Com os corpos

Horta Seca, Lisboa, 31 Janeiro

[dropcap]P[/dropcap]or esta altura, obriga-nos a soberana lei fiscal a inventariar cada volume sobrante, em repouso nos armazéns, perdido nos esconsos das supostas livrarias, entregues aos mais desconformes cuidados. Mais adiante pagaremos imposto sobre este fracasso. Os livros por vender são activos, mantêm potencial de monta, afirma o ultra-sensível fisco, ainda não pesando valor literário ou outro. Não tarda, hão-de apurar o interesse, a influência e a cintilação dos textos com vista ao apuramento de taxa respectiva. O momento deprime invariavelmente, por tornar claro que os livros, ainda que circulem, demoram a atravessar para o lado de lá, continuam nossos em mãos alheias, por via da tóxica figura da consignação. O pior é que os apuramentos, por mais esforço investido, não chegam nunca a ganhar corpo de rigor. O que era compra sólida acaba por revelar-se miragem gasosa. Estou para encontrar negócio mais tolo que este.

>Horta Seca, Lisboa, 4 Fevereiro

Chegou-me «Rossio», primeira d’ «As 4 Estações» d’ «O Gajo». Não podia começar melhor esta viagem, logo recebendo um cais de partida. Calcando qual cavalo de ferro as linhas do horizonte, os dedos do João Morais nas cordas da viola campaniça desenham paisagens. E despertam desejos, tanto mais que não consigo desligar sul do som. Vejo cores. Em geometria performativa, os andamentos impelem ao movimento, dispõem-nos ao caminho, que é poema, diz o mano [José] Anjos, na terceira faixa: «uma linha lenta, sempre recta, sempre certa, para onde quer que se vire». Nem sempre recta nas volutas de aconchego, nem sempre certa na poeira que se levanta. Gosto muito de comboios, com a sua fala que liga terra ao coração e olhos largos a riscar a superfície das árvores e das nuvens. Esta viola faz-se gazua de arroubamento.

Horta Seca, Lisboa, 6 Fevereiro

Para não variar, muito antes da oficial, circula a oficiosa lista de candidatos ao Prémio Casino da Póvoa/ Correntes d’Escritas, dedicado nesta edição à poesia. Da dúzia, quatro pertenciam a autores da abysmo. Cada prémio literário levanta maremoto tipo lençol de comentários e gritos e choros e indignações, até alegrias difusas. Continuam sem me despertar grande interesse, embora me veja obrigado a navegá-los sem carta de patrão de costa ou alto mar. Para o melhor e o pior, talvez ajudam o corpus a definir-se na neblina do sistema literário. Para brutos abalroamentos ou suaves atracagens. Escolhidas por Ana Paula Tavares, Maria Quintans, Marta Bernardes, José António Gomes e Almeida Faria, as nossas vozes díspares e canoras foram a Inês Fonseca Santos (Suite sem Vista), o João Rios (Não É Grave Ser Português), o José Luiz Tavares (Rua Antes do Céu) e o Luís Carmelo (Tratado). Lá canta o nomeado Rios, sem o ponto de interrogação, maneira assaz nossa de morrer na praia: «a pata no meio/ e a pátria num canto/ se a pata for astuta/ e a pátria tiver recheio/ canto ou não canto.»

Facebook, 7 Fevereiro

Nunca fui ao México. Tenho medo de não voltar. Quem mais celebra os mortos que somos, caminhantes, às tantas festivos, daquela maneira? Recordo-te Albert Finney (1936-2019), na mais elegante das bebedeiras, caindo da tela, em tropeço, para a cadeira ao meu lado. Saltitando entre o castelhano de Buñuel e o inglês de Potter, fizemos festas ao cão tinhoso, evocámos a contragosto o Lawrence da Arábia perdida, ressuscitámos o frio Lázaro, só não perdendo a cabeça por um fio, bebericámos juntos até cair sob o vulcão, citando versos que diziam da sagrada bebedeira. Chorei por não te ter visto vez que fosse no palco, partilhando o ar que me faria crer que não eras inventado, antes lugar de tornar possível. Quantos corpos se sabem fazer palco?

Facebook, 8 Fevereiro

Depois dos mexicanos, só os franceses sabem desenhar a minha amiga morte. Desta vez, a da gadanha tapou os olhos ao Tomi Ungerer (1931-2019) sem lhe dar tempo para responder (ver algures na página desenho do autor). Ele sabia. Quantas vezes apanhou os modos que a dita tem de nos fixar em carne os contornos? Não chegam os ossos dos dedos das mãos, falange falanginha falangeta. Conta, isso sim, o modo como nos deu a ver aquilo a que o corpo pode aspirar, farol e antena. Ora recebendo os raios da fantasia, pondo no papel a maravilha da infância. Ora atirando a luz da sátira, quando nos perdermos no mar do quotidiano abstruso. Ora, entre coisa e outra, dar e receber, reinventando a boa «adultância» que não perde o instinto de brincar quando se atira às correntes alterosas da lascívia. Não sei se me oriento sem Tomi.

Alecrim, Lisboa, 11 Fevereiro

Bela que seja a rua, o nome devia coincidir com uma praça. O lugar do homem está em rua paralela, das que descem em direcção ao rio-quase-mar, não longe da Trindade. O homem é Bernardo Trindade e não se distingue dos livros, não apenas das lombadas e das páginas, do pó que a tudo toca, mas dos typos e das ilustrações, da linha com que se cosem, das sobrecapas protectoras. Por teimarem as coisas em se ficarem pelo que parecem, andava adiado este encontro que doravante não mais deixará de partir. Assinale-se em folha (persistente) de árvore-calendário. Ainda nada lhe ofertei e já recebi «The Blue Guitar», prodigioso álbum de gravuras de David Hockney ilustrando poema de Wallace Stevens, que parte de «The Old Guitarist », de Picasso. E onde o contorno procura a forma, o traço a cor, a palavra a canção e por aí fora: «So that’s life, then: things as they are?/ It picks its way on the blue guitar.// A million people on one string?/ And all their manner in the thing,// And all their manner, right and wrong,/ And all their manner, weak and strong?// […] And that’s life, then: things as they are,/ This buzzing of the blue guitar».

Politécnica, Lisboa, 14 Fevereiro

«A Gata e a Fábula» merece leitores assim. Jorge [Silva Melo] brindou-nos, por junto com as leituras da Maria João Luís, com visita guiada não apenas ao proscénio do romance, entre obscuridade e holofotes, mas aos seus bastidores, carpintaria e adereços. Sacudiu personagens, demonstrou a mestria da narradora no inesperado tecer do contar, enquadrou os temas e acertou o passo ao tempo. Declarou, afinal e de modo contagioso, grande amor à escrita «bisturica» de Fernanda Botelho. O resto deste lançamento há muito almejado, tendo pelas costas o palco dos Artistas Unidos, celebrou o encontro com uma família exemplar no esforço de pôr a obra nas mãos e olhos de novos leitores, tornada visível na energia da Joana Botelho. E ainda de um encontro «inquietante e vivo» com a Paula Morão, do Centro de Estudos Comparatistas.

CCB, Lisboa, 14 Fevereiro

Grande festa se encena ali naquele palco, cheio de actores e adereços e temas queridos! À primeira vista parece algumas que eu cá sei. A partir de mergulho em apneia em escritos e personagens de Fiódor Dostoiévski, a Carla [Maciel] monta, nestas «Confissões de Um Coração Ardente», uma girândola vertiginosa na qual a palavra nos puxa aqui para dentro e nos atira ali para fora de nós, das nossas interrogações, certezas, deslizes. Pode o amor resgatar-nos da miséria?

27 Fev 2019

30/01/2019

[dropcap]M[/dropcap]ostro-lhe o meu livro pela primeira vez. Observa-o muito atentamente. Olha-me, pergunta: “És tu, a Gisela Casimiro?”, como se esse ser impresso fosse um alter-ego e não eu mesma, a pessoa que para ela é a Gisela, apenas, mas também “A” Gisela. Respondo que sim. Diz que acha o livro bonito. Não há nada melhor do que ir buscar uma criança à escola. Pelo menos para mim, que as não tenho. Hoje, a “minha” está calada. Pergunto como está, nada bem, uma dor num dente que manteve secreta desde o acordar, achando que iria passar. Levo-a ao lugar de que toda a gente gosta, o Kaffeehaus, e após muito torcer o nariz, lá se delicia vezes sem conta com a limonada de framboesa, sem gelo nem rodela de limão. Água a rodos. Hoje não há bolo para ninguém, tal é a dor, até de comer, mas fica a descrição do mítico sachertorte, promessa para a sua segunda visita. Mais tarde, abraçadas a ver Ladybug, à espera da mãe, pergunta a minha idade. Creio que se vai esquecendo, de vez em quando, ou é o tempo que se vai esquecendo de nós, deixando o que nos liga cada vez mais forte, uma ternura que nunca ganha pó, talvez apenas umas rosinhas brancas há muito tempo, ou uma única, cor-de-rosa, desta vez; amigas de longa data que, sem se verem há muito tempo, ainda ontem estiveram juntas nalguma realidade paralela. Mas depois os cabelos: tão longos como não me lembro de alguma vez ter visto. Quando lhe digo que são trinta e quatro, deleito-me com um “És muito nova.” É por isso que gosto tanto de conversar contigo, Nê.

23/01/2017

Falávamos de balões. Sobrara um, laranja, perdido na minha mala, que a Nê encheu pelo caminho. Falávamos de balões com vias lácteas e com orelhas, os balões da nossa infância. Ela, que ainda a vive, disse que, em casa, têm balões em forma de coração. A mãe observou, “Mas os corações rebentam com muita facilidade.” E eu respondi, “Infelizmente, não só em sentido metafórico.”

04/10/2016

Não sei como é que ela conseguiu, mas estávamos ambas em pé e a Nê fez-me festas na cabeça. Os que não têm seis anos vão dizer que foi por causa das escadas, mas não estavam lá, pois não? Depois, espetou o indicador ao de leve na minha barriga e apontou para a sua, já de camisola levantada. Tenho de voltar ao exercício físico, disse-lhe. Podes vir fazer educação física na minha escola. Achas que ninguém iria notar? Agora temos lá uma tartaruga bebé, ela é tão fofa, estamos sempre a olhar para ela. E já tem nome? Não. Têm de votar e depois decidir. Vou chamar-lhe Gisela. Vai ser a tua cópia. Não, vai ser a minha homónima. Entre homónimos, doppelgangers e sósias, contou-me de duas gémeas amigas, não me recordo agora os nomes, mas uma era a da camisola rosa e, outra, a da camisola azul. Coitadas, nunca mudavam de roupa? Ou vestiam sempre a mesma cor? E se trocassem de camisola, como é que fazias? Falámos da natação, do piano, do Daniel, da professora de inglês e de como ela descobriu, durante a apanhada (diferente da do meu tempo, agora apanha-se mesmo) que é mais forte do que um rapaz do quarto ano. Quando nos despedimos, pediu que a levasse comigo; abraçada a mim, dizia, não vais sair daqui, vou colar-me a ti. Menos cabelo, num corte que lhe fica tão bem, menos dentes, num sorriso que, num dia como o de hoje, especialmente como o de hoje, eu não esperava ver e que ela tem sempre para me dar. Ouvi, quando cheguei, a Catarina dizer, olha ali a Gisela. E a Nê, mesmo à minha frente, olhava para todos os lados e perguntava, ainda sem me ver, onde, onde? No meio de muitos abraços, ouvi, a minha filha está a olhar para uma das suas pessoas preferidas. Ela também é uma das minhas. Nunca quero esquecer as coisas bonitas que ela me diz. E só agora percebi o tanto que ainda tinha para lhe contar. Não sei como, mas tenho ali uma grande amiga. Duas, na verdade. E que saudades eu já tinha.

19/07/2016

Outro dia,

– Gisela, qual é o teu vestido preferido?
– Não sei, Nê, eu…
– Eu acho que é esse que tens agora, porque já te vi muitas vezes com ele.

No mesmo dia,

“Quando tu me conheceste eu já tinha seis anos. Eu pensava que riqueza era ter muito dinheiro mas riqueza afinal é ser inteligente. Ó Gisela, tu disseste que ias para a natação, já começaste? Eu não sei por que é que o laranja é uma fruta e uma cor.”

(E eu só consigo dizer “Ó Nê tu és linda.”)

25/06/2016

Das manhãs felizes, com encontros combinados que se sobrepõem aos casuais e tudo resulta em bonita sintonia. E há lá coisa que nos desarme mais do que, depois de sermos cumprimentados com um longo abraço, recebermos um outro, assim do nada, inesperado, ainda melhor do que o primeiro? Talvez nas crianças coisa alguma venha do nada. A Nê vem da Catarina, em parte. Ela disse à filha que os cockers são cães de veludo. Algum tempo antes, o Fred disse, “As minhas referências Disney são limitadas. Por isso é que eu sou são.”

14 Fev 2019

Escritora Dulce Maria Cardoso regressa com romance sobre a “vida normal” na era digital

[dropcap]E[/dropcap]liete, de Dulce Maria Cardoso, põe “a vida real e não editada” em contraponto com a vida digital, num romance que explora as “máscaras” que encobrem a “vida normal” das pessoas, a mudança e a identidade do país.

“Eliete – A vida normal” centra-se numa mulher de meia idade, caracterizada pela mediania em tudo, casada e mãe de duas filhas, agente imobiliária, que se sente insatisfeita com a vida e com o casamento, e que, na procura de mudança – vontade desencadeada na sequência da hospitalização da avó, com sinais de Alzheimer – vira-se para as conquistas através da internet e das redes sociais, que no romance têm um papel central.

“A grande dificuldade destes tempos é fazer coincidir o eu digital com o eu real e ultrapassar o facto de nós estarmos sempre a ser avalidados”, diz a escritora em entrevista à agência Lusa.

Um ‘like’ a mais ou a menos faz sempre mossa, “porque os ‘likes’ são agora as palmas de antigamente, é uma maneira de dizer ‘gosto de ti’, ‘estás bem’, e pressupõe sempre uma comparação com os outros, quem tem mais gostos e quem tem mais comentários”.

Esta é uma realidade que não pode ser ignorada, porque a “vida editada também é vida” e a grande dificuldade reside em conciliá-la com a vida real.

“Ainda estamos na mudança é tudo muito recente é a primeira vez na história da humanidade que estamos tão juntos”, e, embora os sentimentos básicos permaneçam, as circunstâncias em que esses sentimentos se manifestam são outros e “acabam por se revestir de outras máscaras”.

“O que a Internet veio fazer, e o Facebook, é esta possibilidade de cada um ter a sua voz ampliada até chegar a todos, é iluminar isso, é de alguma maneira nós podermos espreitar as outras vidas e perceber, nessa edição dessas vidas, que há muita solidão”, considera Dulce Maria Cardoso, que foi uma das convidadas do festival literário Rota das Letras.

Este caminho não agrada à autora, não pela Internet em si, mas pelo uso que dela se faz: serve para “eleger presidentes, com resultados terríveis”, mas também serviu para impulsionar a Primavera Árabe.

“A invenção da electricidade tornou-nos outros, passámos a trabalhar à noite, passámos a ser outros, cada vez que a técnica nos dá uma ajuda, passamos a ser outros, porque nos passamos a comportar de maneira diferente, passamos a ter outros limites. Agora a internet ainda nos está a mudar mais, porque é mais poderosa ou aparentemente pode, em termos emocionais, provocar mais mutações”, disse à Lusa.

No romance, Eliete começa a ensaiar traições ao marido através da rede social Tinder, ideia através da qual a autora explora o dilema da traição e do adultério real e virtual.

Dantes o caminho era o vizinho ou o colega de trabalho, agora “acho que não há ninguém que tenha Facebook que não tenha andado num ‘roça-roça’ virtual”, diz Dulce Maria Cardoso, para quem este livro é também “uma radiografia da traição”.

