A pele de um independente

Horta Seca, Lisboa, 12 Novembro

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]empre em dúvida, sempre em dívida. Podia tatuá-lo no braço só para me poupar ao trabalho de responder à quotidiana pergunta: como vais? Ou nos cada vez mais frequentes debates sobre edição: defina lá o trabalho do editor independente, se faz favor. Independente tornou-se a minha segunda pele – ainda que não perceba de quê, tantas são as dependências –, do mesmo modo que abysmo passou a primeiro nome: abysmo de joão paulo cotrim.

Estaremos sempre em dívida para com os autores. Cabe-nos ajudá-los a apurar o veneno do texto, a desenvolver o invólucro certo capaz de inocular a potencial multidão dispersa. Não basta um qualquer, tem que ser o leitor: inteligente e conhecedor ou emocional e dedicado, se possível uma hábil mistura de ambos. Capaz de admirar a vanguarda, sem esquecer as tradições, esforçado para reconhecer a explosão das estruturas narrativas, ainda que aceitando dançar com a frase fulgurante, enfim, prazer e esforço algures no cruzamento de físico teórico com groupie ou de bailarina clássica com adepto de futebol. Além dos direitos, claro, no confronto da prática que dá corpo ao livro, esperam ainda que os ajudemos no despertar da vocação: levá-los à frase, ao género, ao tema em que se cumpram.

Duvidaremos sempre do caminho. Isto não é tanto um negócio, mas uma maneira de ver o mundo, de estar no centro das ideias, da criação, da discussão, das coisas. Duvidamos da estratégia, dos tempos, das parcerias. Se corremos contra o tempo, se não devíamos olhar para trás na vez de procurar o futuro. Duvidaremos se não haveria ainda mais uma volta a dar, se não deixámos escapar uma gralha (e deixámos, pois). Se o recusado não era merecedor de segunda alternativa. Se o editado não era merecedor de recusa. Duvidaremos sempre de que tenhamos feito tudo, de que os argumentos oferecidos eram exactos, se estavam afiados como x-acto.

Servirá isto para alguma coisa? Azar. Se estamos, como Wile E. Coyote, no meio do precipício, o melhor é seguir em frente na vez de olhar para baixo. E cair.

A Tout Livre, Paris, 23 Setembro

As rentrées tendem a ser infernais. O ano passa a correr e parece que uns bons dez meses se espatifam contra a montra do Natal. O ano dos livros há anos que dança a mesma dança. Dos pleonasmos, portanto, uma das mais graves maleitas do mundo editorial. Esta reentrada foi quente como bólide celeste rasgando a atmosfera. Contudo, não poderíamos ter tido melhor maneira de comemorar cinco anos de abysmo do que a edição da Chandeigne, por via do empenho da Anne Lima, da bela tradução de Autismo, do Valério, assinada por Elisabeth Monteiro Rodrigues. Foi muito bem recebido pela crítica, nomeado para o Prix Femina, que só não venceu, confirmado por várias fontes, devido às movimentações politicamente correctas que o entregaram a um jordano. Os prémios vivem bastante de correntes de ar, e constipam-se. Saltemos.

Este contacto com o sistema editorial francês, que lançou por esta altura quatrocentos e tal romances e mais de uma centena de romances, sublinhou-me mais as fragilidades do português. Descontemos por ora a diferença estrondosa de um país que gosta de livros, campeonato que Portugal perdeu há anos. Ali, veja-se, os distribuidores e os livreiros lêem os livros. Em Maio, em encontro dos editores com as principais distribuidoras, todas ao barulho, grandes, médias ou pequenas, foram apresentadas as novidades, algumas delas já impressas. Autisme circulou em pdf, mas foi o suficiente para tocar a parte fria da cadeia antes de chegar aos entusiastas: os livreiros. A eles se deve, estou em crer, a fortuna que o romance está a ter [a entrar em segunda edição, por estes dias]. Fui testemunha de um exemplo desse entusiasmo, logo no dia do lançamento, em conjunto com novos títulos do Gonçalo M. Tavares e do Valter Hugo Mãe, mas basta percorrer, no mural das Editions Chandeigne as inúmeras fotos de montras e dos coup-de-coeur, um pouco por todo o país, para perceber que não foi caso único. As apresentações de Quentin Shoëvaërt-Brossault foram de uma profunda simplicidade. Era apenas um leitor, em modo partilha. Fazem-nos tanta falta os leitores.

Centre Pompidou, Paris, 24 Setembro

As filas já eram grandes, mas agora são enormes para garantir que não levamos kalashnikovs para os museus, enfim, além das que já lá moram. Pensei que a exposição pop, Beat Generation – New York, San Francisco, Paris, acrescentaria ainda mais culpas do que Magritte, a sua parceira no andar mais rente ao céu, na mais bela panorâmica da cidade. Pisamos os telhados antes de entrar nos subterrâneos da arte, parece-me programa. Estava errado. As multidões abarrotavam as salas do Magritte, afinal pop. Paris reconciliou-se com o ignorado de há umas décadas? Que poder de atracção possui este óbvio inimigo do óbvio? As imagens dizem muito mais do que mostram e inteligência pode bem ser espectacular e lúdica. Que prazer ler primeiro os títulos e procurar a copa a partir desta raiz! Ou vice-versa.

A Beat apresentava-se com um eixo em torno do qual orbitava tudo o resto, que foi muito e variado: On the road, de Jack Kerouac, feito estrada sobre uma mesa. Ao longo de dezenas de salas podíamos atender telefones e ouvir Giorno, ver filmes com Dylan, gastar horas nas legendas das fotografias de Ginsberg, ler e ouvir Burroughs, Ferlinghetti, Corso, passear por instalações, pinturas, documentários, cartazes, fanzines, colagens, cut ups, perder o olhar nas fotos de Robert Frank, até à Dreamachine, de Brion Gysin, que nos põe a sonhar acordados. Desde o dadaísmo, mais coisa, menos coisa, se pensarmos em movimento literário temos que contar com as outras linguagens. E que cada uma conte as outras.

S. Luiz, Lisboa, 13 Novembro

Arnaldo Antunes em concerto. A energia é arrebatadora e o tom metálico estica os sentidos da língua tuga até altos penhascos. De súbito, uma declaração de amor ao leitor: «Se sou voraz, me sacie./Se for demais, atenue./Se fico atrás, assobie./Se estou em paz, tumultue.//Você é que me continua.»

16 Nov 2016

Valério Romão: “Não me interessam os temas da moda”

[dropcap]E[/dropcap]nquanto outros seguem guiões pré-definidos, como por exemplo ter de escrever uma cena de sexo (ou mais de uma) e uma piada (ou mais do que uma), ou seguir um imaginário completamente retórico, quase até ao limite da publicidade, os teus livros começam a partir daí, como a Marina Tsvetaeva para a poesia russa, nas palavras do poeta Joseph Brodsky em “Less Than One”: “Marina começa os seus poemas onde os outros acabam”. Tens a consciência de que escreves ao arrepio do que se escreve hoje em Portugal?
Não sei se é exactamente ao arrepio daquilo que se escreve em Portugal, embora eu tenha uma consciência, ainda que pouco nítida, de que faço um caminho que tem um formato e trajecto com algumas particularidades que o distingue dos restantes. Talvez isso corresponda, grosso modo, à noção de estilo – seja lá o que isso for neste tempo em que parece que a única ocupação moral e eticamente permitida é o estilhaçar de categorias (e não para criar algo de novo, mas para terraplanar diferenças, um ideário paradoxal no qual se propõe que a criação não tem de criar nada e que o seu propósito é normalizar tudo, seja pela ironia, seja pelo pastiche, até nada se distinguir de nada). Não me interessa esse manifesto de terra queimada, não me interessam os temas da moda, não me interessa ser “actual”. Interessa-me sobretudo trabalhar com coisas que me são próximas e, simultaneamente, desconfortáveis. O que me interessa – pedindo desculpa pelo pretensiosismo inerente ao que vou dizer em seguida – é fazer qualquer coisa que, tendo um pé no agora, possa transcendê-lo: qualquer coisa de humano.

A única forma literária que nunca escrevi foi o conto. Nem sei se sei fazer ou não. Tu tens uma predilecção pelos contos, ou entre o conto e o romance venha o diabo e escolha? Qual a diferença dessas duas formas de escrita em ti?
Grande parte da minha formação enquanto leitor tem que ver com a leitura de contos, sobretudo os da escola do absurdo: Gogol, Kafka, Buzzati, Cortázar. Um conto é, passe a obviedade, muito diferente de um romance; um romance é uma corrida de fundo, uma ultra-maratona na qual parágrafos ou páginas inteiros podem estar ligeiramente ao lado ou mesmo desalinhados. Há um grau de tolerância relativamente ao romance que diminui exponencialmente quando passamos para formas mais breves de literatura: é muito menor no conto (talvez um, dois parágrafos) e ainda menor na poesia (às vezes, nem a um verso se permite o coxear). O conto para mim é a forma mais adequada para preparar desfechos inusitados e para testar ambientes e contextos incomuns, duas coisas que eu próprio procuro enquanto leitor. Tem ainda o bónus de ser possível começar e acabar um conto no mesmo dia, coisa que naturalmente não acontece com um romance.

E como entendes a arte da crítica literária, que rareia nesta urbe?
A função essencial da crítica literária é a recondução de um autor e/ou de uma obra ao lugar que pertencem na história da literatura, lato sensu. A crítica dispõe (ou devia dispor) das ferramentas necessárias para aquilatar o grau de novidade, sofisticação e relevância de uma obra. Só ela, dado a sua memória histórica, assente no trabalho de leitura e de crítica, pode encontrar o lugar do autor. O autor não faz isso sozinho. Não faz isso através do público. É o crítico o geógrafo capaz de encontrar o lugar do autor e a sua afiliação. O que normalmente lemos são recensões. E um e outro trabalho podem coexistir. Ambos são necessários. Descuidar a crítica, porém, é prestar, em primeiro lugar, um mau trabalho ao autor e ao público.

Viveste muitos anos em França, qual a razão pela qual não te tornaste um escritor de língua francesa?
Não me senti nunca em casa, em França. E não me sentido em casa, o francês, embora fosse a minha primeira língua, nunca se tornou um médium literário. Há que igualmente notar que saí de França com 11 anos, uma idade insuficiente para que a língua francesa tivesse obtido competência literária. Tornei-me leitor de francês mas não falante, e essa falta de prática aliada ao facto de nunca ter sentido França como “a minha casa”, fez com que acabasse por ser perfeitamente natural escrever em português.

Tens uma licenciatura em filosofia. Achas que o curso que fizeste foi determinativo para seres o escritor que és? Vias-te a fazer outro curso, que não te conduzisse tanto a ti como o de filosofia? Eu não me imagino sem filosofia.
Absolutamente. E atrevo-me a dizer que sou ainda mais específico: é o curso de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova. Não teria as mesmas competências de análise fenomenológica se não tivesse tido aulas com o Nuno Ferro, com o Mário Jorge de Carvalho, com o António de Castro Caeiro. Do mesmo modo, a minha perspectiva relativamente à estética não seria a mesma se não tivesse sido aluno da Filomena Molder. Não raras vezes socorro-me do que retive da minha passagem pelo curso de filosofia e do que vou lendo, entretanto, para escorar um capítulo, uma personagem, um livro inteiro. A filosofia está sempre presente, é mais que um conteúdo, é uma forma de pensar. Está presente de forma inconspícua, são as costuras das coisas, o espaço entre os retalhos, a geometria oculta que transforma um arrazoado de acontecimentos numa estrutura narrativa. Pode fazer-se tudo isto sem filosofia? Claro. Mas para mim seria mais difícil.

11 Nov 2016

Livro | 15 anos depois, imprensa de Macau está bem e recomenda-se

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] coordenador do livro que aborda os jornais portugueses de Macau, entre 1999 e 2014, afirmou que a imprensa local tem “qualidade” e que permanece relevante, contrariando as previsões que se fizeram do seu fim. “A imprensa diária de Macau é uma imprensa que tem qualidade” e que se mostra “dinâmica”, apesar de “todas as dificuldades e insuficiências que tem”, disse à agência Lusa o coordenador do livro “15 Anos Depois: A Imprensa Portuguesa de Macau (1999-2014)”, João Figueira.

No entanto, aquando da transferência da soberania para a China, em 1999, perspectivava-se que a imprensa portuguesa em Macau poderia estar em vias de acabar, muito por culpa da ideia de que “o estatuto de região especial” e a manutenção do português como “língua oficial não passavam de meras fachadas”, explanou João Figueira, que falava à margem da apresentação da obra, na Casa da Escrita, em Coimbra.

“A realidade depois veio contrariar isso. Nunca a imprensa foi tão apoiada do ponto de vista oficial como é hoje e é apoiada não no sentido de controlar, mas por se entender que tem de haver uma imprensa diversificada que fale e que se expresse nas línguas oficiais”, sublinhou o também docente de Jornalismo da Universidade de Coimbra.

Além disso, “uma boa parte dos jornalistas não debandaram” quando Macau se tornou uma das regiões administrativas especiais da China, tendo feito “tudo para que a profecia não se cumprisse”. Numa região onde a população falante da Língua Portuguesa é minoritária, os jornais são também “um elemento de inserção” para uma comunidade que, na sua “esmagadora maioria”, pertence “a um padrão sócio cultural especial”, sendo altos quadros da administração, advogados, arquitectos, engenheiros ou analistas financeiros, entre outros.

A imprensa portuguesa acaba também por ser importante para toda a sociedade macaense, abordando muitas vezes assuntos que os jornais chineses “não abordam por sua iniciativa e que acabam por apenas tocar nessas matérias citando aquilo que saiu nos jornais portugueses”. “Apesar de tudo, temos uma tradição de liberdade de expressão e de capacidade de questionamento dos poderes que, culturalmente, na China não existe”, notou João Figueira.

Obstáculos e interrogações

Porém, há vários problemas que são também reflectidos no livro, nomeadamente a dificuldade no acesso às fontes e o facto de a maioria dos jornalistas não falar chinês e ter de fazer um trabalho “que muitas vezes tem que fazer quase em segunda mão, mediado por um intérprete”. A grande preocupação para o futuro está centrada nas próximas eleições que “vão decorrer daqui a quatro anos” e que levarão à mudança de líder, visto que o actual, Fernando Chui Sai On, está no seu segundo mandato.

“As interrogações têm que ver com isso: sobre se se vai manter o mesmo posicionamento de abertura e de apoio às minorias que coexistem neste território e que Pequim insiste que têm de existir”, observou.

Para o responsável da editora Livros do Oriente, Rogério Beltrão Coelho, a imprensa portuguesa, que vivia “basicamente apoiada ou sustentada por gabinetes de advogados” antes de 1999 viu as suas redacções “aumentarem em número e em qualidade”.

A imprensa portuguesa “afirmou-se por emitir opinião e por ser muito interventiva”, notou o editor que também passou por vários órgãos de comunicação de Macau, considerando que a importância que a China “dá à comunidade portuguesa e ao ensino do português” também foram importantes para a sobrevivência dos jornais.

“A força de intervenção da imprensa portuguesa é muito superior à sua tiragem”, frisou Rogério Beltrão Coelho. A obra, lançada pela Fundação Rui Cunha e Livros do Oriente, é da autoria de José Carlos Matias, Diana do Mar, Sónia Nunes, Marco Carvalho e Frederico Rato, contando com prefácio de Adelino Gomes.

7 Nov 2016

Rogério Miguel Puga, académico: “Há muita investigação ainda por fazer”

São histórias de mulheres com olhares muito diferentes, que completam o vazio sobre o quotidiano da Macau do século XVIII. O investigador Rogério Puga voltou ao território para participar na conferência internacional “Discursos memorialistas e a construção da história”, que termina hoje na Universidade de Macau. E explica-nos o que se descobre sobre o passado desta cidade quando se vai de Boston a Filadélfia.

[dropcap]T[/dropcap]rouxe a Macau o caso do diário de Caroline H. Butler Laing, uma norte-americana, escritora, uma mulher de família também, que passou por cá no século XIX em viagem com o marido. Que diário é este? Que escritas femininas são estas?
São escritas protestantes, um olhar protestante sobre Macau, que estranha quer o chinês, quer o português católico. É uma mulher que vem de Nova Iorque, muitas vinham de Boston, e nunca tinham visto católicos. O português católico é tão exótico para estas mulheres quanto o chinês. Elas têm de descodificar esses dois outros que encontram em Macau. São exercícios religiosos: os católicos confessam-se, os protestantes não, pelo que escreviam diários como exames de consciência para ver o que tinham feito bem e o que tinham feito mal. Estas mulheres passam o ano todo em Macau, os maridos estão em Cantão seis meses, elas ficam sozinhas aqui com os empregados e os filhos, aborrecidas até à morte, rodeadas de católicos e de chineses, e descrevem desde o cão que está a latir aos cortinados e às cadeiras. Para se reconstituir a história do quotidiano da Macau do século XIX estas fontes são riquíssimas, são muito melhores do que as fontes portuguesas. Elas eram tradutoras culturais, porque tinham de explicar tudo ao mínimo pormenor sobre a China. Estes diários eram epistolares, em forma de carta, eram enviados para os Estados Unidos, e a rua e o bairro inteiro liam aqueles diários. Foram também responsáveis pelas primeiras imagens americanas sobre a China. São quase ferramentas da sinologia norte-americana.

