Manuel Afonso Costa: “Uma parte da minha alma é oriental”

“Memórias da Casa da China e de Outras Visitas” é o mais recente livro de poesia de Manuel Afonso Costa, lançado ontem pela editora portuguesa Assírio e Alvim. A obra não representa apenas um regresso do poeta às publicações, ao fim de dez anos. É também uma forma de assumir que o Oriente, a China, lhe entrou em casa, que é como quem diz, pela alma adentro

[dropcap]Q[/dropcap]uando é que começou a pensar este livro, a escrevê-lo?
Esse livro surge numa linha de continuidade, de uma poética que lhe é anterior. Não há um momento inaugural em que tenha decidido escrever poemas que obedecem a um determinado critério ou objectivo. Não há um thelos, no sentido de finalidade, de algo que esteja definido à priori. Isso acontece, talvez, no romance, em que a pessoa se senta para contar uma história.

Para começar algo do zero.
Sim. Com a poesia, a pessoa desde que começa a escrever, a determinada altura da vida, não deixa de o fazer e acaba por ir reunindo poemas suficientes para publicar. Não tem de existir uma ruptura, um ponto final e depois o começar de outra coisa. Dentro dessa linha de continuidade, tem de haver o aparecimento progressivo de alguma coisa diferente e nova. Mas deixe-me referir que vai haver um encontro de literatura e filosofia, em Macau e em Lisboa, promovido pelo Instituto Internacional de Macau, onde vão falar da minha poesia, com o tema “O aparecer da China na poesia de Manuel Afonso Costa”. Portanto há uma realidade que aparece, que é a China, sendo que não poderia aparecer apenas a partir dos livros.

Aparece também a partir da sua vivência com a sociedade.
Exacto. Já conhecia a China, teoricamente, já tinha visto gravuras, já tinha lido livros. Já tinha tido acesso à poesia chinesa, há muitos anos, mas nada tem que ver com o choque com a realidade. Este livro fala das memórias da casa na China. Claro que não é a casa onde eu vivi, é uma casa simbólica, é o lugar China, no sentido lato, onde vivi e tive o meu espaço próprio.

A descrição do seu livro fala precisamente da casa enquanto símbolo. Metaforicamente falando, que tipo de casa é esta? É uma casa que alberga a sociedade chinesa?
Em concreto, não. Diria que a minha poesia é muito fenomenológica, está sempre muito ligada às vivências. Foi muito importante vir para o Oriente e entrar em contacto com uma realidade. Esta desafia-nos. Existe a intencionalidade da nossa consciência, mas existe também a intencionalidade quase provocatória da realidade sobre nós. A realidade estimula-nos a reagir. Viver aqui, numa sociedade com um grafismo e arquitectura diferentes… Mas não me refiro só a Macau, embora seja o elemento predominante, porque foi o sítio onde passei os meus últimos anos de Oriente. Fui muitas vezes a Hong Kong nos anos 90 e vivi quase um ano em Zhuhai. Então é todo o conjunto que me estimula. Quando me refiro à casa, é uma casa simbólica. Não é essa casa, com a sua arquitectura própria. Ela é concreta porque está plantada num lugar diferente, um lugar cuja entourage [o que está à volta] é diferente. Refiro-me a uma parte do mundo onde vivi grande parte da minha vida, e a nossa vida é toda feita de casa em casa.

De vivência em vivência.
Vamos deixando nessas casas um bocado de nós enquanto lá vivemos. Ficam ligadas a elas todas as memórias. É em casa que escrevemos (eu pelo menos), amamos, cozinhamos, dormimos. A casa desempenha um papel extraordinariamente rico nas nossas memórias. A casa é opaca, está de alguma maneira fechada, uns afectos abrem-se, outros nem tanto. Ao mesmo tempo, a realidade exterior entra pelas paredes da casa. Se não, viveria aqui como se estivesse a viver em Lisboa ou em Paris. Estamos permanentemente em contacto com uma língua diferente e um grafismo diferente. Uma das coisas que mais me impressionou foi andar meio perdido por certas zonas de Macau, onde são ostensivos e quase histéricos os painéis publicitários mostrados ao exterior. Isso dá uma certa geometria estética, colorida, de luz e caracteres, algo extraordinariamente intenso. É essa realidade que entra em contacto com a casa, que entra dentro de nós. E quando escrevemos ou pintamos, enquanto artistas, damos conta dessa transmigração das realidades.