A normalidade em “Eliete”

A par da “mudança” como motor da história, Dulce Maria Cardoso escolheu a normalidade, conceito depreciativo, mas que esconde o “extraordinário” e “irrepetível” que cada vida é.

“Ninguém quer uma vida normal, apesar de ser um conceito muito tentador e ter sido o conceito com que Salazar convenceu os portugueses a aceitar a ditadura, e também por isso [o livro] se chama vida normal, porque Salazar está a enquadrar esta vida normal no livro, mas ninguém quer a vida normal”.

O ponto é que, visto de perto, “todos nós somos extraordinários”, cada um de nós “carrega o seu ponto de vista, que é único e irrepetível, e aí é que está a grande beleza disto tudo: a senhora mais desinteressante que se possa ver na rua tem de certeza uma história que carrega com ela e que é única, que é dela, pertence-lhe e não é repetível”.

Pelo caminho desta normalidade, Dulce Maria Cardoso reflecte sobre a identidade de um país “esquizofrénico” e com comportamentos ainda salazarentos, que esquece o passado recente.

“Há um paralelo político, há um retrato de Portugal no livro, e há a questão de Salazar e da herança de Salazar. Não se pode não responsabilizar a Eliete pelo que ela faz, mas também não se pode não se responsabilizar quem – a família dela – a deixou chegar àquilo. Em termos políticos é a mesma coisa, não se pode desresponsabilizar quem votou no Bolsonaro ou no Trump, mas também não se pode desresponsabilizar quem deixou chegar a isto”, considera.

O romance começa com uma referência a Salazar e termina com uma carta do ditador, que deixa em aberto o desenvolvimento do enredo no próximo volume. A ideia desta personagem inusitada surgiu do questionamento de quem é esta geração pós 25 de Abril e que país é este que ficou da revolução que deitou abaixo a ditadura.

“Infelizmente eu tenho que me declarar herdeira de Salazar, porque é o governante que mais tempo governou em Portugal, com uma máquina de propaganda, foi ele que nos deu esta imagem que carregamos, foi no Estado Novo que nós nos organizámos com esta ideia de povo que temos. Ele não deixou herdeiros, mas deixou estes herdeiros todos que formatou, há muitos comportamentos nossos que ainda são salazarentos”, disse.

Quando começou a pensar sobre identidade, Dulce Maria Cardoso começou a pensar em todas essas questões, e dá como exemplo o futebol.

“Há um capítulo dedicado ao jogo com que Portugal ganhou o campeonato, porque era importantíssimo enquanto identidade do país, como nós nos comportamos, porque temos aparentemente uma baixa auto-estima, mas basta ganharmos qualquer coisa, como uma final, e somos os maiores outra vez e já vamos dominar o mundo outra vez. Somos muito esquizofrénicos”, afirmou.

A avó de Eliete e a sua demência desempenham na história também um papel fundamental, por um lado, por uma questão metafórica, porque ela tem mais ou menos a idade dos anos que advêm da Segunda Guerra Mundial, e simboliza a demência de que padece o “corpo social”, que, esquecido da guerra, rapidamente se deixou arrastar pelo fascismo.

Por outro lado, a situação clínica da avó reflecte uma preocupação da autora com a incapacidade física e financeira das famílias para cuidarem dos idosos e da falta de respostas sociais para as situações de dependência em fim de vida: “Eu começo por não perceber porque nos querem prolongar tanto a vida, se depois não sabem o que fazer connosco”.

Os “amigos imaginários” da escritora

Dulce Maria Cardoso tem várias pessoas na cabeça, “amigos imaginários”, e são estas que a procuram e se afirmam enquanto personagens, como é o caso da Eliete, que é também uma brincadeira consigo mesma.

“Eliete”, romance sobre a “vida normal” na contemporaneidade, que abarca as relações humanas, a mudança imprimida pela Internet e a identidade do país, tem como protagonista uma mulher normal, caracterizada pela mediania, e que o menos normal que tem, aparentemente, é o nome.

“A Eliete nasceu primeiro, porque para mim as personagens nascem sempre primeiro, começa sempre por eu avistar, como se visse uma sombra ao longe, a ideia de uma personagem, depois vou à procura, tal e qual como se conhecesse uma pessoa”, explicou a autora.

“Dito assim parece uma conversa de maluca, mas sou extremamente cerebral em tudo o que faço e tudo o que é publicado é revisto e montado e cortado, tenho controlo absoluto no meu trabalho, só não tenho controlo nas personagens, portanto o único mistério na criação está nessa existência de personagens, que por vezes não se deixam ficar”.

Mas Eliete foi ficando, primeiro teve outro nome, outra família, até que Dulce Maria Cardoso percebeu que era a Eliete, com aquela família – marido e duas filhas – que tinha de ficar.

“É, na verdade, [um processo com] vários amigos imaginários estruturados, habituei-me a ter pessoas na cabeça, tenho sempre, e algumas ficam tempo suficiente para que eu possa trabalhar sobre elas”, disse à Lusa.

A escolha do nome para a personagem tem a ver com o facto de o romance ser sobre a identidade, na medida em que Eliete era um dos nomes possíveis para a autora, antes de nascer.

“Achei que fazia sentido, era uma maneira de recuperar esta outra que toda a vida me acompanhou”, disse, contando a história que a mãe toda a vida lhe contou, de como o pai – que estavam em Angola quando Dulce Maria Cardoso nasceu – estava convencido de que iria ter um filho rapaz, e mandou à mãe uma lista com dois nomes masculinos “normais”, Manuel e Francisco, e dois de rapariga “disparatados”, Eliete e Dulce.

A mãe não gostou de nenhum, mas na altura não lhe passou pela cabeça desobedecer e escolheu o menos mau, tendo passado toda a vida a contar esta história à filha e a dizer “Eliete era bem pior, não achas?”.

“E eu toda a vida sempre vivi com esta dúvida: se eu me chamasse Eliete quem é que eu teria sido?”

Para Dulce Maria Cardoso, escrever é a possibilidade de ter várias vidas, e, nesse sentido, “é muito infantil”: “Posso ser tudo o que me apetecer, e em várias vozes, e em certos comportamentos que em termos fisiológicos não posso ser”.

A pesquisa nas redes sociais

Sobre os métodos de pesquisa para o seu romance, a autora afirma-se muito atenta ao que a rodeia e, para explorar as relações e as formas de comunicação através da Internet, bastou-lhe andar três dias no Facebook para perceber toda a dinâmica, porque a Internet e as redes sociais “são muito intuitivas”.

A pesquisa mais aprofundada que fez foi para a personagem de Salazar, que aparece como uma referência no início do romance, e assina uma carta, no final.

“Li os discursos todos dele. Não procurei os trabalhos de outros sobre Salazar, tive como matéria só a própria produção de Salazar, li os discursos todos, e a própria carta é montada só com palavras dele. Fui pegar nas palavras que ele costumava usar e a carta é feita de forma a que possa surgir com o vocabulário dele e com a maneira dele construir as frases, tive esse cuidado para tornar a carta mais credível”, explicou.

Sobre o seu processo de escrita, diz ser “o mais anormal possível” e conta que chegou lá “por acidente”, mas depois adoptou o método como permanente.

“Reescrevo muito, faço uma versão, depois outra, depois outra até achar que a versão está bem, depois apago tudo e escrevo de memória, é uma coisa horrível que não recomendo a ninguém”, afirmou à Lusa.

Tudo começou no seu segundo romance, “Os meus sentimentos”, quando um vírus apagou todo o romance do computador. Nessa altura, Dulce Maria Cardoso fechou-se e escreveu tudo “numa corrida contra o tempo”, para se esquecer o menos possível.

Quando releu, achou que estava muito melhor do que o romance inicial: “Vou muitas vezes por caminhos desnecessários, quando reescrevo, o cansaço fala mais alto e vou ao essencial”.

Este processo é para a autora “muito difícil” e, em termos físicos, muito exaustivo, porque demora anos na primeira fase, mas breves meses na reescrita de memória, em maratonas de 12 a 14 horas diárias. “Mas é compensado pelo enorme prazer que me dá”, sublinha.

Assume que ao escrever este romance, sentiu a pressão de não desiludir, depois do enorme sucesso de “O retorno”, mas “não foi paralisante”, foi como uma “dívida de gratidão para com os leitores”, de “não querer desiludir quem tanto gostou”.

Sobre o próximo volume, que dá continuação à história de Eliete, adianta que tem mil páginas escritas, ainda por individualizar, e que sabe muita coisa do que acontece à Eliete, mas não tudo.

“No princípio do ano vou começar a trabalhar no segundo volume, mas ainda não sei quantos vão ser. Sei que gosto muito de estar a trabalhar nisto”.

11 Dez 2018

Sujata Bhatt

[dropcap]S[/dropcap]ujata Bhatt (1956) é uma poeta indiana que descobri em Nova Deli. Atarantado, esbracejando no escuro com o meu parco inglês, fossei uma tarde nas estantes das livrarias e, sem uma referência confiável de antemão, confiei no faro e apostei em quatro poetas, de quem comprei vários livros: a Sujata, o Vikram Seth, o Aga Shahid Ali e a Eunice Moraes .

Tive sorte, são todos extraordinários, e, entretanto, Vikram e Sujata tornaram-se figuras cimeiras da literatura internacional. A Sujata é aquela a que mais regresso e mais vontade me dá de “transcriar”, como diria o Herberto Helder.


UDAYLEE

Apenas papel e madeira são imunes
ao toque de uma mulher menstruada.
Então, eles construíram este quarto
para nós, ao lado do estábulo.
Aqui, estamos autorizadas a escrever
cartas, a ler, e este recolhimento dá azo
a que se cauterizem as nossas cicatrizes de cozinha.

À noite, não posso deixar as estrelas sozinhas.
E quando não consigo dormir, desato a marchar
ou sonho que marcho, neste quarto minúsculo,
de minha estreita rede para a estante
aboletada de jornais, empoeirados,
e de búzios castanhos brilhantes e uma concha,
que fazem de pisa-papéis.
Quando não consigo dormir, pego na concha
e encosto-a à orelha
só para ouvir a torrente do meu sangue,
o latejar de uma canção, o rufar
lento, dentro da minha cabeça, dos quadris.
Esta dor é o meu sangue a fluir contra,
apressando-se contra alguma coisa –
as ancas nodosas do meu sangue,
é assim que me lembro: punhados de algas rasgadas
levantavam-se com a espuma,
subiam. Em seguida, caindo, caindo na areia
abafavam os ovos de tartaruga recém-postos.

AS VOZES

Primeiro, o som de um animal
que tu nunca imaginaste.

Depois: o restolhar do insecto, o mutismo do peixe.

E então as vozes tornam-se berrantes.

A voz de um anjo falecido recentemente.
A voz de uma criança que recusa
terminantemente tornar-se um anjo com asas.

A voz dos tamarindos.
A voz da cor azul.
A voz da cor verde.
A voz dos vermes.
A voz das rosas brancas.
A voz das folhas arrancadas pelas cabras.
A voz da cobra da mina.
A voz da placenta.
A voz do couro cabeludo de uma caveira
cujo cabelo cai atrás do vidro
num museu.

Costumava pensar que eram
só uma voz.
Costumava esperar
pacientemente que uma voz regressasse
e começasse o seu ditado.

Estava enganada.

Não consigo acabar de contá-las desde agora.
Não consigo deixar
de escrever tudo o que tem para dizer.

A voz do fantasma que deseja
morrer de novo, mas desta vez
num quarto brilhante com flores fragrantes
e diferentes parentes.
A voz de um lago congelado.
A voz do nevoeiro.
A voz do ar enquanto neva.
A voz da rapariga
que continua a ver unicórnios
e fala com os anjos que conhece pelos nomes.
A voz da seiva dos pinheiros.

E então as vozes tornam-se berrantes.

Às vezes ouço-as
Rindo da minha confusão.

E cada uma das vozes insiste
E cada uma das vozes sabe
que isto é a verdade mesmo.

E cada voz diz: segue-me
segue-me e eu levo-te …

CIÚMES

Vou para a cama e então aquele homem
senta-se no quarto ao lado e continua
rindo, dos seus próprios escritos.
E então eu bato na porta
e digo, ‘agora Jim,
pára de escrever ou pára de rir!
Nora Joyce

Uma mulher come o seu coração exposto
e a janela de perto de sua cama é muito pequena
e não vai fechar
correctamente — o seu coração tem um gosto
doce, muito, é um muito agradável despiste para a amargura –
mas a lua quer lá saber
de qualquer maneira a lua parou
há muito de ajudá-la.

A ópera acabou
e uma multidão de passos lépidos,
tantos saltos altos, tamborila
rente à sua janela.

Não há estrelas esta noite.
Somente nuvens que se movem
muito rapidamente para a porem tonta.

Ela vai fechar os olhos
mas não vai dormir
vai continuar a comer o seu coração
exposto a noite toda –

e de manhã há-de pensar numa maneira
de encaixar a janela.

O ESCRITOR

A melhor história, é claro,
é aquela que não podes escrever,
a que não vais escrever.
Eis algo que só pode viver
no teu coração,
não no papel.

O papel é seco, liso.
Onde está a terra
para as raízes, e como faço para levantar aí
árvores inteiras, a imensidão da floresta
chegada do coração do espírito –
transumância no papel,
sem perturbar as aves?

E o que dizer da montanha
em que esta floresta cresce?
Das cataratas
tecendo rios,
rios com multidões de árvores
acotovelando cada uma a do seu lado
para lançar um relance
ao peixe.

Abaixo do peixe
flutuam nuvens.
Aqui, o céu ondula,
encrespa no rio os trovões.
Como se movem as coisas no papel?

Agora observa a maneira
como os tigres andam
e rasgam o papel.

SHÉRDI*

E deste modo aprendi
a comer cana-de-açúcar em Sanosra:
rasga-se com os dentes
a espessa bainha da folha
depois, às dentadas, arranco as tiras
do branco coração fibroso
— e raspo, chupo intensamente com os dentes,
aspiro até me aflorar na língua o caldo.

Manhãs de Janeiro,
o agricultor corta a tenra cana verde
e vem depositá-la à nossa porta.
Às tardes, logo que vemos que os anciãos cochilam,
esgueiramo-nos com as longas e leves varas.
O sol aquece-nos, os cães bocejam,
os nossos dentes crescem vigorosos
e deixam os nossos queixos dormentes,
por tantas horas a sugar o russ, o caldo
que gruda na mão.

Por isso esta noite
quando me dizes que use os meus dentes
para chupar com força, intensamente,
vem-me do teu cabelo o cheiro
a cana de açúcar
e imagino como gostarias de ser
shérdi shérdi ali nos campos
ali os longos talos se mexem
abrindo sendas à nossa frente.
*cana-de-açucar

OLHAR FIXO

E há aquele momento
em que a criança humana
fixa
a cria de macaco,
que olha para trás –
inocência partilhada
inocência no espaço
onde o jovem primata
não está em cativeiro.

Raia aí a pureza
orbita uma transparência
neste olhar fixo
que dura muito tempo…
olhos de água
olhos de céu
tem ainda tempo a alma de cair
porque o macaco
tem de aprender o medo –
e ao humano
cabe igualmente aprender o temor
e amenizar a arrogância.

Testemunhando tudo
agora
podem-se contar os cílios,
contem-se os caracóis
na relva,
enquanto se espera
que os olhos pisquem
ou para ver quem
primeiro desviará o olhar para longe.
Ainda o macaco não olha
o humano da mesma maneira
que olharia para as folhas
ou para os seus próprios irmãos.

E o humano fixa
o macaco adivinhando-o
um ser totalmente diferente de si mesmo.
E, contudo, é tanta a boa vontade
brilha uma tal curiosidade
nos seus semblantes.