Porquê esta mulher? O que tem de especial Caroline H. Butler Laing?
Tem o que todas as outras têm, mas há neste diário uma coisa muito interessante: o dia-a-dia da mulher protestante em Macau. Ela no fim faz uma espécie de um esquema do quotidiano de uma mulher norte-americana: as orações, a hora a que se levanta… Há outro diário, da Rebecca Kinsman, que enviuvou cá em Macau – o marido, Nathaniel Kinsman, está enterrado no cemitério protestante. Eles, por exemplo, trouxeram uma vaca dos Estados Unidos da América. Como os chineses não bebiam leite, as vacas não eram leiteiras. Se traziam crianças, traziam uma vaca. Quem ia embora deixava a vaca leiteira aos amigos que cá ficavam, assim como mobília – ofereciam ou faziam leilões. Este diário tem isso de especial: ela descreve o quotidiano da mulher de língua inglesa, protestante, em Macau: se ia visitar as amigas, se ia passear a pé até às Portas do Cerco, se ia visitar uma aldeia chinesa. Há todo este ponto de vista dos estrangeiros que chegam a Macau. Por exemplo, estranham o repicar dos sinos de hora a hora, que é uma coisa que não acontece nos países protestantes. É um olhar muito diferente do de uma mulher portuguesa que visitasse a Macau católica do século XIX: não estranharia o repicar dos sinos porque em Portugal também soam para dar as horas. É muito interessante esta focalização protestante sobre um território simultaneamente português e chinês.

Porque observa pormenores que seriam dados adquiridos para portugueses e chineses. É, portanto, uma fotografia mais completa.
É. Muitas vezes permite encontrar os vazios das fontes portuguesas, certas práticas que não estão descritas nas nossas fontes e que eles descrevem. Acontece muito, nas fontes oficiais, aquilo que interessava aos portugueses esconder do Rei de Portugal, os americanos ou os ingleses falarem abertamente, e vice-versa – o que interessava aos ingleses esconder, as fontes portuguesas muitas vezes revelam. Esse cruzamento das fontes de línguas diferentes permite encontrar vazios quer numas fontes, quer noutras.

Destacou o facto de serem fontes de religiões diferentes também, num contraste com os escritos de residentes e viajantes católicos. Existe uma diferença muito grande na abordagem do mundo, certo?
Existe, a cosmovisão é diferente. Estas mulheres americanas, quando vão para festas portuguesas até às quatro da manhã, sentem-se culpadas, há o peso da seriedade protestante. Os hábitos são diferentes, quase que se sentem forçadas a justificar porque é que ficaram até às três da manhã numa festa na casa do Governador. Há esse peso religioso. Há as práticas dos quakers e dos unitarianos em Macau, que casavam entre primos. Os próprios americanos espantam-se com os hábitos uns dos outros, o que não deixa de ser curioso. Existiam várias Macau – não eram só a portuguesa e a chinesa, havia também uma norte-americana, uma britânica. Esta visão caleidoscópica de um território tão cosmopolita como Macau era e continua a ser muito importante no cruzamento destas fontes.

Era uma Macau interessante, esta que a Caroline H. Butler Laing descreve?
Era. Sobretudo até à fundação de Hong Kong, era a única porta de entrada para a China e foi esse o segredo de Macau. Por isso é que ficamos tantos anos aqui: também era útil para as autoridades chinesas manterem os estrangeiros todos em Macau, delegando nos portugueses a responsabilidade de os administrar. Nenhum estrangeiro estava mesmo na China – ia de Macau para o complexo das feitorias de Cantão, que também era fechado como Macau, que funcionou um pouco como tubo de ensaio, desde o século XVI, para o comércio da China, nos séculos XVIII e XIX. Replicou-se o formato encerrado de Macau com as Portas do Cerco nas feitorias de Cantão. E daí a utilidade: manter os estrangeiros com um pé fora e outro dentro da China, encerrando-se as Portas do Cerco quando os portugueses e os outros estrangeiros não respeitavam o desejo das autoridades chinesas.

Na outra intervenção nesta conferência, que faz hoje, traz uma descoberta que revelou em 2012, que tem que ver com o primeiro museu da China e que foi criado precisamente aqui em Macau.
Foram exactamente estes diários que me permitiram fazer esta descoberta. Parece impossível como é que só em 2012 é que se faz esta descoberta, mas deve-se ao facto de ter sido uma iniciativa completamente anglófona, de língua inglesa. Este museu foi fundado por funcionários da Companhia das Índias inglesa e por missionários protestantes, e era sobretudo frequentado pelos visitantes estrangeiros e pela comunidade anglófona. Por isso, não aparece muito nas fontes portuguesas – quase ninguém lhe fez referência. Quando começo a ler estes diários de mulheres norte-americanas, aqui e ali encontrei frases como ‘Fui ao museu britânico de Macau’, ‘Fui ao museu de Macau’. Comecei a juntar uma linha ou duas, em vários diários, o que depois me permitiu, com o tempo, ir chegando à conclusão de que aquilo, para a época, era um museu representativo. Juntei várias referências, investiguei em revistas da época, e cheguei à conclusão de que entre 1829 e 1834 tinha sido inaugurado o ‘British Museum of Macau’ e que, ao contrário do que toda a gente dizia e do que a história da museologia da China defendia, foi o primeiro museu que abriu portas, e não um museu fundado por um jesuíta francês, Pierre Heude, em 1868. Portanto, o primeiro museu da China de cariz ocidental não abriu as portas em 1868, em Xangai, mas em 1829, em Macau, e fecha depois com o final do monopólio da Companhia das Índias em 1834.

Sabe-se qual era a localização?
Não. Foi uma das coisas que me perguntaram, quando a revista da Cambridge University Press avaliou o meu trabalho. Também queria saber. Penso que seria na zona onde hoje é o Palácio do Governo, porque era na Praia Grande que estava a sede da Companhia das Índias. Penso que seria algures entre a Penha e o actual Palácio do Governo mas, até à data, não encontrei ainda nada. Era uma casa arrendada e os comerciantes ingleses e chineses traziam peças para esse museu, havia um guarda, e as peças estavam legendadas.

Dois anos depois desta descoberta, escreveu sobre a primeira biblioteca de língua inglesa na China. Que biblioteca é esta?
É uma biblioteca itinerante. Todos os estrangeiros que vinham para Macau traziam livros – da América, de Inglaterra, da Irlanda –, deixam-nos ficar, trocam-nos. Esses livros vão sendo depositados na sede da Companhia das Índias em Macau e na feitoria inglesa e norte-americana em Cantão. Os livros viajavam Rio das Pérolas acima, Rio das Pérolas abaixo, com os comerciantes ingleses, que passavam o Verão e a Primavera em Macau, e o Outono e o Inverno a comprar chá, porcelana e outras mercadorias nas feitorias de Cantão. Alguns livros ficavam lá, outros voltavam, e a maioria, com o final do monopólio da Companhia das Índias, foi para a biblioteca que é hoje a Biblioteca Robert Morrison na Universidade de Hong Kong. A Companhia das Índias tinha também de defender o seu bom nome – o museu e a biblioteca [aparecem nesse contexto], até porque em Inglaterra eram cada vez mais acesas as críticas ao monopólio. A Companhia das Índias tinha de se preocupar com a sua imagem pública e provar que também se preocupava com o local onde fazia negócios. Essa era uma forma de o fazer e depois não houve nenhuma estrutura que substituísse a Companhia das Índias – as firmas norte-americanas já cá estavam – e isso acabou por influenciar o tipo de presença britânica aqui. Esse desregulamento da presença britânica vai dar lugar mais tarde à Guerra do Ópio. Mas estas duas actividades relacionam-se com as diaristas femininas de Macau. É necessário também estudar esta presença, não apenas a presença portuguesa, mas de todas estas comunidades que contribuíram em larga escala, no século XIX, para a vida cultural de Macau. Havia peças de teatro organizadas pela comunidade de língua inglesa, os cenários eram pintados pelo George Chinnery, que ainda chegou a fazer algumas personagens.

Como é que decidiu dedicar-se ao estudo das fontes em língua inglesa e não ao estudo das tradicionais fontes portuguesas?
Percebi que havia um vazio enorme que era não só o estudo dessas fontes americanas e inglesas, como também o cruzamento com as fontes portuguesas. Tendo estudado Estudos Portugueses e Ingleses, poderia fazê-lo, casar as duas línguas e culturas que estudei. Fiz o doutoramento em Estudos Anglo-Portugueses exactamente sobre um romance inglês cuja acção se passa em Macau: ‘City of Broken Promises’, de Austin Coates. Apercebi-me de que havia muita coisa a fazer e que estas fontes eram importantíssimas para o estudo do quotidiano da Macau portuguesa. Uma das razões pelas quais pude fazer essa descoberta e ajudar a reescrever a história da museologia na China foi porque os estudiosos estrangeiros não dominam, a maioria deles, o português, e fogem de Macau – estudam Hong Kong, Xangai, são fontes francesas e inglesas. Os historiadores portugueses, até há bem pouco tempo, também não se debruçavam sobre as fontes em língua estrangeira, porque estavam manuscritas, era preciso ir para Inglaterra e para os Estados Unidos. Tive de correr a costa toda, desde Boston até Filadélfia, em busca de diários de mulheres, não publicados. Contactei com familiares. A relação dos norte-americanos com este tipo de fontes é completamente diferente: emprestam tudo, fotocopiam, enviam-nos livros, criei em certa medida uma relação com os descendentes destas diaristas. Adoram ver estes estudos publicados. Há depois o medo em relação à referência ao tráfico de ópio – digo sempre que me interessa a história cultural, não a do comércio nem do tráfico, e aí ficam mais descansados e o tipo de relação é outro. Mas há muita investigação ainda por fazer.

28 Out 2016

Literatura de Macau em Lisboa até 3 de Novembro

Maria João Belchior

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omeçou ontem uma iniciativa que acontece pela primeira vez e que junta editores, livreiros, autores, académicos e o público em geral interessado na temática de Macau. Organizado pela Associação de Amigos do Livro em Macau, este é o primeiro fórum dedicado à literatura e a estudos académicos sobre o território a realizar-se em Lisboa. É uma semana e meia de eventos, com conferências e mesas redondas que têm lugar em diferentes instituições na capital.

O Centro Científico e Cultural de Macau recebeu no primeiro dia as duas conferências inaugurais do Fórum. Luís Filipe Barreto, presidente do Centro Científico e Cultural de Macau, apresentou “Macau: Livros e Leituras. Século XVI e XVII”, numa viagem pelo início daquele que pretende ser também um caminho literário pela história da região.

Ainda no dia de abertura, teve lugar a conferência de José Carlos Seabra Pereira intitulada “O Delta Literário de Macau.”

Reunidas numa iniciativa lançada pela Associação de Amigos do Livro em Macau, liderada pelo editor Rogério Beltrão Coelho, várias editoras de Macau estão representadas na Feira do Livro que se realiza livraria da Delegação Económica e Comercial de Macau.

A variedade da agenda de eventos deste projecto pioneiro permite abordar diferentes temáticas, desde os estudos literários ao Direito. Na Universidade Católica em Lisboa terá lugar uma conferência, apresentada por Filipa Guadalupe, no próximo dia 31, tendo por tema “A importância dos livros de Direito de Macau na preservação de Um País, Dois Sistemas”.

Hoje, o segundo dia do Fórum, Margarida Duarte modera uma mesa redonda acerca dos livros sobre Macau publicados em Portugal. Vão estar presentes os escritores Maria Helena do Carmo e Fernando Sobral, assim como o escritor e editor José António Barreiros.

Língua portuguesa em destaque

O português como linha estratégica essencial vai ser o mote para uma das conferências do Fórum. O Instituto Politécnico de Macau (IPM) criou, em 2012, o Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa, sendo um dos objectivos principais o apoio do ensino do Português em Macau e no interior da China. Neste sentido, a actividade editorial tem crescido através de vários estudos publicados sobre a língua Portuguesa e o seu ensino. É neste contexto que vai ser apresentada pela primeira vez em Lisboa, a obra de Carlos Ascenso André, intitulada “Uma Língua para ver o Mundo”. A apresentação está marcada para quinta-feira e será feita pelo Luís Filipe Barreto. Nessa sessão deverão ser divulgados os títulos já publicados pelo IPM, assim como anunciados alguns dos projectos futuros.

Homenagem a Maria Ondina Braga

No último dia do Fórum, a 3 de Novembro, terá lugar na Biblioteca Nacional em Lisboa uma palestra inteiramente dedicada à escritora Maria Ondina Braga, cuja vida ficou marcada por Macau, um território dentro e fora de si, descrito nos seus livros. A sessão apresentada pelo editor José António Barreiros, que há vários anos estuda a obra da escritora, mantendo também uma página na Internet sobre a vida e os livros de Maria Ondina Braga, acontece às 18h30. Esta apresentação pretende, de certa forma, colmatar uma falta de divulgação e conhecimento generalizado sobre a riqueza da sua obra. Como escreve José António Barreiros, “será, pois, um regresso através dos seus livros, a revisitação e o desocultamento, cerimonial de purificação, a reconstrução do ser através do verbo”.

25 Out 2016

China | Livro Branco destaca combate à miséria

A constatação é oficial: a redução da pobreza é a grande prova dos progressos da China em matéria de direitos humanos. Em termos globais, 70 por cento das pessoas que saíram da miséria são chinesas, aponta um livro branco publicado ontem em Pequim

[dropcap style]D[/dropcap]esde a abertura da China ao mundo e o início das reformas do país, mais de 700 milhões de pessoas saíram da pobreza. O número faz parte de um livro branco publicado ontem pelo Gabinete de Informação do Conselho de Estado. “Depois de anos de tentativas e testes, a China acumulou muita experiência na promoção dos direitos humanos através do desenvolvimento orientado para a redução da pobreza”, lê-se no documento, que fala de “um novo modelo de alívio da pobreza de características chinesas”.

Para combater um dos principais problemas sociais do país, o Governo Central criou fundos especiais que, entre 2011 e 2015, chegaram aos 189,84 mil milhões de yuan, com um aumento anual médio de 14,5 por cento. “As autoridades vão continuar a destinar mais fundos para que seja possível o combate à pobreza nos próximos cinco anos”, assinala o livro branco, amplamente divulgado pela agência oficial Xinhua.

No final do ano passado, a China continuava a ter 55,75 milhões de pessoas que viviam na pobreza – o equivalente à população de um país de dimensão média. Pequim pretende acabar com o flagelo até 2020.

A educação primeiro

O relatório indica que, entre 2011 e 2015, o Governo Central deu prioridade à educação como forma de erradicar a pobreza. Para assegurar o acesso dos cidadãos ao sistema de ensino, as autoridades adoptaram medidas para promover a educação obrigatória, diminuir o fosso entre as zonas rurais e urbanas e melhorar as infra-estruturas ligadas à educação nas áreas mais carenciadas. Foram ainda criados mais subsídios e bolsas para estudantes.

Nos últimos três anos, Pequim gastou 83,1 mil milhões de yuan na renovação de escolas, para viabilizar o programa de ensino obrigatório, e destinou 14 mil milhões de yuan para a construção de dormitórios que albergam cerca de 300 mil professores em zonas rurais remotas.

Nas áreas rurais menos desenvolvidas – sobretudo no centro e no oeste do país –, o número de crianças a frequentar jardins-de-infância aumentou cerca de 30 por cento, de 21,53 milhões, em 2011, para 27,89 milhões, no ano passado.

Foram atribuídos subsídios para professores que leccionam nas províncias mais pobres, beneficiando um milhão de docentes em 600 condados.

Há mais números: um programa de educação específico para as áreas que lutam contra a pobreza envolveu 183 mil alunos em 832 condados, entre 2012 e 2015. Já nos últimos dois anos, o crescimento médio do número de estudantes das zonas rurais a entrar no sistema universitário foi superior a 10 por cento.

Menores protegidos

“Para garantir que o direito das crianças à segurança social, à educação e a outros serviços públicos é efectivamente salvaguardado nos esforços de combate à pobreza, a China introduziu um sistema e serviços inclusivos de segurança social, e levou a cabo trabalhos para o encorajamento da protecção de menores”, aponta ainda o livro branco.

“O país também promoveu o estabelecimento de um sistema de resgate e protecção de crianças ao nível dos condados, vilas e aldeias”, refere o documento. Os números oficiais reconhecem que cerca de 10 mil menores desaparecem todos os anos, mas há organizações internacionais de defesa dos direitos humanos que falam em 70 mil sequestros.

O relatório explica que, desde 2011, mais de metade dos condados chineses implementaram um programa de melhorias da alimentação para os estudantes das zonas rurais que frequentam o ensino obrigatório. O projecto implicou um investimento público de 67 mil milhões de yuan, beneficiando 33,6 milhões de alunos.

Em 2012, o Governo tinha já apresentado um programa de nutrição de crianças para as zonas mais carenciadas, disponibilizando gratuitamente bens alimentares para bebés entre os seis e os 24 meses. Só no ano passado, Pequim atribuiu 500 mil milhões de yuan para este programa, que beneficia 2,11 milhões de crianças em 341 condados.

Lá fora também

Não é só dentro de casa que a China tem estado a combater a pobreza, assinala o livro branco ontem publicado sobre a matéria da autoria do Gabinete de Informação do Conselho de Estado. Num texto publicado pela agência Xinhua, destaca-se que Pequim tem ajudado activamente outros países em desenvolvimento na resolução dos problemas relacionados com a miséria.

Durante as mais de seis décadas desde o estabelecimento da República Popular da China em 1949, Pequim disponibilizou quase 400 mil milhões de yuan a 166 países e organizações internacionais, enviou mais de 600 mil trabalhadores humanitários, prestou assistência médica a 69 países e ajudou mais de 120 países em desenvolvimento a atingir os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, enumera o relatório. Além disso, em várias ocasiões a China perdoou os juros de empréstimos a nações fortemente endividadas e menos desenvolvidas.

