de organização social, manutenção de alguns laços com o mundo lusófono (a sede do Fórum CPLP-China em Macau não é um acaso, é um projecto estratégico relevantíssimo) e reconhecimento das evidências históricas e geográficas de relação com a China. Podia desejar-se mais dinamismo dos media, da sociedade civil e da classe política, por comparação com Hong Kong, mas é uma situação peculiar, diferente, que tem a sua própria lógica. Por outro lado, sempre que vou a Macau não cesso de me fascinar com o produto de contactos seculares entre dois mundos tão diferentes como o português e o chinês que, mesmo assim, conseguiram conviver sem se destruírem, apesar dos momentos de incompreensão, tensão e conflito aberto. Teve aqui grande importância a vontade, o talento e o bom senso de um punhado de portugueses e chineses que souberam conduzir de forma saudável um processo que, noutros cantos do mundo, teria redundado em desastre.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasLeitor de autores EC.ON, Lisboa, 11 Março [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão devia dizê-lo tantas vezes em público, para manter aquele orvalho das primeiras madrugadas. Ou, pelo contrário, devia gritar esta fraterna ideia de que podemos cultivar comunidades, hortas dos simples nas traseiras de paraísos de onde seremos sempre expulsos. Descobri em Luís Carmelo um irmão que não sabia ter. Além das afinidades que fomos desvelando ou continuaremos tecendo e a tendência para o desvario, une-nos um estranho sentido prático, nem tanto natural, que se faz indispensável para trazer à cena as ideias que nos atormentam. Acrescente-se nele a planície da generosidade e o fulgor da dança. Aquela discreta, como convém, e esta extravagante, porque se pode. Qualquer pista, formal ou improvisada, se expande com as figuras geométricas que o Luís desenha com o corpo todo: inventou a geometria descritiva dançada. Nas últimas semanas, descontando a presença no Correntes D’Escritas, pude acompanhar de perto o mano Luís em três outras ocasiões, no El Corte Inglés, em dissertação integrada no ciclo «Este Livro que Escrevi», no lançamento do terceiro volume da trilogia, Sísifo, e hoje nesta sessão dos cursos Ícone, da sua activíssima Escola de Escritas. Sou testemunha do seu brilhantismo. E da sua perplexidade ao contar, em preparação para hoje, 53 títulos dados à estampa (e mais de duas dezenas de inéditos), sobretudo no ensaio e no romance, mas com incursões, apenas exemplos, na poesia ou no conto. Bibliografia em badana é uma coisa, outra ver os volumes a construir sobre a mesa uma parede cronológica, a vida disposta de maneira que uma mão as puxe pela lombada e as leve aos olhos. Escusado será dizer que em poucos lugares se poderá ter tal experiência, que as livrarias há muito deixaram ter fundos, ainda assim afundando-se cada vez mais. Carmelo consegue, com um danado poder de síntese, afastar-se da sua obra, semi-cerrar os olhos, agitar os dedos da mão direita no mais longe do braço e dissertar com espantosa certeza. Acerca da circunstância concreta que despertou o desejo de escrita, uma dor ou um exercício, mais os meandros articulados de cada mecanismo, sem esquecer o óleo que une o conjunto para terminar numa conclusão, quase sempre questão em aberto. Por vezes, ferida aberta. Esta Trilogia de Sísifo ergue-se ponto cimeiro no dançado percurso do Luís Carmelo, que obedece, mais do que aos ritmos exteriores, a um rigor orgânico que propõe formas de contar caleidoscópicas, que busca capturar a essência de cativantes personagens em movimento através de uma linguagem renovada, que acrescenta, com sombras, que não esconde o erótico labor da escrita. O fecho faz-se com um romance sobre a iniciação, construção literária que há muito fornece à vida a potência de uma explicação, um arrumo, ainda que instável, um sentido possível para os ziguezagues com que progredimos, não necessariamente em frente. Tive crónica na revista Ler, que levava por título «Este Livro e Não Outro», para mastigar a ideia de que a cada momento do vivido temos um livro, e não outro, que lhe corresponde. Por coincidir com experiência marcante será então cabalmente nosso, tal a árvore incorpora bicicleta esquecida encostada ao seu tronco. Reparo agora, tentando a virgindade de simples leitor, que este Sísifo se tornou paisagem actualíssima ao seu famigerado editor, que anda às voltas, sem saber se roda sobre si ou se se dirige em espiral para algures. Aldeia de Paio Pires, 18 Março Um dos ensaios do mano Luís, Uma Infinita Voz (abysmo), foi dedicado ao Exercícios de Humano, do mano Paulo José Miranda, agora mesmo homenageado na sua aldeia, com comovente singeleza, em tarde soalheira, na Sociedade Musical 5 de Outubro, pela mão da CoopA, de António Caeiro e Sérgio Gomes. Tentei dizê-lo atabalhoadamente: um regresso que nunca foi ausência. Por ser universal, as raízes do Paulo notam-se bem no que escreve. Momento central foi o testemunho do mano António de Castro Caeiro, um pouco antes das leituras do mano José Anjos. (Sorrio com a irritação que causará em alguns, mais dados à miséria e às comichões, esta luxuriante profusão de manos…). O próprio Paulo coligiu a antologia Resta Ainda Face (abysmo), seguida de ensaio, para a poesia de Helder Macedo, e este, em entrada para A Companion to Portuguese Literature (Tamesis Books), afirma que ele e António Cabrita «estão a destabilizar as reputações pronto a vestir». Manos que escrevem sobre manos, que se lêem a qualquer pretexto. Podia continuar puxando fios de rede que não pára de crescer, e cujas cores generosas me confortam. A identidade da literatura tem que arder nesta incessante procura do sentido e do cruzamento das noites de cada um. Portanto, não basta escrever. Antes gastar a vida assim, a tactear o não dito, a puxar o manto do silêncio. Portanto, a escrever. Ainda que isso nos facilite pouco a vida. Disse ali o mano António, para mais de meia centena de pessoas. «As suas palavras poéticas dependem de uma compreensão do sentido. E poucos têm como plano de fundo um domínio do pensamento ocidental para poder produzir uma abertura à dimensão em que o sentido acontece. Em que se compreende e não compreende, onde há ou não inteligibilidade. O debate pela palavra é o debate pela compreensão das situações em que não se compreende, não se consegue nem pode. Por isso muitas vezes parece haver uma impermeabilidade entre a poesia e a vida, como se houvesse duas e não se desse antes o caso de a vida enquanto tal existir na dependência da situação em que nos encontramos. Encontramo-nos continuamente, o mais das vezes e primariamente, sem qualquer necessidade de confronto com o sentido. O confronto com o sentido dá-se quando ele se esvazia, quando, a partir do seu próprio colapso, nos interroga, põe problemas, levanta questões e nos dificulta a vida.»
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasAssim pudesse acender-me [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho até aqui, tirando os textos sobre os autores da Antiga Grécia, escrito sobre poetas de gerações mais novas do que a minha. Hoje, e antes de terminar este formato, abro uma excepção para um livro de finais do século passado, de um autor de uma geração bem anterior à minha, que trata de um tema algo arredado da temática poética contemporânea: o amor. Opus Affettuoso trata-se de um livro de poesia com 55 poemas curtos, intitulados de I a LV, e ainda um poema final, mais extenso, de três páginas, intitulado “Última Núpcia”. O tema do livro é o amor, sim. E este amor não tem qualquer conotação pejorativa, negativa ou indigente. O amor que aqui aparece, ao longo destes poemas, é o topos humano, o lugar do humano. O amor não é somente um lugar, também faz de nós um lugar. O amor é o lugar desconhecido que habitamos, que habita-nos e para o qual e com o qual caminhamos. Sabemos que há, mas não sabemos o quê, não sabemos quando, nem a natureza do seu aparecimento: “EU NÃO SEI SE / conheci a luz ou a sombra / quando bebi na tua pele. (…).” [XIV] Não podemos saber se subimos ou se descemos, se vamos para bem ou se vamos para mal quando amamos. Não é possível ao humano aceder a esse conhecimento. “(…) de quem não sabe / se é folha ou chão boca saliva / porque tudo em nós é luz líquida / que não conhecemos saboreamos / apenas.” [VIII] Aquilo que sabemos, aquilo que apenas podemos saber é que à beira do corpo há luz. Há uma luz que se acende dentro de nós na beirada de outro corpo, nos campos da amada. Isso, sim, isso sabemos. Uma luz líquida, uma luz que sai de nós e do outro e que ilumina a ambos, uma luz que nasce de um corpo contra outro, de boca contra boca, de sexo contra sexo. XV ENTRO PÉ ANTE PÉ no pátio da minha amada – arco iluminado. Saio limpo e vazio do barro de minha amada – de novo abandonado. Estamos, portanto, num universo de luz e sombras. A luz do corpo e a sombra da alma. Sombra do pensamento que nos estrangula de ausência. Não é o outro que nos dá o ser, quer o outro seja Deus, quer seja a amada; o que nos dá o ser é a sensualidade do outro, o toque do outro e no outro: “(…) do ser que sou agora luz reunida / pela mão no joelho que se abre (…)”. Ser é ser um momento de sensualidade, ser um momento onde nos acabamos, onde nos esquecemos, onde nos abandonamos. Ser é descansar de nós, e só se descansa sensualmente. O amor é o contrário de nós, sabemo-lo logo nos primeiro três versos do livro: “AMO-TE PORQUE NÃO ME AMO / inteiramente. O que me falta / é infinito / (…).” [I] O infinito, aqui, não é a luz, mas a sombra. A sombra do corpo que dá luz em contacto connosco. Queremos o que não sabemos, queremos mais do que podemos, queremos a sombra estendida do mundo. Mais: nós somos a sombra estendida do mundo; somos o que pensa, o que se entrega às sombras, ao desejo de infinito. E só no corpo, só no corpo do outro, da amada, descansamos das sombra que somos, do infinito que nos atormenta. Estar connosco, remetido à nossa própria sombra, ao pensamento, ao infinito desejado é ser perdido, ser em luta connosco, com a necessidade de infinito e a sua impossibilidade. O amor nasce desta consciência: a luta, em nós, entre a necessidade e a impossibilidade de infinito. Amo o outro porque não sou infinito, porque o que o meu pensamento deseja não tem reciprocidade. O amor é o que nos resta. Na impossibilidade de sermos infinitos, de nos amarmos a nós mesmos inteiramente, resta-nos o amor, que nos dá descanso, que nos recolhe dos demónios do dia. XXVII NÃO ACENDAS a luz não abras a janela. O teu sexo lâmpada viva ilumina-me a noite escura. Não abras o dia, ilusão impura. O momento da sensualidade, aquele momento de descanso de nós mesmos, de ser, descanso de pensar, de ser sem ontologia é, contudo, frágil. Demasiado frágil. “A LUZ QUE ME DÁS, ESQUIVA E DURA, / serve-me de abrigo onde desfeito / é já meu cansaço. (…)” [XXXVIII] A luz já é esquiva e dura, abriga e descansa, mas não é fácil de acontecer. A luz não acontece quando se quer, nem quando queremos. A luz do corpo, essa luz líquida, nascente de um com o outro, é bem menos forte, bem menos presente do que o dia, do que a luz demoníaca do dia, que é a luz que revela a nossa sombra, o nosso eu; não o nosso ser, mas o nosso eu. Eu é precisamente o que não quero. O que quero é eu e tu. Pensar é o que não quero, o que quero é meu corpo no teu. Quero luz, a preciosa, rara e líquida luz; não quero a sombra que me habita, que sou eu, que é Eu, e que o dia vai revelar-me. No amor escapamos da humanidade como se falta a uma aula. O amor é a possibilidade de descanso de nós, desse Eu assombrado que nos impede de ser. “(…) Deixa-me levar o sabor / da pequena lâmpada / para que eu possa suportar a travessia / dos pátios que me separam / da próxima noite.” [XXXIV] Ficar entregue a mim (Eu) é caminhar pelas sombras do mundo, pelas sombras do dia, espalhando em mim e fora de mim a minha própria sombra; a minha sombra de ser. Chegar a um corpo, haver um corpo que nos receba, é o que melhor nos pode acontecer. O que melhor nos pode acontecer para não cairmos na sombra do Eu, na angústia da falta de infinito. Depois do corpo da amada, “eu” é uma pedra contra mim mesmo. Pois quando amo, quando estou apaixonado, e é deste amor que o livro fala, eu sem o outro sou uma sombra de mim mesmo, um escuro enorme. Leia-se um poema, onde claramente se vê a luz nascer à beira do corpo do outro. Luz que apaga as palavras, o pensamento, que apaga a sombra que somos. Luz redentora, porque ofusca o Eu, ofusca o que nos afasta de ser, da experiência ancestral do Ser. A TUA PELE NÃO É A LUZ mas estou perto ofuscado e sem palavras não preciso delas ouço o tumulto a coroação da minha verdade a que vem de ti olhar para ti silenciosa e em silêncio desaprender a musica dos outros a grata imperfeição do mundo e enlouquecer onde fui sábio outrora Mas que corpo é esse que o poeta fala? É um corpo qualquer? É o corpo do dia-a- -dia, que desejamos a caminho do trabalho ou de casa, na esperança de voltarmos a ser, de nos esquecermos de nós? Não. O corpo onde vamos acontecer, de onde recebemos nosso ser e ao outro o concedemos, não é esse corpo. O corpo não é do mundo. Há, no mundo, corpos; mas não são estes de que o poeta fala. O corpo que Casimiro de Brito canta é o corpo afectivo, o corpo para além do acontecimento, que nos dá o ser e devolve ao outro o seu ser. É o amor. O amor feito carne, nos muros da pele, nas águas que escorrem pelas calhas, pelas ranhuras do humano, pelos seus orifícios. Leia-se estes versos de “Última Núpcia”: “(…) a linguagem dos animais horizontais / que bebem na lua o olhar que nela / outros amantes deixaram esquecido (…)” O que outros esqueceram é a matéria que nos concederá o ser. A maioria das vezes o que há é esquecimento, esquecimento de um corpo no outro, de um corpo face a outro. Este corpo não é do mundo. Amor e mundo não se entendem. O amor é a experiência do lugar por excelência: o topos dos topos. O amor repele para longe a doença do desconhecido, do infinito, da angústia. O amor qua lugar. O amor enquanto topos. O amor não tem lugar, ele é um lugar. Mais: é o Lugar do humano. Nestes poemas, a casa do humano não é a linguagem, mas o amor, o outro humano com quem fabricamos a luz líquida a que os versos várias vezes se referem ao longo deste livro. “(…) A tua mão / sem palavras sem pensamentos / acaricia-me os joelho / sob a luz que do céu / fatigada / cai.” [XLIII] Fora do amor, fora do corpo da amada, no mundo, ficamos expostos a nós mesmos, a todas as intempéries da palavra e do pensamento. “(…) Armas tão frágeis / as que temos: o mel a saliva o / sêmen. (…)”. [VI] E, para além de sermos desprovidos de armas eficazes, que combatam o mundo e nossa sombra, há ainda a fragilidade da amada, os “(…) ramos frágeis / da minha amada. (…)” [XI] Aquilo que nos dá o ser, nosso encontro corpo a corpo com a amada, é muito frágil, quase impossível de sobreviver, de prosseguir pelo tempo fora. Não é só o mundo, com seus dias derramando nossas sombras, que nos enfraquece o amor, que nos enfraquece o encontro, a possibilidade da luz líquida, também nossos próprios corpos são frágeis, vulneráveis. Veja-se o que protege a amada: XXX APENAS um cinto passageiro a envolve. Um veio mais leve do que a brisa da manhã. O fio de água dos meus braços. Tudo nos conduz à consciência da fragilidade. Mas essa consciência não se dá no amor, não se dá nesse lugar do ser, no lugar onde recebemos e damos ser. A consciência da fragilidade do amor, da fragilidade da amada, no corpo desabrigado da minha amada [XLVIII] e de nós para a amada, de mim para a amada, essa fragilidade dá-se no mundo, nos dias, na sombra, como reconhece o poeta, vagueando pelas ruas, companheiro dos cães “(…) e deito-me / de novo. Desamparado. / Apenas um jogo / de lençóis bastava.” [XVI] Sem amor, não temos onde ficar, não temos lugar onde ficar. Sem amor somos nós vagueando como cães, passeando nossa sombra pelo mundo.