Gostaria de escorregar para dentro
daquele olhar fixo, saber
o que a criança pensa
o que o macaquito ajuiza
naquele exato momento.

Esclareço que o garoto
está naquela idade
em que começa a usar o poder
das palavras
embora ainda sem a distância
dos alfabetos, de abstrações.
À menção de pão
ele pede
uma fatia, com manteiga e mel –
imediatamente.
Menciona-se o gato
e ele apressa-se a correr
para despertá-la.
Uma palavra
é a própria coisa.
A linguagem é simplesmente
uma música necessária
de repente conectada
ao batimento cardíaco da criança.

Enquanto o macaquito
cresce num âmbito diferente,
olha uma árvore, um arbusto,
a criança humana
e pensa …
Sabe-se lá o quê!?
O que continua a relampejar
é esse momento
de enlace:
as duas cabeças recém-formadas
equilibradas em tão frágeis pescoços
inclinando-se uma para a outro,
a cara do macaco
e a cara do garoto,
absorvendo cada uma a outra
com uma magnífica gentileza …

6 Dez 2018

Um acto solitário

[dropcap]A[/dropcap]terrei em Lisboa. Que amigos vou rever, que livros vou comprar – são sempre as questões que se impõem.

Abro a mala em casa de familiares e antes de qualquer outro movimento os meus olhos embatem na lombada da última edição do tomo que reúne toda a poesia do Herberto Helder. Imediatamente me estico na cama, num relance sobre os últimos livros do poeta os Poemas Canhotos e A Morte sem Mestre, que faltam no meu volume, efeito de ser emigrante há década e meia.

E relembro um texto que escrevi no Facebook em defesa do poeta:
«Várias vezes escrevi sobre o Herberto, nenhuma bem. Também não será desta que melhorarei a minha performance. Porque não basta ter vontade e parafrasear o que nos escapa, nem isso traz consolo à evidência duma inteligência lacunar.

Não admira que me espante o carácter peremptório do que leio.

Rebato um texto de Diogo Vaz Pinto sobre o Herberto Helder, saído no I e replicado no seu blogue, crónica de execução, eivada de um tom com que não posso estar mais em desacordo.

Não li ainda A Morte sem Mestre e, apesar da curiosidade, não sofro de ansiedade. Acho que quase todos os livros são dispensáveis e creio, com Robert Lowell, que foi um dia feliz para Satã quando Mallarmé declarou que o mundo cabia num livro. Isto deixa-me mais à vontade para dizer que acho impossível que Herberto tenha escrito um “mau” livro, um livro “desprovido de magia”.

Há é vários tipos e graus de magia.

Um homem envelhece e tem os gestos represos de quem é ultrapassado aos vinte metros por qualquer pintainho zarolho, percebendo finalmente que na sua retorta alquímica fabricou tinta dourada mas não ouro. E di-lo, com toda a honestidade que acarreta o seu verbo magnificado por um uso onde nunca defraudou.

Agora, não é plausível que face à sua nova condição lhe exijam que repita o seu reportório ou que seja estanque à experiência de estar acossado pela morte. É um livro rude, direto? Sigamos a sugestão fonética que o remete para Le Marteau sans Maître, de René Char, para entender: desta vez, como um furibundo Nietzsche, o velho vate, resolveu ser intempestivo, fazer poesia à martelada.

Golpe contra golpe, jogando contra a noite a insónia, contra a anestesia da sageza a ferocidade da dor. A mim parece-me uma indagação radical, da base e do cimo, uma forma de neutralizar a atracção dos ímanes, e depois vida é isso mesmo: mudança, sob um capitoso desprendimento.

As três coisas que me entristecem no texto de Diogo Vaz Pinto sobre o Herberto:
– que ele confunda tão precipitadamente a opinião com o conhecimento – esquecido de que lhe estão ainda vedados os cinquenta anos que o separam do vate e que as modulações inesperadas que a vida inocula na escrita, lhe desenganarão todas as teses;
– depois, que, numa projecção algo heróica, exija ao livro que cumpra uma “via correcta” em vez de escutar no livro a sua respiração fanhosa, a materialidade com que é ali exposta uma particular vulnerabilidade;
– por fim, o que no Diogo tem sido infelizmente recorrente, que olhe para o mundo a partir da perspectiva de um entomologista – altaneiro, superior, investido pela missão de manter a piolheira sob vigilância e à mercê da lente com que foca o «asco».

Eis que o Herberto, coitado, sucumbiu a esta nova zona categorial – encontrou a sua “ascuidade”.
Custa-me engolir que, ainda que o livro fosse menor (não sei, não o li), falte ao Diogo a sensibilidade para perceber que o Herberto não merecerá, aos oitenta e picos, que um jovem lhe cuspa na fronha que ele já não passa de um eunuco, de um ouro convertido em lata.

Faltou talvez à sua leitura aquilo que, pelo que li sobre ele, é mato no livro: a humildade de reconhecer os limites, que não somos só urdidura, estilo, abstracção, distância, alquimia e acabamento, mas desequilíbrio, pathos, diarreia, carne viva, dor, inacabamento, e por isso palha demasiado humana.

Detecta-se no seu texto, para além duma falta de urbanidade, uma ingratidão profunda, mesquinha.
Não estará o livro à altura do estatuto do velho leão e do seu lugar na história da literatura? Talvez. Não li. Presumo que o Herberto se deixou de poses e depôs a máscara: é um ser falho e carecido de amor, como todos.

E di-lo: até a merda da poesia o trai, a ele que tanto traiu em seu nome.

Uma vez perguntaram ao Picasso o que faria se fosse metido na cadeia. Desenharia com a merda que fizesse, disse. Quem não tem cão caça com gato. O importante é o acto de caçar. Quando se fez isso toda a vida, capturar a presa ou não é irrelevante, o alvo é interior e não exterior. Daí que os arqueiros zen, nos seus exercícios, visassem alvos que se situavam a três metros de distância: o fito não era demonstrar a pontaria, mas tornar una a respiração e o acto.

O que faria Picasso ao pintar com a própria merda, é o que faz Herberto ao escrever com os recursos que lhe são próprios à lucidez consentânea ao seu actual estado. A merda só dá castanho, mas a expressão no traço não faltaria ao Picasso e isso é que seria preciso captar e não acusá-lo de uniformidade cromática… ou do aroma.

O Herberto foi sempre um dos nossos “homens dignos”. Isso merece decoro e nunca que o tomemos como objecto de repreensão e desdém. Nenhuma vaca é sagrada, mas a demanda do Graal não autoriza a soberba, que Lancelot faça cruzada contra o rei Artur, acusando, imagine-se, o mar de entrar no Amazonas.

O irónico é que, inadvertidamente, Diogo serviu o último intento do velho cisne: sacudir, aos 83 anos, o manto da unanimidade.

O Herberto deve estar contentíssimo. E eu com ele.»

O crítico não tinha razão, o livro do Herberto é um magnífico acto solitário.

29 Nov 2018

“O Caderno dos Desejos” vai ser apresentado sexta-feira na Livraria Portuguesa

[dropcap]O[/dropcap] Caderno dos Desejos é o primeiro livro de Susana Esmeriz e traz aos mais novos a história de Mariana. “O projecto surgiu inesperadamente quase como por impulso”, começou por contar a autora ao HM.

O objectivo é dar aos leitores um exemplo do que é ultrapassar obstáculos através do exemplo de uma pré-adolescente que se vê confrontada com a timidez e a pouca aceitação por parte dos colegas da escola.

“A Mariana está a passar por uma fase de grande insegurança em que não tem coragem para fazer o que gosta, como dançar, por achar que é gorda”, diz Susana Esmeriz.

A personagem principal de “O Caderno dos Desejos” acaba por se isolar para poder chorar a sua tristeza “e é nesse espaço que a magia acontece”. É na solidão que Mariana se decide a descobrir qual seria o seu maior ensejo e resolve perguntar a outras pessoas quais seriam os seus. “É neste trabalho, em que começa a contactar com as outras pessoas que vai deixando de dar importância àquilo que tanto a agonizava”, acrescenta.

Rumo aos outros

Trata-se de uma história de superação em que a pré-adolescente consegue encontrar uma maneira de se realizar quando se dedica às outras pessoas. “É neste ser para o outro que ela se consegue encontrar e redescobrir,” explica.

A autora considera também que falta dar aos mais novos histórias que retratem situações como as da Mariana. “Falta tratar o estar para o outro, as emoções, o desenvolvimento de competências de socialização e emocionais, o estar mais atento aos outros”, aponta, até porque “achamos que somos muito importantes, andamos sempre muito ocupados, sempre de um lado para o outro”.

O livro conta com ilustrações de Nelson Henriques e vai ser apresentado na próxima sexta-feira pelas 18h30 na livraria portuguesa.

13 Nov 2018

Roteiro de uma novela

[dropcap]P[/dropcap]or uma manhã de 1948 estava Marta no mercado a sopesar a frescura das toranjas quando do fundo do corredor esbravejou uma voz masculina: “Mentiras, Martas, mentiras! Acredita que eu nunca tive sífilis!” Era Arnold – septuagenário, cabeça de Pierrot, calva lunar – quem assim ralhava de maneira tão destemperada. A Marta dirigia o escândalo, causando-lhe grande embaraço e estupefacção nos outros clientes. Mas ao contrário destes, intrigados com o desacato, seria doido?, estaria bêbado?, Marta percebeu tudo. Arnold referia-se a Adrian, personagem central do último romance de Thomas, que nalguns traços é verdade que poderia ser um avatar de Arnold. Desencadeado o drama passemos às apresentações.

Marta, de nome completo Marta Feuchtwanger, era mulher e musa de Lion, mentor de Brecht e escritor a quem os arbítrios da história não entronizaram no Panteão da literatura à medida do prestígio que gozava na época.

Arnold era Schoenberg, o Pedro fundador da música ainda hoje chamada de contemporânea, demiurgo e sumo pontífice da atonalidade e do dodecafonismo. Como boa parte dos criadores, sobretudo os que geram doutrina e se crêem deturpados por epígonos, sentia-se invariavelmente incompreendido. Dissabor que amiúde exprimia com um proverbial mau feitio.

O romance que Schoenberg invectivara era “Doutor Fausto” da autoria de Thomas Mann, publicado no ano anterior. Glosando a lenda de Fausto, o livro narra os sucessos de um compositor, o tal Adrian Leverkühn, que num pacto com Mefistófeles contrai sífilis para que a loucura lhe potencie o génio. Assim é que inventa um novo sistema musical, o dodecafonismo – não haveria Arnold de se sentir insultado?

À data, Schoenberg e Mann, em virtude da obra já fabricada, vasta e basilar, eram duas torres que deitavam sombra imensa na cultura alemã do século. E se na geometria instável e variável das relações humanas, sobretudo entre cabeças de cartaz com cismas de prima-dona, ora se conciliavam, ora gelavam, o certo é que as suas relações iam para além de um mero “passou bem” e conviviam nas soirées dos Feuchtwanger, nem que fosse para se evitarem e formarem círculo em salas diferentes.

Estas tertúlias que o desvelo e a encantadora personalidade de Marta promoviam – “tem o perfil de uma princesa egípcia”, diria dela Thomas – celebrizaram-se por a elas acorrer o who’s who da intelectualidade germânica: além de Thomas o seu irmão Heinrich Mann, Bertolt Brecht, Horkheimer, Theodore Adorno, Kurt Weill e a formidável Alma Mahler-Werfel, que à época já fora viúva do compositor Gustav Mahler, ex-amante de Walter Grupius e de novo viúva do escritor Franz Werfel. Introduzidos os protagonistas talvez seja o momento de desferir um golpe de teatro.

O cenário em que se deu a truculenta peripécia entre Arnold e Marta não era o de alguma cidade em escombros e miasmática na devastada Alemanha de 48. Aconteceu sim no refinado Brentwood County Market, num dos bairros mais gentrificados de Los Angeles. E todos os nomes atrás evocados, além de outros de menor, mas não menos certa fama, igualmente domiciliavam em Pacific Palissades, onde a vida espairecia ao rumor das palmeiras, temperada pela suave brisa do Pacífico e o prazenteiro sol da Califórnia.

É fácil depreender que esta fina-flor ali viera culminar não de vilegiatura, como se em estância de repouso e lazer numa montanha mágica, mas por obséquio do cabo Adolfo. Entre as incontáveis patifarias por ele perpetradas contra a humanidade em geral conta-se esta em particular de ter estropiado de maneira irreversível a cultura alemã em nome de uma pureza primordial, de uma autenticidade acrisolada, de um integrismo inabalável.

Como todas as novelas também esta há-de ter moralidade.

Ainda hoje quem traga no bolso cinco melréis de mel coado de snobismo olha por cima do ombro para Los Angeles como para um descampado cultural. Imagine-se em 1948. Hitler votava pela América o desapreço que lhe merecia um povo rafeiro e sem raízes, uma nação dominada por plutocratas e judeus. Do ponto de vista cultural sintetizava-a como “uma anedota estúpida”: “o que é a América senão concursos de beleza, milionários, música idiota e Hollywood?” Em resumo: “uma sinfonia de Beethoven tem mais cultura do que tudo o que a América produziu até hoje.” Convenhamos que esta opinião calava fundo não só na Alemanha nazi, como em muitos círculos intelectuais europeus. Também alguma intelligentzia nova iorquina a partilhava em relação ao que provinha da Califórnia.

O sulco deixado por estas luminárias germânicas nas universidades da Costa Oeste – e não tanto nos filmes, porque aí foram outros alemães que marcaram – foi indelével e contribuiu sobremaneira para dar à América uma primazia ainda hoje incólume. Por mais que cegos não a queiram ver.

9 Nov 2018

A fragância do riso

Menina e Moça, Lisboa, 3 Outubro

[dropcap]S[/dropcap]em conseguir estancar a sangria, parar o relógio, cegar a agenda, por entre idas e vindas ao Fólio, dou uma saltada à Menina e Moça, a livraria da Cristina [Ovídio], entalada entre alcatrão pink e céu tintado pelo [João] Fazenda. Trouxe comigo o Rui [Garrido], de modo a podermos concluir se quem vê capas também pode ver corações. Indisciplinadamente, ou não estivéssemos sentados em mobília de infantário a beber como gente grande, discutimos muito para pouco concluir. Apesar da venenosa massificação, e da desatenção comercial, encontramos livros desenhados com cuidados de leitor, a procurar oferecer à primeira vista, ao primeiro toque, um sinal do que lhes vai no miolo. O livro a esticar-se objecto, quase um ser, pelo menos para os sentimentais que neles veem amigos, ferramentas que mudam vidas. O Rui contou da sua experiência de muitos anos e formatos e encomendas e cretinos, ajudando a desmontar essa ideia-feita de que a capa pode ser responsável por fazer ou desfazer bestas céleres. Ou até que deva ser pensada dessa maneira tacanha e desviante. Nas grandes fábricas da livralhada asséptica, tudo começa e acaba aí: na suprema ideia de venda. Nem que seja ao engano, prometendo por fora tema ou experiência ou escrita ou qualidade que não se encontra dentro. O Rui já nos ofereceu logótipos, ergueu grandes livros, pintou capas, e posso testemunhar da inteligência atenta a cada detalhe e desejosa de brincadeira. Por aqui sacrificamos, ainda que em cadeiras de adulto, ao deus lúdico.