O livro branco sublinha que a China pretende aumentar a cooperação com países em vias de desenvolvimento e organizações internacionais em matéria de combate à pobreza e direitos humanos: Pequim vai “partilhar conceitos avançados e a experiência acumulada nesses campos através da ajuda externa, projectos de cooperação, transferência tecnológica e intercâmbio entre gabinetes de estudo”.

O Gabinete de Informação do Conselho de Estado assegura que o compromisso da China em relação ao combate à pobreza “representa o sentido de responsabilidade no mundo”. Assim sendo, o Governo Central vai “continuar a honrar as obrigações internacionais atendendo ao estado do seu próprio desenvolvimento”.

O relatório de 2015 dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio indica que a proporção de pessoas que vivem na extrema pobreza na China caiu para metade, de 61 por cento, em 1990, para 30 por cento, em 2002 – em 2014, o número tinha baixado para 4,2 por cento, recorda o livro branco.


O que diz a Human Rights Watch

Os números do livro branco ontem publicado por Pequim mostram uma redução efectiva da pobreza, mas os problemas em termos de direitos humanos do país ensombram a conquista das últimas décadas, considera a analista Maya Wang, investigadora da Human Rights Watch.

Numa reacção ao documento da autoria do Gabinete de Informação do Conselho de Estado, Maya Wang começa por dizer que “é inegável que as pessoas na China ganharam muito em termos materiais ao longo dos últimos anos”, mas salienta que se trata do resultado de um trabalho conjunto. “Considero que é justo dizer-se que a melhoria das condições de vida se deve à acção do Governo Central, mas não só: é também o resultado do trabalho muito árduo das pessoas que viviam na miséria e que conseguiram sair da pobreza. Portanto, é uma combinação entre a acção do Governo e os esforços da própria população”, destaca a investigadora.

Wang ressalva que “continua a haver muita pobreza na China e o nível de desenvolvimento do país é muito desequilibrado”, e diz também que “o esforço contínuo de luta contra a pobreza acaba por ser manchado pelo facto de o Governo Central continuar a restringir direitos humanos essenciais, como a liberdade de informação e de expressão”. A analista dá o exemplo de cidadãos das zonas rurais a quem são, de forma indevida, expropriadas as terras e que, “se se queixarem, são detidos ou punidos de outra forma pelas autoridades”. “Existem poucos canais para que as vítimas deste tipo de injustiças possam apresentar queixa e obter justiça de forma pública”, nota.

ISABEL CASTRO

18 Out 2016

A gente não lê

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]isboa vai receber no próximo mês a Feira do Livro de Macau, que é segundo a organização “a maior mostra do género da literatura de Macau fora do território nos últimos 30 anos”. Serão apresentadas três novas obras de autores locais, e espera-se divulgar o que se faz deste lado na Língua de Camões, que é preciso não esquecer, é também língua oficial. Não é só nos PALOP que se escreve em Português fora de Portugal, com o valor indiscutível que os autores africanos de expressão portuguesa têm. Às vezes parece que do outro lado “se esquecem”, e pior do que isso, deste lado também. A iniciativa ficou comprometida, pelo menos em parte, com alguma indiferença da parte do Governo local, que supostamente deve financiar a empreitada – as pessoas e os livros não chegam ao outro lado do mundo movidos por boas intenções. Ao que parece o subsídio inicialmente pedido pela Associação dos Amigos do Livro, que teve esta “estranha” ideia, “é excessivo”. Os livros precisam de ir de avião? Pois é, não têm barbatanas, e como são feitos de papel, indo a nado pode ser que se constipem. Que grande dilema.

Podia ir buscar mil e um exemplos para ilustrar a incoerência, para não dizer hipocrisia, de quem se devia preocupar com a cultura em Macau e não o faz. A recente ultra-subsidiação a uma Universidade do continente por “toma lá desta pataca”, por exemplo, e a que bastava uma dízima desse montante para realizar não-sei-quantas mostras destas e outras, e quem sabe até era uma boa razão por meter muito mais gente a escrever. Os arautos da desgraça e do fim de Macau como ainda devia ser e ficou combinado podem alegar que “sendo uma iniciativa vinda dos portugueses, não há nada para ninguém”, mas prefiro pensar que não, que o problema é crónico: em Macau não se lê. A gente ou, neste caso, as gentes não lê. Se estão a ler estas linhas que aqui escrevo, parabéns, sois uma honrosa excepção.

A propósito desta notícia, que fez eco na nossa imprensa na semana passada, inquiri uma colega macaense da minha geração sobre os hábitos de leitura locais, nomeadamente quanto à forma como (não) foram incutidos pelo ensino local do período pré-transição. E claro que a resposta não me surpreendeu de todo: não se encorajava os jovens à leitura, não existia um plano nacional, regional, local ou de vão de escada, nada de coisa nenhuma. Basicamente a escolaridade cingia-se a ensinar o essencial para garantir a sobrevivência de quem ambicionava permanecer no território depois de 1999 e, com alguma sorte, “encostar-se” a um lugar nos quadros da administração. E aí já se sabe, ter uma respeitável bagagem cultural não é propriamente um predicado e pode ser que haja mesmo quem pense que não se recomenda.

Em Macau ler é considerado não um privilégio, mas antes “uma coisa” dos – e agora preparem-se que vem aí um palavrão dos grandes – “intelectuais”. E quem são estes “intelectuais”, afinal? São uns tipos que “têm a mania que sabem mais que toda a gente”, são uns espertalhões, em suma. Lêem para quê? Ganham alguma coisa com isso? Ah bem, olha olha, querem lá ver estes? Se sabem assim tanto, porque é que não blá blá blá, já se sabe, uma inanidade qualquer produzida por quem considera que “não ler” é característico das pessoas “normais”. Dos que têm mais que fazer, estão a perceber? O quê? Olha, qualquer coisa que podiam estar a fazer em vez de ler, que é perder tempo. Os senhores querem quanto, mesmo? Tanto?!?! Para quê, “livros”? Mau, mau, tomem lá uns trocos e depois venham cá explicar melhor o que queriam dizer com isso dos “livros”, seus marotos.

29 Set 2016

Literatura | Lisboa recebe Fórum do Livro de Macau

A capital portuguesa vai receber nove dias de literatura de Macau em Língua Portuguesa. O Fórum do Livro de Macau vai levar obras da terra, lançar livros e promover a literatura da RAEM em Lisboa, numa iniciativa da Associação Amigos do Livro, de Rogério Beltrão Coelho

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] “a maior acção de promoção de literatura nascida em Macau nos últimos trinta anos” e tem data marcada de 24 de Outubro a 3 de Novembro, em Lisboa. É o Fórum do Livro de Macau, uma iniciativa da Associação Amigos do Livro, liderada por Rogério Beltrão Coelho, e que pretende ser uma grande feira do livro com obras do território. Um evento “com todos os livros de Macau e sobre Macau em Língua Portuguesa”, afirmou o jornalista numa conferência de imprensa que apresentou ontem o evento e que decorreu na Fundação Rui Cunha.
O acontecimento foi dado a conhecer passo a passo e apresenta uma programação eclética e recheada numa iniciativa que, “em Portugal teve todo o apoio mas que em Macau sofreu de diversas dificuldades”, como afirma Beltrão Coelho.
Se, na terra de Camões, os espaços foram cedidos gratuitamente e as portas se abriram, em Macau o orçamento ficou aquém do solicitado, o que “põe em causa” alguns dos objectivos do evento, nomeadamente o transporte de livros para Lisboa.
O apoio solicitado ao Instituto Cultural (IC) foi de cerca de 400 mil patacas que se concretizaram em 119 mil. A ideia era “apenas cobrir as despesas de deslocação e alojamento de oito pessoas, o lançamento dos três livros que está agendado durante o evento e o transporte dos livros que faltassem”. No entanto, esta baixa nos apoios, apesar de pôr em causa a chegada de alguns títulos, não condicionou aqueles que vão ser lançados, nem que seja “por teimosia” de Rogério Beltrão Coelho.
Quanto às obras que deveriam estar a caminho, “levam-se na mala as que couberem”. No entanto, o presidente da Associação Amigos do Livro lamenta que o IC não tenha colaborado, visto ser a entidade competente para o fazer. Mas, diz, estando a obra feita poderá estar o caminho aberto para que no futuro se recorra a outro tipo de apoios. O objectivo é fazer com que este evento venha a ser regular e anual.
Com uma programação abrangente, que se divide entre palestras e apresentações em diferentes espaços – dos quais se destacam a Delegação Económica e Comercial de Macau, o Centro Científico e Cultural de Macau, o Clube Militar Naval, a Fundação Casa de Macau, o Museu do Oriente e a Biblioteca Nacional de Portugal, o evento integra o lançamento de três livros.
“Espíritos”, de Shee Va, é apresentado a 25 de Outubro por Beatriz Bastos da Silva. “Macau Histórico e Cultural”, do historiador António Aresta, é dado a conhecer no dia seguinte no Museu do Oriente e o mais recente livro de Carlos Morais José, “Arquivo das Confissões | Bernardo Vasques e a Inveja”, é apresentado por Ana Paula Laborinho, presidente do Instituto Camões, na Delegação Económica e Comercial de Macau, a 31 de Outubro.

Escrito em Chinês

De modo a seguir o princípio de levar o que é escrito em Macau, o Fórum do livro leva a Lisboa a sugestão de obras escritas em Chinês criadas por autores contemporâneos e modernos do território. Para o efeito, o evento conta com a presença da académica Han Lili, para que sejam dados os passos essenciais.
“Primeiro é necessário fazer um levantamento da literatura de Macau escrita em Chinês, depois é necessária a sua leitura e ter uma opinião acerca do seu valor “, afirma Beltrão Coelho, “para que depois seja suscitado o interesse de editoras que os queiram vir a publicar em Português”.
Beltrão Coelho relembra ainda a necessidade de um “fundo de tradução” e diz que Macau deveria ocupar o lugar para que está talhado: corresponder a um centro, por excelência, de tradução de Chinês para Português. Mas tal só é possível, e à semelhança do que já existiu em tempos idos, caso exista um fundo de tradução para que as obras possam ser passadas de língua para língua. “Deveria existir uma verba para isso”, reafirma o jornalista e editor, porque “não faz sentido que tal não exista numa terra como esta”.
O evento contará ainda com uma extensão em Coimbra a 5 e 6 de Outubro dirigida à área do Direito.

21 Set 2016

China | Estudo diz que liberdades e direitos humanos estão salvaguardados

O livro Branco com o título “Novos Progressos da China na Protecção Judicial dos Direitos Humanos” divulgado ontem pelo Conselho do Estado chinês, referente a 2015, garante que os direitos e liberdades dos cidadãos foram salvaguardados respeitando sempre o primado da lei

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] China “melhorou a distribuição dos poderes e responsabilidades judiciais” e “garantiu o exercício independente e imparcial da justiça”, realçou ontem o governo chinês ao abordar a evolução dos direitos humanos no país. “Os direitos e liberdades dos cidadãos, em vários domínios, foram efectivamente protegidos de acordo com a lei”, proclama o Livro Branco difundido ontem pelo Conselho de Estado chinês, com o título “Novos Progressos da China na Protecção Judicial dos Direitos Humanos”. O documento detalha que, em 2015, as procuradorias de diferentes níveis decidiram “não prender 131.675 pessoas e não julgar 25.778, em casos envolvendo a falta de evidências ou acções que não constituíam crime”. Por outro lado, aqueles órgãos apelaram em 6.591 casos, por considerarem que a decisão do juiz estava errada. No total, 54.249 pessoas foram investigadas em 40.834 casos envolvendo crimes relacionados com o trabalho, lê-se no livro branco.
Entre 2012 e 2015, os tribunais do país concluíram 94.900 casos envolvendo corrupção e subornos, e condenaram 100.300 pessoas. O documento aponta também a aprovação de várias medidas em 2015, visando proteger o direito dos advogados de exercer a profissão, tornando mais conveniente a sua participação em litígios.
Segundo o referido livro, a protecção dos direitos de vítimas menores também registou progressos, com o aumento de condenações em casos envolvendo o abuso sexual de menores. “Assegurar o primado da lei” foi um dos objectivos lançados pelo Presidente chinês, Xi Jinping, após a sua ascensão ao poder, em 2013. Porém, organizações de defesa dos Direitos Humanos acusam Pequim de estar a levar a cabo a “pior onda de repressão contra activistas e advogados que defendem os direitos humanos”.

Menos nove

Sobre a aplicação da pena de morte, o documento revela que esta é “empregue com prudência”, visando garantir que é aplicada “apenas em casos considerados extremamente graves”. Em 2015, a nova alteração do Código Penal reduziu em nove o número de crimes puníveis com a pena capital, refere.
A China exonera ocasionalmente réus presos ou executados injustamente, depois de os verdadeiros autores dos crimes terem decidido confessar ou, em alguns casos, a vítima ser encontrada com vida. Casos envolvendo erros da justiça são frequentes no país, onde as confissões forçadas continuam a ser prática comum, segundo organizações de defesa dos Direitos Humanos, e mais de 99% dos réus são considerados culpados.

13 Set 2016

Máquina de pendurar existências, o amor

Raquel Nobre Guerra (Lisboa, 1979), estudou Filosofia. É mestre em Estética e Filosofia da Arte na Universidade de Lisboa, onde investiga para o Doutoramento em Literatura Portuguesa “a categoria de fragmento na obra de Fernando Pessoa”. Publicou “Groto Sato” (Mariposa Azual, 2012), “SMS de Amor e Ódio” (Amor-Livro, 2013), “Saudação a Álvaro de Campos”, (Palavras por dentro, 2014), “Senhor Roubado” (Douda Correria, 2016). E é por este último livro que vamos viajar.

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]enhor Roubado é uma estação de metro de Lisboa. Enuncio isto de antemão, pois sei por mim mesmo que é muito fácil não sabermos disso, se não vivemos em Lisboa ou não tivermos vivido nos últimos anos, como é o meu caso. Se alguém em São Paulo intitulasse o seu livro de “Do Paraíso à Consolação”, talvez fosse difícil para quem não é de São Paulo, saber que se trata de duas estações terminais de metro, de uma das linhas da cidade; linha que vai precisamente da estação Paraíso à estação Consolação (nunca se diz o contrário), como se de uma metáfora da vida e do amor se tratasse. E não é por acaso que começamos esta viagem pelos metros de Lisboa e de São Paulo, e suas metáforas, pois o livro da Raquel Nobre Guerra é precisamente uma enorme metáfora da vida e do amor, que no Brasil, quando for editado, deveria até chamar-se “Do Paraíso à Consolação”. Como ela mesma escreve no início de um dos poemas:

“O amor desapareceu, diz-se por aí, e eu tendo a acreditar
porque dormes cada vez mais longe na metade da cama
que ocupaste com edições luxuosas do Paraíso Perdido.”

Sim, é um livro de amor. Um livro de amor como nas canções pop, em que ele já se foi e resta agora a melodia daquilo que ficou, para outros ouvirem e sonharem identificações, que ora se ajustam ao corpo, como se tivessem sido escritas para quem lê, ora ficam largas ou muito apertadas e não assentam bem. Restos de canções que também aparecem, aqui e ali, no corpo do poema. Por vezes aparecem como a única parte do mundo onde a poeta entra. Porque uma canção é o lado de fora menos perigoso, menos entediante aonde ir. Leia-se este poema, onde um verso de uma canção dos The Doors, de An American Prayer, nos surge como a parte mais quotidiana do poema, a parte em que a poeta vai à rua, em que sai de si:

“Deixa que nos chamem
pequeno cemitério de animais em flor.
O meu coração gótico espera por ti
aqui onde ninguém dança.

Porque havemos sempre de brincar
vestidos de santos até adormecer
nos olhos da cabra que, escuta:
I touched her thigh and death smiled.

Se perguntarem por nós aponta para cima
e responde com humor tipicamente irlandês
Senhor Roubado. Linha Amarela. Estação Terminal.”

Aquilo que podemos dizer acerca de nós não é muito mais do que isto: o nome e a posição do lugar onde enfrentamos os dias; e dizê-lo com humor, dizê-lo com a certeza de que a vida, a nossa, além de ter os dias contados, tem também um desconhecimento quase completo, para além de meia dúzia de nomes e algumas definições, que em relação aos frutos têm apenas um período mais alargado de validade. Entremos então no coração do livro:

“Movo-me na medida exacta da nossa distância.
Que direi eu deste lado do mundo?”

Esta passagem poderia ser o mote do livro ou, se preferirmos uma linguagem mais musical, o leitmotiv do livro. Este lado do mundo a que a poeta se refere, não é apenas ela, é a única possibilidade que tem de apreender o mundo e tudo o que lhe acontece: “a exacta medida da nossa distância”. Que não é senão a distância de cada um de nós para nós mesmos e para as coisas, para o mundo. Não estou agora a dar o dito por não dito, isto é, a recusar a leitura de amor que o poema encerra, um amor em cinzas, mas quero alargar a leitura à possibilidade de o próprio poema nos mostrar mais que amor: mostrar que toda a nossa relação com o mundo e connosco mesmos é um amor em cinzas; não é de amor, mas de nós no amor, de nós como o resto do resto do resto do amor. Ficamos cientes de que o amor é uma espécie de beleza que nunca chega para dois. Como a poeta escreve nestes dois versos: “Vim para dividir contigo a doença imaginária dos amantes. / Não tenho culpa de ter achado que a noite serve esse fim.” Mas a beleza nunca chega para dois. E julgais que o que nunca chega para dois é apenas um corpo, ou a impossibilidade de partilha do que se sente, quer seja no amor, quer seja no dia a dia?

“Nenhum clássico alternativo ao homem
mudou alguma vez o fuso do mundo.
A malha cai, o gajo escapa
é uma rosa, senhor, de plástico.”