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasCláudia R. Sampaio: “A poesia requer sempre um silêncio” [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ens três livros de poesia publicados: Os Dias Da Corja (Do Lado Esquerdo, 2014), A Primeira Urina Da Manhã (Douda Correria, 2015) e Ver No Escuro (Tinta da China, 2016), sentes que são livros estanques, com estéticas e propósitos literários distintos ou há uma continuidade entre eles, tanto ao nível temático quanto estético? A nível temático acho que há uma continuidade. Os meus livros falam muito de perda, solidão e de uma barreira que está sempre quase a ser ultrapassada além-limite. Quanto à forma, sinto que mudei um pouco, há uma evolução, fui-me descobrindo. Escreveste, não sei se ainda escreves, roteiros de telenovelas. Achas que isso te marca negativamente perante a crítica ou perante a maioria dos leitores de poesia. Ou hoje em dia os leitores de poesia separam com mais facilidade a poesia do que se tem de fazer para ganhar a vida? A crítica não me preocupa e nem sequer penso se isso marca negativamente a opinião que podem ter acerca da minha poesia. São coisas tão distintas que acho que não se pode confundir um trabalho que não dependia de mim com aquilo que realmente sou e que atravessa o que escrevo. Acho que as pessoas que me rodeiam pensam o mesmo. Participas num grupo de leitura de poesia e música, Belos, Recatados e do Bar, juntamente com o músico Pedro Moura, o poeta José Anjos, o escritor Valério Romão e o filósofo António de Castro Caeiro. Gostas de ler poesia em público, ou para ti só faz sentido num projecto como esse que vocês têm? E como nasceu essa ideia? Os Belos, Recatados e do Bar já existiam antes de eu e o Pedro Moura fazermos parte do grupo. Um dia convidei-os para lerem no meu café literário Folhas d’Erva (que entretanto já encerrou) e eles insistiram para que eu também me juntasse à leitura e para que o Pedro tocasse. Correu tão bem que a partir daí já não nos separámos. Gosto de ler poesia em público porque é uma coisa esporádica e que nesses momentos me dá bastante prazer. Há outros momentos em que só me faz sentido ler aqueles mesmos poemas quando estou sozinha. A poesia requer sempre um silêncio. Mas ao ler em público há uma partilha com o outro, acabamos por despertar a atenção para certos poemas e muitas vezes é uma maneira de os darmos a conhecer. Em pouco tempo de publicação, desde 2014, parece-me que tens tido um reconhecimento bastante bom por parte da critica e do público? Concordas? Não sei. Houve sim uma maior visibilidade com o Ver no Escuro (Tinta-da-China) e, por consequência, acabei por ter mais retorno quanto à opinião de leitores que gostaram muito e que me enviam mensagens via Facebook a agradecer por tê-lo escrito, o que me deixa sempre num misto de surpresa e de contentamento. Entendes que a poesia hoje em Portugal atravessa um bom momento? Sim, sem dúvida. O que sinto é que as pessoas se interessaram novamente por poesia, mesmo as gerações mais jovens, e estão a deixar de lado o estigma de que a poesia é uma coisa lamechas para gente triste. Basta ver a sala cheia de caras novas num evento de poesia para perceber isso. Também há cada vez mais gente a escrever e mais editoras interessadas em publicar novos poetas, o que é sempre bom. Desde que isto tudo não faça da poesia um espectáculo oco de variedades, acho belíssimo. Que projectos tens para este ano, ou intenções? Tenho um livro pronto, já com editora e que sairá em breve. A única coisa que está a atrasar o processo é a falta de título, o meu eterno calcanhar de Aquiles. Entretanto já comecei a escrever outro livro, que é uma espécie de história-poema-longo e que terá uma banda sonora do Mário Fonseca, em piano. A ideia é, para além de publicar o livro acompanhado de cd, fazermos espectáculos ao vivo. Também gostava de conseguir arranjar um trabalho.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasSei de rios São Luiz, Lisboa, 12 Março [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue sei eu? Talvez por isso afirme que o fado atingiu agora extrema maturidade, sabor e saber entre figo e pão saído do forno, entre o vigor da técnica e o perfume do espírito. Fica-me isso em fundo de boca neste concerto, singelamente chamado de Camané e a Orquestra Metropolitana de Lisboa, ainda que devesse incluir algures no título o director musical, Filipe Raposo. Lá está, que sei eu: quem decidiu o alinhamento, a escolha e o encadear dos temas, o avanço e recuo de cada instrumento, os silêncios? Saio esmagado no fim da semana, percebendo que desde a segunda-feira anterior tudo viria a estar contaminado por isto. Começa com o costumeiro atraso na percepção de que Camané está prestes a explodir e convém estar por perto. Salvam-me os bastidores (obrigado, Elsa. Obrigado, Aida). Os versos cantados em lâmina a sublinhar esses momentos revividos. O delírio de melodias despenteadas para lá da bainha descosida do pano negro. Bato com a mão na cabeça para interromper as correspondências entre o que agora oiço e o que vivi ao longo da semana, do ano, que digo?, dos anos. Camané, devias ser estudado pela física quântica, essas tuas maneiras de misturar num instante tempos e espaços. Esqueçamo-nos de mim, assunto implosivo do diário. Quem como ele arrisca experimentar sem perder o pé, voar de contrabaixo sem perder os arreveses da tradição. O verso de David Mourão-Ferreira seria o mesmo sem a energia de José Mário Branco? A paisagem de Jobim e Oliveira escavaria tão funda a sua inutilidade sem Raposo e a tua voz? Outros modos são possíveis, mas estes combinam lua e noite de forma única. Na variedade das canções, que vão do tango ao quase pop, na complexidade dos arranjos, no modo de jogar com os ritmos e as sensibilidades, com os instrumentos puxando o cantar para danças nada óbvias, com invariável certeza de que as palavras são o chão da boca Choro, quieto como convém. Na boca de cena do fado há um negro muito nosso, que precisamos escavar para libertar as selvas de cor que por ali se escondem. Sim, pode haver luxúrias de luz e aventura nas noites domésticas que guardamos nos bolsos. Reparo, não sem tristeza, que colecciono respostas íntimas a inquéritos de imprensa. Relembro esta, pela mão da Manuela Paraíso. «Qual é a característica dos portugueses que mais o irrita? O coitadismo. Somos o povo que mais se lamenta, mas também o que mais embirra com quem faz e que ignora o que fez. Enfim, o espírito de rés-do-chão». Camané, tu resgataste o fado do coitadismo. Mymosa, Lisboa, 6 Março Nunca pensei. Devia tatuar mais esta no corpo, tão desafinado que vai com o que pensa. Estou com o Ferreira Fernandes a partir História, que vai sendo maneira nossa de abrir conversa, e logo José transfigura para me contar das ocultas razões que levaram o rio Kwanza a inventar país. Tanto angolano na minha vida e nenhum me havia falado com tal rasgo destas histórias trágicas de amor: um rio daquele tamanho parte para Norte ao encontro do oceano; desenha no encontro uma baía capaz de se erguer capital de reino Ndongo; e daí, por portas travessas, resolvido conflito com o outro reino não menos mítico do Kongo, faz nascer país assente na língua portuguesa que, sofrendo barragens e transvases, não deixa de ser nascente e foz. Kwanda sendo rio, na vez de moeda, faz toda a diferença. E ponto. Um ponto é tudo, assim titulou ele a melhor crónica da imprensa portuguesa, citando poeta que se fez moçambicano, filho do que desenhou mitos à beira Tejo. Foi o Bruno Vieira Amaral que me perguntou, há uns anos e para a Ler: «Falta alguma coisa no seu BI? Sim, uma identidade». Eis-nos fadistas. O Bruno de Almeida filmou o namoro das esquinas com o mar da Palha, cenário de Sei de um Rio, fecho inolvidável do que ainda não vi: «Rio onde a própria mentira/Tem o sabor da verdade/Sei de um rio». Mymosa, Lisboa, 11 Março Almoço longo com o Carlos Querido, em rotineiro e soalheiro costume de camponeses, ele da zona oeste, faroeste, eu da Penha, a mais alta e infértil colina de Lisboa. Ambos mondadores do silêncio, lavramos à mesa uma alegria pesada. «Se canto, não me dói tanto/O coração magoado/Mas há em tudo o que canto/Este silêncio pesado», risca a Manuela de Freitas. À laia de conclusão, passou outra resposta a interrogatório, desta para papel de jornal do Fernando Alvim. «Só escrevi um fado, que João Lucas compôs, mas quando ouvi pela primeira vez o António Zambujo a cantar pedaço da minha delirante infância pensei por momentos que a vida podia fazer sentido, breve é claro. Breve o sentido e a vida, que a poesia só ensina a cair. Fado do Homem Crescido, escrito para o filme de animação homónimo que o Pedro Brito realizou, diz com imagens e sons e palavras que a amizade é impossível, pelo que estamos condenados à solidão. Ora nada mais vale senão a amizade.» Santa Bárbara, Lisboa, 13 Março, madrugada A noite faz-se ainda mais noite com Lua cheia desta maneira. Faz-se bruta e provoca-me do outro lado do vidro, eterna companheira, lanterna de todos os versos. «É triste sorte/Que nos faz pensar na morte/E em tudo o que em nós morreu», diz João Ferreira-Rosa. Mas teria forma a vida sem o côncavo do que nos vai morrendo? Última resposta ainda ao Alvim. «Vi a chegada à Lua em directo e logo ali descobri uma vocação, que era magro e não me dava mal com as matemáticas. Um certo professor, contudo, deu-me a conhecer um tal de Fernando Pessoa, jaz morto mas não arrefece. Até já tinha lido poesia, mas nunca tinha lido poesia. Não mais me livrei dela, apesar de ainda ter continuado a achar durante anos que podia ser astronauta. Têm sido os versos a levar-me à lua e a prender-me à terra. A enterrar-me.»
João Luz Entrevista MancheteHenrique Raposo, escritor e cronista: “Hoje, dou por mim a elogiar os sindicatos” Henrique Raposo, cronista no semanário Expresso e autor do polémico “Alentejo Prometido”, que será apresentado hoje no festival Rotas das Letras, está em Macau. Estivemos à conversa sobre o Alentejo, os desafios da Europa, as crises de valores e os paradoxos ideológicos que grassam o Mundo, ao som de guitarras portuguesas FOTO: Eduardo Martins | Rota das Letras [dropcap]A[/dropcap]presenta hoje, no festival Rotas das Letras, o livro “Alentejo Prometido”, que originou indignação em Portugal. Como explica esta reacção? Acho que as pessoas que ficaram indignadas não leram o livro. A meu ver, o livro é uma carta de amor ao Alentejo e, como todas cartas de amor, tem momentos de dureza e de ternura. A indignação foi provocada por um clip de uma entrevista ao Pedro Boucherie Mendes que circulou na Internet. Na altura escrevi que admito que me expliquei mal, sou escritor, não sou orador. Mas nada justifica aquilo que se passou. O que se passou é que a esquerda portuguesa vai sempre ter uma má relação comigo porque nasci no povo da esquerda e não sou da esquerda. Nesse sentido, vamos ter sempre uma relação difícil e aquilo foi um pretexto para me baterem. Portanto, considera a indignação mais política do que regionalista. Começou com uma reacção epidérmica de alentejanos na Internet, sobretudo miúdos que não têm referências do passado. Aliás, sobre o presente gostava que alguém encontrasse páginas mais luminosas e esperançosas que as minhas. Talvez se eu tivesse dito que o livro está mais próximo do romance, de um trajecto pessoal, do que do ensaio a polémica fosse menor. Depois, como muitos romances, parte do pessoal e abre para o geral, o livro é sobre um desterrado que tenta encontrar a sua identidade, é a minha “estrada de Damasco”. Não tenho problemas de estar na minoria, no campo mediático é evidente que quem é liberal, ou conservador, está em minoria. A esquerda domina o espaço o público, até acho normal. A indignação, a partir de certo momento, foi instrumentalizada pelo PCP, principalmente através das câmaras municipais. Depois há uma certa direita marialva que também não gostou do livro. Não acho que o livro seja político mas, como tenho uma forte carga política devido ao meu papel como cronista, as pessoas não conseguiram ver aquilo como um romance, e quiseram ver, à força, um estudo. Como vê a ascensão do eurocepticismo na Europa? Não estou apocalíptico. Estou pessimista, aliás, sou pessimista por natureza. Não se constrói algo como a União Europeia sem crises. O coração da Europa é a França e a Alemanha, tudo se joga aí. Acho que vamos ter boas notícias este ano porque a Le Pen, mesmo ganhando a primeira volta, perde a segunda. Hoje em dias as sondagens valem o que valem, ainda assim todas indicam que a Frente Nacional perde na segunda volta. Quem vota Fillon, quem vota centro-direita, um conservador clássico, não vai votar Le Pen. Mas, atenção, se nada mudar na maneira como os franceses encaram os muçulmanos, nada vai mudar. Melhores notícias ainda estão a vir da Alemanha, onde a CDU continua forte, a Alternative für Deutschland não está a conseguir comer muito eleitorado ao centro-direita. Mas mais interessante é a recuperação do SPD de Schultz, isso é uma boa notícia. É fundamental que o centro seja forte, para aguentar aquilo que parece uma tenaz extremista dos dois lados. Num plano mais alargado no tempo, não considera que as instituições europeias podem estar em perigo? A longo prazo ainda sou mais optimista, porque a minha geração, a geração Erasmus, sente a Europa. Eu sinto-me europeu aqui, sinto-me europeu nos Estados Unidos. Sempre fui muito pró-americano e quando fui passar uma temporada nos Estados Unidos julgava que me ia sentir em casa. Todos os meus heróis políticos estão na direita americana, o Lincoln, os pais fundadores. Mas não, eu sou europeu. Posso ter afinidades ideológicas com eles, posso respeitar a república americana, que é o maior projecto político desde o Império Romano, é absolutamente maravilhoso, mas não sou americano, sou europeu. Mas não acha que sem uma reformulação institucional as tensões dentro da União Europeia podem aumentar? O que pode haver é um choque na Europa entre o leste e o ocidente. Acho que é muito possível haver uma coisa feia. Não é impossível uma guerra, não é impossível nos Balcãs, nem na zona da Hungria, por exemplo. Vejo mais a possibilidade de conflito entre eles, e depois vejo uma separação cultural, entre o leste e o ocidente europeu. Na questão como abordam os negros, os muçulmanos, por exemplo. Critico muito a esquerda europeia porque recusa, numa perspectiva muito politicamente correcta, integrar o muçulmano no nosso modo de vida, porque ele tem a cultura dele e tem de viver à parte. Abomino esta espécie de Apartheid ao contrário, julgo que isso tem custado caríssimo. Também tenho de criticar a direita da Europa de Leste que é aberta e orgulhosamente racista. Têm orgulho em ter sociedades exclusivamente brancas. São sociedades que vão ser nacionalistas, vai receber muito mal qualquer tipo de pessoa estranha, não querem ser uma sociedade