Facebook, 6 Outubro

Divertida, a maneira como Bansky voltou a navalhar a arte enquanto jovem assunto. Serão feridas, serão arranhões, que a morte não bate assim? Três ou quatro fitas para reflectir na encenação: a galeria desconhecia por completo a moldura armadilhada? E uma com bomba incluída, passaria nas análises dos peritos? Quem o foi o primeiro dono da peça, ele próprio, orquestrando a cena? Era suposto a menina ser toda rasgada, ou o rosto escondido, o corpo cortado e o balão esvoaçando propõem nova versão? Há meias-destruições? A obra agora consiste apenas na moldura com original estraçalhado ou deve incluir os olhares e as expressões e os murmúrios durante a performance? Outras duas para pensar na atitude: Bansky quer mesmo fugir do mercado, fazer das ruas a sua galeria, das redes o lugar de debate? Que outra expressão artística se alimenta tanto da (auto) crítica como as plásticas? Por junto, eis mais umas quantas golpadas para o dinheiro, motor do velho assunto arte: a menina agora fendida vale mais, muito mais que o milhão que a arrematou. E o valor artístico mede-se em contado? Milagre da multiplicação do vazio. Valha-nos S. Dada. Um balão, neste espelho, nunca será apenas um balão.

Fundação Eugénio de Almeida, Évora, 13 Outubro

O Pedro [Proença] desafia tempestades anunciadas com inauguração em Évora, que ficará Março do ano que aí vem correndo contra mim. «O Riso dos Outros», mais do que exposição, instalou-se por uma boa dezena de salas e em nós como máquina produtora de histórias, de personagens, de reflexos e reflexões, de experiências sensoriais. O Pedro não pára um segundo, nem de pensar e menos ainda de fazer, em excesso celebratório de uma invejável alegria de viver. Tenho assistido com prazer à desmultiplicação de heterónimos que fazem vida a experimentar as relações das imagens com a literatura, da palavra tornada imagem, etc.. Se por um lado, a arte se deixa pensar em toda a sua gramática, nos seus processos, por outro, a bichocarpinteirisse criou, além de um sem número de livros, algumas passagens à parede destas ideias. Nesta mais recente, desmultiplicou-se em curador, João Gafeira, para convocar à livre criação sete artistas: John Rindpest, Sandralexandra, Sóniantónia, Pedro Proença, Rosa Davida, Pierre Delalande e Bernardete Bettencourt. Podemos, portanto, experimentar instalações, gigantescos frescos, colagens, fotografias, jogos com etiquetas-títulos-aforismos, pintura de frases e seus duplos, postais de viagens ao imaginário das viagens, formatos variegados, poesia solta, sarcasmo avulso [ver foto algures na página], telas. O jogo faz-se em idas e voltas ao texto, nas legendas e enquadramentos, nos títulos, nas frases soltas, claro, nas biografias. Há por aqui qualquer coisa de Oulipo, que nos convoca ao jogo de espelhos, a continuar a produção. Sofro de afecções peculiares suscitadas por cada um dos artistas incarnados, mas o Rindpest com a sua pintura de palavras toca-me mais além: «eu sou o texto que trai a sua sombra». Se parece artificial, tal se deve à minha inabilidade, que no Palácio da Inquisição, ampliada pela lente do humor inteligente, acontece muita vida, carne, sangue, suor e lágrimas. E, se a vida fede, como diz o Henrique [M. B. Fialho], em um dos seus contos, há que crer na «revolução interna que ajude o corpo a exalar uma fragância simpática, agradável, aprazível, a fragância do riso».

Biblioteca, Oeiras, 13 Outubro

«Geração Espontânea», o ciclo de conversas de «novos autores da língua portuguesa com o seu público» incluiu este mês o Valério [Romão]. A terra não tremeu com a conversa, orientada pelo José Mário Silva, mas não carecia. Uma primeira surpresa confirma a velha ideia de que as bibliotecas conservam tesouros. A receber-nos, um primeiro «romance», que o autor renega com (imberbe) veemência. Nenhum dos mais recentes estava à vista, embora disponíveis no final. Estavam, contudo, nas mãos dos leitores. E aqui reside a segunda surpresa, um lembrete para quem que ache tempo perdido tais sessões (quem nunca?): no final, as intervenções foram pura curiosidade, dúvidas luminosas e comentário inteligente. As bibliotecas ainda conservam leitores.

Casa da Cultura, Setúbal, 26 Outubro

Multiplicaram-se por estes dias cinza as vezes em que me sentei ao lado do Henrique [Manuel Bento Fialho], e delas todas conservo a rara sensação de que a conversa nos saiu, mais a ele, que a mim só me cabe suscitar, prazenteira e fluida que nem flume, rio ardendo na corrida para a foz que não chegará nunca. Desta vez, e para além do costumeiro distribuir de jogo sobre «A Festa dos Caçadores», mostrando aqui e ali um trunfo, o Henrique ergueu-se apreciador e intérprete do Zeca [Afonso]. Acabámos a trautear, mais ele, que só me cabe desafinar, a surrealista ternura: «Era um redondo vocábulo/ Uma soma agreste/ Revelavam-se ondas/ Em maninhos dedos/ Polpas seus cabelos/ Resíduos de lar […]»

Prazeres, Lisboa, 29 Outubro

As almas livres também se perdem? Só deambular á toa permite a descoberta. O Zé [Sarmento Matos] (1946-2018) ia sempre um pouco mais longe, mais adiante, e não apenas no calcorrear da cidade. Não se limitava a recolher informação, que o fazia e como poucos, mas arriscava interpretações. Com risco. Dava ideia que os seus passos faziam cidade, desenhavam-na. E os seus olhos tiravam da sombra, iluminando, o esquecido, o ignorado, o oculto. Lisboa não lhe escondia nada. Fez livros, não tantos como devia, mas o que trouxe a lume garante-lhe lugar de destaque na olissipografia. Devemos-lhe, ainda, a toponímia mais aventurosa do mundo e arredores. Por causa do Zé, Lisboa tem tatuada na pele ruas como a da Ilha dos Amores ou travessas Sandokan, Sinbad o Marinheiro ou Corto Maltese.

Na despedida, o ataúde não entrou à primeira na cripta dos escritores. O que não te deves ter rido… Não, não foi erro de construção arquitectónica e coiso. A cidade apenas não estava preparada: falta um beco, que seja, com o teu nome. Não esperas pela demora.

7 Nov 2018

A luz do desejo

Praça da Fruta, Caldas da Rainha, 4 Outubro

[dropcap]E[/dropcap]difício que já foi banco alberga tesouro maior. Se não é museu, engana bem, tantas vezes as portas generosamente se abrem para entrarmos no «cofre» onde se expõe a maior – dizem-me, em coro a Isabel [Castanheira] e a Margarida Araújo – colecção de cerâmica caldense. João Maria Ferreira faz parte daquela raça de coleccionadores cuja paixão o leva, não tanto à acumulação, mas a descobrir o máximo sobre o objecto do seu desejo. A projectar sobre ele luz. Sem eles, muito património se teria perdido nas voragens do tempo e desatenções estatais. Faltou tempo para apreciar cada detalhe, cada história, cada brilho. Obrigatório voltar, e não apenas por causa de Bordalo. A simpatia de João Maria a isso obriga. Outros pretextos podem ainda acontecer, que das idas ao Oeste costumam resultar aventuras.

Museu Municipal, Óbidos, 4 Outubro

Além das muralhas, de pedra e humidade, este lugar está cheio de igrejas, vãos de silêncio onde a luz troca carícias com as sombras. As fotografias que Fernando Lemos tomou de Hilda Hilst ergueram outro desses espaços dedicados ao sagrado. E ao desejo. Na dança entre o olhar e o modelo, sendo no essencial pose, a intimidade encandeia de natural. Ela entrega-se sobre a mesa, mão estendida, olhar fugindo; ele desce para recolher o movimento. Só em três dos doze retratos se cruzam os olhos de ambos, mas em todos ela e ele se tocam. Dela emana absoluta liberdade, de pálpebras cerradas solta tranquilidade. As pupilas, as unhas-garras e o cigarro dizem tão só arrebatamento. «Já não sei mais o amor/ e também não sei mais nada./ Amei os homens do dia/ suaves e decentes esportistas./ Amei os homens da noite/ poetas melancólicos, tomistas,/ críticos de arte e os nada.» Assim lhe disse ela, Hilda, a ele, Lemos. «Agora quero um amigo./ E nesta noite sem fim/ Confiar-lhe o meu desejo/ o meu gesto e a lua nova.»

Circula (pelo menos na Ler Devagar) cuidado volume (Edições SESC), com organização e texto de Augusto Massi, além de fotomontagens inéditas de Fernando Lemos. Ao texto de enquadramento não se podia pedir mais. A recomposição pelo artista das imagens da memória sublinha mais a luz e os olhos, rasgando, colando, focando, desejando. Os retratos, esses, brilham de intensidade. Não consigo deixo de me abrigar neles, templos portáteis de melancólico gesto, lua nova em noite sem fim. (Na página, exemplo do diálogo entre lâmpada, digo lua, e olho.)

Fernando Lemos foi para o Brasil, em 1953, cansado da ditadura. Tantos anos depois, inverte-se o movimento de outros artistas por via das trevas que ameaçam o mais solar dos países.

Casa José Saramago, Óbidos, 5 Outubro

Orquestrada pelo [José] Anjos, assisti intermitentemente às tentativas do [João] Barreiros, do Filipe [Homem Fonseca] e do [Luís] Carmelo para materializarem a incorpórea ideia de «realidade aumentada». (Já vos disse que o tema do Fólio deste ano procurava tactear o futuro?). Ela anda aí, não apenas nos livros de ficção científica, não apenas na literatura ela mesma, não apenas nos delírios tecnológicos, mas sobretudo nas expansões comerciais das redes. Retive duas notas. Esta de que os esforços mais recentes limitarão a nossa liberdade de escolha, ainda que anunciem o contrário. E outra: nos primeiros esforços de contar o mundo (Gilgamesh, Mahâbhârata) logo este se viu aumentado. Nem tanto resolvido.

Isso poderia ter acontecido na longa conversa, partida e logo reunida em um sem número de outras, mal se juntaram a nós o António [de Castro Caeiro], alegre com a realidade física das «Constituições», e o Henrique [Manuel Bento Fialho], solto de uma prestação televisiva de primeira. Disfrutando a sombra de digníssimas oliveiras, à força de um pão com sabor a verdade, devidamente regado, a tarde discorreu como rio fresco pelas margens da FC nacional e internacional, do cinema de género, das memórias, da inevitável filosofia, além de desabafos vários e pitada de má-língua. Nasceu ali, creio, a ideia intensamente hodierna de um festival literário cosplay: cada fã só teria entrada se vestisse a pele do seu escritor de eleição. Quanto tardará a acontecer tal visão do inferno?

Museu Abílio, primeiro, Museu Municipal depois, Óbidos, 6 Outubro

Cedo, demasiado cedo, o mano Tiago [Ferreira] expôs com desarmante clareza os desafios que enfrentamos face à tecnologia, sobretudo o seu braço armado, a robótica. Acalmou uma ou outra ansiedade, talvez tenha despertado outras, mas afirmou confiança invejável no futuro. Pelo que conheço dele no presente, descansou-me. Deu por título à masterclass, Apocalípticos ou integrados, piscando o olho a Umberto, e logo ecoando na do mano António [de Castro Caeiro], que à velocidade da luz, nos fez perceber que é nos momentos em que tudo parece impossível que o futuro se nos rebenta nas mãos: «o piscar de olhos da eternidade age sobre nós». O apocalipse ilumina, afinal, outra possibilidade de sermos em andamento. Assim saibamos ler cada sinal, cada brilho.

Casa abysmo, Óbidos, 6 Outubro

O primeiro andar do Jacinto [Gameiro], ali na Rua Direita, quase caía com o peso do bom humor e da luz que o Carlos [Querido] lançou sobre «As Constituições Perdidas de Aristóteles», finalmente vertidas em português de lei pelo António [de Castro Caeiro], e embrulhadas com sabor e saber pelo Miguel [Macedo], aproveitando bem do passado o que ele pode conter de futuro. Por junto, também com o mano [José] Anjos, parecíamos aviadores de balcão, mas, se olharmos às circunstâncias, servíamos possibilidades. Cada constituição começa por esta altura a instituir-se, com perigos, identidade, mas também expectativa, probabilidade outra. De súbito, veio a Raquel [Santos] arrancar-me daqui…

Museu Municipal, Óbidos, 6 Outubro

…para aqui. Estava para começar a sessão de homenagem ao arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, que se espraiou singela e luminosa, com o Nuno [Miguel Guedes] a gerir conversa solta com Luís Coimbra e o Vasco [Medeiros Rosa]. Falando de futuro, houve quem no passado tivesse razão antes do tempo, que fizesse do seu presente pavimento de utopia ajardinada: parques naturais, desenvolvimento sustentável, arquitectura integrada, luta anti-nuclear, amor à terra, hortas urbanas e política, bem entendido, de tudo se falou. Com soberano respeito pelas diferenças. Sim, é possível.

Fui surpreendido, neste contexto, por públicos agradecimentos do Zé [Pinho] e do Humberto Marques, que preside à Câmara. Protestei comovido. O prazer tinha acontecido antes nas longas sessões de preparação, sonhando possibilidades, fazendo pontes, discutindo identidades e constituições e braços amigos, os da robótica.

Bons malandros, Óbidos, 6 Outubro

Um dos segredos mais divertidos e mal guardados do Fólio neste lugar sagrado de pândega. E desejo. Recolhidas as díspares colheitas do dia, vão chegando ao longo da noitada infindável os poetas tomistas e alguns esportistas. A cada um, a Zélia e o Luís [Cajão] oferecem o conforto de um repasto, temperado pelo carinho, e a última bebida da noite ou a primeira da madrugada. Hoje, estivemos a ler futuros nas mãos até cheirar a jornais do dia e o dia raiava.

31 Out 2018

Tirar do sério

Diário de Notícias, 23 Setembro

[dropcap]A[/dropcap] liberdade nunca chegou a ser um absoluto, que a de outro era fronteira. Mas na grande área das ideias, da cultura, parecia estar para sempre aberto esse lugar-comum, o da opinião escrita e publicada. Qualquer de nós podia dizer a maior asneira, com limites estabelecidos, até legais. Por estes dias nublados, percebemos que a ameaça continua, de maneira mais subtil e venenosa. Estamos obrigados a extrema auto-vigilância, para não tocar nos nervos. Somos todos apenas sistema nervoso, portadores de dor fundamental, continuada e logo vociferante, doravante vítimas em explosiva potência. As palavras são os alvos primeiros, mas as imagens merecem ataque, sobretudo as humorísticas. O DN abordou o assunto, a pretexto dos cuidados com que as caricaturas devem agora ser esculpidas, e a Cláudia [Marques Santos] achou por bem ouvir-me. Titubeio como habitualmente, e cada frase devia ser desmultiplicada, mas ficou dito.

«”Hoje [o escrutínio] já não é tanto acerca da liberdade, mas acerca da identidade”, defende o escritor e editor com um percurso ligado à banda desenhada João Paulo Cotrim. “Há nas populações urbanas do mundo inteiro esta hipersensibilidade às chamadas causas fraturantes. A questão do feminismo, do racismo, da homossexualidade. E, depois, a questão da religião. A religião o que trouxe para isto, e contagiou todas as outras áreas, foi a questão da ofensa. Quando o direito à ofensa foi uma conquista civilizacional. Tens de poder ofender”, continua. “Agora, diz-se que a minha identidade justifica que eu não seja ofendido, que eu possa ser exatamente o que quero. As pessoas não percebem é que o humor é precisamente o oxigénio. No fundo, está-se a tentar acabar com o ambíguo, que é o que tem graça nestas coisas. As ruas estão completamente sujas, mas as cabeças das pessoas estão completamente limpas”, diz, apontando para o perigo de a censura ter invadido a cultura, espaço onde “não é suposto resolver-se problema algum”. “É sobretudo uma infantilização do leitor, do consumidor de cultura, de qualquer pessoa. Aquele pobre não vai perceber que… Isto também estupidifica. Não dá a possibilidade às pessoas de fazerem as leituras que querem.”»