E julgais vós que uma rosa de plástico é gajo fácil a dizer-se não? Julgais que há outras rosas que não as de plástico, no mundo e nos gajos? A rosa de plástico que um gajo é, é ela mesmo toda a humanidade. Nada muda o fuso do mundo, pois tudo, todos nós somos rosas de plástico. Raquel Nobre Guerra assume esta nossa condição humana sem quaisquer problemas ou pensamentos esotéricos:

“De resto, tenho uma perninha no bem e outra no mal
e mijo no meio, é honesto imaginar-me assim. ”

É honesto. E honestidade não é aqui uma prática ética, nem ontológica, nem estética. A honestidade é um sonho, um “imaginar-me assim”. Tudo é imaginação, menos o corpo que nos pede comida. E pede ainda outras coisas mais tenebrosas, pede imaginação. O corpo imagina. O corpo sonha. E isso, sim, é um problema. Adivinha-se. O corpo exige sonho. O corpo exige que o espírito desça do seu pedestal e se dobre para lavar o soalho, que os pés que o alimentam pisam.

“Sei que qualquer aragem me atravessará o corpo
(…)
Sei, porque me chego para a frente com força
que o poeta transporta um saco de luz
com um coração doente que canta
(…).”

A poeta sabe que é um duelo perdido, e por isso escreve: “Que eu só queria existir um pouco / na definitiva passagem do fogo / e suster a passo veloz os estragos / a força de um corpo resumido ao vento.” Mas nenhum corpo se resume ao vento. Os corpos nascem e morrem para imaginar. Os corpos até imaginam que são espírito. O corpo é em si mesmo um altar onde os amantes rezam. Não se é jovem de espírito, como se usa dizer nos arrabaldes da imaginação. É o contrário: o corpo é sempre adolescente, por mais idade que um espírito tenha. A Raquel Nobre Guerra sabe-o, e escreve: “Ou talvez esta minha inclinação adolescente / de pegar-te nas mãos para ficar nelas / ainda se torne o melhor par de versos de sempre.”
Nenhum poema de amor é somente um poema de amor. Principalmente neste livro de Raquel Nobre Guerra. Aqui, o amor é usado para dizer o mundo, para dizer o pó da humanidade. O amor é usado tal como os humanos são usados nele. Neste livro o amor não é uma máquina lírica, é antes uma máquina de pendurar existências, como nos diz os primeiros versos deste poema:

“Objectos restantes do nosso último encontro:
o tubo de tabaco Lucky Strike (seguramente)
e a pontuada consoante «só».
Coisas sem significado que se deixam ficar
como um piropo sem resposta.”

A inventividade da linguagem não prescinde de fazer sentido, não prescinde de ontologia. A vida, e não a linguagem, e não os efeitos da linguagem, e não o encantamento da linguagem, é o que importa aos versos de Raquel Nobre Guerra. A linguagem existe para dizer a vida, para complicar a vida, para fazer ver a vida, para tentar acalmar a vida. A vida é sempre o horizonte da linguagem, a vida que não existe a não ser que se invente. Nós na vida, aprendemo-lo com a poeta, somos todos “(…) um príncipe melancólico com abalos de amor / por mulheres mais tristes que uma mulher a correr (…)”.

Fora da linguagem, fora dos livros, fora de nós dentro dos livros, tudo é verdadeiramente triste como uma mulher a correr. Tudo é triste como amar uma mulher a correr. A tristeza maior, adivinha-se nos poemas deste livro, não é uma casa, seja ela qual for, não é uma vida, seja ela qual for, é uma vida separada da linguagem. Ir à rua é como se nos cortassem o cordão umbilical que nos liga à mãe linguagem; é essa dor, essa nostalgia que é sentida pela poeta que aqui escreve estes versos. Ainda que haja a consciência de que a linguagem nos mente com todas as letras do alfabeto; e consciência de que é com ela que nós também mentimos, a nós e aos outros:

“Minto, porque cedo ao poder das palavras
o que trago no saco são coisas remendadas
que vou deixando cair.”

Estes versos finais do poema inicial parecem ilustrar bem a falência do quotidiano face à poesia. Porque nada é mais triste do que o quotidiano, a não ser talvez escrever sobre ele. Fora dos livros, fora da leitura e da escrita, o mundo inteiro “ilumina-se de todos os anjos filhos da puta”, porque a tristeza começa sempre que um humano sai da sua casa para ir ao café do seu bairro ou para o trabalho ou simplesmente ir às compras, porque o corpo assim o exige.

“Acordo com um perfume que não é o meu,
faço contas ao corpo antes de ser bicho
— às vezes penso, esta obsessão não é verdade
estou morta sou infinita
e a manhã despenca como uma grua.”

Apesar de tudo é muito difícil ser-se bicho. É difícil entregar-se a uma animalidade esperada ou sonhada ou simplesmente uma animalidade que parece fácil aos outros. A animalidade não é ser viúvo de espírito, a animalidade é o corpo a deixar de sonhar. O corpo exige, mas o espírito põe os pés pelas mãos e põe-se a fazer contas. E depois há que pensar. Há que pensar, que isto é uma coisa que não nos deixa. Não nos deixa sequer dormir, não nos deixa sequer trocar de sexo com alguém. O cérebro, que serve para inventar tantas coisas belas, não consegue inventar um botão de pausa. Nem a troca de sexo com alguém nos dá descanso. Porque não há uma pausa para o pensar. Pensar não dá descanso à poeta. Pensar é ser viúvo do corpo. Raquel Nobre Guerra parece saber que o poeta quando cai de boca no sexo, a boca não vai sem palavras, não vai sem pensamentos, não vai sem indecisões, que são o departamento de finanças do país pensar, e com isso o poeta dá cabo de tudo. Não dá cabo só da sua vida, dá cabo também da possibilidade de fugir dela. Arruinada que está essa possibilidade de fuga, “a manhã despenca como uma grua.”

Estes poemas mostram a encruzilhada de se ser entre uma boca no amor ou uma boca na linguagem. E não há conciliação para esta poeta (ainda que a pessoa possa não ser assim), porque, como ela mesma escreve:

“Bebo uma bica por dia, às vezes bebo-a fria
depois disto bem que podia morrer, diga-se
com as mãos ao redor de um pescoço amigo
quero dizer, de um livro. Tenho o carácter
objectivo de uma incompetência para a vida.”

Só os livros nos compreendem. Só aos livros compreendemos. Tudo o resto é uma angústia enorme, por ter de ir à rua comprar comida, beber café (a parte boa da existência), fazer a máquina funcionar. “Quem nunca hesitou na paragem do 28 / e pensou: ali via a metáfora da minha vida.”

Vida e poesia não são coisas separadas. A poeta não vai à rua, lambuzar-se de vida, e chega a casa para escrever o seu poema, para afirmar o seu nome no mundo. Ela vai à rua (porque não pode deixar de ir) e sempre com culpa, por mais que haja açudes de alegria. Mas talvez os versos deste livro que melhor nos mostrem a identificação entre vida e poema para Raquel Nobre Guerra se encontrem aqui:

“E um bom poema? Uma banana a apodrecer numa fruteira.
E o que a comove? Uma banana a apodrecer numa fruteira.”

Além desta guerra entre os aliados – que formam um enorme exército e podem ser resumidos no verso “Gente que está viva, diria, pasto para as sensações”, que no fundo são a rua, o amor, o sexo, a vida – contra a escrita, e de traçar uma fenomenologia de bairro bem conseguida – pois toda a fenomenologia é como o fim do mundo, e “O fim do mundo começa sempre no café do bairro” – o livro é repleto de belos versos. Por fim, deixo para mostrar aquilo que é certamente a cor mais visível deste livro: a ironia. Uma ironia quase constante, a fazer-se sentir ao longo dos poemas como uma dor moinha nos dentes. Como nos exemplos seguintes, que não esgotam o caudal irónico desta poética: “Mas a natureza morta da metáfora / não me deu talho para o poema.”; “Mas aprofundei-me na ocupação da violência / um arzinho de filosofia para empernar meninos.”; ou ainda nesta estrofe inteira:

“Sais de casa porque a morte te agita
transpiras pelo empregado de mesa
que lê Balzac, tens ambições literárias
razões, enfim, para andar mal vestido
despenteado com um saco na cabeça
para que se diga ali vai a poesia portuguesa.”

Ironia e ontologia, numa sucessão de duelos, numa sucessão de inversões no modo como vemos as relações entre o corpo e o espírito, entre o corpo e o sonho. Terminemos com a voz da poeta, no final de um dos seus poemas:

“Dei por mim a propor duelos:
Café e pistolas para dois?”

13 Set 2016

Carlos André participa na próxima sessão de “Conversas sobre o livro”

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Fundação Rui Cunha patrocina mais uma vez “Conversa sobre o livro” com o título “Percursos inesperados de um leitor”. O orador convidado para dinamizar a sessão é o Professor Carlos André, que trocou Coimbra por Macau em 2012.
A iniciativa é promovida pela Associação Amigos do Livro em Macau e vai acontecer na próxima quarta-feira, no espaço da fundação
Ler um livro é uma experiência pessoal. Cada um interpreta as palavras escritas de acordo com a sua experiência de vida e os seus gostos pessoais. “Cada leitor tem o seu percurso; alguns percursos são mais ortodoxos, outros nem tanto”, refere o comunicado da Fundação Rui Cunha. As opiniões variam consoante as correntes; as que defendem que uma leitura deve ser escolhida com critério; outros defendem exactamente o contrário. A surpresa e o inesperado são por vezes os maiores aliados de uma leitura com prazer.
O convidado de cada sessão dá o seu contributo e partilha a sua experiência. Nesta intervenção o professor é convidado a intervir com o seu percurso que, segundo a mesma fonte, ” é o de quem descobriu a leitura por aquilo que ela é, etimologicamente, um simples prazer de juntar sinais e deles fazer palavras com sentido e na sucessão delas apreender histórias”.
Através da leitura descobrem-se histórias e é possível fazer um percurso “onde cada etapa é um capítulo; que talvez nada tenha a ver com o capítulo seguinte”.

Paixão lusófona

O orador convidado para esta palestra é uma figura conhecida da escrita, pelo seu contributo em vários planos mas sobretudo na área da literatura Latina e Portuguesa. Envolveu-se activamente em acções de cooperação com países lusófonos como é o caso de Moçambique, Timor, Brasil e Angola. Macau valeu-lhe particular atenção. Deslocou-se pela primeira vez a este território em 1984, acabando sempre por voltar, até se ter estabelecido em 2012.
Desempenhou vários cargos tendo sido membro fundador da Associação Internacional de Lusitanistas, da qual foi, depois, Vice-Presidente e Secretário-Geral-Tesoureiro. Foi Director da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (2006-2013) e Coordenador do Pólo de Leiria da Universidade Católica Portuguesa. É Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (em licença especial) e foi “Visiting Professor” nas Universidades da Ásia Oriental, Macau (1984), Hamburgo e Gottingen (1992/1993) e Poitiers (1994 e 1996). É membro da Academia das Ciências de Lisboa e da Academia Brasileira de Filologia. E desempenha actualmente o cargo de Coordenador do Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa, do Instituto Politécnico de Macau.
Até ao fim do ano, a Associação Amigos do Livro em Macau assegurará mais duas “Conversas sobre o livro”, com intervenções do Prof. Yao Jiming com o tema “Imagens Constantes na Poesia Clássica Chinesa” e do Prof. Peter, Cheng Wai Ming sobre “Literatura chinesa moderna”.
Tal como acontecerá na próxima quarta-feira, a Fundação Rui Cunha assegurará, em todas as sessões, a tradução simultânea para cantonense.

5 Set 2016

Pin-To | Livraria e loja de música fecha com festival no domingo

A Pin-to vê agora as portas fecharem. Mas nem só de lágrimas é o adeus e do desaparecimento sai o primeiro e último festival de música no espaço do Senado

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]espaço Pin-To, loja que se dedicou durante uma década à venda de livros e música, tem o ‘canto do cisne’ anunciado para o próximo dia 31 de Julho. Um casa dedicada à cultura que fecha portas, mas não sem antes realizar um sonho: o primeiro e último Festival de Música da Pin-To vai acontecer. Com nomes estrangeiros e locais, o fim-de-semana vai ter sons para todos os gostos.
Sexta-feira as vozes fazem-se ouvir a partir das 19h30. No palco estará Qing Yuan e Forget The G, que trazem como convidado especial Hugo Loi. Sábado a agenda começa às 14h30 e os interessados poderão assistir aos concertos de François Girouard & Rita, half cat, Cheng Wenzheng, Ringo & John Vu e os Jazzers!. Domingo fecha a programação e o espaço, passando por lá a partir das 15h00 Sonia Ka Ian Lao, Achun, Small Flower, KIRSTEN, Faslane, Aki e um encore de François Girouard.
A Livraria Pin-To abriu portas em 2003 e três anos depois dava origem à Música Pin-to.

Laboratório de minorias

A abertura do espaço terá sido na sua génese, uma experiência. Para os proprietários tratava-se um “laboratório” em que desejavam saber se a sua selecção musical teria eco ou ressonância em Macau, tendo em conta a pequena dimensão do mercado musical local. “Acreditamos que a beleza de música é sentida por todos quando abrem o coração”, afirmam os proprietários no Facebook. E foi assim que começaram a “apresentar as músicas não tão populares”, assumindo esta postura como mote do que se fazia na Pin-to.
Através da exposição de CDs, realização de seminários e produção de concertos, foi objectivo do pequeno espaço comercial divulgar as músicas que vinham de fora e ali serem apreciadas. O trabalho era procurar álbuns de destaque vindos de todo o mundo ao mesmo tempo em que estabelecia elos de cooperação com etiquetas independentes.
Da canção de intervenção, com passagem pela música electrónica experimental, o “ruído” e o rock, a Pin-To conferia um espaço para cada uma destas áreas. Ainda que algumas pessoas pudessem pensar que são estilos musicais feitos para minorias, para eles “mostrar a minoria” é uma mais valia, afirma a apresentação.
Ultimamente as prateleiras estão cada vez mais vazias, mas as oportunidades de encontro com “novos e velhos amigos” têm aumentado e é neste registo que se realiza o Festival de Música.


* por Angela Ka e Sofia Mota

26 Jul 2016

IC lança obra “Bibliografia da Literatura de Macau 1600-2014”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] o segundo volume da “Colectânea do Museu de Literatura de Macau – Série História” e intitula-se “Uma Bibliografia da Literatura de Macau 1600-2014”. Foi apresentado no sábado passado com o apoio do Instituto Cultural (IC).
A publicação de trabalhos ainda mais abrangentes e aprofundados sobre a literatura de Macau é o objectivo deste livro de Wong Kwok Keung, um autor com anos de experiência na recolha e investigação histórica que seleccionou para este trabalho uma bibliografia com mais de seis mil volumes relacionados com a literatura local.
Através de análises de conteúdo, linguagem, editoras e outros factores e tendências das obras de literatura relacionadas com Macau, o autor procura apresentar o estado de desenvolvimento da literatura em língua chinesa, portuguesa e inglesa da cidade. O resultado é a criação de um “título essencial para o desenvolvimento da literatura local, por via da enumeração de valiosos materiais de referência e, naturalmente, proporcionar um valioso instrumento para investigadores na área”, indica o IC.

Sempre activo

Wong Kwok Keung assumiu funções na biblioteca da Universidade de Macau em 1987, assumindo actualmente o posto de bibliotecário-auxiliar da mesma. Desde 2005 é chefe do Centro de Publicações da instituição. A partir de 1990 tornou-se num activo participante de actividades sociais e começou a compilar uma lista de estudos e publicações relacionados com Macau, facultando uma importante base para estudos sobre a cidade. Nos últimos anos, publicou perto de cem artigos relacionados com publicações e materiais de investigação de Macau, focando-se sobretudo na história editorial, bibliografia documental e na história da biblioteca e arquivo de Macau e história da leitura e de Macau em relação ao Sudeste Asiático.
“Uma Bibliografia da Literatura de Macau 1600-2014” encontra-se à venda ao preço de 150 patacas, estando disponível na Plaza Cultural, Livraria Seng Kwong, Livraria Portuguesa, Arquivo Histórico de Macau, Centro de Informações ao Público e no Centro Ecuménico Kun Iam.

13 Jul 2016

Cabo-verdiano Sérgio F. Monteiro na Livraria Portuguesa

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Livraria Portuguesa anuncia a presença hoje do escritor cabo-verdiano Sérgio F. Monteiro, naquele espaço. Num comunicado à imprensa divulgado em Inglês, a livraria explica que o autor vai apresentar o seu primeiro livro, intitulado “Other American Dreams”, uma história sobre traição como último recurso espoletada pela descoberta de 12 corpos torturados num barco de pesca senegalês.
São migrantes africanos, vem-se a descobrir, facto que motiva uma investigação policial levando-nos a um mundo de corrupção e de gangues ligados ao tráfico de narcóticos.
O cenário é Cabo Verde e a cultura emergente de gangues chegados ao arquipélago, constituídos por deportados cabo-verdianos dos Estados Unidos. Um trabalho de investigação sobre a desintegração da unidade familiar, um dos principais factores por detrás da crescente taxa de criminalidade naquele país.
“Queria explorar as motivações que fazem as pessoas saírem das suas casas deixando tudo o que lhes é familiar e amado para trás, para arriscarem as vidas em barcos rudimentares e mal comandados para demandarem a terras estranhas onde têm de começar tudo do zero”, diz o autor. Sergio F. Monteiro poster
Sérgio, que foi criado em Washington e posteriormente em Hong Kong, diz ter-se sentido muitas vezes como observador externo, olhando de fora para dentro para as comunidades entre as quais viveu incluindo a sua própria. Crescer no mundo do protocolo internacional e diplomacia conferiu-lhe “uma perspectiva única da geopolítica, política externa e de relações raciais, e a consciência de que o instinto humano procura sempre uma vida melhor”, garante. Uma história onde o autor pretende contar “as histórias de muitos migrantes que, de outra forma, nunca seriam ouvidas”, explica ainda.
Um assunto actual que pode ser debatido ao vivo e em directo com o próprio autor, hoje, na Livraria Portuguesa a partir das 18h30. A entrada é livre.