cosmopolita, não confundir com multiculturalista. Por este prisma, não vão conviver bem com a União Europeia, nem com a globalização, como se está a ver agora. Não teme o nacionalismo no ocidente europeu? No leste as atitudes são muito nacionalistas. Enquanto os portugueses, espanhóis, franceses, ingleses, tivemos mundo, tivemos império, que não foram nada simpáticos para o resto do mundo. Neste aspecto, detesto o luso-tropicalismo que diz que fomos uns porreiraços para os outros, não fomos. Fomos tão racistas e imperialistas como os outros. Mas isso teve um efeito benévolo hoje em dia, porque temos uma maior facilidade em contactar o outro. Somos cosmopolitas porque fomos imperiais. Nós, em Lisboa, não vamos ter uma direita nacionalista/racista, porque já temos duas gerações a conviver diariamente com negros, muçulmanos, indianos. Da minha geração de intelectuais à direita há uma barragem permanente contra Trump e Brexit, contra Le Pens. “Fomos tão racistas e imperialistas como os outros. Mas isso teve um efeito benévolo hoje em dia, porque temos uma maior facilidade em contactar o outro.” Ficou surpreendido com a eleição de Donald Trump? Trump é a ponta de um iceberg que já tem décadas. Existe um problema enorme na política americana ao nível do financiamento. Transforma a democracia numa oligarquia porque, no fundo, quem decide o voto é o “um por cento” que financia as duas máquinas partidárias. Se acho que em Portugal há demasiados lobbies debaixo da mesa, que deviam ser assumidos e institucionalizados de qualquer maneira para que as coisas não fossem tão obscuras, na América eu acho que se passa ao contrário. Chegou-se a um ponto de centralidade do lobbying que está a desvirtuar tudo. Aliás, há reportagens arrepiantes em que se mostra o dia-a-dia de um congressista, que é estar ao telefone a pedir financiamento para campanha. Não é estar a falar com as pessoas para tentar resolver os problemas delas. Não é estar em diálogo com os outros senadores, ou congressistas, para ter os tais acordos “bipartisan”, que resolvem os problemas. Isto desvirtua tudo. O investimento em lobby na Europa também tem aumentado nos últimos 15, 20 anos. Acha que há um deficit de democracia também na Europa? Isso eu não acho, porque a União Europeia é feita por democracias, votamos em democracias nacionais, e temos votado sistematicamente em quem é pró-europeu. Nesse sentido, não acredito no deficit democrático na Europa. Não sou nacionalista, abomino a Le Pen, mas se fizer um texto onde defendo o patriotismo clássico sou apelidado, imediatamente, de fascista, reaccionário, por aí fora. Se critico um muçulmano que bateu na filha ou que matou a filha, e se critico a maneira como nós, europeus, descrevemos essa barbárie dizendo que é um crime de honra, sou apelidado de islamofóbico. Não aceito isso. Há também falta de comunidade, quer à esquerda, quer à direita. O discurso clássico da esquerda tem a sido “a globalização desregulou a economia, acabou com fábricas e sindicatos”. Enquanto critica a desregulação da economia, elogia a desregulação da família, os novos valores, a família tradicional, o casamento que é desnecessário, um discurso libertário nos valores familiares. A direita fez o contrário, critica a desregulação da família, mas depois elogia a desregulação da economia. Mas estamos todos a falar das mesmas coisas, sentimos todos falta de comunidade. A direita sente falta da família, do bairro; a esquerda sente falta dos sindicatos. Cresceu numa comunidade de cariz socialista. Cresci num ambiente sindical e, se quiser, isto é um elogio indirecto ao PCP, porque foi o ambiente em que cresci, e eles fazem muito bem uma coisa: bairro! Através dos sindicatos, das associações. Ainda hoje, e regressando ao “Alentejo Prometido”, queria voltar a um bairro imaginário que tive quando era puto, ali na zona de Loures. Já não é o meu bairro, já não me sinto em casa. Hoje, dou por mim a elogiar os sindicatos, apesar de achar que o sindicalismo em Portugal está muito atrasado, continua em guerras dos século XIX. Precisamos de dar empregos industriais às pessoas. Nós, Ocidente, precisamos de perceber que não podemos ser só uma sociedade de consumidores, temos de voltar a fazer coisas, a ter aquele sentido de comunidade que a fábrica dá. Por outro lado, precisamos de voltar a ter respeito pela família, seja de que família for. Casamento gay, para mim, era já amanhã, apesar de isso criar problemas com amigos cristãos que não gostam dessa ideia. Temos de voltar a criar família, laços de comunidade. Como é possível ser católico, sentir a mensagem de Jesus, numa direita que se afasta da defesa do Estado Social? Existe uma tensão na direita entre a defesa da família, temos de saber conciliar o que é crescimento económico com a família. Vejo a direita só a falar de mercado e a esquerda a falar de Estado, e no meio onde está a comunidade? Onde é que as famílias moram, onde é que as crianças brincam? Na esquerda há uma tensão entre, por um lado, a defesa dos direitos dos gays, das mulheres e depois a incapacidade de criticar o Islão que é a comunidade mais homofóbica e mais machista. Essa tensão está a custar caríssimo à esquerda, é por isso que o Labor em Inglaterra está como está. À direita a tensão é na defesa da globalização, que eu acho que é positiva, não sei como se pode falar da globalização sem se falar da diminuição drástica da pobreza no mundo inteiro. Sobretudo, aqui nesta zona. Centenas de milhões de chineses saíram da mais abjecta pobreza e são hoje em dia classe média. Como vê a posição da China neste contexto capitalista global? É a minha primeira vez na Ásia, no velho e grande Oriente, estou a absorver tudo. Lembro-me de um historiador económico, David Landes, que há uns anos escreveu um livro onde dizia que o capitalismo era a cara chapada dos chineses. Vendo o que se está aqui a passar, o capitalismo muitas vezes desregulado, que existe na China sob a égide de um partido comunista, é uma realidade muito interessante. O que me está a fazer alguma espécie é ver miúdos chineses muito parecidos com os ocidentais. Vejo casais de namorados na rua e são como europeus, ou americanos, têm roupas iguais, os cantores pop que ouvem parecem muito semelhantes. Até agora, a coisa mais fascinante que tenho estado a observar são as modelos chinesas, o ideal de beleza chinês parece ser da chinesa ocidentalizada, na própria face. Apesar de todo o poder asiático, o ocidente continuava a decidir o belo, o que não deixa de ser, para um ocidental empedernido como eu, uma coisa maravilhosa. Quero fazer uma reportagem muito sensitiva sobre o que tenho vivido aqui e depois quero pensar um ensaio sobre isto.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA vertigem de nunca estar a ser [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Ver no Escuro, terceiro livro de poesia de Cláudia R. Sampaio, editado em 2016 pela Tinta da China, o título dá-nos de imediato uma pista. Ver no escuro pode querer dizer várias coisas, entre elas a situação literal de alguém que, em casa ou na rua, se esforça por ver o que está diante de si, envolto no escuro. Por outro lado, ver no escuro, e como título de um livro de poesia, pode muito bem querer dizer-nos, indicar-nos que estamos prestes a entrar num espaço, o do livro, onde alguém escreve como se o mundo estivesse fechado num breu e a linguagem o iluminasse. Por outro lado, e de um modo mais literal, ver no escuro também é o modo como a autora termina o livro: “fazendo-me ver no escuro” Mas eis a última estrofe do livro: “Agora mato-me escrevendo / e aqui ressuscito em rua beijando pés / Eu sou esta verdade / Sou a desorientada concentração / das noites desertas / E ascendo-me, grata, / com a poesia dançando entre a / vida e a morte, magnífica / tapando-me a boca toda, / fazendo-me ver no escuro” (p. 78) Parece claro, este ver no escuro, para a poeta, é o próprio acto da poesia, o acto de escrever poesia. E, contrariamente à poesia de Catarina Santiago Costa e ao seu Tártaro – lido aqui semanas atrás –, Cláudia R. Sampaio não se vira do avesso, nem convoca uma linguagem à revelia da linguagem dos dias, à revelia da linguagem que levamos à rua. Em Ver no Escuro deparamo-nos com a mesma linguagem que levamos à rua a passear, a mesma linguagem com que agradecemos a quem nos acende o cigarro, mas com uma eficácia poética conseguida através de um desequilíbrio sintáctico. Aqui, é o verso que repõe a dimensão metafísica da linguagem e não a palavra. “Tragam-me um homem que me levante com / os olhos / que em mim deposite o fim da tragédia / com a graça de um balão acabado de encher / tragam-me um homem que venha em baldes / solto e líquido para se misturar em mim / (…)” (p. 39) São inúmeros os versos ao longo do livro, onde a distorção da linguagem ilumina partes escuras da existência. Deixemos aqui apenas mais um exemplo, que se prende com o próprio sentido de ver no escuro, que a poeta quer que se veja, independentemente de nos deixar a liberdade de vermos outros, que nos parecem até mais pertinentes: “Passei todo aquele poema a viver.” (p. 63) Mas Ver no Escuro é também, ou principalmente, um livro sobre o medo do esquecimento. Quando alguém morre, o seu esquecimento dói muito a quem o amou um dia, e continua a amar. Os primeiros tempos de luto, vive-se no paradoxo de lembrar e da dor da lembrança, que nos faz querer esquecer, e este querer esquecer quantas vezes não faz nascer uma culpa inconfessável? Como se não fôssemos dignos, não estivéssemos à altura do amor que nos foi dado. Ou, na tese mais forte e, paradoxalmente, mais calmante para a existência, como se nada pudesse ser feito contra o esquecimento de quem um dia nos amou tanto. “E no fim são todos cinza” (p. 7), canta a poeta no final do primeiro poema. Mas o esquecimento do outro, para nós e para aqueles que compõe o mundo, não é o único esquecimento que dói, a única ausência que faz vibrar a existência, contorcendo-a de uma dor que parece não existir de facto, uma dor que não é uma pedra sobre um rim, uma pedra sobre um braço, uma pedra sobre a fronte. O esquecimento é uma pedra sobre a existência. Uma pedra a dizer para onde vamos, para onde todos caminhamos. Todos os dias se morre: “Os dias começam com a despedida / de qualquer coisa / nem a água dura para sempre / nem a cova impiedosa deste colchão” (p.40) Todos os dias o mundo caminha para o seu desaparecimento. Tudo está a desaparecer diante dos nossos olhos. Escreve a poeta, este poema à página36: Morro todos os dias especialmente depois do lanche quando pego no regador fininho onde despejo o dilúvio dos olhos e vou regando as plantas à espera de descendência. A dor que mais parece macerar a existência, neste livro, é o esquecimento de si mesmo. Tudo caminha, não apenas para deixar de ser, mas para o esquecimento de ter sido, que é não o não-ser, mas o buraco negro do ser. Quem consegue deixar um pai morto transformar-se num buraco negro de ser? Uma mãe, uma avó, um irmã ou uma irmã? Quem, como Orfeu, em podendo, em tendo forças, não vai ao mais fundo dos infernos resgatar o esquecimento desses que o amaram? Resgatar do esquecimento quem o amou é resgatar o próprio amor. Aqui, neste livro, a tentativa de resgate é a do próprio. Orfeu desce ao Hades, não para resgatar a sua amada, mas a si mesmo. Somos nós, cada um de nós, que está morto para si mesmo. Cada um de nós, vivos, ou assim o julgamos, arrasta-se pelo Hades em busca de si mesmo – já tínhamos visto aqui, semanas atrás, algo semelhante no Tártaro, de Catarina Santiago Costa. Escreve Cláudia R. Sampaio: “Estou viva. / E penso que para além de mim / não há quem o saiba.” (p. 62) Estes versos, que ecoam Álvaro de Campos, sublinham a dor de esquecimento que nos assalta e que pode ter estas formulações: se ninguém me sabe viva, estarei eu viva? Se ninguém me lembra, lembrar-me-ei eu de mim mesma? “Existo até à memoria / como um peixe às voltas” (p. 65) Ver no Escuro é também, ou principalmente, um livro sobre o medo do esquecimento A memória é tudo. Aqui, Deus é a memória de todos. Só Deus se lembra de tudo e de todos. Só Deus transporta em Si o que alguém foi; não apenas o que é, mas o que foi. E é aqui, neste lugar místico, que o sentido da poesia em Cláudia R. Sampaio aparece. O poema é uma imitação falhada de Deus. Imitação, porque toca os interstícios da existência e faz dela memória; falhada, porque nenhum poema nos leva a nós, a um eu que preste, é sempre uma ficção de eu, uma possibilidade de eu. “E dentro desta anáfora descobri que um / momento nunca é igual a outro. Como um poema. / Como eu, que nunca sou igual / a mim própria. Às vezes sou eu sem ser.” (p. 63) Ou ainda, como ela mesma canta acerca do amor: “E agora sou uma esponja e encolho / porque ainda estamos a reduzir-nos / em violentíssimo eco / Adeus, eus, eus” (p. 33) E o que diz acerca do amor pode ser dito acerca de cada um de nós e da poesia, como ela mesma escreve neste verso, à página 58: “não adianta escrever se não somos”. Esta redução do humano à impossibilidade de permanência, ver o humano pelo que não pode, atravessa todo o livro. “E dentro desta anáfora descobri que um / momento nunca é igual a outro. Como um poema. / Como eu, que nunca sou igual / a mim própria. Às vezes sou eu sem ser.” (p. 63) O humano é o que não é, a não ser em relâmpagos. Pior: o humano é o que já foi, e não há memória que nos salve. “Sou instante.” Mas não se segura o instante. Ninguém é o que é. O humano é aquele que vai sendo. A poeta, nos seus poemas, vive esta vertigem de nunca estar a ser, de sempre ter sido, e de estar arrastar a morte pelos dias até ao desaparecimento completo, até ao buraco negro do esquecimento. “E tudo é outro nome que não este.” (44), termina assim um dos poemas mais longos deste livro. O esquecimento é, podemo-lo dizer agora, apenas o outro lado de não se estar a ser, mas de sempre termos sido. É a parte angustiante do ter sido, o futuro do ter sido. Mas um futuro que não trará uma memória, não trará um passado. O nosso fim, o fim daquele que é ter sido, é um infinito buraco negro. Esta é a vertigem que percorre este livro de Cláudia R. Sampaio, propositadamente ad nauseam. Terminemos com um poema da autora (pp. 70-1): Sou instante. É assim que escrevo, com a alma enfiada nos dedos ou os dedos enfiados nos olhos miraculosamente sentada, respirando, sendo a faca cortada ao meio sendo a coluna um pouco torta perto de uma janela quase sempre aberta como se daí viesse tudo. Talvez a cabeça enfiada neste corpo seja um grito que vem de outra boca, ou de asfaltos, ou de peixes voadores. Talvez este desencontro inscrito em mapas venha de pássaros desajustados bicando planetas. Eu devia ser a água vertida em bebedouros imundos, tornando-os úteis devia ser a noite de sexo incendiada, em que o fôlego fosse altar devia ser do espaço onde me coubesse eu-só devia ser trocada por três côdeas ou por um livro do Cesariny ou por um pranto Qualquer coisa que me levasse daqui. Porque eu descalço-me antes de caminhar sobre mares. Com estes dois pezinhos aprendizes, assim me vou até ao fundo e no meio das convulsões e dos impulsos que me calçam, deverei existir Que a minha verdade me seja entregue por quem me entrar no infinito: ninguém Não duvido de que ficarei sozinha e há tanta beleza nisto que tremo toda enfiando um dedo na eternidade Podemos ser abandonados por todos mas seremos imortais por conta própria.