(A apresentação diverte-me, por esquecer o lado talvez mais interessante no contexto, o de investigador com obra publicada, para me pôr na pele que não descola, a da banda desenhada…)

Livraria da Adega, Óbidos, 28 Setembro

Muito pelas portas travessas da amizade, a abysmo envolveu-se deveras na edição deste ano do Fólio, que vestiu o tema: «Ócio. Negócio. A Invenção do Futuro.» (Os cóbois da Rua Castelo eram de cerâmica e subiam muralhas?). Sei de menos do negócio, aspiro dolorosamente ao ócio e raramente penso em futuro, a não ser para o imaginar como maneira dos tempos se atarem em um nó à mão de semear. (K. Dick ou Orwell escreveram sobre que acontecimento desta semana?). Mantenho as minhas dúvidas sobre o exacto alcance destas iniciativas, se produzem horizonte ou nevoeiro, mas acredito em encontros. (Na foto, que ilustra a página, o Edgar Libório apanhou-me de costas. Prefiro esta versão do logotipo para colorir à deste ano, toda ela preenchida de óbvio. Ou será óbvidos?).

Logo na primeira sexta, a conversa, que partia da ideia de «Fora do Lugar», colocou alta a fasquia, com intervenções desassombradas e sabedoras, como deviam ser todas, mas raramente acontecem nestes eventos. Cada um, o Hugo [Mezena], o José [Riço Direitinho] ou o Henrique [Manuel Bento Fialho], soube descer da sua vigia de escritor ao encontro de leituras desafiantes e rompendo logo ali fronteiras. A pluralidade temática está bem vincada na moderna prosa. Talvez até tenha estado sempre, de maneira ou outra, se mergulharmos além dos modismos. Saídos da Livraria da Adega e, provado o Medronho, fui com o Henrique falar um pouco mais desse quase romance sobre a geração dos sem lugar nascidos pós-Abril. Em «A Festa dos Caçadores» também há cóbois de mítico antigamente, gente vulgar de hoje, fulgor poético que alimenta, esse sim, o porvir.

Artes e Letras, Óbidos, 28 Setembro

Não chegou a ser surpresa, que o [José] Pinho já mo teria anunciado: o Luís [Gomes] mudou a sua gruta de Ali Babá para Óbidos. Livros são ainda poucos, mas o chumbo dos tipos e as prensas permitem que se chame atelier ao Artes & Letras O.2. Passei os olhos pela micro-exposição em torno de Moby Dick, enquanto o Zacarias corria a desafiar-me com enorme cubo de granito na boca. Acolhi a sua generosidade, uma plaquete de Inês Caria, com quatro linóleos e versos, apropriadíssima ao momento, «De Passagem»: «FUI NEVOEIRO NESTA/ PAISAGEM / uma forma cobrindo/ a manhã// irregular». Depois aconteceu Bordalo. Celebrando o regresso do herói da campanha africana contra Gungunhana, Freire de Andrade, os seus camaradas de armas encomendaram ao artista belíssima homenagem sobre pergaminho, encimada pelo retrato, riquíssima no detalhe decorativo, de fino recorte colonialista, com primoroso trabalho de cor, assentando o conjunto em minuciosa evocação da famosa batalha de Magul. Não sei se foi o patriotismo exaltado ou o ódio de Rafael ao Ultimato lhe guiou a mão, mas a peça brilha de tão extraordinária. E o original estava ali, em pasta de couro que recolhe a preciosidade em sóbria exuberância. Fiquei assombrado.

Pavilhão Atlântico, Lisboa, 30 Setembro

Vinte anos depois, ao menos para mim, mais ainda nesta tarde quente de domingo, a grande nave de bojo nos céus continua a chamar-se assim. Só porque sim, que nem são fortes os laços que me prendem ao Parque das Nações, excepção feita para as árvores ou o «Homem Sol», de Jorge Vieira. Está feita, e apresentámo-la, entre amigos, esta cápsula do tempo, para qual o Bruno [Portela] me convocou, pondo-me em lugares perdidos da adolescência, mas sobretudo mergulhando-me em fragmentos desfocados, decadentes, enferrujados, abandonados, miseráveis da minha cidade. «Uma Cidade Pode Esconder Outra» tem detalhes poderosos, como a capa ser negra e maleável ou a omnipresença da torre que arde, que celebramos logo na capa, com vermelho que reflecte. No miolo, imensas nuvens atravessam os olhares.

Casa José Saramago, Óbidos, 2 Outubro

Graças à generosidade do João [Brazão] e da sua cervejeira Trevo, levámos à Casa Abysmo e a outros lugares de prazer, duas cervejas IPA, ambas com o mesmo nome, mas com duas ilustrações distintas do Nuno [Saraiva], retiradas de «Moléstias, embustes e pontinhos amantes – escrita quotidiana em Portugal entre os séculos XVI e XIX», cuja apresentação ali falhámos: um casto cupido e um belzebu flautista.

Imagino que comentário suscitaria a Buñuel, que se alegrou ao descobrir a delícia do sentimento de pecado, que celebrava a bebida a ponto de afirmar ter passado a maior parte da sua vida ligeiramente nas nuvens, e praticar como ninguém a arte do dry martini. Indispensável, este «A Propósito de Buñuel», com que o Javier [Rioyo] e José Luiz López-Linares celebraram o seu centenário. O homem que viveu «comodamente entre múltiplas contradições» apresenta-se, pela voz e olhares de amigos, familiares, colegas e colaboradores, um enorme investigador do mistério, que bem sabia tirá-lo do sério. Exemplo maior, pérola na ostra, encontra-se no seu erotismo. Os beijos são-lhe suprema obscenidade: «repugnam-me»! E depois o riso, que o atravessava como relâmpago. Cada dia, para o ser tinha que provocar gargalhada. Beijo-o na boca por isto.

24 Out 2018

“Torto Arado” do escritor brasileiro Itamar Vieira Junior vence Prémio LeYa de Literatura

[dropcap]”T[/dropcap]orto Arado”, do escritor brasileiro Itamar Vieira Junior, é o romance vencedor do Prémio LeYa de Literatura, no valor monetário de 100 mil euros, com edição prevista pelo grupo editorial, anunciou hoje Manuel Alegre, que presidiu ao júri.

O Prémio LeYa de Literatura é o maior galardão para uma obra inédita escrita em língua portuguesa, e o júri desta 10.ª edição, contou com os novos membros, a escritora angolana Ana Paula Tavares, a jornalista e crítica literária portuguesa Isabel Lucas e o editor, jornalista e tradutor brasileiro Paulo Werneck, que substituíram o escritor angolano Pepetela e os professores e críticos brasileiros José Castelo e Rita Chaves, que saíram.

Além do escritor Manuel Alegre, que mantém a presidência do júri desde o início, continuam também a fazer parte Lourenço do Rosário, professor de Letras e ex-reitor da Universidade Politécnica de Maputo, José Carlos Seabra Pereira, professor de Literatura Portuguesa na Universidade de Coimbra, e o escritor e poeta Nuno Júdice.

O júri reuniu-se na terça-feira e hoje na sede do grupo LeYa, em Alfragide, no concelho da Amadora, nos arredores de Lisboa.

Ao galardão candidataram-se, este ano, 348 originais provenientes de 13 países, a maioria, de Portugal e Brasil, embora tenham chegado “obras de países tão diversos como Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, China ou até mesmo da Islândia”, segundo o grupo editorial. No ano passado, o vencedor foi o romance “Os Loucos da Rua Mazur”, de João Pinto Coelho.

O galardão foi atribuído pela primeira vez em 2008, ao brasileiro Murilo Carvalho, pelo romance “O Rastro do Jaguar”, e por duas vezes não teve vencedor – em 2010 e em 2016 -, dada a qualidade dos originais a concurso, segundo justificou então o júri.

“O Olho de Hertzog”, de João Paulo Borges Coelho, venceu o prémio em 2009, “O Teu Rosto Será o Ultimo”, de João Ricardo Pedro, em 2011, “Debaixo de Algum Céu”, de Nuno Camarneiro, foi o vencedor em 2012, ao qual se sucedeu “Uma Outra Voz”, de Gabriela Ruivo Trindade, em 2013. Em 2014 venceu o romance “O Meu Irmão”, de Afonso Reis Cabral, e, em 2015, “O Coro dos Defuntos”, de António Tavares.

18 Out 2018

Vencedor do Prémio LeYa de Literatura é conhecido na próxima semana com júri renovado

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] vencedor do Prémio LeYa de Literatura, o maior galardão para uma obra inédita escrita em língua portuguesa, no valor monetário de 100 mil euros, com a edição pelo grupo editorial, é anunciado no próxima quarta-feira.

O júri da edição deste ano do prémio, a 10.ª, revela alterações, com as saídas do escritor angolano Pepetela e dos professores e críticos brasileiros José Castelo e Rita Chaves, que são rendidos pela escritora angolana Ana Paula Tavares, a jornalista e crítica literária portuguesa Isabel Lucas e o editor, jornalista e tradutor brasileiro Paulo Werneck, segundo comunicado do grupo LeYa, enviado à agência Lusa.

“No seu décimo aniversário, o Prémio LeYa apresenta este ano novidades no seu júri. Perante a saída do escritor angolano Pepetela e dos professores e críticos brasileiros José Castelo e Rita Chaves – os quais, desde já, homenageamos pela excelente colaboração de muitos anos com o prémio -, passam este ano a fazer parte do júri do Prémio LeYa a escritora e poeta angolana Ana Paula Tavares, a jornalista e crítica literária portuguesa Isabel Lucas e o editor, jornalista e tradutor brasileiro Paulo Werneck”.

O escritor Manuel Alegre mantém a presidência do júri, do qual continuam a fazer parte Lourenço do Rosário, professor de Letras e ex-reitor da Universidade Politécnica de Maputo, José Carlos Seabra Pereira, professor de Literatura Portuguesa na Universidade de Coimbra, e o escritor e poeta Nuno Júdice.

Segundo a mesma fonte, o júri “vai reunir-se na sede da LeYa, em Alfragide, no concelho da Amadora, nos arredores de Lisboa, nas próximas terça e quarta-feira, “estando o anúncio da decisão quanto ao romance vencedor agendado para as 12:00 da próxima quarta-feira, no mesmo local”.

Ao galardão candidataram-se este ano, 348 originais provenientes de 13 países, segundo a mesma fonte, adiantando que a maioria provém de Portugal e Brasil, porém realçou que chegaram “obras de países tão diversos como Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, China ou até mesmo da Islândia”.

No ano passado, o vencedor foi o romance “Os Loucos da Rua Mazur”, de João Pinto Coelho.

O galardão foi atribuído pela primeira vez em 2008, ao brasileiro Murilo Carvalho, pelo romance “O Rastro do Jaguar”, e por duas vezes não foi atribuído – em 2010 e em 2016 -, dada a qualidade dos originais a concurso, segundo justificou então o júri.

“O Olho de Hertzog”, de João Paulo Borges Coelho, venceu o prémio em 2009, “O Teu Rosto Será o Ultimo”, de João Ricardo Pedro, em 2011, “Debaixo de Algum Céu”, de Nuno Camarneiro, foi o vencedor em 2012, ao qual se sucedeu “Uma Outra Voz”, de Gabriela Ruivo Trindade, em 2013. Em 2014 venceu o romance “O Meu Irmão”, de Afonso Reis Cabral, e, em 2015, “O Coro dos Defuntos”, de António Tavares.

14 Out 2018

Pepetela diz que África subsaariana “vive um ciclo novo de maior transparência”

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] escritor angolano Pepetela considerou que a África subsaariana, incluindo o seu país, “vive um ciclo novo de maior transparência na governação”.

“É um ciclo novo que se está a abrir em África, sem dúvida alguma. Há maior transparência na governação, maior seriedade nos negócios, luta contra a corrupção e maior liberdade e multiplicidade de imprensa”, considerou o autor.

Falando aos jornalistas, em Penafiel, onde está a ser homenageado no festival literário Escritaria, o escritor disse que a narrativa do seu último livro, “Sua Excelência, de Corpo Presente”, não “trata só de Angola”.

“Realmente, é uma história que poderá passar-se em qualquer país africano, a sul do Saara”, frisou, recordando que se está a viver uma fase “que vem depois daquele ciclo que foi desaparecendo, de partido único e de chefes muito autoritários”.

Questionado, em concreto, sobre o que se passa atualmente em Angola, um ano depois de João Lourenço ter assumido a presidência do país, Pepetela considerou que o novo chefe do Estado angolano “fez tudo o que podia”.

“Até surpreendeu muita gente, porque fez mais do que muita gente esperava”, acentuou, acrescentando que “o povo angolano está surpreendido e tem apoiado inteiramente”.

“O grau de aceitação do presidente é uma coisa histórica”, reforçou. Apesar dos progressos, o autor avisa que “ainda é muito cedo para dizer que as coisas estão a caminhar naquele sentido”.

“Ele está a cumprir o que prometeu, sem dúvida alguma, mas há muitas forças que se opõem”, exclamou.

A situação económica e financeira de Angola, recordou ainda o escritor, “é muito complicada, é muito difícil e muito pior do que se pensava”.

Apesar das dificuldades, a imagem que Angola tem agora no exterior, nomeadamente em Portugal e na União Europeia, é mais positiva.

“Claramente a imagem mudou. Temos de aproveitar isso e reforçar essa relação”, sublinhou.

Para Pepetela, a relação com Portugal e com os demais países da CPLP podia ser melhor, defendendo que a cultura permitiria uma maior aproximação dos povos que falam português.

“Infelizmente, a CPLP é uma espécie de sindicato de chefes de Estado que se reúnem de vez em quando para aprovar não sei bem o quê”, criticou, dando como exemplo o facto de ter sido criado um Instituto da Língua Portuguesa que, lamentou, “ficou dez anos sem funcionar”.

O autor angolano que venceu o Prémio Camões em 1997 admite, por outro lado, que os “escritores dos países africanos que escrevem em português têm sido valorizados em Portugal”. O problema maior, disse, está em África: “Nós é que temos falhado. Nos nossos países há muito pouca valorização dessa aproximação cultural e da própria cultura. Os países africanos deviam fazer mais com o pouco que têm. Portugal tem feito o que pode”.

4 Out 2018

Há limites nocivos para o patriotismo?

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om certeza e vemo-los, à escala global, na “tentação” de Trump para destruir o multilateralismo, a qual ameaça a manutenção da própria ONU.

Segundo Angela Merkel “O actual Presidente dos Estados Unidos pensa que o multilateralismo não é a resposta aos problemas, e julga que apenas pode haver um vencedor, não acreditando em situações em que ambas as partes possam vencer. Ora, destruir um sistema de consenso internacional é perigosíssimo”, concluiu.

Tem inteira razão e todo o patriotismo doentio surge por se acreditar que só pode haver um vencedor. É uma mentalidade desastrosa, ditada ora pela pecha da insegurança, ou, o outro polo do problema, por camuflados interesses económicos que escavam a vantagem na debilidade do outro.

Ora o homem é sobretudo o único animal que sabe antecipadamente que vai perder. Em nenhum cemitério se ouvem proclamar vitórias. É inapelavelmente democrática a terra que acolhe e transforma em estrume todas as caganças. As patrióticas, as da patranha económica, as de casta. E constata-se: nenhum crânio tem os olhos em bico, ou os lábios grossos, ou um nariz caucasiano. Face à morte somos todos igualmente perdedores.

Por isso sustentamos que o homem é por natureza um refugiado. E que o seu valor moral não está tanto nos traços da sua identidade como na dimensão da sua hospitalidade. A identidade é aliás inúmeras vezes um princípio de inconsistência que pode fazer germinar o Mal, ao esquecer que todos os seres humanos são criaturas transfronteiriças e pertencem a uma comunidade de diálogo. Porque somos mais semelhantes do que pensaríamos ou desejaríamos. Vou mostrar quanto.