6 Mai 2016

Patrick Deville na Livraria Portuguesa este sábado

[dropcap]O[/dropcap] autor francês Patrick Deville vai estar na Livraria Portuguesa no próximo sábado, pelas 18h00 para uma conversa acerca do seu percurso enquanto autor, do seu trabalho e do projecto “Casa dos Escritores e Tradutores Estrangeiros”. Numa iniciativa promovida pela Alliance Française de Macau, em conjunto com o Festival Literário Rota das Letras, os interessados poderão conhecer mais detalhadamente Patrick Deville e o que é, para ele, ser também escritor de viagens.

Segundo a organização, Deville não escreve histórias de viagens, mas sim crónicas protagonizadas por personagens excepcionais, que o autor vai procurando aquando das suas deslocações.

Também director da “Casa dos Escritores e Tradutores Estrangeiros” em França, cargo que “encaixa nesta sua paixão pelas histórias de outros lugares”, este é ainda o lugar que representa uma espécie de “céu que dá as boas vindas a autores de todos os cantos do mundo” enquanto também organiza colóquios, tem a seu cargo a publicação de uma revista e diversos textos bilingues.

O seu trabalho “Peste e Cólera”, que retrata a vida de um bacteriologista, é considerado um dos seus mais relevantes romances estando nomeado para diversos prémios literários tendo sido já galardoado com o prémio Fnac e Femina. Esta é ainda uma ocasião para os interessados em ter esta obra ou o livro Kampuchea autografado pelo autor. A entrada é livre.

13 Abr 2016

Rota do prazer

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão sou editor, não sou escritor, não sou organizador de nada. Nem mesmo da minha vida, que de cada vez que julgo estar a reorganizá-la se desorganiza logo de seguida, por qualquer razão, deixando-me sem jeito.

A confrontação com esta realidade ajuda-me a imaginar, porque não posso fazer mais do que isso, o que será a organização de um festival literário que envolve cerca de seis dezenas de entidades, entre patrocinadores principais e secundários, muitos editores e dezenas de autores que chegam dos cinco continentes, visitas a escolas, momentos e espaços para crianças, jovens e adultos, palestras, conferências, exposições, espectáculos musicais, do fado à ópera chinesa, projecção de filmes, lançamento de livros, reservas em hotéis, serviços de catering, organização de viagens, coordenação de horários, workshops de escrita e leitura, sessões de poesia, acompanhamento de convidados, num conjunto de actividades que se desenrola em múltiplos espaços, com recolha de imagens, e onde tudo acontece em três línguas que nada têm em comum (português, chinês e inglês), havendo por isso mesmo exigências de tradução simultânea para que as iniciativas recolham o interesse do público e não se tornem numa chatice.

Se a tudo isto somarmos o facto de haver público interessado, de várias nacionalidades e de todas as idades, de diariamente se poderem ler entrevistas nos jornais locais com os autores convidados, escutar programas na rádio ou ir acompanhando o que se vai passando pela televisão, vendo-se crianças, jovens, adultos e menos jovens, pais e filhos, ouvindo, debatendo, discutindo, aprendendo em salas cheias, sendo possível encontrá-los em simultâneo nos diversos eventos sem que a idade, a experiência ou o currículo façam alguma diferença, e em que os que gostam de livros se misturam com os que começam a gostar por se sentirem estimulados pelo ambiente para gostarem e apreciarem a leitura e a escrita, poder-se-á ter uma ideia, estando longe, do trabalho envolvido e da importância de uma iniciativa desta natureza numa cidade de 650 mil habitantes.

Existe nisto tudo uma dimensão extraordinária, que vai para lá daquilo que seria a imaginação quando a poucos quilómetros daqui a censura é um dado adquirido, não há liberdade de acesso à Internet, raptam-se editores e livreiros e há quem cumpra pesadas penas pelo simples facto de não pensar de acordo com os cânones oficiais. É verdade que mesmo aqui a democracia não passa de uma miragem, mas ter a possibilidade de ouvir quem vem do outro lado da fronteira discutir abertamente com quem chegou de países livres e de terras de democracia consolidada questões relacionadas com a liberdade de expressão e de edição e com os direitos humanos faz da Rota das Letras um espaço único de intercâmbio de ideias, de reflexão, de crítica e debate.

A cidade abre-se para receber os visitantes, acompanhá-los e aprender com as suas experiências. Torna-se possível falar abertamente com os autores, ouvir o que têm para contar e ensinar, e tudo pode acontecer numa sessão de apresentação de uma obra, num workshop ou partilhando-se uma refeição que a própria organização se encarregou de preparar com inscrições abertas a quem queira participar. E até pode dar-se o caso de se ser apresentado e almoçar ou jantar com autores que nunca se leu e em que a leitura é estimulada por esse encontro. Numa dessas ocasiões, estando eu já sentado com mais alguns convivas numa das mesas de um restaurante por onde a Rota passou, vieram perguntar-me se ali à minha beira se podiam sentar três dos autores. Tive então o gosto de conhecer e trocar impressões com gente de estilos e preocupações muito distintas — um é escritor, tradutor e professor da Universidade Nova, com passagens pelo Massachusetts e Vermont, o outro é especialista em Pessanha e Bocage, escreveu sobre Moraes e Raul Proença, e o terceiro é uma das estrelas da nova literatura do Brasil, vencedor do Prémio Machado de Assis, reconhecido cronista e foi escritor-residente da Universidade da Califórnia (Berkeley) — no que se revelou um momento de excelente convívio que me fez interessar por escritas para mim ainda desconhecidas. Não deixa de ser fascinante poder ler um autor consagrado que não se conhecia depois de se ter tido a sorte de com ele conviver primeiro. Em vez de se ler o livro ou conhecer a obra e só depois, um dia, encontrar o autor, toma-se um outro percurso. O exercício aqui será o de procurar na escrita os traços da pessoa com quem se esteve, de tentar encaixar e reconhecer o homem na sua obra e nas próprias palavras.

Sublinho nestas linhas a Rota das Escolas, parte do programa que passou pela Universidade de Macau, pelo Instituto Politécnico de Macau, pelo Instituto de Formação Turística, pela Universidade de S. José, pela Escola Portuguesa e por outras escolas chinesas e internacionais, pela importância que tem na atracção de gente jovem para a leitura e a escrita. Outros marcos foram o relevo dado à divulgação de literaturas menos conhecidas da região onde Macau se insere e a renovação da aposta na divulgação de autores dos países lusófonos, aliás em linha com o que vinha de trás. A pujança de que a língua portuguesa nesses países dá mostras nos diversos géneros em que se manifesta é garantia da sua continuidade e perenidade nas suas múltiplas expressões, cada vez mais avessas — é a minha convicção pelo que tenho visto e ouvido — a qualquer espartilho ortográfico que force a sua unificação e se sobreponha à liberdade de criação por razões comerciais.

Tenho pena, porque não estava de férias, de não ter estado em todos os lugares em que gostaria. Culpo-me por ter falhado apresentações de livros onde gostaria de ter estado e de não ter ouvido mais autores, consolando-me apenas com o facto de os seus livros por cá ficarem. Entretanto, seria muito importante que a equipa se mantivesse, que a Rota das Letras pudesse continuar a contar com o dinamismo, a experiência e o amor às letras do Ricardo Pinto, do Hélder Beja, do Yao Feng e de toda aquela gente jovem e interessada, entre tradutores e voluntários, que se esforça para que tudo corra bem. E que o festival visse o seu público crescer, penetrando mais fundo na comunidade, se possível em espaços mais amplos e bairros mais recuados, tornando-se num pilar da existência, infelizmente cada vez mais erodida, em especial em matéria linguística, de um segundo sistema na RAEM.

A Rota podia ter durado mais uma semana, talvez mesmo mais duas ou mais três. Mas não. Acabou porque tinha de ser assim. Não houve prolongamento e tornou-se inútil o desempate por grandes penalidades porque já se sabia que seria a equipa dos livros e da leitura a vencedora. O público aplaudiu e anseia por mais. A 5.ª edição da Rota das Letras acabou porque tudo tem o seu tempo e entre duas edições é preciso recomeçar tudo outra vez, fazer de novo para voltar a ser diferente em 2017. Venha então a 6.ª edição, se possível depressa.

23 Mar 2016

Luís Patraquim, escritor : “A sede de conhecimento em Moçambique é grande”

Luís Patraquim é de conversa fácil, mas não de conversa mole. Preocupado com o estado de insegurança no país, deseja paz, mais compreensão para a importância da cultura e traz-nos novas de um povo com uma enorme ânsia de aprender. O convidado do Rota das Letras rejeita paternalismos, desconfia dos tolerantes e não percebe por que os cidadãos ainda não circulam livremente pela CPLP

[dropcap]O[/dropcap] que o motiva a estar vivo?
Aconteceu-me estar vivo, portanto tenho de fazer o melhor possível. O Reinaldo Ferreira (poeta moçambicano) tem um verso que dizia “ai de mim que não pedi para nascer e sou forçado a viver”, mas ele era pessimista. Não chego a esse ponto, sei que isto é tudo um absurdo, mas também tem coisas com piada pelo meio. O projecto dele era “Um voo cego a nada”. Um belíssimo poeta que morreu demasiado novo, filho do famoso Repórter X, da I República.

E na sua obra? O que o motiva a investigar, a escrever, a pensar?
Julgo ser a curiosidade das coisas. A necessidade interior de dizer coisas que já foram ditas. Mas cada um diz à sua maneira. Porque não sou pretensioso, direi que existe algo de maravilhamento no mundo, apesar das tragédias pessoais e colectivas que sabemos. Há esse maravilhamento a que nos compete ficar atentos.

Como por exemplo…
Uma criança que corre a rir pela rua fora.

Dizer o que já foi dito. Vivemos num incessante círculo vicioso?
Tem dias (risos). Mas passa por aí. Daí o mito do labirinto. A descoberta, aquele desafio do desconhecido para depois resgatar algo que, no fundo, é algo dentro de nós, que não conhecemos, para depois produzir um sentido qualquer. Os sentidos inventamos nós a cada momento, não é? A linguagem e a música são os primeiros dessa invenção de sentidos que fomos inventando ao longo da histórias em várias culturas e sociedades.

Será possível formular uma pergunta que nunca lhe tenha sido feita? Algo que você desejasse falar e nunca tenha tido oportunidade?
Por exemplo, com quantas gajas é que andou? (gargalhadas) Mas, como sou cavalheiro, não digo.

Os brasileiros têm a expressão “abaixo do equador não existe pecado”. Em Moçambique também é válida?
Isso são aquelas frases meio folclóricas mas, num certo sentido, é verdade. O pecado é da ordem do religioso. A ética é da ordem da filosofia. Eu não me revejo em nada que tenha a ver com pecado, mas sim em tudo o que tenha a ver com ética.

Como é a vida em Moçambique?
Não é fácil. Tem ilhas de tranquilidade de um viver ainda tradicional e antigo e a emergência deste conflito que está no começo mas que pode vir a ser perigoso. Tem cidades, como Maputo, que começam a ser uma grande confusão. Alta velocidade, interesses, o dinheiro, o dinheiro, o dinheiro… Mas tem outros espaços absolutamente aprazíveis onde se pode viver sem stress como, por exemplo, a cidade de Inhambane.

Em Maputo descobrem-se muitos sinais de Portugal, da culinária a símbolos como o dos clubes… Existe uma nostalgia?
Já passaram 40 anos. Os moçambicanos já fizeram muitas coisas, boas e más. Há isso sim, uma espécie de reconciliação com aquele pai que foi preciso matar, no sentido freudiano, e agora há uma percepção de que o mundo é vasto, algumas heranças ficam e as sociedades aproveitam o que acham melhor de cada cultura seja ao nível que for. Não será bem nostalgia. É talvez uma forma de trazer à memória afectiva ou “desafectiva”, se calhar mais “desafectiva”, uma presença que esteve lá de forma colonial mas também com muitas outras facetas, sem o conflito e essa necessidade de afirmação que existia antes de voltar a conviver com uma série de heranças.

Há sempre uma ideia em Portugal que fomos sempre tolerantes, amigos dos povos nativos…
Ah… isso é tudo uma mitologia desgraçada.

Agora vemos a presidência portuguesa da CPLP contestada por vários países, Moçambique incluído…
É os resultado de anti-colonialismos primários. Coisa que para o Brasil então não faz sentido nenhum. Angola e Moçambique ainda vá, porque a descolonização [foi recente]. Seria absurdo, mas podíamos tentar perceber. Para mim é uma questão política de hegemonia. Se calhar o Brasil quer tomar o comando. Se bem que o Brasil se esteja a marimbar para o tal mundo da lusofonia – eu não gosto deste termo mas ainda não se descobriu outro -, quer ter uma influência maior ou então não dá para perceber. Mas a própria CPLP foi mal construída, a partir do vértice da pirâmide e está a custar muito a descer à base.

Melhor explicado…
Os chefes de estado resolveram criar aquilo com uma noção um bocado corporativa. Conferências Ministeriais, reuniões de Associações de Advogados, de empresários, de associações disto e daquilo, mas nada chega cá abaixo, ao povão. Na prática dos povos o que interessa é o dia a dia, o chão das coisas. Uma política fácil de vistos entre estes países, por exemplo.

Faria sentido uma comunidade de livre trânsito?

Fazia mas Portugal está amarrado a Schengen. Cabo Verde propôs há muito, mas nenhum dos outros países aceitou: era uma espécie de cidadania lusófona. Uma forma diplomática, consular, que permitisse às pessoas circularem. Não apenas as corporações mas também o Zé dos Anzóis, as famílias (o resultado destas ligações que ficaram) poderem viajar sem estes entraves todos.

Há dias, Luiz Ruffato dizia ao HM que “o português de Portugal vai acabar por ser um dialecto do Brasileiro”.
Tenho de discordar. Em termos linguísticos não há dialectos. São línguas. Falava-se em dialecto quando o poder colonial se referia às línguas dos países africanos. Moçambique tem 11 grupos linguísticos, todos de raiz banta, Angola tem outros tantos. Falar em dialectos é uma espécie de menorização dos estatutos linguísticos. Hoje a linguística não vê a questão assim. Não se trata de dialecto absolutamente nenhum. O que vai acontecer são variantes da Língua Portuguesa, aliás já classificadas assim. A variante europeia não é única, porque naquele território tão pequeno, o léxico, alguma sintaxe e até a pronúncia sofrem tantas mutações… vai haver um português de Moçambique, os linguistas já fazem estudos nesse sentido, em Angola idem… O que o Luiz, se calhar, queria dizer é que pela dimensão geográfica e demográfica, o Brasil é o gigante que é.

Neste contexto, que sentido faz um acordo ortográfico?
Não faz muito. O problema da língua não está aí mas na sintaxe. O léxico não é problema porque as línguas são organismos vivos que se inventam a si próprios, depois a literatura gera uma espécie de padrão, a gramática analisa e cria um conjunto de regras que, logo a seguir, podem ser mudadas e são. Não há um proprietário da língua e qualquer Estado que julgue poder legislar a esse nível está absolutamente equivocado.

O que falta a Moçambique para que as pessoas se entendam?
As elites não se esquecerem do melhor do discurso de libertação – salvo algumas arrogâncias, a matriz não começou bem – que sejam menos arrogantes e menos ambiciosas. Estou a dizer o óbvio, mas pronto… que coloquem o interesse nacional acima dos interesses partidários.

O interesse nacional é um conceito vago…
É definido pelas classes hegemónicas que chegam ao poder, é assim em todo o lado. No caso moçambicano, é o de que se não existir juízo a própria unidade do território pode estar em causa. O país precisa de uma política que tenha em conta a distribuição da riqueza, capaz de criar condições para mais riqueza a partir da agricultura e distribuí-la pela população. Isso não está a acontecer. Vive-se de galinhas dos ovos de ouro – daí a emergência do novo conflito-, do gás natural, um ouro que está ali a luzir e a perturbar as cabeças de alguns.

Há meia dúzia de anos vi em Maputo a capa de um jornal com a fotografia de uma figura pública e a manchete “O regresso do grande pateta”, arrojado em muita democracias. Tendo em conta o momento actual, como está a liberdade de imprensa em Moçambique?
Nesse aspecto existe, de facto. De uma forma geral, a liberdade de imprensa mantém-se mas tem dias. Às vezes não é bem utilizada mas por uma questão puramente técnica. Há jornais e jornais, só por isso. A liberdade de imprensa é um dos pilares do jogo democrático, é saudável pela capacidade crítica, de criação de massa crítica, pela formação de opinião e a necessária difusão de informação que todas as sociedades precisam.

Em Macau a discussão da independência do poder judicial está na ordem do dia. Qual a situação em Moçambique?
Isso é da definição básica da coisa pública. (risos) Teoricamente existe. Praticada por um ou outro juiz mais consciencioso, também existe. Mas como sistema não existe, infelizmente, porque a teia dos interesses, dos favores, das pequenas ou grandes corrupções é de tal ordem que, de uma maneira ou de outra, as coisas estão instrumentalizadas. Às vezes aparece uma pérola caída não sei de onde como o caso do professor Castelo Branco. A consciência, a tal ética, não é?