Hoje Macau Eventos MancheteRota das Letras | Guineense Abdulai Silá sobre construção da identidade nacional [vc_row][vc_column][vc_column_text] Abdulai Silá vê o escritor como um missionário que “vende a ideia de que existe um outro mundo onde as coisas são melhores”. O autor pinta a Guiné- -Bissau como um país que, “não sendo real, pode vir a ser”. Hoje debate com Sérgio Godinho o papel das letras na construção da identidade nacional [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] autor de “Eterna Paixão” – um livro de 1994 considerado o primeiro romance guineense – está em Macau, onde participa no festival literário Rota das Letras, partilhando hoje o ‘palco’ com Sérgio Godinho, num debate sobre o papel do escritor na construção da identidade nacional. “Todo o cidadão contribui, de uma forma ou outra, para a construção de uma identidade nacional”, principalmente tendo em conta que a Guiné-Bissau é “um país novo, ainda na fase de construção”. Mas há um grupo “que tem uma responsabilidade particular”, diz Abdulai Silá em entrevista à Lusa, referindo-se aos que “trabalham no domínio da cultura de uma maneira ou de outra, e muito particularmente no domínio da literatura”. “A identidade nacional é uma coisa que se forma e que tem como um dos condimentos fundamentais a utopia, entendida no sentido da crença naquilo que eventualmente podemos ser, podemos atingir, mesmo não o sendo. Por isso, o escritor tem um papel fundamental, ele pode contribuir mais do que qualquer outro para esse processo de criação do mito”, explica. Considerando a “situação um pouco anómala” que o seu país atravessa, o que “abala o cidadão comum”, Silá vê a escrita como algo para ajudar “a acreditar na possibilidade de mudança”. Tendo assistido ao “momento histórico extraordinário”, ao “fim de uma era, início de uma outra” que foi a independência, Silá não concebe uma escrita que não reflicta sobre o país. “Todo esse sonho que foi construído ao longo dos anos que antecederam e a seguir à proclamação da independência tem vindo a ser adiado de uma forma violenta. Não posso ficar indiferente a esta situação, isso toca-me e acho que, como cidadão, tenho a obrigação de, pelo menos para a geração vindoura, passar uma mensagem fundamental: há espaço para o sonho”, explica. Aos 59 anos, o escritor mantém a “crença inabalável” de que a Guiné-Bissau vai encontrar a estabilidade: “Tudo o que eu faço, digo e escrevo é nessa perspectiva. Não nos podemos deixar enganar pela dificuldade do momento. A tarefa é vender a esperança, é acreditar no futuro. Quem conhece a história da Guiné sabe que é uma história de vitória. Pode parecer um bocado ridículo tendo em conta a situação actual, mas é isso mesmo. A história é longa, a Guiné é construída por um povo que ultrapassou grandes desafios”. Uma bomba na editora Há mais de 20 anos, Silá co-fundou a editora Ku Si Mon, que até hoje publicou “uma quarentena” de livros. “Três amigos juntaram-se e decidiram, num momento específico da nossa história, criar uma editora porque, antes, durante o regime de partido único, não havia essa possibilidade. Havia de facto uma censura. Eu pessoalmente andei mais de dez anos com um livro na mão, a correr de um lado para o outro, a ver se conseguia publicar e acabei por entender que não havia saída”, explica. Quando se deu a “liberalização política” – Silá não gosta de usar o termo “democracia” por considerar que “de facto não há” –, os amigos aproveitaram a oportunidade. “Tínhamos consciência plena dos desafios que tínhamos pela frente. Tínhamos uma missão específica, publicar livros, banalizar o livro, no sentido positivo. Aqueles que na altura decidiam sobre quem publicava, criavam uma imagem em que o livro era uma coisa que estava nas nuvens, para pessoas privilegiadas. Era preciso acabar com isso”, descreve. O escritor dá o objectivo como alcançado, mas não sem muitos obstáculos: “Nos quatro primeiros anos, fizemos mais de 20 títulos, entre 1994 e 1998. O que é que aconteceu depois? Em Junho de 1998 houve uma guerra, uma das primeiras bombas caiu na nossa editora e destruiu tudo, perdemos manuscritos para sempre. Ficámos, de 1998 até 2004, sem poder fazer nada. Quando se aproximou o 10.º aniversário reunimo-nos e dissemos ‘Ok, vamos retomar actividade’. Mas a verdade é que a editora nunca mais foi a mesma”. Apesar da menor produtividade, Silá considera que “o caminho está desbravado” e existem agora outras editoras privadas. “Já é irreversível, já ninguém pode dizer que vai censurar a publicação de um livro, isso está fora de questão”, garante. O optimismo de Silá é transversal, do futuro do país até à literatura guineense, que diz ter tido “um desenvolvimento extraordinário nos últimos anos”. “Saímos de uma situação em que, quando se falava do país, dizia-se que não existia no mapa literário para uma em que anualmente são publicadas mais de duas dúzias de livros. Muitas destas publicações são feitas à custa do próprio autor, o que significa que esses autores estão a dar um peso cada vez maior à publicação do seu trabalho. Um livro é, no fundo, a revelação daquilo que um cidadão pensa, sonha, deseja em relação ao seu país”, conclui.[/vc_column_text][vc_cta h2=”” shape=”square” style=”flat” color=”peacoc” css=”.vc_custom_1489410159112{margin-bottom: 0px !important;border-top-width: 1px !important;border-right-width: 1px !important;border-bottom-width: 1px !important;border-left-width: 1px !important;padding-top: 20px !important;padding-right: 20px !important;padding-bottom: 20px !important;padding-left: 30px !important;border-radius: 1px !important;}”] Fala-se cada vez menos português na Guiné-Bissau, diz escritor O escritor guineense Abdulai Silá está preocupado com o estado da língua portuguesa no seu país, devido a um sistema educativo “falido”, que, diz, ignora o facto de menos um por cento dos guineenses falar o idioma no dia-a-dia. “O nosso sistema educativo está falido. Há cada vez menos capacidade de expressão em português. Isso chega ao ponto de ser preocupante, chega ao ponto em que pessoas que têm a língua como principal ferramenta de trabalho não a dominam o suficiente para exercer. Vêem-se acórdãos, até no supremo tribunal, cheios de erros”, lamenta o escritor, em entrevista à Lusa. Abdulai Silá diz também que há “cada vez mais pessoas a escreverem em crioulo”, o que considera “saudável”, salientando que “essa necessidade de diálogo com o cidadão é cada vez mais forte”, mas alerta para o facto de, por outro lado, haver “uma dificuldade real de utilização do português”. “Ensinamos o português como se se tratasse de um país onde as pessoas falam português no dia-a-dia. Isso é falso. Menos de um por cento dos guineenses fala português no seu dia-a-dia. Falam outras línguas, uma boa parte fala crioulo, outra nem sequer o crioulo fala. Não se pode ensinar essa língua ignorando essa realidade. O resultado é o que se vê”, critica. O autor apela a uma “política linguística clara”, que corrija situações como, por exemplo, professores que não dominam o português a ensinarem a língua, como diz ter conhecimento de existirem. “Tenho dois sobrinhos a terminar o 12.º ano e não são capazes de escrever uma nota simples, ou ter uma comunicação básica sobre o estado do tempo. Fazem tantos erros, tantos erros. Não são culpados, são vítimas”, relata. Com a comunicação oral “praticamente nula”, Abdulai Silá considera particularmente grave que as entidades que utilizam a escrita o façam de forma deficitária. “É muito difícil, por exemplo, ler-se os jornais, hoje. Na primeira página, erros crassos. Isso é muito mais grave do que se pode imaginar, num contexto em que não se fala, em que uma das formas mais eficientes de melhorar o conhecimento da língua é através da leitura. O guineense não fala português com outro guineense, é muito raro, mas escreve e lê o português todos os dias. Quando esse contacto com a língua não ajuda, porque está cheio de erros, as pessoas ficam na dúvida: será que é como escreveu o jornalista ou como em aprendi noutro local?”, alerta. Iliteracia, livros de fora Uma dificuldade ainda anterior a esta é a reduzida taxa de literacia do país, cerca de 60 por cento. Além dos que não sabem efectivamente ler e escrever, Silá lembra que há também “analfabetos funcionais”. “É o que temos e que é muito perigoso, pessoas que nunca pegam num livro, não cultivam a mente”, diz. Perante esse cenário, o escritor questiona-se: “Vale a pena dirigir-se a uma pequena minoria, essa meia dúzia de indivíduos que decidem sobre o destino do país?”. Para contornar essa situação, a associação de escritores procura “envolver cada vez mais, e através de acções concretas, o cidadão comum, sobretudo o jovem”. A associação tem cerca de duas dezenas de membros, mas as suas actividades são abertas a todos. Silá destaca os encontros mensais para discutir “a cultura de uma maneira geral”. “Num ambiente tão tenso como o que se tem vivido ultimamente na Guiné-Bissau, entendemos que deve haver momentos de lazer, momentos de reflexão, momentos de convívio, de pacificação. Há sempre um convidado que fez uma contribuição válida na história da Guiné-Bissau, seja de que área for”, explica.[/vc_cta][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][/vc_column][/vc_row]
João Luz EventosBernadette Terra publica série de livros infantis sobre Macau É lançada hoje a série de livros infantis “Mak, the city’s friendly dragon”, da professora Bernadette Terra. A série é constituída por 13 livros, que serão publicados um de cada vez, de seis em seis meses. Hoje marca-se a estreia com o lançamento dos dois primeiros episódios [dropcap style≠’circle’]“N[/dropcap]a verdade, nem acredito bem que hoje é o lançamento destes livros, nos quais trabalhei durante tanto tempo”, conta-nos a autora, Bernadette Terra. Esta sexta-feira é a concretização de um projecto de amor, com a publicação dos dois primeiros números da série de livros infantis “Mak, the city’s friendly dragon”. Com uma carreira como educadora, a agora escritora publicada começou a trabalhar em Macau como professora na Escola de Enfermagem. Mas sentia que os seus horizontes profissionais precisavam de ser alargados noutras áreas da pedagogia. Então, mudou-se para a Escola Internacional de Macau (TIS, na sigla inglesa), e o contacto com as crianças revelou-se enriquecedor a vários níveis, inclusive, inspirando-a a escrever os livros que hoje chegam aos leitores. “Estar todos os dias com os miúdos e vê-los a aprender e a evoluir ensinou-me também muita coisa”, revela a professora. Então, sem saber muito bem como, começou a escrever estas estórias que hoje são publicadas. Apesar de não ter um objectivo claro à sua frente, a inspiração compelia Bernadette Terra a escrever. Resolveu que o pano de fundo e personagem recorrente seriam a própria cidade onde vive. Começou por se inspirar e escrever sobre a cultura de Macau, sobre as suas festividades como o Ano Novo Chinês, o Festival dos Barcos-Dragão, e eventos como o bungee-jumping da Torre de Macau e o Grand Prix. Estes são os cenários onde a acção se desenrola. Só faltava uma personagem principal que, à partida, Bernadette não sabia se seria uma pessoa ou um animal. Então pensou que o mais familiar para a cultura chinesa, e para as crianças, seria um dragão, simpático, claro. Começou por lhe chamar Ma-Co, mas os seus amigos portugueses, e especialmente o seu marido, alertaram a autora para o facto de o nome não soar muito bem na língua de Camões. Quanto à cor que o dragão deveria ter, teve a preciosa ajuda da filha, que lhe deu a ideia de usar as cores da bandeira de Macau, ou seja, verde, amarelo e branco. Mak partilha as suas aventuras pela cidade com Mr. Panda, o condutor de autocarro, a vaca Mowie e o cão Luke, inspirado no animal de estimação da própria autora. Dragão solidário Desde que começou, Bernadette não conseguiu parar de escrever. Sempre que tinha um pouco de sossego e tempo lá ia tecendo as aventuras de Mak. “Mesmo durante os intervalos, à hora de almoço, ia para a biblioteca, ou onde conseguisse estar em sossego, e escrevia”, conta a autora. Bernadette recorda que deve ter havido uma altura em que o seu marido já não podia mais ouvir as ideias que tinha para os livros. Toda a gente que estava à sua volta estava, de uma maneira ou de outra, ligada à criação da série de livros. “Tive muita sorte de ter amigos que me ajudaram com este projecto, sem eles não seria possível. A minha filha fez o design das páginas, a nossa tradutora de chinês, na altura, tinha apenas 15 anos, é amiga da minha filha”, explica. As ilustrações são de Natsumi Agrada Kurisaki, as traduções para português e a edição em inglês foram feitas por amigas professoras. Quando pediu a Isabel Goitia, sua amiga e colega, se queria fazer a tradução para português, a autora recorda que a sua amiga sorriu e, prontamente, respondeu “claro que sim”. As coisas foram-se compondo baseadas num circuito de amigos dedicados da autora, até porque esta não tinha dinheiro para se lançar numa aventura destas sem a dedicação e voluntariado de quem a ajudou. Finalmente, Bernadette Terra tinha ambições solidárias para este projecto, uma veia comunitária. Como tal, dos lucros das vendas 10 por cento revertem para a Macau Child Development Association e outros 10 por cento para a Associação para os Cães de Rua e o Bem-Estar Animal em Macau. A ideia inicial era partilhar algo com a comunidade, não só as estórias, mas também retribuir solidariamente. A festa de lançamento da série de livros de Mak, o dragão simpático, acontece hoje na Creative Macau, no edifício do Centro Cultural, às 18h.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasDesejos de mais luz Santa Bárbara, 26 Fevereiro Antero de Quental por Almada Negreiros, retrato patente na exposição da Fundação Calouste Gulbenkian [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ontinuo sem perceber este preconceito em relação ao conto, que o desvaloriza como mero exercício literário entre a sublime poesia e o trabalhoso romance, que o arruma sem mais na prateleira das fracas audiências. Que género se aplicaria melhor ao ritmo de vida de hoje, ao nosso nível de literacia, ao tamanho do metropolitano de Lisboa? Ainda assim, há quem insista, por exemplo, em traduzir o cubano Virgilio Piñera, um dos grandes contistas latino-americanos, além de poeta, enfim, intelectual, a merecer leituras em cabal que inclui dramaturgia, romance, ensaio e percurso. Aliás, na lista de projectos, desesperante para apenas 24 horas em cada dia e uma conta bancária despida, tenho a edição do seu notabilíssimo La isla en peso, traduzido pelo Cabrita. Deixemos para depois o depois que acontecerá e concentremo-nos na certeza deste «O Grande Baro e Outras Histórias», com escolha e tradução de Rui Manuel Amaral, a partir de três volumes (de 1956, 1970 e no póstumo de 1987). O cubano cria ambientes claustrofóbicos, constrói exímias arquitecturas narrativas, esculpe íntimas personagens tendo o absurdo como pano de fundo, mas sustentando-se em uma cirúrgica atenção aos mecanismos do quotidiano. No beco sem saída dos dias, a escapatória pode estar no muro. A nenhum conto, maior ou menor, lhe falta a lógica interna de uma granada, com diálogos afiados, detalhes luxuriantes e olhar raiado de ironia. Leia-se pedaço d’«A Carne», que abre o cuidado volume (e rima com a contracapa). «Ali chegado, fez saber que cada pessoa deveria cortar da nádega esquerda dois bifes, em tudo semelhante a uma amostra de gesso que pendia de um reluzente arame. E declarou que deveriam ser dois bifes e não um, porque se ele próprio cortara da nádega esquerda um belo bife, convinha que a coisa avançasse a bom ritmo, isto é, que ninguém comesse um bife a menos. Assentes estes pontos, todos se dedicaram a cortar dois bifes das respectivas nádegas esquerdas. Era um espectáculo glorioso, mas que dispensa mais descrições». Detalhe de importância: assim começa a Snob, editora que absorve a livraria homónima de Guimarães, entretanto arrumada em caixas e tornada nómada pelo Duarte Pereira, com a cumplicidade da Rosa Azevedo. Procura, além de personalidade literária virada para raridades, estratégias outras de financiamento e circulação. Longa vida ao absurdo de editar! Santa Bárbara, 28 Fevereiro Perdido nas correrias, nem vi chegar a festa da carne. Não consegui a pausa, apenas o bálsamo de umas quantas páginas editadas por outros. A Anne, da Chandeigne, no meio da confusão da abertura da nova Librairie des éditeurs associés, teve tempo e gentileza para me enviar o encantatório álbum Le Chant du Marais, no qual Pascal Quignard vai de compor, com a ajuda ilustrativa de Gabriel Schemoul, uma perturbadora melodia sobre o desejo e a inveja. Um jovem cantor mata o seu concorrente sem com isso conseguir calar a voz que maravilhava a Paris do século XVI. Ainda parece ganhar com o sucedido, mas apenas o tempo necessário para que a armadilha se estenda em barroco esplendor. Schemoul põe a passar, em baixo contínuo, uma corrente de naturezas mortas, flores e raízes, restos, aqui um peixe, pequenos seres obreiros da decomposição, mariposas, ali um crânio. O fluxo passa por construções de carpintaria absurda, cruzamento de instrumento de tortura com exercício de geometria descritiva. Poderosa metáfora, a inveja feita máquina que se alimenta dos restos mortais do desejo. Nestas águas navega também «O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja», assinado pelo director do Hoje Macau. (Hesitei em escrever nestas páginas sobre ele, evitando mal-entendidos talvez morais. No espírito do diário, entendo dever obediência apenas aos apetites do dia, pelo que). Qual contador, são inúmeras as gavetas, portas, passagens e compartimentos secretos deste poderoso romance disfarçado de histórico, que fervilha de ideias. Pisando o chão do milenar confronto entre metades do mundo, possui como núcleo o projecto católico, centrado em Macau, de um arquivo de confissões destinado a facilitar o entendimento dos males do mundo. Dele se extrai caso exemplar, este de Vasques. Com ele andaremos por Coimbra, pelo desejo de partida, baloiçaremos em caravelas, instigaremos motins, conheceremos o exótico, o delírio, mas sobretudo o fel pestilento da inveja. Vasques rouba manuscrito de Camões e por ele se deixa devorar em crescendo. «Aquela obra era demasiado genial para lhe ser permitida a existência. Nós, os mortais, não aguentaríamos viver à sua sombra. Destruí-la seria um acto humanitário, uma bondade digna do grande amigo do Homem.» O achado desta narrativa, a pimenta desta viagem encontra-se na construção fantasmática de Camões, que nunca aparece estando omnipresente, magnífica e tóxica paisagem. Por instantes desfaz-se em volutas de perfume, quase sempre se ergue tornado arrasador. Causado sempre por aquele que em seu escravo se converteu. A inveja faz de nós escravos necrófagos. Biblioteca Pública, Ponta Delgada, 2 Março «Amem a noite os magros crapulosos,/ E os que sonham com virgens impossíveis,/E os que se inclinam, mudos e impassíveis,/ À borda dos abismos silenciosos…» O lançamento da Poesia Completa de Antero, na sua terra natal, aconteceu intenso por via do atentíssimo Luiz Fagundes Duarte, pelo olhar esclarecido de Leonor Sampaio, pelas leituras de Nelson Cabral, e as versões criadas por Ana Paula Andrade para a voz dos alunos do Conservatório Regional. Mas não consigo esquecer a carta. A Biblioteca, pela mão de Iva Matos e de Margarida Mota Oliveira, preparou pequena mostra de manuscritos e primeiras edições. E nela brilha com a luz do enigma uma simples missiva dirigida, como hoje, uma quinta-feira, «á noite», ao seu médico. «Peço-lhe o obséquio d’uma nova visita sua, amanhã, por qualquer hora que mais lhe convier, desde a uma da tarde até ao anoitecer. Sinto-me cada vez peor e desejaria ser novamente interrogado e examinado.» No dia seguinte, ao anoitecer, suicidava-se não longe daqui. Ajudará este volume a vencer esta morte? «Eu amarei a santa madrugada,/ E o meio-dia, em vida refervendo,/E a tarde rumorosa e repousada.//Viva e trabalhe em plena luz: depois,/Seja-me dado ainda ver, morrendo,/O claro sol, amigo dos heróis!» (de Mais Luz!)