Observo com espanto a mania dos moçambicanos para se julgarem originais. O que decorre de “falta de mundo” e da carência de estudo das “culturas comparadas”; pois até aquilo que antropologicamente consideram irredutível é afinal uma variante de tendências universais.

Por exemplo, a cerimónia do Mapiko é uma Catábase (uma descida ao inferno e volta) invertida (é a figura tectónica que é convocada a visitar os humanos), deslocada da sua função, e fixada por simetria aos ritos da catábase mediterrânea, ou vice-versa – a técnica de inverter especularmente o que recebemos da “vizinhança” é, demonstrou-o Levi-Strauss, o mecanismo comum para a criação das narrativas identitárias e uma das características que estrutura os mitos.

Por exemplo, as relação dos intelectuais com o poder e a “tradição”, o primado do colectivo sobre o individual, o evitamento da crítica e de qualquer pauta de mérito preteridos pela fidelidade política, os processos de ostracismo e os não-ditos, que se verificam em Moçambique, são afinal práticas comuns a todos os países que tiveram revoluções ou abraçaram o socialismo – tão similares nos seus processos que arrepiam, posto julgarmos que as supostas diferenças geográficas e culturais as diferiria. Não.

O primeiro livro que me ajudou a compreender a sociedade moçambicano é de um iraniano, Daryush Shayegan, exilado em Paris por causa dos Ayatollas. Intitula-se O Olhar Mutilado/Esquizofrenia Cultural: países tradicionais face à modernidade e o exame que faz sobre o comportamento dos intelectuais, das classes médias e da burocracia no seu país na década da revolução decalca o que se observa em Moçambique. Fica-se estarrecido, é só mudar os nomes, os comportamentos são idênticos.

Depois li o Pensamento Cativo, do poeta polaco Czeslaw Milosz, que radiografa os “intelectuais orgânicos” na Polónia durante o fechamento do regime. Quem imaginaria que seria outro livro vital para quem quiser conhecer, a partir de uma aparente e absoluta exterioridade, esse tecido social moçambicano?

Também o livro de José Gil, Portugal – o Medo a Existir, elucida aspectos da “alma” moçambicana. Vários conceitos que José Gil ali explana, entre os quais o da «falta de inscrição» como um fatídico corte entre a especulação e a prática, o vínculo e a realidade, conhecem uma clara correspondência na clivada paisagem moçambicana.

Li agora Itinerário de Octavio Paz, e o que ele diz sobre o México permite fazer uma autorreflexão mediatizada em Moçambique, sem estar inquinado pela emocionalidade. E foi neste livro que encontrei esmiuçado um hábito que se aplica como uma luva ao chão moçambicano: a suspicácia, a marca de carácter de quem vive corroído pela suspeita. Define Paz: «o fundo psicológico desta propensão a suspeitar é a suspicácia», a qual é, evidentemente, a expressão de um sentimento de insegurança.

Quando cheguei ouvia dizer, «Ah, esse gajo é muito desconfiado, é da Zambézia!». Em Moçambique vive-se rodeado de gente da Zambézia! Depois reparamos que tudo se justifica com a «mão externa», e que a acusação chega de gente de todas as províncias contra todos os outros, portanto ou inferimos que afinal macuas, macondes ou rongas são zambezianos disfarçados ou então concluímos que a suspicácia está espalhada.

Refere Paz, a suspicácia é uma irmã da malícia e ambas são servidoras da inveja. Não quero chegar tão longe. Todavia, já me preocupa o que diz a seguir: «todas estas más paixões tornam-se cúmplices das inquisições e das repressões.»

Tenho dificuldade em achar a utilidade para a persistência da suspicácia num país novo, se afinal o sentido da história somos nós quem o produzimos e se o fazemos podemos desfazê-lo. Desconfiar da própria sombra, se ganharíamos mais em conviver com ela? Todavia, é um facto que, em todos esses países que os livros retratam, a suspicácia é um instrumento patológico para a manutenção do poder e a mania de “cadastrar” os outros é um seu (d)efeito.

Sendo a equação a mesma: quanto mais patriótico mais paranóico.

Pode, entretanto, a falência do “multilateralismo” ser igualmente interna, se desconseguimos de aceitar o outro como um enriquecimento nosso. Cresce aí a idiotice e violência étnicas. Porque, repito, na verdade não há estrangeiros no mundo, somos todos refugiados.

E mais do que ser nacional ou não, o que interessa é avaliar o que cada um faz para melhorar o sítio em que vive.

4 Out 2018

Viver nos dias

Dos dias

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap] de repente o que fazer com as palavras, nós que teimosamente nos agarramos a elas para sobreviver? O que fazer com esses “animais doentes”, como dizia O’Neill? As palavras multiplicam-se, banalizam-se, atravessam fronteiras e indivíduos, movem multidões, espalham-se como papéis perdidos nas indignações diárias que formam agora a nossa vida e que estão ao alcance de um golpe de sofá. De que vale escrever-vos isto, de que valerá ao leitor perder tempo com quem as escreve?

São dúvidas pequenas e problemas irrisórios face ao que nos obriga a existência. Mas são reais, pelo menos para mim. E quando estou quase a perder a esperança e a entrar no poço morno da resignação, eis que surge a salvação, por mais provisória que seja: através do meu amigo Nuno Costa Santos descubro um tesouro vivo de quem sempre acreditou no poder da escrita com ligação directa ao coração: o magnífico Portal da Crônica Brasileira reúne alguns dos mais competentes praticantes desta modalidade  – este compromisso entre o coração e a razão, entre o jornalismo e a literatura. Uma equipa de luxo, que junta, entre outros, Rubem Braga, Clarice Lispector ou Otto Lara Resende. São grandes olhares sobre as pequenas coisas, porque é aí que nos entendemos e somos iguais. Permitam-me, como elogio e defesa, este excerto de uma crónica de Antônio Maria, jornalista e letrista extraordinário, e que escreve aqui em 1959, sob o título Era um homem muito bom : « O bêbado sorri e cobre o rosto com as mãos. A mulher o abraça, num carinho, e beija-lhe o peito. Vem uma velhinha e pergunta alguma coisa. A mulher lhe explica que aquele bêbado ela encontrou num bar, mas é um homem muito bom, diferente dos outros, e ela o vai levando para sua casa, onde lhe pedirá que fique, para sempre».

Há tanto nesta possibilidade de ternura e compaixão que oferecem as palavras, espécie de pequenos Prometeus a desafiarem o que nos foi atribuído. O meu poeta, Philip Larkin, perguntou em verso: « Onde podemos viver senão nos dias?»  Em lado nenhum. E é daí, de dentro dos dias, que escrevo e quero escrever. Talvez seja pouco mas temo que seja tudo.

Gonçalo

Desconfio de todos os que afirmam não terem heróis. Parece-me contrário à natureza humana, que vê em feitos e exemplos alheios uma possibilidade singela de escapar à mortalidade que a atormenta. Pela minha parte não tenho vergonha de dizer que tenho heróis, e que são vários. Um deles será justamente homenageado no próximo dia 6 de Outubro, no FOLIO – Festival Internacional de Literatura a decorrer em Óbidos, aqui em Portugal. Chama-se Gonçalo Ribeiro Telles e é para mim e muitos um exemplo de coragem, generosidade, coerência e modéstia. Cometeu o pecado de ter razão antes do tempo e ao longo da sua vida – que já perfaz 96 anos – foi pacientemente assistindo aos outros concordarem com o que sempre defendeu. Conheci-o no final da minha adolescência e imediatamente fui fascinado pelo humor, sensatez e sentido de serviço que naturalmente dele se desprendia. Fiquei seu discípulo e correlegionário. No próximo dia 6 lá estarei a dar o meu testemunho, certo que nunca poderei dizer como lhe estou grato – como todos lhe devemos estar gratos. Gosto de ter heróis assim.

3 Out 2018

Livros | Fernando Rosas revê e publica “A Primeira República. Como Venceu e porque se perdeu”

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] I República (1910-1926) foi “ferida de uma crise de legitimidade estrutural” que a tornou “presa fácil da conspiração das direitas antiliberais”, afirma o historiador Fernando Rosas, na obra “A Primeira República. Como Venceu e porque se perdeu”.

“A República do Partido Republicano Português, ferida de uma crise de legitimidade estrutural e mergulhada na instabilidade política e financeira, tornar-se-ia presa fácil da conspiração a montante das direitas antilberais”, escreve Fernando Rosas, na obra que é apresentada na próxima quarta-feira, em Lisboa, pelo historiador António Reis

“A Primeira República. Como Venceu e porque se perdeu” é uma nova edição do texto publicado em 2010, no contexto de uma obra celebrativa do centenário da República – “1910 a Duas Vozes” -, também com a chancela da Bertrand Editora.

“O presente trabalho foi devidamente atualizado e teve novos desenvolvimentos, sobretudo no tocante à análise da I República no pós-guerra [1914-1918], ou seja, dos fatores que conduzem à sua derrota em 1926”, com o golpe militar liderado pelo general Gomes da Costa, escreve o historiador.

Para a nova publicação, contribuíram “as condições pouco propícias em que apareceu a edição original, ‘subsumida’ num livro com a contribuição de outro autor com uma abordagem da I República substancialmente diferente” da que Rosas partilha, justifica.

Rosas decidiu também rever e voltar a publicar o texto numa altura de “tempos sombrios, como os que se abeiram da Europa e do mundo”, sugerindo que este livro pode “ser lido sob essa perspetiva”.

Para o catedrático jubilado, “a crise histórica dos sistemas liberais do Ocidente, aquela que vivemos potenciado pela época neoliberal do capitalismo, parece tender para a emergência de um novo tipo de regimes ‘pós-democráticos’, autoritários, populistas e xenófobos”.

Defende o historiador que “os paralelismos com a primeira grande crise dos sistemas liberais nos anos 20 do século passado, e com o seu desfecho trágico na época dos fascismos e da guerra são, pois, incontornáveis, apesar das importantes diferenças de contexto histórico”.

Prossegue Rosas: “Tudo nos convoca a olhar para essa História recente a fim de ajudar a perceber o que se passa e o que se poderá vir a passar”.

“Na primeira metade dos anos 20 do século passado, a incapacidade de o liberalismo oligárquico se democratizar política e socialmente, ditou a incapacidade de a República reunir forças que a defendessem contra o golpe iminente de onde viriam a brotar a Ditadura Militar [1926-1933] e o Estado Novo”, que se prolongou de 1933 a 1974.

A obra divide-se em “três partes distintas”, todas com o objetivo de “trazer um outro ponto de vista às controversas levantadas por alguma historiografia neoconservadora que se redescobriu nos ataques com que, ao tempo, a propaganda ‘estado-novista’ procurou demonizar o republicanismo”.

Na primeira parte da obra, Fernando Rosas situa a crise da monarquia constitucional no contexto “da crise mais geral que começa a minar os sistemas liberais oligárquicos europeus” na passagem para o século XX.

A segunda parte trata “o republicanismo como ideia e como força social e política mobilizadora no mundo urbano”, ou seja, aborda a base social da República, “a pequena burguesia urbana, liderada pela elite intelectual e as profissões liberais”.

A terceira parte destaca a obra republicana “que se sobrepôs a instabilidade governativa e aos crónicos constrangimentos financeiros” – cite-se laicização do Estado, a separação do Estado da Igreja, o registo civil, o divórcio e a reforma universitária.

A obra “A Primeira República. Como Venceu e porque se perdeu” é apresentada esta quarta-feira em Lisboa.

2 Out 2018

Exposição | Book – Hop vai mostrar livros de artista na Casa Garden

[dropcap style≠‘circle’]B[/dropcap]ook – Hop é o nome da primeira exposição de livros de artista em Macau. Com curadoria de Paulo Côrte-Real e Jorge Simões, a iniciativa pretende dar a conhecer o livro de artista enquanto obra de arte independente. A mostra é inaugurada a 25 de Setembro na Casa Garden.

A primeira exposição de livros de artista em Macau vai ter lugar a partir do próximo dia 25 na Casa Garden. O evento conta com a curadoria do fotógrafo português Jorge Simões e o designer local Paulo Côrte-Real.
O projecto pretende divulgar “acima de tudo, o livro de artista enquanto obra de arte, isoladamente” começa por contar o co-curador Paulo Côrte-Real ao HM. 
Na Book – Hop vão estar livros com um máximo de 300 edições. Côrte-Real explica: “Consideramos que este número de exemplares de um livro ainda se pode integrar dentro do livro de artista”. São obras produzidas pelos próprios autores que “não são comerciais”. A ideia é que, “esse livro, mesmo que tenha 300 exemplares, possa ser considerado uma obra de arte assim como acontece com as serigrafias ou com a fotografia que são produzidas em séries limitadas”, acrescenta. No entanto, aqui, em vez de a obra ir para a parede, como uma pintura, vai para uma mesa e é um livro.
Além de pretender dar a conhecer o objecto, a Book – Hop pretende ainda que esta obra abra portas para outros trabalhos dos artistas incluídos, ou seja “por via dessa obra de arte conhecemos os artistas que estão por detrás deste livro e o que estão a fazer”, completa o curador.

Toque delicado
Mas, explorar um livro implica uma relação com o mesmo, uma interactividade que, tratando-se de uma obra de arte, requer certos preceitos. Na Casa Garden vão estar livros protegidos e outros que podem ser devidamente manuseados e prontos a serem explorados. 
“Há artistas que não querem que os livros sejam manuseados e então temos de os colocar dentro campânulas”, refere o curador. No entanto, a maior parte dos livros expostos vão ter os seus conteúdos acessíveis. “Vamos ter umas luvas, o público vai interagir com a obra e as pessoas folheiam”, explica.
Entre os exploráveis e os intocáveis a exposição vai contar com cerca de 50 obras.

De Coimbra para Macau
Paulo Côrte-Real assume a curadoria com Jorge Simões, este último o mentor de uma primeira edição do Book – Hop em Coimbra no Centro de Artes Visuais. Depois da edição em Portugal, os curadores escolheram uma série de livros que queriam trazer a Macau. Por cá, o também designer, escolheu artistas locais para o evento. “O meu critério aqui teve como base o conhecimento que tinha do trabalho dos artistas locais”, conta Paulo Côrte-Real. 
Talvez por isso seja natural que a representação de artistas chineses não tenha correspondido às expectativas do curador. “Conheço um bocadinho menos o percurso dos artistas chineses de cá, daí não estarem tão presentes. Portanto, convidei aqueles que sei que têm trabalhos nesta área”, diz.
Entre os artistas locais vão estar expostos livros de Rui Rasquinho, Carlos Marreiros, Konstantin Bessmertny, Francisco Ricarte e João Miguel Barros. “Acho que consegui ir buscar uma boa amostra e que junta o trabalho de ilustradores, artistas plásticos, arquitectos e fotógrafos”, comentou satisfeito. 

De auxiliar a estrela
O livro de artista não é uma novidade e tem sido um meio adoptado pelos próprios, normalmente para acompanhar as exposições. Mas, cada vez mais, este objecto se assume como independente, como obra por si só, ao ponto de integrar actualmente um lugar de destaque dentro do universo da arte contemporânea, considera Paulo Côrte-Real. “Por exemplo, agora no Porto há um galerista, o Mário Centeno, que está a abrir uma galeria onde vai dedicar um espaço só a livros de artista”, conta.
Na Europa, o livro de artista é uma forma de expressão a que muitos criadores se dedicam e que motiva a atenção das galerias. Em Macau, o Book – Hop é o primeiro evento deste género. “Os artistas até têm os seus livros porque acabam por os ir construindo à medida que vão fazendo o seu trabalho mas não imaginam muitas vezes que isso também possa ser exposto”, aponta.
Além do público, esta exposição pretende ainda chamar a atenção para os próprios criadores, sendo que “as pessoas vão começar a ter mais cuidado e, quando fazem os seus esboços, vão pensar que também podem fazer daquilo uma obra de arte”, refere o co-curador.
Mas há excepções por cá: “O Rui Rasquinho já sabe perfeitamente o que está a fazer e já faz isso há algum tempo como se pode ver nos trabalhos que tem apresentado nas últimas exposições que fez”. 
Outros artistas fazem o livro como suporte para as exposições mas ainda não o consideram, muitas vezes, uma obra. “O objectivo da exposição também é esse, mostrar aos artistas o que pode ser e incentivá-los a fazer”, sublinha.
Esta é a primeira iniciativa do género mas a ideia é que  não seja a única. “Vamos agora mostrar e dar a conhecer e se tudo correr bem, vamos continuar a promover o livro de artista com outros eventos “, rematou Paulo Côrte-Real.