Aconteceu-me entre Inhambane e Maputo: numa venda de estrada um grupo de crianças pedia-me livros. Existe outra utilidade para os livros ou aquelas crianças tinham mesmo necessidades de leitura?

Há uma grande curiosidade. As pessoas sacrificam-se muito para estudarem. Há uma sede de conhecimento muito grande, isso é verdade. O sistema de ensino é que tem muitas falhas. E, nessa zona, a necessidade ainda é maior porque a escassez de oferta é grande.

Que se poderia fazer para resolver essa necessidade?

Precisamos de uma rede de bibliotecas, de meios para distribuir livros pelo país. Mas a situação volta a estar difícil neste momento.

A tensão é assim tão grande?

Começamos a viver uma situação de insegurança. Já há colunas militares a acompanhar os carros pela estrada número um… Já começa a ser parecido com há uns anos atrás.

E a sociedade civil moçambicana ainda não tem força para se opor a esse “estado de sítio”?
Manifesta-se muito, faz muitas coisas, comunicados mas, no limite dos limites, não tem ainda o poder para se opor com veemência ao que está a acontecer.

Como está vida cultural em Moçambique?
Está viva. O teatro, até o cinema, mais caro, produzem. Na literatura edita-se muito, com maior ou menor qualidade. E a cultura é um sector olhado com prestígio, o que não é mau. Não existem ainda é políticas governamentais que entendam que a cultura (para além de fortalecer a moçambicanidade plural, a unidades e os chavões que se quiserem) também pode acrescentar valor ao PIB.

Hoje fala-se é de diplomacia económica.
E só se fala em diplomacia económica. A cultura é sempre vista como algo menor. O poder político tem de perceber que a cultura não são apenas umas festas para consolidar a implantação do partido nesta ou naquela região, como é o caso do famoso Festival Nacional de Canto e Dança, ou do Cultural Nacional. É preciso criar dinâmicas: uma verdadeira associação de autores, subsídios para o teatro e para o cinema, que não há. Formas de investimento para atrair públicos, gerar massa crítica e educar o gosto. Edições subsidiadas pelo governo, dos grandes mestres como se está a fazer em Itália. Mas em Moçambique, de uma forma geral, só se pensa no luxo, no papel couché e coisas dessas.

Nestes últimos anos tem-se assistido à entrada de muitas empresas chinesas em Moçambique. Como tem sido a relação com os locais?
Há um problema de comunicação. Uma coisa são os chineses e macaenses que estão lá há mais de cem anos, a outra são estas empresas, na maioria estatais, que chegam agora. Contratam os locais para lugares menores, querem tudo na velocidade chinesa e o moçambicano não é assim. Não quer dizer que seja preguiçoso, mas tem outro ritmo. E se pagassem decentemente, também ajudaria.

E de um ponto de vista mais geral? Há benefícios claros para a população?
Hoje começa é a questionar-se o modelo de cooperação chinesa com África. Há benefícios claros porque se abriu a estrada ‘x’ ou ‘y’ mas depois não há interacção. A empresa chega, monta o estaleiro, propicia um trabalho sazonal não muito bem pago, não há grandes convívios, a obra acaba, vão-se embora. Um ou outro escapa e fica mas são casos pontuais. É um esquema de cooperação um bocado disfuncional.

Fala-se muito da responsabilidade do mapa cor-rosa por parte dos problemas de África. Que ideia tem sobre isso?
É o ultimo argumento de um novo olhar europeísta sobre África, que seria o mais perigoso. Querer isso para África agora seria a desgraça total e completa. Aquando da conferência de criação da Organização da Unidade Africana, em 1963, foi acordado deixar tudo como está. Quando há conflitos graves, há estudos sobre isso, as causas, normalmente, não são étnicas mas derivadas da injustiça na distribuição da riqueza, da falta de criação de oportunidades, de poderes políticos nepotistas.

Tenho a ideia que, para si, a palavra ‘tolerância’ não tem a conotação de bondade que normalmente lhe atribuímos. É mesmo assim?
Lá para trás foi boa quando o John Locke escreveu o “Ensaio sobre a Tolerância”, quando existiam as guerras religiosas na Europa. Fazia todo o sentido e continua a fazer um certo sentido, claro. Mas uma pessoa que se diz tolerante é um bocado arrogante. Que categoria tenho eu para ser tolerante ou deixar de ser tolerante? Ou tenho opiniões ou não tenho. A minha posição deve ser a do discurso, da discussão com o outro, para ver se chegamos a acordo, ou não, mas cada um com as suas ideias ou cultura. Não é preciso guerra por isso.

Um dia foi exilado…

(interrompendo) Exilado é uma palavra muito fina para mim porque fui um refractário. Exilados são os políticos. (risos)

Como aconteceu?
Não queria participar na Guerra Colonial e queria ir para a luta de libertação. É tão simples como isso.

Porquê a Suécia?
Por contactos. Porque havia lá uma base dos três movimentos de libertação: Frelimo, PAIGC e MPLA com base na CONCP (Conferência da Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas) criada em Rabat logo a seguir ao início da guerra em Angola.

O que gostava que um dia fosse o seu legado? A recordação do seu trabalho como jornalista, escritor, activista?
Não gostava de nada porque nessa altura já cá não estou. (risos). Mas sim, gostava que recordassem um trabalho sério e rigoroso.

Que trabalho será esse?
Algumas propostas para o maravilhamento do mundo.

Um desejo para Moçambique
Paz.

23 Mar 2016

Rota das Letras anuncia vencedores de Concurso de Contos

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]omens sombrios, diospiros que ainda são verdes e o dia em que Macau mudou de soberania estão no pódio da quarta edição do Concurso de Contos do Rota das Letras. Os vencedores deste ano são Zhong Younghua, de Macau, Darío Bravo, do Brasil e a australiana Jane Camens, nas categorias de Chinês, Português e Inglês. Os vencedores receberam um prémio monetário no valor de dez mil patacas cada e têm os seus trabalhos traduzidos e publicados no livro de contos “Quarto Crescente”, onde constam também textos de autores presentes na edição de 2015 e que foi lançado este fim-de-semana.

Brilho no café

Zhong Younghua conta a história de Mr. Blackrose, homem taciturno de origem chinesa frequentador assíduo de um café em Macau, que transporta consigo uma rosa negra e vários segredos sombrios. A escolha desta história pela aclamada autora chinesa Wang Anyi, é explicada pela mesma: “Escolhi Mr. Blackrose de entre os quatro finalistas por a narrativa possuir um certo nível de talento e estilo, uma história completa, uma estrutura lógica e uma prosa fluida. O espaço ficcional do café cria o ambiente perfeito para o desenrolar da história, sugerindo a transformação romântica de um destino intolerável. Assim, uma existência limitada é finalmente capaz de se abrir, brilhando, ao perseguir valores clássicos”.

Wang Anyi referiu ainda que “a vida em Macau raramente surge representada na literatura, pelo que o valor destes textos reside no facto de abrirem esse caminho”.

Retrato de mestre

Na categoria de Língua Portuguesa, o prémio foi atribuído ao brasileiro Darío Bravo. O conto “Diospiro Verde” relata a história de um homem que lida com o passado e a perda de alguém que amou. O escritor e académico Carlos André considera que este trabalho “surpreende pela riqueza do retrato humano, pelo primor do desenho, pela mestria da palavra, pela força da imaginação” e por tudo isso estar contido num texto curto. “O conto é assim mesmo: breve. E, quando nele cabe tanto, como é o caso de ‘Diospiro Verde’, ser breve é ser tudo”.

Um dia e duas noites

A australiana Jane Camens, que é simultaneamente uma das convidadas da edição deste ano, venceu na categoria de língua inglesa com o conto “Depois da Meia-Noite”, uma história que se desenrola no dia da transferência de soberania de Macau para a China, em Dezembro de 1999.

Yan Ge, membro do júri e autora chinesa, refere que “guiado pela história, o leitor testemunha um dia e duas noites nas vidas de pessoas da época: os correspondentes internacionais, os portugueses, os chineses e os macaenses. A narrativa é perspicaz e genuína, lírica e pungente. Mostra uma imagem abrangente desta grande despedida, bem como uma jornada pessoal de amor e perda. A complexidade e ambiguidade da humanidade nunca devem ser esquecidas, especialmente num momento de transição.”

Esta quarta edição do concurso de contos foi a mais concorrida de sempre, tendo a organização recebido mais de cem trabalhos. O regulamento e prazos para o 5º Concurso de Contos será brevemente anunciado pela organização.

21 Mar 2016

Rui Zink, escritor : “Acho que Portugal é um país democrático a sério”

Findo o século da predominância da cultura americana, assistimos ao brotar da cultura e literatura chinesa. É assim que pensa Rui Zink, escritor português que regressou ao Rota das Letras e que pôde, por fim, descobrir Macau. Sobre o Portugal de hoje, Rui Zink fala de um país que pode ser um “farol de luz e bom senso” em relação à Europa

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap]a segunda vez que está neste Festival e este ano teve a oportunidade de ajudar na escolha dos convidados.
O meu plano secreto é tomar o lugar do Hélder Beja e do Ricardo Pinto e daqui a dois anos ser eu a fazer o Festival. Mas foi uma grande honra e, pela primeira vez, estou a ver Macau e o Festival. Porque na primeira vez somos peixes de outro aquário. Já me sinto mais dentro e ficarei muito zangado se não me convidarem para uma terceira vez.

Macau, e sobretudo a comunidade portuguesa, está a aceitar mais o evento, a participar mais?
Não posso comparar as cinco edições, mas posso dar como exemplo o maior evento do género em Portugal, que é o Festival Correntes D’Escritas, que levou dez anos até se tornar no menino querido das gentes do norte e dos jornais. Um festival leva tempo a crescer e penso que este [Rota das Letras] tem elementos base para ser um grande festival. Tem escritores variados, participação com instituições locais e idas às escolas, que são fundamentais. Tive a oportunidade de ler muitos livros de autores que conheci aqui, como é o caso de “I love my mum”, de Chen Xiwo. Fiquei espantado com a sua franqueza. Tinha aquela ideia de que os chineses são delicados de mais e nós, portugueses, é que somos directos. Acho que nós portugueses é que somos pouco directos.

A literatura chinesa está a tomar as rédeas da literatura mundial e vai ser cada vez mais falada? Os escritores chineses estão a começar a ter essa garra para escrever sobre outros assuntos?
É natural que tenham. Há um mito muito simpático, que é o dizer que a arte está contra a política e a economia. É mentira. Se há coisa que a história prova é que esse bonito mito é uma fraude. O poder da arte acompanha o poder económico e político. Passámos metade do século XX a ver cinema americano, a ler literatura americana e a ouvir música americana. O século XX foi o século americano. A cultura resiste enquanto o dinheiro dura e isto é um facto. Agora falo do século chinês.

Que é este que está agora a começar.
Sim. Está a começar e não tem mal nenhum, porque já houve um século português. Temos é de ser sexy, seja quando estamos por cima ou por baixo. Há uma grande curiosidade, os [autores chineses] começam a ser traduzidos, a China é um gigante. Mas os escritores americanos do princípio do século liam literatura francesa e inglesa, os clássicos, e assimilaram. Neste momento o que vejo em muitos escritores traduzidos [é que] já escrevem usando os truques dos escritores que lêem. Tenho um livro que está aos poucos a ser traduzido pela Europa fora: “A instalação do medo”. E é interessante porque saiu agora na Alemanha e vai sair em França e cada país vê aquela história de forma diferente. Este livro foi traduzido porque diz algo ao gosto francês e alemão. Há livros meus que são muito inteligentes e que não podem ser traduzidos, porque em Alemão, por exemplo, os leitores não iriam compreender.

Os seus livros conseguem ser compreendidos em Chinês?
Sim. Tenho os elementos de humor e franqueza que o público chinês adoraria ler.

[quote_box_left]“Tinha aquela ideia de que os chineses são delicados de mais e nós, portugueses, é que somos directos. Acho que nós portugueses é que somos pouco directos”[/quote_box_left]

Falta humor na China, na literatura?
Não, pelo contrário. O que acho é que o humor é muito difícil de traduzir. É eminentemente cultural.

Escrever em Portugal é mais difícil nos dias de hoje?
Porque é que haveria de ser mais difícil?

Por questões económicas e sociais. Há uma censura escondida?

Não. Usar a censura como desculpa para não escrever é uma cobardia.

É como se o escritor desistisse?
Escrever é a única arte em que não dependemos dos poderes, é papel e caneta. Depois o que há é preguiça ou trabalho.

Mas a crise económica trouxe constrangimentos ao mercado editorial.
Há, e é natural, um maior fechamento do mercado editorial, quer a nível de livros e de distribuição, quer a nível de jornais. Houve jornalistas despedidos e há menos gente a ganhar dinheiro a escrever para jornais. Mas isso não tem a ver com censura. Se fosse jornalista sentia-me censurado e perseguido, por estarem a dar cabo do meu ganha-pão. Mas não sou jornalista, e como sou escritor, não posso usar o argumento da censura económica para escrever o que me apetece.

[quote_box_right]”Quando a porcaria da Europa tiver 200 anos seguidos de paz, nem que seja no seu território, então começa a ter autoridade moral. Acho muita presunção e pouca água benta a Europa como dadora de lições a este encantador adolescente chamado China”[/quote_box_right]

Sobre a questão de, em Portugal, mostrarmos aquilo que o turista quer… Em Lisboa vão fechar bares que fazem parte da sua geração, como o Jamaica e o Tóquio. Catarina Portas, empresária, fez há dias uma forte crítica sobre o fim de negócios tradicionais na cidade. A Lisboa que conheceu e que está no imaginário de muita gente está a desaparecer?
Não. Não gosto de muitas coisas que estão a acontecer. Mas havia mais coisas na minha infância que não gostava que estivessem a acontecer. Nasci no Bairro da Pena e aí as varinas andavam descalças. As pessoas atiravam urina para a rua. Lisboa cheirava a mijo e as pessoas escarravam na rua. Na casa onde morava não havia casa de banho, havia uma pia e um penico e tomávamos banho uma a duas vezes por semana. Não havia água quente. Vendo as coisas cruamente, a minha infância foi maravilhosa, mas foi em ditadura. A nostalgia é sempre perigosa. O Jamaica vai fechar, tenho pena, mas a verdade é que só já ia ao Jamaica uma vez por ano e era quando estava muito bêbedo. Gosto muito do Jamaica, há algumas memórias minhas que se vão perder, mas amigos meus morreram e isso é muito mais grave. A natureza da vida humana é desaparecermos um dia. Chateia-me os tuk tuk, mas chateavam-me mais as varinas irem para casa descalças, para sítios que não eram casas.

Participou numa palestra que tenta estabelecer uma comparação entre a Revolução Cultural na China e o 25 de Abril em Portugal. Que ligação é possível estabelecer aqui?
(Risos). Se há uma coisa que este debate prova é que uma palavra pode ser usada para dizer uma coisa e o seu contrário. Obviamente que a Revolução dos Cravos foi boa, talvez não tenha sido para muita gente, mas para mim foi maravilhosa. A verdade é que a minha imagem da revolução portuguesa é isto: é termos uma democracia que funciona e uma sociedade onde não damos tiros uns nos outros. Acho que somos um país democrático a sério, se calhar um dia seremos um farol de democracia e bom senso na Europa. Já estivemos mais longe. Neste momento somos um país menos estúpido do que a França, porque somos mais tolerantes com o casamento gay, por exemplo. Sabemos construir um Governo, coisa que os idiotas dos espanhóis não conseguem (risos). Em Portugal temos um Governo que funciona. Como é que se forma um Governo? É contar o número de deputados, só isso. Não nos tornámos um país fechado e perigoso como a Hungria. Neste momento Portugal é um farol de luz e bom senso na Europa e talvez no mundo.

E os portugueses têm essa percepção?
Está aqui um português que tem. A revolução portuguesa deu-nos um país normal. Tanto quanto sei, a Revolução Cultural na China foi uma experiência que correu mal, um acto de violência, que tem a ver também com o espírito do tempo. O importante aqui é não repetir os erros. A Alemanha é hoje um dos países menos racistas do mundo e, no entanto, há 70 anos fizeram umas chatices, houve uns desacatos e alguns exageros. Os países devem olhar de frente para os seus erros, para não os repetir tão cedo.

Talvez a China não os queira voltar a repetir.
Não sou um especialista em China e não venho aqui dar lições de moral. Vejo com muita atenção o que se passa na China e vejo contradições diferentes daquelas que se passam em Portugal. Mas claro, é um bicho diferente. Mas todos temos contradições e ninguém tem tantas como os agentes culturais. Nós europeus temos de ter muito cuidadinho quando damos lições de moral e quando dizemos aos outros: “porque não fazem a paz?”. Quando a porcaria da Europa tiver 200 anos seguidos de paz, nem que seja no seu território, então começa a ter autoridade moral. Acho muita presunção e pouca água benta a Europa como dadora de lições a este encantador adolescente chamado China.

16 Mar 2016

Yao Feng traduz “Clepsydra”

Há sete anos que Yao Feng, pseudónimo de Yao Jingming, tinha a tradução para Chinês do livro “Clepsydra”, do poeta Camilo Pessanha, escondida numa gaveta. Muitos anos e muitas alterações depois, a poesia “triste” de Pessanha em caracteres chineses será apresentada no dia 12 de Março, no âmbito do Festival Rota das Letras

pessanha
[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]ais de quatro anos depois de ter traduzido Eugénio de Andrade (“Branco no Branco”, com edição da Livros do Meio), o poeta Yao Feng, pseudónimo de Yao Jingming (académico da Universidade de Macau), embrenhou-se na tradução de “Clepsydra”, de Camilo Pessanha. Há muito que o projecto estava na gaveta, fruto de uma parceria com o Instituto Internacional de Macau (IIM) e a Câmara Municipal de Coimbra, cidade de onde o poeta português é natural e onde se formou em Direito, antes de vir para Oriente.