Isabel Castro Entrevista MancheteSérgio Godinho, músico e escritor: “Voltar é mesmo uma alegria” [vc_row][vc_column][vc_column_text] Regressar a cidades onde já se esteve é ter a sensação de que o mundo não é só a nossa casa. Sérgio Godinho está a caminho de Macau, desta vez como romancista, para participar no festival Rota das Letras. Ainda em Lisboa, contou ao HM como nasceu o primeiro romance, que relação é esta com um novo tipo de escrita, e falou do disco novo que sai depois do Verão. Um álbum com uma cinematográfica ligação ao território [dropcap]C[/dropcap]Como é que aparece este “Coração Mais que Perfeito”? Aparece um pouco na sequência, ao nível do ofício da escrita, do livro de contos que saiu há dois anos, “VidaDupla”. São nove contos nos quais descobri uma vontade de escrever e também uma linguagem própria, uma voz própria. Surgiu um pouco por acaso, porque me pediram um conto – que está no “VidaDupla” – e depois apeteceu-me continuar. Quando acabei, senti que tinha de me abalançar, no sentido de ter vontade e de ter esse ímpeto criativo, a algo de mais fôlego, mais extenso, em que estivesse mais tempo com as personagens, onde as criasse e elas convivessem comigo e crescessem, fossem aparecendo outras. O romance não tem muitas personagens: tem duas principais. Tem uma mulher, que é a personagem principal, e um homem que é muito importante para a acção. Depois, tem mais algumas – poucas – personagens. Mas foi esse fôlego mais longo no qual me abalancei durante ano e meio. Não sou pessoa que escreva muito por dia, mas todos os dias tenho vontade de escrever. Não me obrigo. E por isso foi um grande prazer. Como é que se passa da escrita da canção para o poema, que tem outra estrutura, para o conto e, de repente, para o romance, que implica um envolvimento muito maior com as personagens e com a construção da narrativa? Foi uma aventura nova para mim porque nunca tinha tido uma coisa de continuidade assim, com todo esse tempo de maturação da história, das personagens, dos novos acontecimentos que vou descobrindo à medida que vou escrevendo. Não tinha uma estrutura fixa à partida. Tinha uma ideia de condução do fio da narrativa mas, depois, muitas coisas aconteceram, felizmente. Não tinha o esquema todo feito. Agora, como é que se passa? Não se passa. Embora nas canções, muitas vezes, haja personagens e narrativas, são actos completamente diferentes. A escrita de canções, desde logo, joga duas formas de expressão – a música e as palavras, as frases. A música tem códigos muito estritos, tem harmonias, tem progressões harmónicas, tem estribilhos, geralmente, tem regras muito fixas, dentro das quais há uma grande liberdade. As palavras têm uma métrica muito própria, que tem de ser musical, e não é por acaso que começo geralmente pela música. As palavras, quando aparecem, estão já a espraiar-se numa determinada frase musical. E têm rimas, quase sempre, é raro não ter uma canção com rimas, até porque gosto delas. Depois, há a conjugação dessas duas formas de expressão, para que pareça uma coisa única. A grande vitória de uma canção é nós sentirmos que aquela letra e aquela música sempre conviveram, e não podiam existir uma sem a outra. É evidente que também tenho versões instrumentais e já publiquei textos das minhas canções, mas é sempre uma parte de um todo. O todo é a canção, é o objecto canção. Portanto, são abordagens completamente diferentes. A escrita de ficção é uma escrita que vai acontecendo continuamente e que se vai estruturando. Uma canção é uma peça de joalharia. Ou de relojoaria. “Coração Mais que Perfeito” é uma história de amor – e eu diria que não poderia ser de outra maneira. Eugénia é uma mulher que nos é apresentada através de um acontecimento trágico. Depois vamos voltar atrás mas, de facto, há um suicídio, embora não seja completamente expresso, de um grande amor – e foi um amor mútuo. O amor não se degradou, simplesmente o homem, o Artur, começou a ter um processo de decadência psíquica em que vai perdendo o pé e ninguém o pode agarrar. E quem é esta Eugénia? “Fala de ti própria, Eugénia”, lê-se no primeiro capítulo. Eugénia é uma mulher forte – é uma sobrevivente –, embora os seus valores não sejam sempre os mais recomendáveis. Ela não é um exemplo, mas também não é um livro pedagógico, não tem de ser uma personagem exemplar. É uma mulher cheia de defeitos, os valores dela são fortes mas, por vezes, também são um pouco voláteis. Não tem muitas referências: a mãe não é referência para nada, o pai desaparece muito cedo, e ela vai vogando na vida sem grande rumo. Os trabalhos dela não têm um fito profissional, ela vai vivendo as coisas. Mas vai vivendo com intensidade. Há uma altura em que resolve prostituir-se, durante pouco tempo, porque sim, porque uma amiga o faz e ela tem uma certa atracção por isso, por experimentar – mas, a certa altura, aquilo corre mal. É o contrário dele: ele é um actor, que esteve na escola de teatro, que sempre teve um fito na vida. Quando comecei a construir as personagens, não descobri logo o que é que ele faria, qual seria a sua profissão, porque achei que deveria ter uma profissão que o interessasse. A personagem do actor sempre me interessou porque eu estou a criar personagens – no fim de contas, estou a ser um dramaturgo. E o actor, à sua maneira, está a criar personagens – já existem, mas está a dar-lhes o seu corpo, a sua intenção, a sua voz estilística. E esse sim, é mais próximo de mim, porque também já fiz trabalho de actor e achei que esse desdobramento de uma vida noutras vidas era interessante. Como se verá, é também por essa outra vida que tem que ver com o teatro que ele começa a perder o pé psiquicamente. Depois fica mesmo psicótico, mas é um processo longo, que ocupa a segunda parte do romance. Esse desdobramento de uma vida noutras vidas acontece também no segundo romance, que já está escrito? Não. É outra coisa, é um assunto completamente diferente. Está escrito. Daqui a um ano, espero, falaremos outra vez, mas não. É um assunto diferente, um romance mais concentrado, no sentido em que tem quase exclusivamente duas personagens e, a dois terços do livro, aparece uma terceira. É mesmo outro assunto. Este assunto passa-se ao longo de vários anos, num período extenso de tempo, e o outro não. O terceiro [livro] está parado porque estou a canções. Este ano sairá ainda um novo álbum, lá para Setembro. Sobre esse novo disco, o que é que já está pensado? O disco vai ter várias parcerias musicais. Já aconteceu, nalgumas canções, outros compositores fazerem as músicas e eu fazer as letras todas – desde as colaborações brasileiras aos Clã, com “O Sopro do Coração”, que tem música do Hélder Gonçalves e letra minha. Aqui, quis levar um pouco mais longe isso e, portanto, há canções que vão estar neste disco em que a música não é minha, mas em que estou a fazer também esses casamentos. Há duas canções – e essas são letra e música minha – que são originalmente do filme do Ivo Ferreira que está a ser rodado aí em Macau, e que são cantadas no filme pela Margarida Vila-Nova. O filme tem três canções minhas – duas delas, vou cantar à minha maneira no álbum. Há quase seis anos, quando falámos a propósito dos 40 anos de carreira, dizia que tinha vontade de voltar a Macau. Na altura, não era algo que estivesse em perspectiva. Depois disso, já houve dois convites e uma participação num filme que está a ser rodado aqui. Macau está a entranhar-se cada vez mais. É a sexta vez que vou a Macau. A primeira vez que fui, Macau era muito diferente, como é evidente. Foi em 1990. A Fundação Oriente convidou-me e fiz aí um concerto, depois também fomos a Goa e a Pangim, fui para a abertura oficial da delegação. Na altura, o Lisboa era o grande casino e depois havia os casinos flutuantes. Depois, há quase 12 anos, estive no Festival de Artes de Macau, mas entretanto tinha voltado lá. Estive no 10 de Junho há dois anos e agora regresso. Macau está a tornar-se cada vez mais familiar, porque vou conhecendo gente, outras pessoas com quem me cruzo. Estou muito curioso em relação ao festival Rota das Letras. Há dois anos, tinha estado com o Hélder Beja e o Ricardo Pinto, que tinham manifestado a vontade de ir ao festival e o aparecimento do romance propiciou isso. É mesmo com alegria que volto a Macau. Gosto muito de voltar aos lugares que vou conhecendo, ver o que está intacto, o que mudou, passear por ruas que já me foram familiares. Gosto muito de descobrir lugares, mas também gosto muito de voltar. Estive no início do ano no Rio de Janeiro, um lugar onde tenho onde ficar, em casa de amigos, que é uma cidade extremamente familiar e é muito bom tornar a calcorrear aquelas ruas. É a sensação de que o mundo também nos pertence. Sou um observador do que está à volta – observador em todos os aspectos, até no criativo – e voltar a Macau é mesmo uma alegria.[/vc_column_text][vc_cta h2=”Palavras e música no Rota das Letras” h2_font_container=”font_size:40px” h2_google_fonts=”font_family:Oswald%3A300%2Cregular%2C700|font_style:300%20light%20regular%3A300%3Anormal” h2_css_animation=”none” shape=”square” style=”flat” color=”chino” use_custom_fonts_h2=”true” css=”.vc_custom_1488974315816{margin-bottom: 0px !important;border-top-width: 1px !important;border-right-width: 1px !important;border-bottom-width: 1px !important;border-left-width: 1px !important;padding-top: 20px !important;padding-right: 20px !important;padding-bottom: 20px !important;padding-left: 30px !important;border-radius: 1px !important;}”]A primeira intervenção de Sérgio Godinho no festival literário de Macau está marcada para o próximo domingo, dia 12. Às 19h, no edifício do antigo tribunal, é apresentado o livro “Coração Mais que Perfeito”. No dia seguinte, no local que serve de sede ao Rota as Letras, pelas 18h, participa numa sessão com o autor guineense Abdulai Silá, em que vai estar em discussão o papel do escritor na construção da identidade nacional. Sérgio Godinho vai ainda participar nas sessões destinadas aos mais novos: na segunda-feira, está na Escola Portuguesa e, no dia seguinte, na Escola Luso-Chinesa Luís Gonzaga Gomes. Na quarta-feira, o escritor de canções sobe ao palco do teatro do Venetian, para um concerto que começa às 20h30. O músico vem acompanhado pelo pianista Filipe Raposo.[/vc_cta][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][/vc_column][/vc_row]
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteRaquel Ochoa, autora da biografia de Manuel Vicente: “O seu génio era, por natureza, caótico” No meio dos esquissos pragmáticos fazia poesia e filosofia, buscava eternamente um desconhecido para o conhecer e criar uma outra coisa. A paixão pela arquitectura durou até ao fim, tal como o lado pop que marcou um génio “irrepetível”. O livro “Manuel Vicente: A Desmontagem do Desconhecido” é hoje apresentado no edifício do antigo tribunal, no âmbito do festival Rota das Letras [dropcap]C[/dropcap]omo é que chegou a Manuel Vicente e à possibilidade de escrever a sua biografia? É uma aventura com muitos anos, porque escrever sobre Manuel Vicente é tudo menos fácil. Não é uma pessoa com um carácter e um percurso linear. Nenhum ser humano é, mas o Manuel Vicente destaca-se. O seu génio era, por natureza, caótico. Ele costumava dizer que a maneira de se ordenar era utilizando aquelas grelhas que ele usava muito na sua arquitectura. Quanto ao resto não seguia um padrão, não tinha uma forma de querer agradar a um qualquer parâmetro. Começámos este trabalho com o apoio do Centro Cultural e Científico de Macau. Um amigo que foi aluno dele, o Sérgio Xavier, disse-me: ‘Tu que escreves biografias vais adorar o meu professor, que é um homem que eu adoraria que alguém que não tem nada que ver com a arquitectura tentasse capturar a sua personalidade’. Fui um pouco sem saber ao que ia, mas fiquei imediatamente convencida. Comecei então a entrevistar Manuel Vicente, a conhecer alguns dos seus amigos. Isto durou dois anos e nunca pensámos que iria demorar tanto tempo a ser publicado o livro. O que levou a isso? Ele adoeceu e, antes disso, estava com trabalho e menos tempo. Por causa da doença afastámo-nos, ele afastou-se de toda a gente. Após a morte dele demorei a encontrar a finalização do projecto. Porquê? Este trabalho não é uma biografia, chamo-lhe ensaio biográfico. Se estava pensado para ser uma biografia, não pôde ser no final devido à sua partida. Houve histórias que ficaram por contar. O meu trabalho não ficou completo e tinha de assumir um risco. Ou finalizava a biografia com um método que não é o meu ou tinha de chamar-lhe outra coisa, e torná-lo num documento interessante e importante para entender a vida de Manuel Vicente. Aí foi essencial a aproximação e interesse de Rui Leão, que foi seu colega e que o conheceu muito bem. Deu-me algum apoio e a sua equipa direccionou-me onde estava perdida. Depois fiz várias entrevistas e pude completar esta biografia. Tive acesso a um trabalho do Bruno Alves, que fez uma tese de mestrado sobre o arquitecto. Que Manuel Vicente podemos ter no livro? Vamos ter o homem caótico ou o arquitecto que gosta de pop art? É uma pergunta à qual é difícil responder. Sempre quis mostrar o Manuel Vicente íntimo, que não era nada fácil. O meu foco não é, de todo, a arquitectura. Esta aparece porque é a linguagem dele, é a maneira como ele se projecta na sua construção como pessoa. Percebo pouco ou nada de arquitectura e, aliás, a feitura deste livro muda-me completamente a visão que tenho sobre ela, sobre as cidades. As conversas com ele alteraram também a minha maneira de olhar o mundo. Há uma alteração entre a Raquel que não conhece o Manuel Vicente e a Raquel que passa a conhecê-lo. Fascina-me o carácter, o pensamento filosófico. O que me interessou partilhar foi: porque é que este homem consegue pensar desta maneira. Ele próprio era uma pessoa do mundo. Muitos consideram-no um arquitecto de Macau, mas ele não gostava muito dessa designação. Não posso com toda a certeza dizer que não gostava, mas posso dizer que ele se via como um arquitecto do mundo. E com muito mundo. Essa é uma das facetas que tento ao máximo apresentar de uma forma muito simples, contando episódios passados em várias partes do mundo e as pessoas que o influenciaram. Uma das coisas que mais gosto de fazer na vida é viajar e identifiquei-me muito com o Manuel Vicente viajante. Há episódios incríveis na vida dele. Há um episódio em que ele tem a oportunidade de dar quase a volta ao mundo durante seis ou sete meses. A primeira mulher está grávida e, por um acidente de percurso ele perde um transporte, e quando chega à maternidade a mulher já tinha tido o filho. Obviamente ela não gostou, ele conta isto com imensa pena, mas este episódio revela bem o viajante que Manuel Vicente era e também o que é viajar: faz-nos também perder muitas coisas. Até ao fim da vida, lidou com as consequências de ser um viajante e de não ser um homem que assentou só num sítio. Falo nomeadamente da dificuldade que é estudar a obra arquitectónica dele, que é uma obra dispersa. Que pessoa foi o Manuel Vicente que não está espelhada nos edifícios que desenhou? Há outro lado? Sem dúvida. Qualquer pessoa que tenha tido a oportunidade de privar com ele entende essa espontaneidade com que ele falava e se incorporava nas coisas. Ele tinha uma forma de ver esta planta que aqui está numa rua, numa cidade, num projecto. Tinha uma maneira de emergir nas coisas. Incorporava-se nas coisas com um mergulho completamente louco, de uma maneira incansável. São épicas as histórias dos seus ateliers, em que todos viviam praticamente neles. Ele impunha esse ritmo, mas aquilo era uma festa, não era nada imposto. Esta é talvez a faceta mais conhecida dele, a maneira fogosa com que ele vivia as coisas. Para mim, o mais interessante foi captar tudo isso em discurso directo. É ouvir a maneira como ele sussurrava as coisas. Em pormenores tentei ao máximo trazer essa voz dele, dos tempos que precisava para começar a falar das coisas. Não o vejo ou nunca o vi como arquitecto, como os outros olham para ele e têm um enorme respeito pela sua arquitectura. Entendo esse respeito, mas o que me fascinou foi o pensador Manuel Vicente. A maneira como ele pensa sobre a construção de uma identidade, de um povo. Quando pensamos na arquitectura pensamos em algo estático, com números, linhas, e ele ia além disso. Ia além desse pensamento pragmático. Sim. Ele tinha