19 Set 2018

Livro inédito de poemas de Vasco Graça Moura, quatro anos após a sua morte

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uatro anos após a morte do poeta e ensaísta Vasco Graça Moura, a Quetzal edita um livro inédito com poemas para fados intitulado “A puxar ao sentimento: Trinta e um fadinhos de autor”.
Com a publicação deste livro, que chega amanhã, dia 14, às livrarias em Portugal, a editora pretende perpetuar a memória de “uma das grandes vozes da poesia e da literatura do nosso tempo” e, ao mesmo tempo, homenagear o fado, contribuindo para “abrir (ainda mais) as suas portas”.

“Marcados pelo seu génio melancólico e pleno de ironia”, este livro inclui fados inéditos de Vasco Graça Moura, que já havia escrito alguns fados para intérpretes como Mísia, Kátia Guerreiro ou Carminho.

Vasco Graça Moura foi um autor de vasta obra poética, ensaística e ficcional, bem como tradutor e divulgador das literaturas clássicas, como é o caso das “Rimas” de Francesco Petrarca, “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri, “Os Sonetos de Shakespeare”, ou as “Elegias de Duíno e Os Sonetos a Orfeu”, de Rainer Maria Rilke, todos editados na Quetzal.

Vasco Graça Moura foi galardoado com o Prémio Pessoa (1995), o Prémio de Poesia do Pen Clube (1993), o Grande Prémio de Poesia da APE (1998) e o Grande Prémio de Romance e Novela APE/IPLB (2004). Em 2007, recebeu o Prémio Vergílio Ferreira e o Prémio de Poesia Max Jacob Étranger.

13 Set 2018

A ferida tornou-se doença

Horta Seca, Lisboa, 27 Agosto

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]cerca da primeira leva de selecionados para o Prémio Oceanos, aforismo nada novo e não se fala mais nisso: nome reconhecido na espuma vai mais longe que mil qualidades.

Horta Seca, Lisboa, 28 Agosto

Rodopiando no vórtice, por todo o lado encontro o tempo, agora mesmo nesta barata estrebuchando nas escadas rolantes do metro. Logo na inutilidade dos últimos movimentos outrora ágeis percorrendo o nada. Depois, vem lá do começo dos tempos para labutar decompondo o lixo que fazemos sendo. Ou vice-versa.

Horta Seca, Lisboa, 29 Agosto

«Histórias para meninas distraídas», assim se chama, mas estes poemas da Liliana [Ribeiro] estão prenhes de fina atenção. Ainda não falara do pequeno volume, dos iniciais colecção Mão Dita, aguardando inutilmente a oportunidade de lançamento na capital, que a norte já se desmultiplicou como quem semeia. Os versos misturam, qual biscoito de mel com gota de estricnina, um modo de ser gentil e duro. Infância, «adultância» e outras ânsias, mas também amor, morte, a palavra e o maior dos panos de fundo: o feminino. Ah, e o tempo, esse devorador, que merecia «Cartão Vermelho»: «Ninguém nos tinha dito que o tempo a favor de todas as possibilidades acabaria. Acabaria o ciclo, o ensaio, a diversão, a determinação instruída. A meta fixa fora sempre um truque, um sinal para as mãos se juntarem no banco do autocarro e assistir gratuitamente ao concerto no estádio municipal. Tudo o resto, desvarios, distrações contra as árvores iguais.» Acabado de ler o manuscrito, outro cuja publicação demorou o irrazoável, anotei: a ferida como doença. Tanto fica por dizer.

Horta Seca, Lisboa, 30 Agosto

Supostamente, qualquer computador se liga, enigma palpitante, ao coração do átomo onde arfa Cronos comedor de filhos e senhor de todas as colheitas, mesmo as mais sangrentas. Por que raio ou significado os números do canto inferior direito, do meu pêcê, irmanados pelos dois pontos, manetas de ponteiros, cavalgam muito além do comum? Induzem em erro, mas ajudam a cumprir. Contudo, chegar antes continua sendo alta de pontualidade. Marcará o kairos o das oportunidades que, por ver mal as horas, fui perdendo?

João Villaret , Lisboa, 1 Setembro

A querida Daniela [Gomes] desatou a compor uma boa série de «Covers» (ed. Paralelo W), i.e., ou seja, quer dizer. Recolheu fotografias antigas e anónimas sobre as quais pintou correspondências com versos de canções díspares e significativas. A que se reproduz na página, por exemplo, corresponde aos três últimos versos de Sandy Denny, acolhida nos Fairport Convention. Para sublinhar que não sei para onde o tempo se escoa, incluo aqui mais uns quantos e ponho a canção a rodar (vai passar a constar do karaokabysmo, cancioneiro selvagem das noites deste verão de mentirinha). «Across the evening sky, all the birds are leaving/ But how can they know it’s time for them to go?/ Before the winter fire, I will still be dreaming/ I have no thought of time// For who knows where the time goes?/ Who knows where the time goes?// Sad, deserted shore, your fickle friends are leaving/ Ah, but then you know it’s time for them to go/ But I will still be here, I have no thought of leaving/ I do not count the time// For who knows where the time goes?/ Who knows where the time goes?» A Daniela, fazendo uso de extrema e melancólica sensibilidade, isolou as figuras com trabalho sobre a cor que inventa carnes e matérias e prolonga as melodias. Isolou o humano, retirou-o das suas circunstâncias, para o fazer voar por sobre infâncias, desencontros, sonhos, ramos, rochas, corpos e casas. E aquele não lugar entre a luz e nenhures. Estamos sós com a música. Cai-se com facilidade em vários, por isto ou aquilo, olhar ou situação, detalhe ou conjunto, mas prendi-me a este da explosiva leitura do fulgor tendo por companhia as nuvens. Sei bem as razões.

Horta Seca, Lisboa, 3 Setembro

Tão dolorosamente belas são as imagens do Museu Nacional do Brasil ardendo, no seu aniversário! A estatuária que vigia, do telhado, perdeu terceira dimensão, são meras sombras face ao combate perdido, cegas do horizonte perdido, engasgadas pelo fumo tóxico da memória livre das ciências, talvez devessem deixar-se cair com o estrondo seco do escândalo. O gato embalsamado morrerá de vez ou sobra-lhe ainda hipótese de roçar alguém algures? Quantas mortes ali vivas voltarão a morrer à mão da estupidez impune? A múmia de Amon, o gajo de Atacama e o acocorado de Aymara e cada esqueleto ainda sendo ali poderiam levantar-se em grito para atormentar consciências. Bendegó, o meteorito vai resistir a estas brasas para continuar aceso na memória da incúria criminosa. A beleza é efémera ou não seria, razão maior para a admirar. E conservar. Ferida obscena, esta imagem da barbárie, servindo ideologia sanguinária que prefere a morte, na vez do humano que pulsa em cada migalha de museu. Que quotidianamente aceita sacrificar no altar do lucro a cultura, por dispensável, gratuita, inútil. Experimento em cada museu coração que pulsa. Pode até ter sido erguido sobre ideias gastas, solúveis na espuma da raiva, mas uma única delas justifica seiva e pulsação: fotossíntese. Falta-nos – cada vez mais – o ar.

Santa Bárbara, Lisboa, 5 Setembro

Vinte e cinco anos depois, continuo trocando os pés pelas mãos, incapaz de te dar o horizonte que merecias, tão aquém do possível que até dói. Nem poema consigo novo. «Os teus braços, afinal tu/ como sítio abrangente (a floresta)/ lugar panorâmico (o mar em fundo)/ onde me recolher/ sem palavras/ precisei delas gastei-as para chegar/ a ti/ despia-me já choroso (o mar em mim)/ e depositava-me/ massa desprendida solta de gordura e afecto e/ ossos/ nos teus abraços de estátua vibrante/ ora cama repousante/ ora colo ofegante/ soluçante, eu e os pensamentos/ ardendo à nossa volta/ incendiados pelo resto incandescente/ das palavras caminho/ os teus cabelos cobrem-nos de mundo/ aceitaste/ aceitaste-me/ os teus olhos húmus convidam à sementeira/ não terá sido por isso/ o desespero encontrou a intimidade/ continuo os soluços/ pois deles se soltam/ dançando/ as estrelas/ da já noite/ até que a tranquilidade/ por vida praça que rasgaste / na pele do promontório (a floresta)/ me acolheu desfeito/ não precisei da manhã para amanhecer/ ou de perder os verbos (a nuvem)/ para me erguer estendido/ na tranquilidade/ quedo tolhido fiquei/ já que continuei a vir pelas palavras caminho/ para repetidamente / morrer (em ti)».

6 Set 2018

IIM | Livro que homenageia Carlos Coelho lançado dia 12

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Instituto Internacional de Macau (IIM) lança no próximo dia 12 deste mês o livro “Úi di Galánti”, em homenagem ao macaense Carlos Coelho, falecido em Janeiro deste ano. O livro, que conta com o apoio da Fundação Macau, contém textos em patuá do próprio Carlos Manuel Coelho, que era conhecido no seio da comunidade pela alcunha “Néu-Néu”. De acordo com um comunicado do IIM, “considerando a precariedade do patuá e a escassez de (bons) escritos nesse idioma nativo de Macau, o IIM recolheu os melhores textos para um apropriado registo do doce linguajar do crioulo português de Macau”. Além disso, a sessão de apresentação do livro constitui também “uma homenagem póstuma a Carlos Coelho, figura singular entre a comunidade macaense”. “A maioria dos textos foram extraídos de publicações da conta de Carlos Coelho no Facebook que a família do extinto graciosamente cedeu para reprodução. Igualmente, o Partido dos Comes e Bebes de Portugal foi também pronto a autorizar a transcrição de vários artigos do ‘Néu-Néu’ que tinham sido publicados na sua revista”, explica o comunicado. A sessão de lançamento acontece no jardim de infância D. José da Costa Nunes às 18h.

4 Set 2018

Ano Novo Chinês | Instituto Cultural publica livro de António Pedro Pires

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Instituto Cultural (IC) anunciou a publicação de um livro de António Pedro Pires sobre as festividades Ano Novo Chinês, festividade chinesa responsável pela maior movimentação de pessoas todos os anos para o encontro com as suas famílias. De acordo com o IC, o ‘Livro Festividade do Ano Novo Lunar em Macau’ foca-se em três temas principais: calendário lunar, celebração do Ano Novo Lunar e culinária. “O autor analisa a marcha da humanidade desde a tomada de consciência do tempo e da sua medição até à invenção do calendário e ao aparecimento dos relógios”, pode ler-se num comunicado oficial. António Pedro Pires procura explicar o papel que as religiões chinesas (taoismo, budismo, confucionismo e culto dos antepassados) têm nos rituais que antecedem a festa. Por fim, “a veneração dos antepassados”, através da culinária e da “preparação do jantar-reunião de família” é também retratado nesta publicação.

 

 

3 Set 2018

A voz do vidro

Público, 14 Agosto

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omo resistir ao estilhaçar de ironias causado pela notícia da queda de um visitante na escultura de Anish Kapoor, Descida para o Limbo (foto na página de Filipe Braga)? «Serralves está a acompanhar a situação clínica do visitante italiano, com cerca de 60 anos, que sofreu ferimentos quando caiu naquela escultura.» Podia a frase pertencer a conto do (tão meu) Mário-Henrique Leiria. O círculo negro no chão cumpre a sua função de perturbar com enganadora maneira o chão que pisamos. O escultor explora o vazio e procura pelos meios ao seu alcance mexer com a nossa percepção, em busca de outros lados, espaços negativos, chama-lhes. Não têm que ser físicas as armadilhas da arte, mas em servindo para alguma coisa, além da salvação do artista, há-de ser esta de se meter nos interstícios das coisas, ampliando-as. Ou encolhendo-as ao mínimo de uma noção. Limbo é um subúrbio do céu, construído para abrigar aqueles, justos e crianças, que não foram baptizados. Na teologia católica, segundo Borges, ramo da literatura fantástica.

Facebook, nenhures, 16 Agosto

Voz assim não se calará nunca. Por efeito de contiguidade, dei por mim a pensar que escultura poderia Kapoor imaginar a partir de Aretha Franklin (1942-2018). Orgânicos corredores vermelhos facilitando à superfície deambulações pelas vísceras? A sua voz explorou os côncavos do amor e do sofrimento, o sagrado e o profano, de modos, a um tempo, dilacerantes e prazerosos. Por inteiro, testemunhou um tempo, ou melhor: tempos, que foi capaz de eternizar fundindo-os em áspero diamante. Cai-lhe como vestido brilhante o nome de Lady Soul, ainda por cima baptismo de momentos iniciais. A máquina de produzir simbólico que são os Estados Unidos da América tocou o meu céptico coração com a sua participação vibrante na tomada de posse do presidente Obama. Por causa das coisas, as minhas horas procurarão um qualquer Spirit in the Dark. Aprenderei a dançar com as sombras? «Sure I know I can, I can borrow a smoke/ Why I can sit here all night and tell jokers some jokes/ But who’s gonna to laugh, / Who’s gonna laugh at my broken heart, heart.» Lá estou eu, Drinking Again.

Horta Seca, Lisboa, 17 Agosto

Esqueçamos por ora o momento primordial da escolha. Um editor realiza-se na preparação da obra, retirando do processo grande gozo e não menor ensinamento. Andamos a desenhar uma colecção para acolher os clássicos em duas vertentes, uma de traduções e outra de ensaios. A abordagem gráfica do Miguel [Macedo] pareceu-nos a melhor, para acrescentar um grão de sal ao conservadorismo que se pede. Quisemos descomplicar ao máximo a vida ao leitor, colocando cada expediente ao serviço do texto, que só por si será rico em excepções e notas. Cada detalhe da construção do livro suscita riquíssimo debate.

Não por acaso, e depois de tanto tardar, começamos com As Constituições Perdidas de Aristóteles, na tradução do mano António [de Castro Caeiro]. Uma micro enciclopédia sobre o mundo antigo, que se desdobra também em livro de viagens, carregado de momentos entre a luz e as trevas. «Aos Beócios, a divindade deu a seguinte resposta oracular: “domiciliem-se onde corvos brancos forem avistados”. Logo que viram as aves de Apolo, corvos brancos, pintados com giz por crianças inocentes, a voar em torno da baía de Págasa, ocuparam o local. Mais tarde, os Eólios expulsaram-nos dali e enviaram exilados para o mesmo local. Outros [interpretavam assim o oráculo, dizendo que era] porque o corvo é um animal sem vergonha e indica a proximidade do ocaso ao género humano. Aristóteles, por outro lado, diz que quando uma praga atacou, havendo muitos corvos, os homens capturavam-nos e depois de os terem purificado, punham-nos vivos em liberdade. E ordenavam à praga: “refugia-te nos corvos”». Assim nos fazemos crianças inocentes pintando de branco animais sem vergonha, dos que indicam ao humano a proximidade do ocaso.