Contudo, só sete anos depois é que Yao Feng decidiu publicar o trabalho, por ocasião da 5ª edição do Festival Literário Rota das Letras.

“Fiz uma revisão bastante grande e cuidadosa dessa tradução”, contou Yao Feng em entrevista ao HM. “Mudei muitas coisas, era o poeta tradutor daquele tempo e agora que revi a minha tradução, já não gostei. Mesmo assim não estou completamente satisfeito com a minha tradução”, disse Yao Feng, que não deixou de estabelecer uma comparação entre os poemas leves e contemporâneos de Eugénio de Andrade com a poesia nocturna de Pessanha.

“A sensação é muito estranha, porque quando traduzo Eugénio de Andrade ou outro poeta contemporâneo tenho muito mais confiança do que a traduzir Camilo Pessanha, uma vez que ele é o poeta que escreve muito com efeitos musicais. Os poemas têm muita rima, ele usa muitas simetrias, com muita mitologia. [Pessanha] também joga muito com uma pontuação muito própria dele onde, numa frase sem sujeito ou verbo, corta e põe uma vírgula ou ponto final. Confesso que algumas coisas não compreendi. Hoje em dia há muita pesquisa sobre a sua poesia e ainda existem sombras misteriosas. Mas dei o meu melhor para o traduzir”, contou. “Não há dúvida de que foi muito mais difícil traduzir Camilo Pessanha”, salientou Yao Feng, remetendo para diferentes épocas e estilos literários.

“Não senti tantas dificuldades em traduzir Eugénio de Andrade porque se calhar é mais fácil encontrar imagens orientais nos seus poemas. Eugénio de Andrade é um poeta do qual gosto e o qual não paro de ler. É um poeta que conheço muito bem e que até conheci pessoalmente. Quando o traduzi era como se estivesse a traduzir algo de um amigo. Com Pessanha houve mais distância, apesar de estar tão perto de nós, a cinco minutos de táxi (risos)”, brincou Yao Feng, referindo-se ao Cemitério São Miguel Arcanjo, onde repousa o corpo de Camilo Pessanha.

Repetição e perda

Yao Feng não tem dúvidas: no processo de tradução de “Clepsydra” para Chinês, houve muita coisa que se perdeu. “A minha língua materna [o Chinês] tem o seu sistema próprio de rima que não é compatível com a rima portuguesa e, por isso, esta tradução estava condenada desde o início à perda de qualquer coisa. Não se pode dizer que se perdeu muito, mas perdeu-se alguma coisa, sobretudo ao nível dos efeitos sonoros. Quando a tradução não consegue jogar com a musicalidade, perdem-se coisas”, disse. “A tradução de Camilo Pessanha está condenada à perda e a tradução tornou a poesia dele um bocado triste e com um conteúdo um bocado repetitivo. É a tristeza, a saudade, o amor que nunca deu frutos. Isso pode cansar um bocado, é uma poesia muito triste. Foi como ele escreveu: um ferro que sempre pesa no coração”, acrescentou.

Lançar este livro sete anos depois é “importante”, por se tratar de um poeta de Língua Portuguesa com fortes ligações ao território. “É talvez, dos poetas portugueses, aquele que é mais conhecido em Macau, que viveu aqui e marcou a literatura de Macau.”

Confinado ao mercado editorial do território, a “Clepsydra” em Chinês até poderia ser lida nas escolas, concordou Yao Feng, se fosse feita uma selecção rigorosa de alguns poemas. “Podíamos fazer uma selecção de dois ou três poemas, há um sobre a chuva, por exemplo… poemas mais fáceis e acessíveis para os estudantes. Não é necessário levar alunos das escolas secundárias a ler coisas tão pesadas. Podiam por exemplo ler mais Eugénio de Andrade, mais sol, mais água, em vez da sombra, e da noite (risos).”

Poesia e paixão

Esta não é a primeira vez que a poesia de Camilo Pessanha pode ser lida em Chinês, sendo que há alguns anos foi lançada uma tradução de alguns poemas, inserida numa colecção de autores portugueses, que teve o apoio do Instituto Camões e de editoras da China continental e que teve a coordenação de Yao Jingming e Ana Paula Laborinho (presidente desse instituto). Contudo, Yao Feng não deixou de comentar o facto dessa tradução ter sido feita por alguém que “infelizmente” não é poeta.

“Há uma teoria que defende que a poesia tem que ser traduzida por um poeta, mas às vezes o poeta também estraga a tradução. Depende de quem é e como é o poeta que traduz. Para mim o poeta tem que traduzir o tipo de poesia que conhece melhor, se não tiver paixão por esse tipo de poesia, então não consegue traduzir com paixão e prazer e isso pode condicionar o processo de tradução. O poeta que é tradutor não pode traduzir qualquer tipo de poesia”, apontou Yao Feng.

Ao contrário desta edição chinesa de “Clepsydra”, essa tradução conseguiu chegar às livrarias do continente. “O nosso objectivo consistia em levar livros de autores portugueses mais longe, para que pudessem ser distribuídos na China continental, porque os livros produzidos em Macau não podiam nem podem circular na China continental. Com esta colaboração e co-edição conseguimos”.

Rufino Ramos, secretário-geral do Instituto Internacional de Macau (IIM), referiu ao HM que a oportunidade de publicar esta tradução surgiu de repente, existindo projectos para distribuir a versão chinesa de “Clepsydra” em instituições académicas de Hong Kong, sem esquecer Taiwan. “Alguém tinha de fazer este projecto”, disse Rufino Ramos, que confirmou que a publicação é feita com o apoio da Fundação Macau. “A oportunidade de publicar este livro chegou há pouco tempo e quase nos apanhou desprevenidos. Era importante fazer chegar este livro a todos os lugares onde se fala Chinês”, apontou o secretário-geral do IIM.

9 Mar 2016

Macau | Presença portuguesa é “anacrónica”, diz Pacheco Pereira

Para o político e historiador português, a presença portuguesa em Macau é “anacrónica”, por depender de um tempo histórico, mas deve ser aproveitada pelo Governo local, porque “não dá dinheiro, mas dá mundo”. José Pacheco Pereira critica ainda a entrada de capitais chineses na REN

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]oi o rosto que abriu a 5ª edição do festival literário Rota das Letras e confessa que a Macau que viu nada tem a ver com aquela que conheceu quando veio, com Jorge Sampaio, inaugurar o Centro Cultural de Macau. José Pacheco Pereira, político e historiador, revela, em entrevista, que a presença portuguesa em Macau depende da história, mas deve ser valorizada.

“Quando vimos de fora, é evidente que quando olhamos para a presença portuguesa, vimos que ela é anacrónica. Não há mal nenhum nisso. Ela é anacrónica no sentido em que está presa a um momento histórico e sobrevive pelo seu valor cultural e histórico. Mas isso não é só em Macau, noutras circunstâncias também, como em Goa, por exemplo”, disse ontem à margem de uma palestra na Universidade de Macau.

Para Pacheco Pereira, cabe ao Governo local aproveitar as vantagens dessa presença portuguesa. “Um Governo consciente gosta da diferença. É evidente que ser a capital do jogo dá dinheiro. Esta diferença não dá dinheiro nenhum, mas dá mundo. E isso é uma coisa com valor”, apontou.

O político e historiador, que também enveredou pela escrita com a biografia de Álvaro Cunhal, falou ainda do facto de Portugal ter deixado de apostar na diplomacia cultural e linguística. “Aceitámos a perda de importância do português em muitos países onde tinha cátedras e em que era ensinado como primeira língua. Desinvestimos no Instituto Camões, nos leitorados e nas universidades, e substituiu-se isso com a ideia de que a diplomacia económica iria resolver a influência cultural. Não resolve. É importante, mas depende muito de conjunturas externas. A influência cultural é um factor muito importante”, apontou.

Os problemas na China

Referindo que a China é “uma experiência única sem nenhum paralelo”, José Pacheco Pereira considerou que a permanência de uma economia capitalista “necessariamente irá gerar tensões sobre o sistema político”.

“Quando olho para a China, penso que mais cedo ou mais tarde esta situação não é sustentável. O crescimento económico, a vinda de pessoas para as cidades, a reivindicação de direitos do trabalho, gera de facto alguma tensão política que não se resolve apenas com o crescimento económico. Mais cedo ou mais tarde haverá um problema político na China, porque o crescimento económico não pode continuar sem que mude o modelo da sociedade. Ao mudar o modelo da sociedade muda o modelo político”, apontou.

Pacheco Pereira falou ainda dos investimentos chineses que têm sido feitos em Portugal, criticando a entrada de capitais na Rede Energéticas Nacional (REN), pelo facto da rede eléctrica ser “um activo estratégico”.

“Ninguém admitia que há dez anos a Energias de Portugal (EDP) ou companhias de seguras fossem chinesas, e isso é uma diferença drástica. Quando falamos sobre globalização normalmente falamos da China, mas ainda assim há muita ignorância sobre a situação concreta da politica chinesa, a não ser da circunstância de que uma parte importante de Portugal foi comprada por empresas, algumas estatais, da China”, lembrou.

Pacheco Pereira considerou ainda que a crise económica tornou Portugal um país mais virado para si mesmo. “Vivemos muito dominados pelos problemas da dívida pública e pelos problemas de anos de ajustamentos. Isso funciona como uma barreira na nossa relação com o mundo, e nestes últimos anos tornamo-nos mais paroquiais. A crise económica atirou para fora de Portugal um conjunto de gente qualificada, muito jovem, e ao mesmo tempo tornou-nos mais paroquiais e menos cosmopolitas”, rematou.

Instrumentos para Direito

Confrontado com o caso do regresso dos magistrados portugueses a Portugal, Pacheco Pereira defendeu que o país deve apoiar os mecanismos que permitem a manutenção do Direito de Macau. “Gabamo-nos de ter deixado o Direito, mas depois temos de deixar instrumentos para que esse Direito se mantenha. Mas não conheço o caso”, frisou.

Vistos Gold sem influência

José Pacheco Pereira acredita que o caso dos Vistos Gold não vai influenciar as relações entre Portugal e a China, muito menos levar ao fim da política. “Não porá em causa o mecanismo, poderão ser feitas alterações na forma como se desenvolve. Como o grosso dos investimentos foi feito no imobiliário de luxo, foi bom para as agências que trabalham nessa área, mas não há praticamente investimento noutras áreas. O processo irá normalizar-se e não virá um problema de eventuais conflitos com a China”, disse.

8 Mar 2016

José Carlos Seabra Pereira | Professor universitário e crítico literário

Foi hoje apresentada no IPM a obra “O Delta Literário de Macau”, que analisa as letras portuguesas que por aqui têm sido produzidas. José Carlos Seabra Pereira, que recentemente recebeu o Prémio Jacinto Prado Coelho, é o autor de uma obra que relança o debate sobre a escrita local e o seu lugar na literatura lusófona

[dropcap]V[/dropcap]ai hoje lançar este tomo sobre a literatura de Macau. Mas (desculpe a brusquidão) existe uma literatura de Macau?
Existe claramente uma literatura em Macau. Quando dizemos “literatura de Macau” complicamos a questão porque se levanta uma perspectiva de identidade. Há uma literatura identitariamente macaense ou não? É um problema difícil de discutir e tem sido muitas vezes a desculpa para a ausência de uma análise mais desenvolvida da literatura que neste trabalho abordo. Eu não quis enredar-me excessivamente nessa questão.

No seu prefácio faz uma distinção entre a literatura que é inspirada, produzida e reconhecida em Macau mas que não é reconhecida em Portugal. No entanto, neste livro coloca autores que são, claramente, reconhecidos em Portugal.
Há sempre uma fronteira fluida. Existem autores em que é difícil estabelecer essa distinção mas noutros casos é fácil verificar que há autores do cânone da literatura portuguesa que, ou passaram por Macau ou porque estiveram cá durante algum tempo, escreveram em Macau ou introduziram elementos de Macau na sua ficção narrativa ou nos seus poemas líricos. Mas depois, para além desses textos, não têm nada a ver com a dinâmica do campo literário em Macau. Aqui introduzo o conceito de Pierre Bourdieu do “campo literário”. Procurei que fosse levados em devida conta os autores que estão perfeitamente integrados nessa dinâmica local, sem que isso implique, desde logo, um juízo de valor a priori. Uns não são mais valiosos do que outros. No fundo, neste volume trato aqueles que são filhos da terra ou radicados em Macau. Há escritores destes que mereceriam uma outra atenção da parte da literatura portuguesa e que acabam por não a ter. Poderiam alguns, contados pelos dedos de uma mão, claramente fazer parte dos manuais da literatura portuguesa e não fazem. Isso é injusto? Sim, mas é assim. Por outro lado, isso também se reflecte nas obras dos autores que aqui analiso como sendo de Macau, quer do ponto de vista temático, quer do ponto de vista formal. Não se trata de aqui ter nascido ou ser de origem macaense (outros vieram de Portugal e por aqui ficaram): o fundamental é ser aqui que eles se manifestam como escritores, aqui são reconhecidos como escritores; nalguns casos é aqui que eles próprios se reconhecem como escritores e é aqui que são objecto de edição, eventualmente de crítica, etc..

20012016-1Coloca, por assim dizer, autores muito diversos no mesmo saco.
Confesso francamente que para as pessoas de Macau lerem de uma forma aberta e compreensiva tudo aquilo que estariam prontas para ir procurar sobre autores contemporâneos locais, era preciso que antes não fossem como que afastadas por um gesto meu que tivesse erradicado certos autores que estariam à espera. Quem ler o livro verá a prudência de matizes que eu ponho quando abordo a obra de Camões no contexto de Macau ou como falo da questão do exótico em Wenceslau de Moraes ou da Maria Ondina Braga. Quero evitar uma reacção preconceituosa, motivada pela ausência de certos autores ou certos temas.

Peguemos no caso mais paradigmático de todos: Camilo Pessanha. Considera-o um autor de Macau? Faz parte da literatura de Macau?
O caso dele – como outro caso aqui no livro, com o século mais adiantado, que é o de Maria Ondina Braga – tem que ser considerado dos dois lados.

Mas não podemos considerar uma literatura portuguesa sem um topos determinado e localizado na Europa?
Podemos. Esta foi uma perspectiva que eu adoptei por me parecer interessante para Macau e por ser um trabalho sucessivamente adiado.

O seu trabalho parece-me importante por fixar Macau, no nosso tempo, como um local de produção e existência de uma literatura portuguesa.
E que vai evoluindo na sua relação com as outras literaturas, sobretudo euro-americanas. Houve alturas de maior desfasamento e retardamento, talvez pela distância e as dificuldades de comunicação, e outras alturas ao contrário, de perfeita sintonia e actualidade em relação ao que são os vectores fundamentais da cultura literária. É o caso do Camilo Pessanha que, ao mesmo tempo, consegue esta maravilha que é ter marcas especificamente decorrentes da sua vida aqui, no Extremo Oriente, em Macau, e ao mesmo tempo ser um maiores poetas simbolistas de todo o mundo, da literatura universal. Fechá-lo no cânone da literatura portuguesa seria empobrecê-lo.

Estamos aqui em Macau, numa situação de fronteira em relação à literatura portuguesa. Será uma fronteira limitada ou a literatura local poderá ter algum papel no contexto da lusofonia, que não está ainda bem previsto?
Situo-me nessa segunda hipótese. Hoje usamos muito o termo fronteira. Num plano rural, os extremos são o que separa uma propriedade da outra mas também é aquilo que liga. Isso também acontece no plano da cultura e em particular na evolução histórica da literatura. Hoje achamos que a existência de fronteiras é um bocado artificial…

Passámos do exotismo para a dissolução do autor. Ou seja, de um autor que mantém a sua identidade e descreve o exótico para um autor mais preocupado com as transformações que se operam em si mesmo.
E tudo aquilo que temos vindo a aprender, quer através de grandes pensadores, quer das circunstâncias da globalização, sobre identidade e alteridade, derrubaria qualquer tentativa de manter o conceito estanque de fronteira porque verificamos que estamos constantemente a encontrar, na experiência de cada um de nós e sobretudo na dos grande criadores artísticos, esse contacto do Eu com o Outro, mas mais: desde Pessoa e tantos outros, o Eu foi aprendendo a encontrar o Outro de Si mesmo. O século XXI veio acrescentar a isto que o Outro de Si mesmo se encontra na relação dialógica com a Alteridade.

Seria como dizer: “Sou mais estranho a mim próprio que um Chinês me é estranho”. Mas, afinal, o que tem a literatura de Macau de especial para oferecer diferente das outras literaturas lusófonas? O que encontrou que a pode distinguir?
Noutras épocas, em que havia um défice de poliglotismo cultural, perfeitamente explicável pelas circunstâncias, o que Macau trazia de interessante era uma espécie de tensão entre certas linhas de continuidade quase forçosamente tradicionalistas e, ao mesmo tempo, certos tropismos de diferença que a situação de tão longe da Europa e tão longe de Portugal e tão próximo da China obrigavam. Em segundo lugar, mais recentemente, em que existe mais facilidade de comunicação, por ser outro tipo de pessoas que renovam o substrato de onde saem os escritores de Macau, já oferece outras coisas, mas que podem ser também a assimilação de linhas fundamentais da cultura chinesa e também da sua poética mas num discurso literário em construção aberta com um substrato cosmopolita muito grande.

20012016-4É bom saber que não se trata apenas de uma literatura do exotismo…
De maneira nenhuma. Creio que não escondo que a literatura de Macau do século XX, durante algum tempo, apesar das qualidades inegáveis dalguns dos escritores, sofria de um certo arrastamento temático e formal, em relação ao que era uma evolução mais acelerada dos padrões literários na Europa e na América.