uma objectividade que é clara nas suas obras, mas era dentro dessas linhas que ele criava poesia. Eu também o via como poeta. Estava sempre a fazer grandes anotações de frases que ele dizia e que eram autêntica poesia. Confesso que vi o meu trabalho inacabado, mas chegámos a um produto final que vale a pena. Não é por acaso que não existem milhares de biografias sobre ele. É muito difícil encontrar um fio condutor para a história da vida dele. Era um homem de uma errância em relação ao pensamento e espaço físico onde viveu, e à própria arte que praticava. Ele recebeu influências de arquitectos também eles completamente erráticos e fora do sistema, e tudo isso é difícil de compilar e colocar numa obra biográfica. Nessas conversas como surgia Macau? Surgia de forma espontânea, era um território que lhe dizia muito? Macau surgiu nas nossas conversas constantemente. Não houve uma conversa em que Macau não surgisse. Era muito giro, porque ele tinha várias Macau na sua vida. Tinha a Macau que guardava de forma cinematográfica na sua cabeça, do período em que chegou [ao território], daquilo que foi a primeira grande paragem em termos profissionais. Depois tem a fase de Macau de grande trabalho e intervenção na cidade. Depois há uma terceira Macau, de fazer o seu trabalho olhando para as condições políticas que aqui existiam. [Desse período] também tem bastantes histórias para contar, mas sempre reservado. Muitas das informações nem surgem em discurso directo, mas sim com base em jornais. Há depois uma última Macau, quando ele tem cá o atelier, mas está baseado em Lisboa. É a Macau em que tudo o que ele é e sente vem daqui mas, ao mesmo tempo, com algumas amarguras, nomeadamente a história do Fai Chi Kei. Quando demoliram o complexo de habitação pública. Ele tem um episódio que acho curial. Quando lhe perguntei o que achava desta demolição, conta que, durante os primeiros anos de Macau, houve alguém que tentou alterar a fachada de um edifício que ele tinha feito e que aquilo o transtornou por completo. Aí era o Manuel Vicente ainda jovem. Ele disse-me isso de uma maneira muito gira: ‘A minha tensão arterial foi para um nível que nunca mais saiu de lá. Percebi nesse momento que as minhas obras são as minhas obras, e eu sou eu’. Então, em relação ao Fai Chi Kei, ele dizia que era uma pena, mas que as cidades evoluem. Que lhe custava, mas que não ia pensar muito nisso. Que outras mágoas levou de Macau? Ele não era um homem de muitas mágoas. Esta é a resposta politicamente correcta, mas é verdadeira. Ele era um homem que respirava a projectar e dizia que a vida dele era fazer arquitectura. A única mágoa dele foi talvez não lhe terem dado mais trabalho. Acredito que o projecto da Expo 98 que foi demolido também tenha sido uma mágoa para ele, por ser a obra lindíssima que era. Teria outras, mas estas eram as mais evidentes. Ele era uma pessoa que explodia quando tinha de explodir, eu ainda tive uma quota-parte disso, mas não se compara a outras situações que aconteceram. O Manuel Vicente que conheci, nos últimos anos, é alguém completamente resolvido, à excepção de não se conformar com o facto de ter menos trabalho. A arquitectura esteve à frente da vida pessoal? Não sei se tenho estatuto para responder a isso. Sei que pôs a arquitectura à frente de tudo e mais alguma coisa, muitas vezes. Não sei se fazia isso de forma sistemática. A arquitectura era a sua grande paixão, mas adorava os filhos. Sempre que podia falava da segunda mulher, Teresa, falava com imenso respeito da primeira mulher, e a legião de amigos era muito referida. Era um homem de afectos, terá tido muitas loucuras e, nessa busca pela arquitectura, terá feito alguns atropelos. O livro chama-se “A Desmontagem do Desconhecido”. É o desconhecido para além do que foi edificado? É enigmático, foi difícil pensar um título à altura. A desmontagem vem da maneira que ele tinha de ver as coisas, de as desmontar. O desconhecido surgiu porque tudo o que era novo, o que ele não conhecia, era o que o animava. Percebi isso nele: ele queria ir em busca do desconhecido para depois desmontar e montar de novo à maneira dele. Há muitas histórias da infância neste livro, sobre a deficiência que ele tinha numa anca. Teve uma infância demolidora, passou 12 anos numa cama. Talvez venha daí a vontade de ir à aventura. Sim. Quando entendemos a infância que ele teve e de como a família o apoiou, que ele talvez não contasse no escritório, é interessante percebermos isso. É como a aventura na Índia, que o marca enquanto jovem. Ele tem também uma aventura em Karachi, no Paquistão, e o regresso da Índia é uma viagem que dá um livro. São coisas que se narram de forma breve e consistente neste livro, e que nos fazem aproximar de novo desta pessoa, que é muito saudosa para Macau e Portugal, para o mundo da arquitectura e dos pensantes que gostam de falar com alegria, a sorrir. Ele era essa pessoa. Que legado deixa ele? Há muita gente que, a partir do momento em que entra em contacto com ele e com a sua obra, percebe que Manuel Vicente é irrepetível. Tem este lado pop, uma linguagem apelativa para um jovem que goste do lado disruptivo da arquitectura. Acho que as pessoas que se interessam por este mundo não consensual da arquitectura o vão procurar e estudar.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA sabedoria do cão [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á poucas figuras históricas pelas quais nutra o interesse e a admiração que nutro por Diógenes, o Cínico. Filósofo contemporâneo de Platão, Diógenes cunhou o termo pelo qual identificamos uma particular disposição para a vida, i.e., o cinismo, um étimo que significa, literalmente, “aquele que vive como um cão”. E era assim que Diógenes vivia: alimentando-se de restos, vagueando sem rumo pela cidade e dormindo dentro de um barril. Desprezava a autoridade, as honrarias e a riqueza; deambulava pela ágora com uma lamparina acesa e, quando lhe perguntavam que fazia ele com uma lanterna em pleno dia, respondia: “procuro um homem”. Não era simpático para com os seus contemporâneos: de Platão dizia que este o aborrecia de morte, dos sofistas, que eram os demagogos que a populaça gostava, aos retóricos, que discursavam pela reputação, chamava-lhes “poços sem água”, aludindo à preferência destes pela forma do discurso sobre o conteúdo. Alexandre Magno, o homem que fez Júlio César chorar desconsoladamente quando este leu a biografia do primeiro – não terei eu razão para chorar, disse Júlio César aos amigos, quando Alexandre com a minha idade já tinha conquistado tantas nações e eu sem fazer nada digno de menção? – quis conhecer Diógenes. Desse encontro – entre o homem que tinha tudo e o homem que nada queria – resultou um dos episódios mais comentados da história da filosofia. Alexandre terá dito a Diógenes: Diógenes, eu sou Alexandre Magno, pede-me o que quiseres e eu dar-to-ei, ao que Diógenes terá respondido, numa das versões, Alexandre, não me tires aquilo que não me podes dar, e, noutra, mais comummente difundida, o que quero, Alexandre, é que saias da minha frente, pois que me tapas o sol. Alexandre terá depois confessado aos seus generais incrédulos que, se não fosse Alexandre, gostava de ser Diógenes. A história de Diógenes sempre me fascinou. Tanto que, numa peça de teatro que escrevi sobre a Macha, uma das personagens das Três Irmãs, de Tchekhov, o velho cão aparece como personagem. Não raras vezes, quando ando por Lisboa e pelas suas tascas, encontro pessoas que, aparentemente, vivem como Diógenes, cada uma delas regressando do vinho barato aos barris de cartão onde improvisam um abrigo contra a noite e contra a escuridão do mundo. Quando atalhamos conversa, dou por mim à procura do Diógenes que pode haver neles, da ironia cortante do velho cão, do desprezo que caracterizava a forma como Diógenes encarava a vida e as coisas com que a polvilhamos para lhe dar sentido, da sabedoria através da qual ele colocava os seus interlocutores no sítio, muitas vezes um sítio que estes não conheciam mas que lhes era, afinal, adequado. O que encontro, invariavelmente, são histórias de violência, histórias desconexas de vidas que a certa altura se perderam do norte magnético pelo qual se rege a sociedade dos muitos, o que encontro é gente vergada pelos requisitos da vida que, por mau jeito ou inépcia, nunca foram capazes de reunir. E talvez seja uma coisa tonta, esta de procurar a sabedoria canina de Diógenes no Cais do Sodré, tão tonta, porventura, como ir no safari do sentido da vida para as margens do Ganges, mas a verdade é que continuo a pensar na possibilidade de dar com um destes muitos párias com os quais nos cruzamos, de lanterna na mão em pleno dia, no Largo de São Paulo, à procura de um homem.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasCatarina Santiago Costa: “Tenho sempre um especial interesse pela poesia feminina” [dropcap]T[/dropcap]ens dois livros de poesia editados, ambos pela Douda Correria e ambos em 2016, Estufa e Tártaro (acerca do qual se escreveu recentemente aqui no Hoje Macau). Consideras que são livros diferentes, isto é, com estéticas diferentes, ou antes pelo contrário, há uma continuidade do primeiro livro no segundo? Estufa foi editado em Dezembro de 2015; Tártaro, em Junho de 2016. O que se passou foi que, aquando do lançamento da Estufa, já o Tártaro estava na gaveta da Douda Correria. O segundo não prolonga nem completa o primeiro. Estufa foi escrito sem saber que era livro, teve de ser cortado à catanada e depois muito cinzelado; o Tártaro nasceu, como o próprio nome indica, caoticamente. Talvez de tão impetuoso, parecia impossível de ser mexido e de uma deformidade fatal. Teve de dormir para ser cirurgicamente cortado e colado. A parceria com a Douda Correria é para continuar? Não sei o que o futuro trará mas sei que a Douda Correria dança um pas de deux com os seus autores. Editora livre que é, não dita sentenças nem espera (muito menos exige) exclusividade. Quase todos os autores da Douda relacionam-se com outras editoras. Mas confesso que gosto de ser convidada e foi isso que o Nuno Moura fez, convidou-me a enviar-lhe a Estufa. Quando chegou a vez do Tártaro, já me sentia confortável para o enviar por iniciativa própria. Há neste momento, em Portugal, muitas jovens mulheres a publicar poesia, e com qualidade. Sugeres alguma explicação para isso? Na minha opinião, o aumento consistente da educação e da emancipação das mulheres, que, como sabemos, são processos lentos e demoram décadas a produzir resultados palpáveis. O importante é que, mais ou menos jovens, não faltam poetas vivas para encher as estantes dos leitores: Regina Guimarães, Ana Luísa Amaral, Rosa Maria Martelo, Adília Lopes, Cláudia R. Sampaio, Raquel Nobre Guerra, Rosalina Marshall, Maria Sousa, Inês Dias, Rita Taborda Duarte, Ana Tecedeiro, Matilde Campilho e tantas, tantas mais. Quais as tuas afinidades electivas, na poesia? Tenho sempre um especial interesse pela poesia feminina, especialmente a de americanas do século XX – Sylvia Plath, Anne Sexton, Sharon Olds… E, apesar de ser do século XIX, também tenho uma fixação pela Emily Dickinson, que tem poemas de uma mística sensual que me cativam – há ali um contraste que gera um equilíbrio estranho. A Emily Dickison é uma poeta extraordinária. E, para além da mística sensual, com a que te identificas, há também uma solidão imensa naquelas páginas. Sim, era uma monja confinada ao domicílio, que chegou a frequentar um seminário, e que convoca uma sensualidade e um erotismo místicos que verte na sua poesia. O resultado é uma contenção explosiva. Atesta-o, por exemplo, este poema (aqui, na tradução do Jorge de Sena): “Morri pela Beleza – mas mal eu / Na tumba me acomodara, / Um que pela Verdade então morrera / A meu lado se deitava. // De manso perguntou por quem tombara… / – Pela Beleza – disse eu. /– A mim foi a Verdade. É a mesma Coisa. / Somos Irmãos – respondeu. // E quais na Noite os que se encontram falam – / De Quarto a Quarto a gente conversou – / Até que o Musgo veio aos nossos lábios – / E os nossos nomes – tapou.” Estás a escrever um novo livro? Penso que sim. Mas ainda não tenho a certeza. O que te leva a não ter a certeza? Tenho escrito em torno de um tema que me tomou – não o determinei mas constato que estou cativa daquele lugar. Mas só digo que escrevi um livro quando não há ponto de retorno, quando já ali está, mesmo que venha a ser sujeito a alterações. Ainda estou naquele estágio em que posso implodir tudo. Para além da poesia, escreves prosa, ficção ou ensaio? Por minha iniciativa, escrevo sempre poesia. Mas já escrevi notícias, fiz entrevistas, press releases, sempre em trabalho. Fui convidada a escrever um texto dramático infanto-juvenil em conjunto com a Teresa Coutinho (actriz) e o Pedro Moura (guitarrista) para a Trupe do Bichos. Estou a gostar imenso da experiência. Mas não tenho nenhum projecto em prosa no horizonte.
João Paulo Cotrim PolíticaSubidas Horta Seca, 22 Fevereiro [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]inda Helder, claro, que há muito para digerir no seu mais recente, Camões e outros contemporâneos (Presença). Ninguém como ele, justamente, fez de Camões meu contemporâneo. Puxou dos altares mais ou menos laicos, sacudiu-lhe o pó por desfastio, e, na vez de lhe puxar lustro, leu-o sem o retirar do seu tempo. Percebeu, então, que o poeta havia sido pioneiro do entendimento do corpo como instrumento de conhecimento da natureza das coisas, e com isso se arrogava o direito à felicidade na terra, para já, sem se desfazer da possibilidade de a repetir nos céus. Além dessa humanidade toda feita de malandragem, muito mais descobriu embarcando com ele, por exemplo que «O seu poema havia sido afinal uma viagem através de dúvidas em relação ao passado, de desespero em relação ao presente e de incerteza em relação ao futuro. Nós somos esse futuro.» Vai ao osso, este «Luso, filho de Baco», na interpretação sempre deleitosa, mas também na conclusão desgostosa. «Fazendo jus aos avisos de Sá de Miranda e de Camões, as riquezas das colónias foram servindo, ao longo dos séculos, para sustentar a oligarquia portuguesa, e por isso pouco serviram para o desenvolvimento económico e social da nação portuguesa.» Horta Seca, 22 Fevereiro Auto-retratos, de Paulo José Miranda, foi incluído na pequena lista dos candidatos ao grande prémio das Correntes d’Escritas, que distingue o melhor livro de poesia dos últimos dois anos. Os prémios literários tornaram-se, por isso, tema da minha agenda. E temo que assim continue, em chegando ao festival. Não acredito na fórmula, que pouco diz da real qualidade, que depende de tantas variáveis quanto combinações no euromilhões, que gera mais intrigas que telenovela mexicana, que excita bastidores e desperta os podres poderes. Está por fazer estudo aprofundado que, excluído o não despiciendo cifrão, me diga em que serviu ao labor literário do autor laureado. Reforço de auto-estima? Meia hora de visibilidade? Por dever de função, pode ganhar-se mais quatro ou cinco leitores. Talvez. Na arquitectura das convenções percebe-se que pode vir a ser ora porta, ora varanda, aqui parede falsa e ali escada. Fica por saber que construir: albergue espanhol ou casa de repouso? Coube em sorte Armando Silva Carvalho, parecendo confirmar por aqui a tendência de premiar mais a obra completa, que o volume solto. Antes assim. Podia ser pior, muito pior. Correntes d’Escritas, Póvoa do Varzim, 23 Fevereiro Sísifo fecha a trilogia e empresta-lhe o nome. Depois da paixão, em Gnaisse, e da perda, em Por Mão Própria, somos chamados à iniciação com Petrarca a marcar as respirações e tendo Camus por companheiro. Nada mais, nada menos. Luís Carmelo atinge aqui um cume. Logo no horizonte se apresentará montanha maior, mas este desafio foi domado. Para além do caleidoscópio da narrativa – um achado, este modo de organizar o que se vai contando desfazendo as coincidências, iluminando perspectivas ao infinito – as personagens possuem cativante densidade e as rochas em que sustentamos os passos da subida são de prosa poética brilhando com grande intensidade. Esta semana, que acompanhei as suas ansiedades em variados momentos, percebi o que sabia. A vista que conta alcança mais escalando o monte Carmelo, e basta relembrar o seu Genealogias da Cultura, para tornar cristalino o que digo. O Pedro Teixeira Neves, ao passar-lhe a palavra, aqui na mesa, disse que ainda não tinha a atenção que merecia. Alguma ganhou ao responder ao mote «se as torturarmos as palavras acabarão por confessar» com uma metáfora que sobrevoou o Cine-Garrett cheio: um dos mais belos objectos inventados pelo homem é o boomerang, que constrói espaço com velocidade e movimentos sobre si a partir de uma dinâmica entre dois pontos. Para o mano Luís, que explicou com a sua característica dança de braços (ver foto), os textos que foram desenhando nos ares a tradição de que somos feitos, resultam da dinâmica entre a revelação e a confissão. Tocar o alto e experimentar o íntimo, que mais interessa? Atlântico, 24 Fevereiro Para a Isabel, poema breve por acabar. «Palma sobre palma/estendi-te a mão/para que não estivéssemos sós/ao descobrir na sabedoria/do crepúsculo uma quinta/estação pós-primavera//a das reparações» Correntes d’Escritas, Póvoa do Varzim, 24 Fevereiro Com tanta palavra atirada ao ar, o chão dos festivais literários muda com os dias consoante o lento desfiar dos oradores. Pode ser tapete, conforto baço que abafa o som dos passos, onde só o pó contém memória de vida. Pode ser feito de berlindes, obrigando-nos a esforços compassados para não cair em tentação. Algumas palavras, de tão leves, desfazem-se no ar com o som das palmas. Outras são vistas sobrevoando cabeças em busca de memórias que as conservem. Também as há pesadas, das que, ao cair e se não nos desviarmos, nos pisam com estrondo os calos, nos marcam com nódoas e arranhões. Vai sendo raro, que a cultura do presente pede ar condicionado, maneiras de salão, o refresco mentolado do chiste. Brita ou areia, acontece por vezes. De entre todos, abomino o chão movediço, pegajoso da babugem do diz que disse, da quotidiana telenovela que mastiga cada vocábulo em asco morno. De súbito, o relâmpago. Alguém diz que a literatura se faz, não para reproduzir o mundo, mas para o acrescentar. Em luta. «Literatura – a poesia – é uma arte que se move por uma rebelião contra as palavras, num perpétuo braço de ferro contra elas. As palavras, amiúde, não seduzem o poeta: atacam-no, ludibriam-no. E ao escritor cabe esta incomodidade, esta raiva, por ter de escrever com as palavras, gastas, dos outros, não para dizer o mundo – para isso basta-nos uma mão cheia de enredos de dicionário –, mas para o construir pedra a pedra». Rita Taborda Duarte deu-me chão. E se ando precisado dele…