Trindade, Lisboa, 20 Agosto

Casos há em que a preparação começa antes. Tive hoje primeiro mergulho em apneia no acervo de Tóssan, esse cometa das artes gráficas, além da escrita humorística e, afinal, um pouco mais, sobretudo contos e alguns poemas. São centenas de páginas, manuscritas na sua maior parte, generosamente disponibilizadas por amigos dilectos. Lição de humildade, este perceber que podemos ser reduzidos a meia dúzia de folhas conservadas pela amizade. O autor tinha planos para a papelada, tropeça-se em tentativas de arrumação, depuradas até ao singelo alinhamento que será a base das fases seguintes. Por ocasião de tais leituras, como que titubeantes, encontramos invariavelmente motivos de espanto. Veja-se este pequeno conto, que ilustra à transparência dias de tactear no nada.

«É preciso ter coragem para partir um vidro.
Nunca parti um vidro, mas sinto que é uma cobardia.
Tive sempre respeito pela limpidez de um vidro.
Tenho a impressão que os estilhaços se insinuariam na minha mágoa.
E depois o vidro tem voz. A voz do vidro é duma musicalidade fria, cortante. Não é só o grito emancipado, mas a multiplicação de gritos ao cair no chão, como se o primeiro protesto não fosse o suficiente.
E quando se pisam os estilhaços – é um longo lamento de rãs sem disciplina.
E depois o vidro quando quebra deixa uma cicatriz fosca cúbica que risca a noite ou o silêncio do dia.
Se o vidro não protestasse com violência, talvez as montras não fossem de vidro. A voz do vidro deve ser o guarda do próprio vidro. E quando tornasse a passar pelo lugar onde esteve o vidro, ainda por substituir, sentiria, quem sabe, os olhos doerem por não ver e a certificação do tacto gasta de tactear no nada.

Os estilhaços são o testemunho da agressão.»

Horta Seca, Lisboa, 15 Agosto

Pouco importa que seja este mês pulverizado, cheio de ausências brancas e brandas vontades. Tumultuosa ou plácida, a gestão corrente obriga-nos a trocar o essencial por um esmagador acessório. Há cobranças por fazer, pagamentos atrasados, gritos presos na garganta, impostos ameaçadores, formalidades por cumprir, direitos a pedir e outros a ceder, projectos a definir em papel, avaliações a ponderar, arrependimentos avulso, decisões tomadas e outras adiadas, impaciências por tolher, explicações que tardam, impressos a preencher, regras e mais regras de um negócio que me cheira ser dos mais estúpidos. O telefone, de súbito, cresce feito instrumento de tortura. Um único email estraga o dia por completo. Uma reunião que dura há semanas. E agora mesmo a suposta ajuda revelou-se obstáculo. Dia que se preze tem, pelo menos, uma crise, um buraco, quando não inferno, limbo.

29 Ago 2018

Entrevista | Sara F. Costa: “Os poemas são outras peles”

“A Transfiguração da fome” é o quinto livro de poesia de Sara F. Costa. A apresentação da obra escrita entre Portugal e o oriente está marcada para o próximo dia 28 e vai ser feita por António Graça de Abreu e Fernando Sales Lopes

[dropcap]P[/dropcap]orquê “A Transfiguração da Fome”?
Este livro é publicado na sequência de uma menção honrosa no Prémio de Poesia Soledade Summavielle atribuído pelo Núcleo de Artes e Letras de Fafe (NALF). A palavra “transfiguração” está comumente associada a um episódio bíblico mencionado no primeiro testamento, e que ocorre numa montanha conhecida como Monte da Transfiguração, onde Jesus aparece em forma de brilho. Na doutrina cristã, o facto de a transfiguração se dar no alto de uma montanha representa o ponto onde a natureza humana se encontra com Deus: o encontro do temporal com o eterno, com Jesus a fazer o papel de ponte entre o céu e a terra. Na mitologia chinesa taoista, é o homem que faz a ponte entre a terra e o céu, deslocando a divindade para o humano. Seja como for, o livro não é propriamente uma reflexão de pendor religioso, apenas se aproveita deste sentido para logo acrescentar uma viragem com a introdução da “Fome”. A “fome” pode ser a fome dos mais fracos, pode ser a fome mundana da ambição, pode ser o desejo. Transfigurar a fome em poesia é apenas uma tentativa de atribuir um sentido divino a tantos sentimentos mundanos que tenho.

Sempre achei que tanto a poesia como o meu fascínio pelo Extremo Oriente se relacionavam.

Existe algum teor religioso ao longo da obra?
Não, eu diria que o meu instinto, ao utilizar estes termos, foi mais irónico. Ao longo do livro os poemas abordam certos valores tidos como religiosos como o nascimento, a verdade, a fé e a esperança, acho que se quisermos interpretar algo timidamente religioso aqui, é possível, mas é possível interpretar exactamente o oposto, o mundano e existencialista, o estado de coisas em que se espera para sempre por uma ausência infinita.

Foi escrito entre Lisboa e Pequim. Como foi o processo de escrita deste livro?
Há uma diferença de tonalidade entre a primeira parte e a segunda parte. Recebi umas observações do António Graça Abreu que me disse que gostou sem dúvida mais da segunda parte porque, escrita num momento em que já estou a viver em Pequim, sente-se que os poemas respiram e falam sobre este espaço geográfico. Como historiador e especialista em estudos chineses, compreendo o interesse dele por esta faceta. A primeira parte foi escrita em Lisboa ao longo de vários meses. Não tenho um processo muito específico. Sento-me e escrevo. Escrevo no computador ou escrevo à mão se não estiver com o computador. Há alguns momentos no livro que são muito intimistas e outros que se focam mais no tema da transfiguração. Acho sempre que o desafio é falar tão especificamente de algo que é meu de tal modo que se torna identificável porque, por muito que possamos passar por coisas particulares, há sempre forma de fazer com que os outros compreendam e se crie uma empatia entre o que está escrito e quem lê.

Como é que sente a influência asiática no que escreve?
A segunda metade do livro foi escrito entre Macau, Coreia do Sul e Pequim. É aí que se sente mais a influencia asiática nos meus poemas. Muitas vezes são apenas menções a lugares, outros poemas são uma reflexão sobre a minha aculturação. Sempre achei que tanto a poesia como o meu fascínio pelo Extremo Oriente se relacionavam, na medida em que o que me faz criar é realmente encarnar diferentes papéis, deslocar-me daquilo que eu sou para aquilo que eu posso vir a ser depois de passar por determinada experiência. Os poemas são outras peles e experienciar outras culturas é também ter a capacidade de ocuparmos peles diferentes das nossas em todos os níveis, no sentido social, no sentido cultural, no sentido linguístico, etc.

“A Transfiguração da Fome” tem uma nota introdutória de José Luís Peixoto. Porquê este autor?
O que ele escreve nesta nota é muito interessante porque ele fala de uma relação poética entre nós. Gosto sempre de trazer para os meus livros as minhas referências, por isso abro com citações de Yukio Mishima, ou Herberto Helder, ou Al Berto, dependendo do livro. Quando era adolescente cresci muito poeticamente com o livro “A Criança em Ruínas”. Sei que José Luís Peixoto é mais conhecido pela prosa, mas há nele um génio poético inegável e que influenciou muito a minha expressão. Ao falar de uma ligação de quem lê para quem escreve ou de quem escreve para quem escreve, acho que estou a chegar a um nível de meta-narrativa muito pertinente. A maioria das pessoas que leem o que eu escrevo são também muitas vezes escritores. Estas referências são talvez uma forma de celebrar esta espécie de comunidade poética que se gera à volta de livros de poesia. Por outro lado, o José Luís Peixoto tem participado em vários eventos na Ásia. Para a apresentação do meu livro em Lisboa também fiz questão de convidar um poeta que vive em Macau, Fernando Sales Lopes e o poeta e historiador António Graça Abreu, um dos maiores especialistas na cultura e literatura chinesa. Muita gente escreve poesia mas acho que se torna interessante quando temos mais em comum para além da dimensão literária, que é bastante vaga.

Porquê a poesia?
É daquelas questões difíceis de explicar de uma maneira completamente legível. Escrevo desde criança. Não quero entrar em misticismos e dizer que é algo que “nasceu” comigo, mas em simultâneo é um pouco assim que me sinto. Não é uma explicação muito racional. Tenho prazer em escrever e sinto muitas vezes necessidade de o fazer, uma forma de reinterpretar a realidade e dizer: “é isto que eu acho que se está a passar”.

23 Jul 2018

Urgências

Horta Seca, Lisboa, 6 Julho

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ejam minudências, mas com solidez de pedra no sapato. Por mais provas que se façam, nada evita o maravilhamento do livro acabado de imprimir. Só então se revela a sua aura, se acede ao seu espírito. Além do pasmo. Temos controlo total para diminui-lo, mas o imprevisto acontece, por mais testes que se cumpram. O nosso mais recente, «Uma Mancha Chamada Berlim», tem a capa ligeiramente descentrada. Mais, a escolha daquele amarelo para segunda cor provocou uma aflição no Ricardo [Ben-Oliel], pois só lemos as dedicatórias com esforço extremo. Na rede que tece entre as memórias e as palavras estas ligações a nomes são de extrema importância. Estamos fartos de saber que abrir branco sobre o amarelo não resulta. Experimentar sempre, mas já agora para errar diferente. No caso, aceito as imperfeições com bonomia. O descentramento do rosto parece resultar do movimento que a espiral suscita. E os destinatários quase apagados no amarelo ganham doravante a potência do enigma. Neste ofício, a perfeição resulta de estranhos equilíbrios.

Mais uma colecção que não o queria ser, mas conta já com uns cinco volumes, foi iniciada precisamente com «Silêncio», do Ricardo, para contrariar ideias feitas em torno do parente pobre dos géneros literários, o conto. Com o Luís [Taklin], grande criador de infografias, desenvolvemos paginação desafogada, desperdiçando entradas generosas para cada conto, além de pictograma, essa máxima síntese de conceito numa figura, e duas cores no miolo, em papel de toque suave pouco transparente. Queríamos dar máximo conforto ao leitor, uma respiração mais pausada em objecto que revelasse pensamento e cuidado. Na capa, um desenho mais elaborado, com a espessura do baixo-relevo, capaz de sugerir tema ou de piscar o olho, como aconteceu com o espelho em «Da Família». E, desde o início, me agrada a sugestão de parede dada pelas texturas. Um conto pode ser fenda, tijolo, marca em grande muro. No caso de «Uma Mancha…» demorámos a encontrar o tom, mesmo depois de nos termos fixado no óbvio: o tempo. A espiral, onde podíamos colocar (breve) história do universo, chegou tarde, soavam de novo os alarmes das urgências. Este título estava previsto para o mês em que se confirmou a falência, tendo sido o primeiro a ser empurrado pela onda de choque. Não podia atrasar mais, de tão cheio de ícones de relógios e referências ao soberano que nos escraviza.

Sem resultados palpáveis, pretendíamos com o expediente gráfico sugerir unidade, sem vender narrativa por lebre. Afirmar que, por exemplo, as deambulações das personagens do Ricardo eram fruto de uma mesma demanda de identidade, podiam ser lidas como faces, fragmentos de uma mesma viagem pelos lugares e na continuidade. Parte da popularidade do romance resulta da capacidade de nos transportar para algures e aí nos manter tempos infindos. Por ironia, o conto acontece ser demasiado curto para estes dias de não haver tempo para nada. Menos ainda para ler.

S. Luiz, Lisboa, 7 Julho

O Sérgio [Godinho] chamou fechar de círculo a este seu primeiro concerto com orquestra sinfónica. Orquestra Metropolitana de Lisboa e banda, os Assessores, dirigidos pelo Nuno Rafael. Orquestra, sob batuta de Cesário Costa, e piano. Orquestra e arranjos, também do Filipe [Raposo], aquele que desenha paisagens sentado ao piano. Orquestra e pulmão do SG. O palco estava, portanto, transbordante a ponto de nos encher de marés a nós, aos sentados sob o grande candelabro. Com sensível sabedoria, na escolha e alinhamento, nas oscilações entre o sussurrante e o extravagante, na carne acrescentada ao esqueleto das canções, o concerto insuflou. E voou. O gozo contagiante do bloco das cordas, que tantas vezes nos levou às cordas, cantando coros e gingando foi apenas sinal do que por ali se ergueu. Gastámos o resto da noite a discutir que outras canções mereciam ser aumentadas e de que modos e maneiras. Como pedras atiradas à água, as canções continuaram como continuam ondulando em círculos. Abertos, de tal modo que vou ao passado apanhar o que quero para matar esta sede de dizer agora.

«”E coisa mais preciosa no mundo não há”. Falamos de canções, certo? Não vejo maneira de crescer sem elas, miopia minha, que não distingo o longe horizonte sem degrau mínimo, este íntimo à mão de semear. As paisagens que fomos construindo no último século, hesitando ou correndo, sentados no passeio ou comendo alcatrão, seriam impossíveis de percorrer sem estes seres particulares. Chamemos-lhe canções, para facilitar, embora sejam bastante mais do que isso, síntese letal de poder que invoca diamantes e granadas. Não conheço melhor maneira de cruzar ciência e poesia, pensamento e prazer, quotidiano e intemporalidade do que nestes nós que nos acompanham vida fora, por causa do verso estilhaço ou da melodia tatuagem. Os dias deixam-se oxidar, amarelando sensaborões até que a batida nos invade, aquela que sendo de todos parece apenas nossa. E logo Lisboa amanhece. Ou o Porto fica perto. Tão fácil falar de lugares comuns! Lá está, se se tornaram comuns devemo-lo a autores como Sérgio Godinho.

Década após década, SG fez-se gigante construtor de canções que traçaram pontes, ruas e túneis, aliás, mapas entre gerações e géneros, temas e estilos, personagens e imagens. Foram relâmpagos que continuam acontecendo à medida que vivemos, para nos ajudar a perceber a dimensão exacta do que fomos mal o ouvimos, mal ouvimos as canções. Esta arte do Sérgio assenta na peculiar atenção ao que fica do que passa; na raiz mergulhada na experiência pessoal mas de um modo tal que rima com universal; nas coreografias com que a palavra arrasta os ritmos. Nisto e nos enigmas da curiosidade que recolhe, mistura, amadurece e atira. Para voar e nos levar também.»

S. José, Lisboa, 9 Julho

Quando em apuros, volto à música. O flamenco acompanha-me nas idas e vindas ao hospital tornando peregrinante o percurso banal. A imensa noite de S. João da Cruz dedilhada à velocidade da luz, as palavras jorrando de fonte fresca onde Lorca bebe enquanto faz tombar as estátuas. As vozes de Enrique Morente ou Rosalía são visitas das horas.

Horta Seca, Lisboa, 12 Julho

Recebo do José Carlos [Costa Marques] o seu «Uma Voz Entre Vozes», nas Edições Afrontamento, dedicado ao eterno adolescente Cristovam Pavia e tendo a morte por horizonte. São 35 poemas que ajuízam caminhos, causas, lutas, entre o solar tenebroso e o brilho iluminado da noite, que reflectem e celebram a natureza. Com candura. E alegria, mesmo tintada de amargura. «Alegria suprema é estarmos vivos na carne/ Como Larkin, estremecê-la e sentirmos assim// Sentirmos assim a carne habitada Vibrante/Ridente como o sol da manhã lá fora// Entre neblinas devassando o inverno/por entre a erva tépida// Sermos assim alegres na carne Que é onde a vida passa e trespassa/ E onde a somos E onde ela é pro dentro de nós// Vibra também a carne do crucificado A carne do torturado/O estremecer no fim da carne que a doença venceu// Vibra no terror No grito que não chega a gritar Vibra no pânico e exala// Quem nos levará da suprema alegria que vivemos na carne/ Àquela outra liberta da carne Liberta da tortura// Quando nada mais formos Nem carne nem espírito// Apenas Alegria»

Gosto deste modo de, com maiúscula, abrir vale da quase pausa, afirmando assim que o verso pode esconder um outro. Assim descubramos o valor da letra.

18 Jul 2018