Falta de informação, de comunicação…
O contexto era muito diferente. No princípio do século XX, as notícias pregnantes sobre as correntes modernistas era quase nula. Arrastava-se uma literatura, que dentro do género era bem feita, mas de um neo-romantismo lusitanista, etc.. Depois, há um realismo que embora venha mais tarde do que na Europa, apesar de tudo já não está tão desfasada. A partir de Deolinda da Conceição nós temos uma vertente de realismo social que começa a acertar o passo com a qualidade de estar a reagir a condições de vida, histórico-sociais, particulares.

Deolinda da Conceição e Senna Fernandes…
Sim e também alguns aspectos da ficção narrativa de Rodrigo Leal de Carvalho. Senna Fernandes evolui e desdobra para outros aspectos que, não sendo menos locais, porque é também uma espécie de etnografismo literário, acaba por ter outras qualidades e outro alcance.

O etnografismo foi sempre uma grande tentação, sobretudo para o escritor que vem de fora.
Sim. Mas, a partir dos anos 80, há cada vez maior proximidade entre os motivos inspiradores e mesmo certos problemas do discurso literário. A literatura de Macau não está a copiar isso mas a reflecti-los e interpretá-los à sua maneira. Há uma transformação maior, com os inerentes riscos, também no plano do significante, quer nas estruturas de composição, quer no estilo, na linguagem e no gosto de uma certa experimentação formal, que nunca aqui se transforma num mero jogo formalista mas é a tentativa de renovar a criação de sentido através de novas formas. O estranhamento, a quebra das rotinas, algo que aparece muito bem nos poetas que se vêm destacando em Macau. Esta literatura torna-se cada vez menos previsível.

Nesse sentido, podemos falar de uma “literatura de Macau”, mas será difícil falarmos de um fundo comum aos autores que escrevem hoje. Tal como acontece em Nova Iorque ou Lisboa…
É verdade. No período que vai de Senna Fernandes a Rodrigo Leal de Carvalho, por contraste com outro período que poderíamos marcar com a emergência da Fernanda Dias, havia um fundo comum. Talvez fosse necessário, havia uma lacuna, um vazio a preencher. [quote_box_right]“Há escritores que conseguem, não fazendo doutrina, mas através da própria ficcionalidade da sua obra lírica ou narrativa, figurarem aspectos da condição humana. Grandes temas como o abandono, a solidão, a resiliência, etc., aparecem nos grandes narradores de Macau”[/quote_box_right]
Esses autores, mais na ficção do que poesia, encontraram formas de dar vida ficcional a realidades históricas e sociais peculiarmente de Macau. Tanto Henrique de Senna Fernandes, Leal de Carvalho e Maria Ondina Braga são criadores de grandes personagens. Podemos esquecer boa parte do enredo, mas há certas personagens que são fundamentais. Essa é a grande tradição do romance, antes do Nouveau Roman francês vir complicar as coisas: contar bem uma história e criar personagens que ficam indeléveis na memória literária. Pode-se ler o que distingue melhor o Senna Fernandes sobre a categoria da resiliência, por exemplo. Diz-se que são umas histórias de amor que acabam sempre com um final feliz. Mas, indo mais fundo, o que a gente vê é que há ali grandes fenómenos que mostram uma vertente social, comunitária, por um lado, mas ao mesmo tempo são muito individualizados, num constante processo de frustração, degradação, e depois de recuperação não por reconversão a padrões alheios, mas pela tal resiliência. De recuperação do que era o fundo próprio daquele ser. Incluindo o papel das energias amorosas. Se vamos para a Maria Ondina Braga é outro problema. São as vidas vencidas e a questão do tempo interior.

Está assim a dizer, de algum modo, que cada autor expurga os seus fantasmas no contexto de Macau… e não retrata propriamente Macau.

As duas coisas. Um bom autor faz as duas coisas. O Rodrigo Leal de Carvalho vai mais pelo lado do humor, de uma certa bonomia, uma certa tolerância. Retrata situações humanas, por vezes lancinantes, mas sempre com uma patine de humor que evita o patético.
Gostava ainda de falar do etnografismo lírico para o qual alguns poetas foram arrastados, o que se compreende. Há um valor de antropologia literária que ultrapassa isso. Há escritores que conseguem, não fazendo doutrina, mas através da própria ficcionalidade da sua obra lírica ou narrativa, figurarem aspectos da condição humana. Grandes temas como o abandono, a solidão, a resiliência, etc., aparecem nos grandes narradores de Macau. Há um património literário que não pode ficar contido nas fronteiras da comunidade de leitores de Macau.

Entende que a literatura de Macau pode ter um lugar fora desta cidade?
Claramente. Vai crescendo uma representação e figuração simbólica desta realidade, que hoje nos parece evidente, de Macau como espaço de multiculturalismo. Há muitas formas de estar instalado no multiculturalismo. Há um em que as comunidades diferentes têm que partilhar o mesmo espaço mas depressa buscam fora das obrigações do quotidiano redutos com fronteiras muito marcadas em que não há nenhuma fascinação profunda pelo Outro, nem um esforço por um diálogo e interacção. Até se passar depois para um multiculturalismo mais recente em que a própria evolução sócio-económica obriga a que a separação muito nítida (cidade cristã-cidade chinesa) se rompe e começa a haver espaços de interacção. Estamos, contudo, ainda longe de se passar do limiar da tolerância para uma política de reconhecimento. E de reconhecimento activo. Tarda a aparecer na literatura, tal como a diferença entre multiculturalismo, que pode ser estático, e interculturalidade, que é diferente.

Macau é constituído por camadas que pouco se tocam.
Eis uma modalidade pobre de multiculturalismo. A interculturalidade é mais exigente. Em “A Trança Feiticeira” encontramos uma experiência de interculturalidade, com todas as dificuldades que isso levanta aos protagonistas.

Bem, uma experiência muito sui generis. Não a mais comum…
Talvez a partir de Fernanda Dias as coisas se ponham de maneira diferente.

A perspectiva feminina é bastante interessante desse ponto de vista. A perspectiva masculina é, fundamentalmente, colonialista, na medida em que se baseia na perspectiva do macho ocidental, com dinheiro e uma sexualidade facilitada no Oriente. Isso está na literatura, se bem que escondido atrás de alguns pruridos… Fernanda Dias dá-nos outra perspectiva.
Quando havia alguma miscigenação, era sempre de homem caucasiano com mulher chinesa. Em Fernanda Dias, já aparece, de forma relativamente velada, simbolizada, mas insofismável, a relação de desejo entre a mulher de matriz europeia com o homem chinês. Isso altera as coisas e perturba o status quo até então estabelecido. Há um estádio da miscigenação que podia ficar como uma nova forma de exotismo. A literatura de Macau acrescenta a mestiçagem no sentido cultural. Uma das coisas que me atrai é não só essa mestiçagem cultural mas uma certa crioulização da língua. Vejo isso em termos de cultura e em termos de língua. A língua literária do Senna Fernandes, por exemplo: há certos passos que nos espantam. Do pitoresco isso passou para uma coerência orgânica.[quote_box_left]“O caldo de culturas de Macau é muito rico o que dá maior responsabilidade aos autores e aos editores”[/quote_box_left]

Vale a pena que esta literatura seja lida e divulgada em Portugal e nos países lusófonos?
Claro que sim. Falemos da literatura de Macau em língua portuguesa. Começaria por responder através de uma contra-prova. A Maria Ondina Braga, embora não tanto como ela merecia, acaba por encontrar um público de bons leitores e atenção de ensaístas e universitários. A literatura de Macau, quer a que está a produzir agora, quer antes na segunda metade do século XX, merece encontrar uma ressonância quer em Portugal quer noutros países. Era importante uma política de tradução. Provavelmente, em Portugal, nos círculos onde se trata da literatura, a literatura de Macau talvez seja prejudicada pela evidenciação das literaturas africanas para não falar da literatura do Brasil. Há factores político-económicos. Acontece o mesmo com a literatura de Goa ou Timor. O caldo de culturas de Macau é muito rico o que dá maior responsabilidade aos autores e aos editores.

29 Jan 2016

Barnabas Koo, historiador, apresenta biografia sobre Gary Ngai

[dropcap=’circle’]B[/dropcap]arnabas H.M. Koo apresenta este sábado em Macau “A Witness to History: an Overseas Chinese in Mainland China and Macau”, uma biografia de Gary Ngai. O historiador conta curiosidades sobre o passado, o presente e o futuro da RAEM e fala sobre um livro que promete aprofundar a vida de uma das personagens fundamentais do território nos últimos 50 anos. Quem se deslocar à sessão receberá uma cópia gratuita do livro

O que o levou a escrever uma biografia sobre Gary Ngai?
Porque o senhor Ngai ainda está vivo e pode responder às questões sobre as suas experiências e motivações durante vários momentos históricos importantes. Pode não ser a mesma de outros, mas é autêntica – e como tal deve ser conhecida. Também é uma história única. Não conheço ninguém, morto ou vivo, que tenha voltado à China ainda jovem, tivesse estudado e servido como um dos tradutores de Mao, sobrevivesse à Revolução Cultural, se tornasse conselheiro do governador Português, assistisse às suaves negociações Sino-Portuguesas e, depois da passagem de Macau, tivesse continuado a enfatizar a identidade separada que é a RAEM e a sustentar a sua relevância neste século. front cover

O que podemos aprender com a vida de Gary Ngai?
Naturalmente, diferentes pessoas tirarão diferentes coisas do livro. Mas talvez a possibilidade de compreender quão precárias eram as circunstâncias para os chineses nos estrangeiro durante o século XX. A ascensão comunista na China, complementada com os processos de descolonização no Sudoeste Asiático, colocaram dilemas sérios para eles devido à concorrência de lealdades e identidades complexas que eram parte integrante do seu código genético. Espero que as pessoas na China reconheçam o sacrifício que muitos chineses emigrados fizeram, ou foram forçados a fazer, na jornada para que a China se tornasse numa superpotência mundial.  

De onde surge o seu interesse, como autor, sobre Macau, a presença portuguesa na região e a China?
Ao viajar pela China no princípio da década de 70, tive o privilégio de ficar alojado em alguns dos grandes hotéis estilo ocidental e mansões convertidas nos antigos ‘estabelecimentos estrangeiros’. Como é normal, fiquei extremamente consciente da presença ocidental na China e muito interessado na interacção com o Ocidente, como começou, como evoluiu e o seu impacto nas relações da China com o mundo. Inevitavelmente, esta história de convulsões trouxe-me a Macau – onde tudo começou.

É o responsável pelo “Desfile por Macau, Cidade Latina”. Macau e o Mundo Latino: o que é que isso realmente significa para as pessoas de ambos os lados?
É difícil de dizer, mas acredito que depende muito do tipo de contacto e se ele é prazenteiro ou traumático. Um ponto chave enfatizado por Gary Ngai no livro é que a educação e o contacto pessoa a pessoa são muito importantes. Quanto mais melhor, quanto mais feliz melhor. O Festival Latino de Macau e a promoção turística da cidade no estrangeiro são experiências positivas, especialmente se envolverem comida, entretenimento e desporto. Muitas pessoas concordarão com a dimensão do impacto que o cinema indiano e chinês têm na percepção que as pessoas têm dos povos, culturas e nações. Um jogo amigável de futebol entre um país da América Latina contra uma equipa de Macau, seja a que nível, pode ser um promotor efectivo da boa vontade e da compreensão. Este tipo de coisas deixam uma impressão muito mais profunda nas pessoas comuns do que quaisquer trocas de visitas entre funcionários governamentais. Barnadas Koo

Se fosse possível uma testemunha sobreviver em Macau durante 500 anos, quais seriam os destaques do seu relatório?
Que acabou tudo em bem e, acima de tudo, que subsistiu sempre a amizade durante o processo. Também os benefícios para ambas as partes, as contribuições foram adequadamente documentadas por outros. Mas acredito que um destaque saliente seria um povo – os macaenses. Eles são um povo de fusão, um cadinho de culturas, uma miríade de influências que convergiram na China durante esses 500 anos. Isto é algo que deve ser estimado, nutrido e celebrado. 

Recentemente tem-se falado muito sobre a identidade cultural de Macau. Na sua perspectiva, que identidade é essa?
A identidade de Macau – como a beleza – está nos olhos do observador. Nós vemos o que quisermos ver e isso depende muito do nosso círculo de amigos e das influências a que estamos expostos. No que me diz respeito, como historiador, a identidade de Macau é o seu património histórico – uma fusão de muita gente que fez de Macau a sua casa. Essencialmente chineses, portugueses e macaenses. Mas é uma realidade em permanente mutação. À medida que surge em Macau mais influência de filipinos e de americanos, eles também darão a sua contribuição para uma maior diversidade em Macau. Ao abraçarmos o passado podemos começar a olhar para o futuro com mais confiança.

Acha que a cultura de Macau tem tendência a desaparecer ou nem por isso?
Nem por isso. A cultura é dinâmica e responde aos esforços do Governo e grupos comunitários para a manter vibrante, útil e relevante. Tal como os imóveis na lista do património mundial, de que Macau tem muitos, a cultura requer um programa regular de manutenção e uma mentalidade inovadora para se adaptar às necessidades e às mudanças.   

Como vê Macau em 2049?
Vejo Macau firmemente integrado na Região do Delta do Rio das Pérolas económica e logisticamente. Na realidade, esta já é uma tendência actual. Administrativamente, apesar de estar programada a integração na R.P. China, não acho que Macau venha a ser automaticamente absorvida na província de Cantão. Independentemente daquilo para que o Governo Central possa evoluir, existem suficientes desafios estruturais e invejas domésticas para evitar que as ricas RAE’s sejam entregues de mão beijada a Cantão, o que só iria acentuar desequilíbrios. Neste cenário, acredito que será mais fácil para as ex-RAEs serem mantidas como entidades administrativas isoladas, directamente dependentes de Pequim. A natureza e extensão da representação democrática vai depender em muito da velocidade e da natureza das transformações políticas na China.

Da sua pesquisa sobre a presença portuguesa nesta zona do mundo, quais são os factos mais espantosos, ou interessantes, que descobriu?
Que apesar do declínio do império transoceânico de Portugal, Macau se tivesse aguentado durante tanto tempo sob o seu controlo. Claro que o debate sobre isto está aberto – se isso foi devido à ameaça da diplomacia de barcos de guerra, à utilidade de Macau para a China, ou a sua relativa insignificância para Pequim, ou outras razões.

Quase 500 anos após a chegada dos portugueses a esta região, como vê a evolução da relação entre Portugal, China e Macau e que retrato faz da situação actual?
É como se toda a gente estivesse a dançar com parceiros diferentes e músicas diferentes na mesma pista de dança. Portugal está sintonizado com a União Europeia, a China está focada em reclamar o seu ‘legítimo lugar’ no palco mundial, ao passo que Macau está focada no seu futuro económico. Espero que se ajudem e encorajem mutuamente para que representem bem o seu papel e fiquem todos bem vistos nessa pista de dança.    

Nota
O livro “A Witness to History: an Overseas Chinese in Mainland China and Macau” vai ser apresentado sábado pelas 15h00 na Associação de Ciências Sociais de Macau, Academia Jao Tsung-I, na Avenida do Conselheiro Ferreira de Almeida, nº 95 C-D.

29 Jan 2016

Creative Macau | Professora apresenta livros de Meditação com música ao vivo

[dropcap style=’circle’]K[/dropcap]im Hughes Wilhelm apresenta esta quinta-feira os livros “The Journey Within” e “The Journeys Beyond”, na Creative Macau. A professora de Macau, a viver no território há mais de uma década, é autora dos dois livros, que serão dados a conhecer ao público a partir das 16h00 e até às 20h00.
Acompanhada de música ao vivo pelo músico Kelsey Wilhelm, da banda local Concrete/Lotus, a apresentação conta ainda com a leitura de alguns excertos das obras, escritas com base em entrevistas de praticantes de Meditação feitas na Índia, e pequenos debates. Os livros estarão à venda no espaço da Creative Macau, sendo que a entrada para o evento é livre.
Kim Hughes começou a praticar Meditação há quatro anos e meio, tendo descoberto que a disciplina – que começou por ser uma forma de “reduzir o stress e a alta tensão” – lhe trazia mais do que melhorias ao nível da saúde. Cover_Journeys Beyond
“A autora considera a Meditação como essencial para o corpo, para a mente e para o equilíbrio espiritual”, pode ler-se no comunicado da organização, que acrescenta que a necessidade de escrever estes livros surgiu quando Kim Hughes Wilhelm se apercebeu do pouco conhecimento sobre a matéria.
“Pareceu que poucas pessoas sabiam como começar e quão facilmente esta prática pode ser incorporada num estilo de vida agitado como é o de hoje em dia”, frisa, acrescentando que obteve permissão do Mestre de Meditação Shahaj Marg (O Caminho Natural, na tradução literal) para compilar um livro feito com base em entrevistas a praticantes.
“Começou então um projecto de investigação que durou mais de dois anos e onde quase 40 praticantes foram entrevistas. As suas palavras foram transcritas e este é o resultado: dois livros.”
A autora garante que as histórias de vida partilhadas nestas obras são “extremamente interessantes, uma vez que se movem de continente para continente, de era para era” e dão para “ouvir as mudanças pessoais ligadas à esperança de um futuro melhor para a humanidade em geral”.
Os livros falam ainda de “aspectos importantes” no que à disciplina diz respeito, bem como sobre como iniciá-la, as mudanças que traz e o papel do próprio guia espiritual. Os livros estão à venda na internet.

5 Jan 2016