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasDeus é o nada a olhar-se ao espelho [dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]itornelos, Abysmo, 2014, é o primeiro e único livro publicado pela poeta Joana Emídio Marques, até à data. O livro é composto de três partes: “Ritornelos”, com 52 poemas; “Cânticos da Floresta”, com 14 poemas; e “Litanias”, com 8 poemas. E entre cada poema da primeira parte do livro encontramos as belas ilustrações de Bárbara Fonte (nas duas partes finais do livro, as ilustrações aparecem no início e não entre poemas). Uma vez mais, o título do livro dá-nos alguma indicação fenomenológica acerca daquilo que nos mostra. Ritornelos é um termo musical (dois pontos seguido de uma barra vertical), que indica a repetição de uma parte da partitura, isto é, a repetição da sua execução musical. Pode também tratar-se da indicação de um refrão. Aqui, e partindo da sua função musical, a palavra remete para uma ideia próxima da do devir e não da repetição, como se se tratasse da vida como uma repetição infinita, mas sempre diferente. Em suma, um voltar atrás, não da mesma maneira – isso seria um eterno retorno – mas sempre de modo diferente. Múltiplos modos diferentes e nenhum melhor do que o anterior, pois trata-se de um devir sombrio, como se o infinito ou a repetição do infinito não passasse do eco de uma gargalhada de Deus: “(…) tudo isto / que se repete repetindo-se / eco da gargalhada de Deus.” (p. 51) O devir aparece-nos logo nos primeiros versos: “Acordando infinitamente / para o que há-de vir / (…)” Embora seja ao ritornelo 25, da primeira parte, página 57, que o devir se assume em toda a sua pujança: O que se torna tempo não poderás somá-lo é abissal e infinito esperar que nasça o princípio no interior do que só vês de fora. Não, não podes somá-lo entre os dedos idênticos nem à verdade nem à carne, o que se torna tempo é este exacto instante que se cumpriu se perdeu. O termo devir aparecia já à página 47: “como se soubesses o devir do tempo / (…)”. Não há, contudo, ou parece não haver um sentido positivo neste devir, em Joana Emídio Marques. O devir é negro, sombrio, onde a morte mesma não é abrigo. Escreve à página 29: “O Ser não devolve o não Ser / o símbolo não devolve o sentido.” Ou ainda nos versos finas do poema à página 63: “Um homem cai / num buraco aberto pelo tempo / mergulha / na láctea corrente de lírios e desaparece. / Depois outro e outro ainda / até não haver qualquer rumor / que não seja o da Babilónia / bebendo sofregamente / na corrente fluvial os lírios de leite.” Esta presente consciência da perda, contínua consciência de uma falta de sentido, ou pelo menos de uma qualquer possibilidade de alcançá-lo, vê-lo-emos melhor no final deste texto. Por ora, mostremos como no humano, a única possibilidade de fuga, que seria a invenção do outro, a transformação do outro numa amplificação do eu, acaba sempre por se virar contra nós, porque é sempre nas palavras e na necessidade que elas têm de sentido que o outro vive, como escreve a poeta no belo ritornelo 39: Eras agora voltas ao fogo à tarde de experimentar estar entre os reflexos. Eras agora a voz vem desmembrar o passado em presente. Eras sem acidente que evocasse o princípio. Eras, quando eu era eu te designava te existia. Este poderoso poema, imerso numa ontologia do devir, em que tornar-se é o único lugar disponível, repete a palavra “eras”, como expressão fundamental do humano. “Eras”, segunda pessoa do pretérito imperfeito do verbo ser, sugere a ideia de nevoeiro, a ideia de estarmos imersos num ambiente em que não vemos o que está a acontecer, ambiente próprio da memória e da literatura – era uma vez –, que pressupõe um nunca ter sido. Este ver, em cada um de nós, simultaneamente uma memória de outro e um nunca ter sido, revela-nos antes de mais como um ser de palavra, um ser de continua transformação através da palavra, que é o modo como a consciência tem acesso ao que não é a própria consciência, um reflexo de si mesma, que é já um outro. Dito de outro modo: “Eras / agora voltas ao fogo / à tarde de experimentar estar entre os reflexos”; cada um de nós é para nós mesmos um reflexo derivado de se experimentar, isto é, um reflexo derivado dos outros. “Eras” é uma expressão reflexa de nós mesmos, aqui e agora e no tempo, que também ele só existe numa permanente mudança, “o que se torna tempo / é este exacto instante / que se cumpriu / se perdeu.” (25, p. 57) Por isso, Beirute – no ritornelo 27 – somos todos nós e todos os tempos do mundo. Beirute será ainda amanhã, quando amanhã talvez nem exista; Beirute será ainda no início dos tempos, quando este talvez não tenha sequer existido. “Beirute / e já não há carne que possa chamar um nome / (…) // E já não há carne / a que se possa chamar um nome. / Só Deus atravessando uma palavra, / carregando-a nos braços / devolvendo-a ao sono, anuncia: / Beirute.” A capital da Síria, para além do que hoje é, para além do que foi ao longo dos tempos, assume também aqui o símbolo de não sentido do mundo, de não sentido do humano. Estamos continuamente entre, a caminho de nos tornarmos nós mesmos – em sentido nietzschiano – e de nos tornarmos nada; um nada que já fomos e que tornaremos a ser. Mas também encontramos a identidade entre devir e existência na segunda parte do livro, em “Cânticos da Floresta”. À página 131, cântico 3, Joana Emídio Marques escreve: “Já não sou a minha carne / e o carrossel gira, / gira, gira, gira, / passa por ti e não pára. / Já não sou a tua carne / és Outra, és Tu.” No fundo, a vida não pode ser vivida a não ser que seja uma criação. Melhor seria dizer, como se adivinha que a poeta diga, a vida só pode ser vivida se imaginada, como quem agora lança uma linha ao mar e imagina um peixe no futuro. Mas, para além desta sombra de Nietzsche, evidentemente um Nietzsche apropriado pela poeta, ou até mesmo um Nietzsche à revelia da poeta, estende-se também uma solidão enorme, onde o início do cântico 4, à página 133, o enuncia de modo belo e aterrador: “Aqui / na casa das cadeiras vazias / (…)”. Este aqui somos nós na beira da página, e sempre na beira da vida. Mas esta solidão, que é reflexo da impossibilidade de reconciliação com o espelho, com os outros, connosco – e qual nós, aquele que estamos para ser, aquele que fomos ou aquele que vamos sendo? – já se encontrava desde o início do livro, em todo o primeiro poema, que começa “Acordando infinitamente / para o que há-de vir / as horas caminham no sentido contrario ao dos pássaros” (e poucos livros terão um início tão próximo da perfeição), e o poema termina “E agora onde me vão eles enterrar?” Esta impossibilidade de reconciliação, seja com o que for ou com quem for, ancora num imenso solipsismo, fazendo deste livro, já longe de Nietzsche, um devir negro, um devir sombrio. Este solipsismo, encontra-se enunciado de modo mais metafísico ao poema 3 da primeira parte do livro: “Entre os possíveis e as coisas / não ser nada, / nem sequer inclassificável.” Por isso, podemo-lo dizer agora, a presença contínua de Deus ao longo do livro nos aparece mais como nada do que como Todo. Deus é a solidão perfeita, redonda, sem mácula, sem passado, sem futuro, sem lembrança ao rés da pele, sem desejo. Quando se escreve Deus, neste livro, escreve-se nada e solidão. Deus surge no livro apenas ao poema 16, com os seguintes versos: “No fim da penumbra / Deus chamou-te a olhar / três noivas-cilindro / erguendo sobre o mundo seus corpos brancos / seus corpos-silo / prostrado na solidão dos milénios.” Aparece depois várias vezes ao longo do livro e, quando não aparece literalmente, aparece em metonímias, sinédoques, antonomásias. Mas sempre significando o misterioso absoluto e infinito nada. Deus é o nada que se olha no espelho. O silêncio a parte musical do nada. Porque a solidão, que é o nada fazendo-se humano, tem também o seu lado musical, o silêncio, e que percorre as páginas deste livro, como não poderia deixar de ser, sendo ele tão musical, desde o título ao último verso. Recuperemos agora aquilo que mostrámos atrás acerca da consciência de uma falta de sentido, ou pelo menos de uma qualquer possibilidade de alcançá-lo. Este livro de Joana Emídio Marques, uma espécie de itinerário de Deus a Deus (que é o nada a olhar-se ao espelho), começa com os versos já citados, “Acordando infinitamente / para o que há-de vir”, e termina com este “Se acordar agora adormecerei?”, perfazendo formalmente um percurso no sonho. Toda a existência é sonho, ou parece ser um sonho, algo que não é nem ser, nem não-ser. Ritornelos mostra-nos que nunca chegaremos a saber se existimos ou se sonhamos, se estamos vivos a caminho da morte ou mortos a caminho da vida. O devir, o nada, a solidão… o que é este mundo? O que é eu? Por quê a vida? “ – Eu Sou, / gritei depois de morta.” (p. 107) Terminamos com um poema de Joana Emídio Marques, o cântico 8, à página 139: Não sou eu que vivo, mas a flor que dando-se às eternidades pretéritas respira no que desconhece a beleza inaugural do dia. Já não sou eu que vivo mas o tempo estranhado pelo sem-tempo em madrugadas tão plenas que tecem caminhos. Um dia, quando voltar da morte e me detiver em frente à janela que me puxa par adentro do segredo e do mistério ter-te-ei despido. Já não sou eu que vivo e se gritar afogo-me no meu próprio eco neste campo de escombros átomos explodindo nas carnes das casas. Já não sou eu que vivo mas o grito o milagre nos corredores da noite nas mãos dadas a ninguém. Entranhas de Deus espalhadas sobre a tua ausência.
Sofia Margarida Mota Eventos MancheteCorrentes D’Escrita | Macau em estreia “A Sombra do Mar” de Armando Silva Carvalho foi o vencedor do prémio literário Casino da Póvoa no festival Correntes D’Escrita. O anuncio foi feito na quarta-feira numa cerimónia que contou com a presença do Presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e a referência à estreia da literatura de Macau no certame [dropcap]O[/dropcap] escritor Armando Silva Carvalho venceu o prémio literário Casino da Póvoa deste ano com a obra “A Sombra do Mar”, anunciou a organização do encontro de escritores de expressão ibérica Correntes D’Escrita. De acordo com a acta do júri, “A Sombra do Mar” foi a obra escolhida “pela força imagética da sua escrita e pela tensão conseguida entre ironia e melancolia”. O júri refere ainda que a nomeação deste livro “resultou da demorada análise e discussão deste e de outros livros finalistas”, tendo sido esta opção deliberada “por maioria”. Entre as obras finalistas, “particular atenção mereceram” também “Bisonte”, de Daniel Jonas, e “O Fruto da Gramática”, de Nuno Júdice. ““[O festival] continua a alargar o âmbito geográfico, incluindo autores de Macau e da Venezuela.” Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República Portuguesa Na declaração de voto é dito ainda que “A Sombra do Mar” é uma obra que “traz um conjunto de poemas formando um corpo orgânico de grande unidade estilística e temática, no qual as alusões ao mar e à água constituem um ‘leitmotiv’ que percorre todo o livro em sucessivas variações: água ‘criteriosa e diária’, água ‘arrepiada’ e ‘águas sobreviventes’”. Entre os finalistas do prémio, no valor de 20 mil euros, estavam também “Outro Ulisses regressa a casa”, do actual ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, “Animais Feridos”, de António Carlos Cortez, “Auto-retratos”, de Paulo José Miranda, “Persianas”, de Miguel-Manso, e “Vem à Quinta-Feira”, de Filipa Leal. O júri foi constituído por Almeida Faria, Ana Gabriela Macedo, Carlos Quiroga, Inês Pedrosa e Isaque Ferreira. O prémio literário Papelaria Locus 2017 foi atribuído a “Simplesmente Parecidos”, de Juliana da Silva Barbosa, que concorreu com o pseudónimo de Miura Yigurashi; o prémio Literário Fundação Dr. Luís Rainha a “No Silêncio das Marés”, de Helena Luísa Miranda Coentro; e o primeiro prémio Conto Infantil Ilustrado a “Uma Limpeza Necessária”, do 4.º A da Escola Básica José Manuel Durão Barroso, de Armamar. O Correntes d’Escritas prolonga-se até amanhã, na Póvoa de Varzim, com uma sessão agendada para segunda-feira no Instituto Cervantes, em Lisboa, reunindo dezenas de escritores em conferências, exposições e sessões em escolas. Prata da casa “A Póvoa é um sítio mítico da literatura portuguesa. É onde nasceu Eça de Queirós, e por onde passaram Raul Brandão e muitos outros.” Carlos Morais José, escritor A cerimónia em foi feito a anúncio do vencedor contou com a presença de Marcelo Rebelo de Sousa, que destacou não só a importância da leitura e do trabalho feito com as escolas, como ainda a presença de Macau que, este ano e pela primeira vez, está representado com o “Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja”, de Carlos Morais José. O evento é “não só apenas uma festa dos portugueses e lusófonos, convida também escritores de expressão ibérica”, destacou, acrescentando que esta iniciativa “funciona como porta de entrada da literatura do mundo em Portugal” e que este continuou ainda a “alargar o âmbito geográfico, incluindo autores de Macau e da Venezuela”. Para Carlos Morais José, este é um festival de referência e não podia ser feito noutro local. “A Póvoa é um sítio mítico da literatura portuguesa. É onde nasceu Eça de Queirós, e por onde passaram Raul Brandão e muitos outros”, referiu o autor ao HM, salientando que, “sendo uma terra junto ao mar, é um sítio magnífico para reactivar a tradição literária que a terra tem”. O destaque do evento vai, de acordo com o autor que se encontra na Póvoa para participar numa mesa redonda, para “as conversas que se vão tendo e para a boa organização do festival, que corre normalmente e bem”. Relativamente à presença da literatura feita em Macau, o trabalho a fazer ainda é muito. “Como não temos uma máquina de marketing, tudo isto depende da boa vontade do editor, Rogério Beltrão Coelho. No entanto, e comparando com outras literaturas presentes, obviamente que ainda não temos muita visibilidade e também não sou um autor consagrado”.
João Luz Entrevista MancheteEntrevista | Pedro Mexia, crítico literário e cronista Pedro Mexia é o homem dos sete ofícios literários. Publicou poesia, faz crítica literária, crónicas, comentário político e é um dos membros do Governo Sombra, programa da TSF que passa na TVI 24. Pedro Mexia estará no festival literário Rota das Letras no próximo mês [dropcap]C[/dropcap]omecemos pela política portuguesa. Que balanço faz do Governo liderado por António Costa? É uma novidade, nunca tinha sido tentado e conseguido uma aliança de esquerda no parlamento, assim como nunca tinha acontecido ser o segundo partido mais votado a liderar um Governo. Isso causou alguma perplexidade e acusações, acho eu, despropositadas de ilegitimidade. O que acho que tem acontecido é que estão todos a fazer um esforço bastante grande para que o Governo consiga superar as divergências, muito grandes, que os partidos têm em certas áreas. Nomeadamente nas áreas das questões europeias ou na renegociação da dívida e, eventualmente, em outras que não vieram à baila, como a NATO. Tem havido um certo esforço para maximizar as áreas de concordância, tais como desfazer o que foi feito no Governo anterior nas áreas do trabalho, do rendimento. Também se tem tentado arranjar pontos comuns que permitam cumprir a legislatura. Parece-me que, neste momento, nenhum dos eleitorados dos partidos que apoiam o Governo do PS veria com bons olhos que se tirasse o tapete ao Governo. Está a ser uma legislatura em esforço dado o facto de esta solução ser melindrosa mas, globalmente, do ponto de vista do Governo, parece estar a correr bem. Parece existir uma espécie de extensão político-social que acho que tem beneficiado muito a percepção pública do trabalho do Governo. E como tem visto a actuação da oposição? O PSD tem tido uma atitude um pouco insólita que é, simplesmente, esperar que o Governo falhe nos seus propósitos e que, depois, o eleitorado reconduza o PSD nas próximas eleições. A oposição no Parlamento tem sido pouco construtiva e, nalguns casos, votando contra medidas que, no passado, defenderam, embora, em contextos diferentes. Acho que o PSD ficou muito atordoado com o facto de não ter governado na sequência das eleições que ganhou, é normal que tenha ficado. Mas não se percebe muito bem qual é o horizonte estratégico que tem, a não ser esperar. Isso parece-me que é pouco. O CDS, como já fazia quando estava no Governo, tenta sempre colocar-se um pouco à margem. Tenta passar uma mensagem mais positiva e menos agastada, mas está muito dependente do sucesso da sua líder na corrida a Lisboa. “O PSD tem tido uma atitude um pouco insólita que é, simplesmente, esperar que o Governo falhe nos seus propósitos e que, depois, o eleitorado reconduza o PSD nas próximas eleições.” Que ideia tem de Macau? Tenho alguma ideia do que vou lendo e do que me dizem algumas pessoas que conheço que aí estiveram e que aí vivem. Não é uma ideia muito substantiva. Há duas coisas que sobressaem, digamos assim, nos testemunhos que vou tendo. Uma tem que ver com o facto de a presença portuguesa ser relativamente incipiente, por exemplo, em termos da utilização da língua e do ponto de vista arquitectónico. Mas, por outro lado, parece haver uma comunidade portuguesa hiper-consistente, no sentido, por exemplo, da multiplicação de jornais. Parece haver uma compensação da diluição da presença portuguesa no que é hoje um território chinês. Como contraposição a isso uma comunidade que tem algum… não sei se dinamismo é a melhor palavra. Atrai-lhe a ideia da queda de impérios? Vê nisso algum romantismo? Claro que sim. Há uma cena muito boa na versão longa do Apocalipse Now, onde aparece uma plantação de uns franceses no meio da Indochina francesa. Aquilo tem imensa força porque é, realmente, o fim do mundo e isso tem um certo frisson literário. Por falar em apocalipse, como racionaliza o fenómeno Donald Trump? Não é muito difícil de racionalizar em termos do significado de um eleitorado descontente que queria, no fundo, alguém que partisse a loiça e que fosse completamente diferente. Alguém que tivesse um discurso, atitude e actuação completamente diferentes daquelas que os políticos mais conservadores, ou mais liberais tinham tido. Mas essa explicação racional, para mim, não chega para apagar certos paradoxos. Nomeadamente uma certa passividade do establishment republicano, que acordou tão tarde para o perigo real desta candidatura. Houve uma cisão muito grande dos opinion makers conservadores e dos políticos conservadores. Os primeiros, em geral muito críticos, e os segundos, no mínimo, conformados em relação ao Trump. Nem os paradoxos, evidentemente intrínsecos, dos descamisados e desempregados escolherem um milionário para protagonizar as suas queixas e os seus agravos. Além do mais, há algo que acho muito importante, as ideias dele são apenas uma parte daquilo que ele é. São ideias flutuantes ao longo do tempo, muitas vezes parecem improvisadas. O que acho realmente preocupante é a personalidade de Donald Trump. É uma personalidade infantil, de uma volatilidade, de uma fúria que amua, que seriam simplesmente risíveis num adulto, mas que dão bastante inquietude tendo em conta como ele vai reagir a assuntos sérios. Ele perde tempo a discutir quantas pessoas estavam na tomada de posse, a Casa Branca dedica-se a falar da marca de roupa da Ivanka. Esse lado é caricatural, mas há assuntos em que os Estados Unidos são protagonistas destacados que não são assuntos cómicos e, portanto, isso preocupa-me. “Donald Trump tem uma personalidade infantil, de uma volatilidade, de uma fúria que amua, que seriam simplesmente risíveis num adulto, mas que dão bastante inquietude tendo em conta como ele vai reagir a assuntos sérios.” O mundo aguenta uns Estados Unidos assim tão destabilizados? Não sei se isto vai durar a legislatura toda, há duas ou três hipóteses diferentes. Uma é a legislatura toda e, de facto, se a situação se degradar cada vez mais, não sei o que será daqui a um ou dois anos, se continuarmos a este ritmo. A segunda é isto continuar a esta ritmo e tornar-se uma espécie de novo normal e as pessoas habituarem-se, o que seria o resultado mais catastrófico de todos, achar que não tem mal o Presidente dos Estados Unidos dizer as coisas que diz e fazê-las, atacar a imprensa, juízes, etc. O terceiro, que seria o melhor dos resultados, seria os americanos afastarem este Presidente antes do fim do mandato. Porque, francamente, é um embaraço para a América e para o mundo. Como vê a ascensão de focos de populismo na Europa, nomeadamente de extrema-direita? Nalguns casos a deriva para o populismo não é propriamente de direita. Também tem havido movimentos importantes de populismo à esquerda. No caso da Grécia em que o Syriza varreu, praticamente, o PASOK. Na Espanha assistimos à emergência de um partido que acaba com o bipartidarismo, o Podemos. Temos também o fenómeno italiano do 5 Estrelas, difícil de classificar como sendo de esquerda ou de direita. Não é só a direita. Mas, claro que há uma espécie de Internacional Nacionalista muito activa, aliás, aparecem juntos em comícios. Houve as eleições da Áustria, o caso francês e o holandês. Na maioria dos casos talvez seja à direita, que está mais em ascensão, pela simples razão de, entre os principais temas, estarem a segurança e as migrações. São temas tradicionalmente mais caros ao eleitorado de direita. Portanto, é normal se há atentados, se há problemas com as vagas de emigrantes e refugiados, que a direita e a extrema-direita estejam particularmente activas. Li que a discografia dos The Smiths era algo de fundamental para si. Tem alguma música que destaque? Isso é complicado porque não são duas, nem três. Entre muitas há uma canção que acho particularmente curiosa, porque tem que ver com o facto de o Morrissey não ter grande receio de exprimir aquilo a que se pode chamar de maus sentimentos. É uma canção chamada “Death of a Disco Dancer” que, no fundo, é sobre um certo cepticismo face à ideia de que “nos vamos todos dar bem uns com os outros”. “All very nice, very nice…” “Maybe in the next world.” Há toda uma tradição “feel good” numa parte da música pop que ele rejeita claramente. Nem sei se é uma das melhores canções dos The Smiths, mas é muito exemplificativa de uma certa crueza com que o Morrissey trata os assuntos, de uma forma que não tínhamos visto antes. Essa canção, não sendo das minhas preferidas musicalmente, é muito exemplificativa da sensação que tive quando conheci a banda e percebi que era completamente diferente do que tinha ouvido antes. “Na maioria dos casos talvez seja à direita, que está mais em ascensão, pela simples razão de, entre os principais temas, estarem a segurança e as migrações. São temas tradicionalmente mais caros ao eleitorado de direita.” Costuma estar atento às novidades do panorama musical? Estou mais ou menos atento. Não sou, claramente, uma pessoa do hip hop nem da electrónica. Tenho um gosto um bocadinho delimitado na música pop que é, basicamente, as bandas de guitarras. Dentro desse nicho estou bastante atento, ainda por cima agora tenho um programa na Rádio Radar. Temos sempre um disco novo todas as semanas, estou mais atento por obrigação, mas não com o lado mais exaustivo que tenho com o cinema e com as estreias de cinema. Embora com o spotify, que sou subscritor, é mais fácil chamarem-nos à atenção e estar a par das novidades do que a picar a Internet aqui e ali, ou a comprar discos. Porque nunca se aventurou, em termos de escrita, no romance? O romance é uma obra de imaginação, pelo menos como eu o entendo. Simplesmente estar a contar uma história real mudando os nomes, que era o que eu faria se escrevesse um romance, parece-me desinteressante. Como não sou capaz de inventar coisas que não aconteceram, não sou capaz de escrever um romance. Como resolve o conflito entre a introversão e o papel público que desempenha? Não há nenhum conflito porque, para já, a maior parte do que eu faço é escrever e isso não se opõe à introversão, pelo contrário, até se casa bastante bem com ela. Outro tipo de actividades, ou compromissos, que eu tenha são obrigações em que procuro fazer o melhor. Está-se a trabalhar, a desempenhar um papel e, portanto, o facto de ser introspectivo, ou introvertido, não é contraditório com isso. As pessoas têm de fazer a sua vida, são-nos pedidas certas coisas e eu faço na medida do que posso e sei. Se eu tivesse de ser DJ, ou coisa do género, é que seria mais complicado.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasVencer a gravidade Possolo, Lisboa, 11 Fevereiro [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]elder Macedo veio lançar o estimulante «Camões e Outros Contemporâneos» (Presença), mas ainda teve tempo de ir ao Obra Aberta e à Escola de Escritas do mano Luís Carmelo, onde dissertou sobre a demanda que fez dele ensaísta, ficcionista e poeta. Demanda em busca de si, com passagem pelo Gelo e pelo Império, e do outro, sobretudo o obscuro feminino. Helder transporta-nos ao avesso dos orgânicos movimentos da inteligência que podemos ver em acção, putos fascinados na torre do relógio. Algumas traduções bíblicas, descobriu ele, investiam na palavra moça o sentido de alma. A outra luz se lê o «Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe», de Bernardim. De corpo e alma, partiu ela. De alma e coração, fico eu a ouver Helder Macedo. Horta Seca, 13 Fevereiro A Companhia Nacional de Bailado, ainda sob direcção da Luísa Taveira, foi convidando um grupo heteróclito de poetas para dançar. Quer dizer, para se sentarem a ver. Chegou hoje a antologia de inéditos da temporada de 2016. O inevitável desequilíbrio em nada mancha a boa ideia, depositada agora nas cadeiras de quem arrisque deixar-se impressionar pelo sublime esforço. De Fernando Luís Sampaio, ressoam-me «as canções mais tristes/do meu tempo» (…) «Canções queimadas por mil vozes, onde a língua se precipita». E tocou-me a agreste melodia de Margarida Vale de Gato atirada à filha: «Peço de ti o que não te ocorre perguntar e tenho/para te apontar este mundo cheio de lapsos, é certo./O mundo está cheio de mortos que não chegam/a cair, o mundo está cheio de mortos que são vivos/com pouca sede (…)» Pelo meu lado, lá consegui erguer a fio-de-prumo tristonhos versos, depois de horas no escuro a ver corpos erguer-se muito acima. De si e destes dias rasteiros. Teatro Nacional, Lisboa, 14 Fevereiro Era questão de tempo. Estou sempre a perder o combate com a agenda e costumo atirar-me para cima dela na velha táctica de peso morto para suster a vaga de golpes, mas desta vez ultrapassei uma linha qualquer. Ontem vi-me à porta de um Nacional na semi-obscuridade das segundas-feiras. A conversa aprazada entre Carlos Fiolhais, Miguel Loureiro e Gonçalo Waddington, em torno de «O Nosso Desporto Preferido – Presente», há muito estava marcada para hoje, São Valentim. Como bem notou o arguto e divertidíssimo Carlos, melhor dia não haveria tendo em conta a proposta radical da peça para alcançar civilização de tipo superior: a abstinência sexual. Precisava, portanto, vencer, qual bailarino com a gravidade, a lei da física que me impedia de estar ao mesmo tempo em dois sítios diferentes, aqui e no lançamento do Helder. Não consegui, pelo que fiquei a ouvir o Miguel ler na perfeição excerto dos mais interrogativos, em páginas de torrencial poesia onde ecoam os gregos, essa natural raiz das coisas. A língua é desbragada e precipita-se. Uma cadeira arma-se em personagem principal. Temos deuses a insultar-se e um Michel, que só pode vir de Houellebecq. Ninguém como o Gonçalo usa em palco a ciência como instrumento de perguntar futuro, no caso a possibilidade de livrar a espécie humana das necessidades básicas. O Carlos soltou leitura desconcertante e erudita, em torno do cientista enquanto ladrão do fogo dos deuses, que será hoje a decifração final do código genético. Mas também na qualidade de pateta aprendiz de feiticeiro. Em ciência, a utopia acaba quase sempre em distopia, disse ele que sabe. Na peça, a experiência tem tudo para acabar mal. Por aqui, a conversa continua: é uma tetralogia… Convento de Jesus, Setúbal, 15 Fevereiro Não tinha ainda atravessado estas portas manuelinas para o interior da justa recuperação de Carrilho da Graça, dado voltas ao claustro onde Zeca e tantos outros cantaram, mirado as gárgulas a quererem soltar-se dos calcários. Detalhes, neles se encontra Deus e um espinho da coroa de Cristo ou um osso de S. Sebastião. Queria tanto tempo para me perder! Somos senhores de grandes tesouros e deles tão pouco usufruímos. Perderia horas prestando vassalagem a Santa Gerturdes, esta representação do mistério em corações inflamados, o olhar desejando a luz, os lábios ardendo em oração. Ainda inebriado pelas visões, acabo em excelente companhia a usufruir de um divinal ensopado de pata-roxa, servido pelo castiço Luís Rebelo, n’A Casa do Peixe. Prosaicamente. Horta Seca, 16 Fevereiro Faz toda a diferença ver os originais do António Jorge Gonçalves para este seu livro que irradia «o esplendor dos corpos que dançam/Na órbita da morte», como escreve o Fernando Luís no seu poema. Em folhas de banal espessura e formato, desenhou a marcador em negativo. A cor acontece em folha separada com a transparência da aguarela. A combinação destes elementos aproxima a linguagem da gravura, mistura de tempos e tradições, fundo exacto para a dança da morte que coreografou. Cada imagem ganha peso de símbolo, abrindo para múltiplas leituras em jogo de espelhos. Mais um caso único, que merecia ser lido fora das fronteiras estritas do seu género. Na inauguração, tivemos casa cheia, sobretudo com as gargalhadas de Novo de Matos, o desenhador de bisturi que lhe salvou a vida. «A Minha Casa Não Tem Dentro», mas tem uma menina que desenha. E uma morte que anda com ela de comboio. Menina e morte as trouxeram de muito longe de regresso ao pai. S. Luiz, Lisboa, 18 Fevereiro Nisto, estou em palco rodeado de crianças a perceber que as minhas histórias para as mais disparatadas infâncias nascem do esforço de tudo e mais alguma coisa em ser outra coisa. Outra coisa um pouco mais que tudo. No Poesia-me, da Inês Fonseca Santos, circulou como arrepio a perguntinha: que queres tu? Pois, se o pretexto era o «Querer Muito», que tanto deve ao camaleónico talento do André da Loba. Às tantas, sobrou para mim. Costumo dizer a verdade do «astronauta», que me acompanhou longe no tempo, mas naquele instante quis ser «bailarina». Sem que tivesse dado por isso, sentada aos meus pés estava uma querídissima, de tutu e tudo. Ofereceu-se para dar lições, que começaram finda a sessão, ainda em palco para não perder minuto. Aprendi as três posições principais, mas não o nome dela. Tolo.
Hoje Macau EventosHong Kong recebe em Março festival para jovens leitores [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde 2012 que a região vizinha tem um Festival Internacional de Jovens Leitores (HKIYRF, na sigla inglesa). O cartaz de 2017 já foi tornado público e os bilhetes também já estão à venda. Durante dez dias, a partir de 6 de Março, escritores de renome e autores em princípio de carreira juntam-se no evento da antiga colónia britânica. Em comum têm o facto de escreverem para leitores que vão dos quatro aos 17 anos. O festival tem como grande objectivo “encorajar as crianças e os adolescentes a descobrirem o prazer da leitura e a diversidade de livros, ao facilitar a interacção entre autores e jovens leitores, através de workshops e de sessões com os escritores”, explica a organização. O cartaz é vasto e são muitos os convidados. Os promotores do HKIYRF destacam Sarah Brennan, de Hong Kong, autora das colecções best-seller “Chinese Calendar Tales” e “Dirty Story”. Também a norte-americana Roshani Chokshi merece uma referência especial: “The Star Maiden”, uma das suas obras, ganhou o British Fantasy Science Award. Matthew Cooper, de Hong Kong, escreveu três livros para crianças que têm a região como espaço de acção. Sarah Davis, da Nova Zelândia, ilustrou mais de 37 livros. A sua primeira obra (também) enquanto escritora foi publicada este ano. Além de vários autores de Hong Kong, Nova Zelândia e Estados Unidos, vão estar presentes escritores e ilustradores de Singapura, Austrália, Reino Unido e Coreia do Sul. Acções motivadoras O festival tem um programa especial para as escolas. “Todos os anos, levamos autores aos estabelecimentos de ensino para ajudarmos a promover os níveis de literacia em Hong Kong. Acreditamos que a literatura é – e deveria ser – uma componente essencial no ensino de línguas. Queremos contribuir para motivar os alunos dos mais diversos contextos e de diferentes níveis de leitura a desenvolverem o interesse pelos livros e pelas artes que lhes estão associadas”, nota a organização. Do cartaz fazem também parte eventos abertos ao público em geral: estão agendados vários workshops e palestras para os dias 11 e 12 de Março. Vão decorrer na Comix Home Base, em Wanchai. O HKIYRF é organizado pela organização sem fins lucrativos responsável pela organização anual do Festival Literário Internacional de Hong Kong.