Disse que este livro é o resultado do que tem vindo a publicar até aqui. A última obra intitula-se “Caligrafia Imperial e Dias Duvidosos”. Passou de uma referência à caligrafia, um elemento muito característico da cultura chinesa, para essa vivência da China. De que forma é que estas obras se interligam?
Têm um ponto em comum. O livro “Caligrafia Imperial e Dias Duvidosos” tem cerca de 17 poemas que publiquei numa revista de cultura, sendo uma réplica literária minha do quadro dos tributários que está no museu em Taipé, uma obra de um imperador chinês do século XVIII. É uma obra chinesa, megalómana, e sensibilizou-me muito, tal como a Cidade Proibida e as Muralhas da China. Depois dou-lhe o nome de caligrafia [ao livro] porque um dos elementos do quadro dos tributários é a caligrafia: há uma gravura e há um texto. Com isso o imperador captou toda a realidade, que não conseguiu captar com os sentidos. Foi uma das primeiras formas de ligação à cultura e sociedade chinesa, e à grandeza da poesia e cultura chinesas. Há uma continuidade porque os primeiros poemas deste livro [Memórias da Casa da China e de Outras Visitas] também foram publicados na revista de cultura, na minha segunda passagem pela China. Estes novos poemas não abordam o quadro dos tributários, mas fazem referência a alguns poetas chineses e à literatura chinesa. O modo de dizer da poesia chinesa é sempre mais sentencioso do que o nosso e esse é um aspecto que me sempre atraiu. É uma poesia despojada, onde as coisas aparecem como se fossem sentenças, mas depois não são para ler à letra. Contém outra realidade e sou sensível a essa ironia muito bem disfarçada e austera da poesia chinesa. Chamei-lhe casa pela simples razão de que agora tenho o direito de me referir a uma casa na China.

Ao fim de tantos anos…
Já tenho uma parte da minha alma que é oriental. Eu já tenho uma casa na China. Acharia pretensioso se dissesse isso em 1994, tendo acabado de chegar a Macau. Passou muito tempo, com tantas experiências, e tendo uma parte da minha vida que ver com esta realidade, posso dizer que tenho uma morada no Oriente.

O livro “Caligrafia Imperial e Dias Duvidosos” foi publicado em 2007, há exactamente dez anos. Porquê esse interregno?
Muitas pessoas me perguntam isso. Creio até que este livro é melhor do que o anterior, e acredito que o próximo venha a ser melhor que este. Houve uma continuidade de escrita, fui apurando, em termos de savoir-faire, que é muito importante. Há uma maneira de fazer, com prática, experiência e continuidade. Não vou ser hipócrita: nunca deixei de ler e escrever. A escrita e a poesia são as maiores paixões da minha vida. Acontece que não paro muito em lado nenhum. Estive em Macau de 1993 a 2000, depois fui-me embora, estive em França, nos Estados Unidos, e desde 2011 vivo em Macau. Perco os contactos, as rotinas. Depois tive duas filhas, fiz o doutoramento, algo megalómano, e não tendo nunca deixado de escrever, fui pondo um pouco de lado as questões mais burocráticas. Isso porque é mais fácil escrever do que publicar. Os livros deveriam aparecer publicados por milagre. Gosto infinitamente mais de escrever e ainda mais de ler.

É também crítico literário. É algo que falta em Macau?
Sim, mas não é só em Macau. Temos de ser justos. Em Portugal a crise nesse domínio é avassaladora. E a poesia está, em larga medida, a desaparecer das livrarias por esse mundo fora. Em França escreve-se e publica-se muito pouca poesia.

Como explica isso?
Há uma tendência clara de uma crise das humanidades, está tudo interligado.  O fim do latim e do grego para mim é catastrófico, e basta ler o George Stein [crítico literário] para se perceber porque é que é catastrófico. Há um desinvestimento nas áreas literárias, e os jornais são um espelho da sociedade. Fala-se da crise, dos números, das taxas. Houve um tempo em que todos os jornais, na sua maioria, tinham suplementos literários. Eu, que era uma pessoa com poucas posses, comprava sempre esses suplementos, que eram autênticos dossiers que tinha em casa. Os críticos eram verdadeiros profissionais, criticavam o que gostavam e o que não gostavam.

10 Fev 2017

Mário Mesquita Borges: “A última Administração portuguesa cometeu muitos erros”

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Mário Mesquita Borges, docente da Universidade Católica e natural de Macau, olha para os últimos anos do Executivo de Rocha Vieira como um período em que prevaleceu a ideia de abandono e em que foram cometidos “muitos erros”. É essa a génese para a falta de preservação da cultura portuguesa que hoje existe, defende. O seu livro, intitulado “Macau, as Últimas Memórias de Portugal”, é lançado hoje

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] seu livro contém a ideia base de que a defesa da língua e cultura portuguesas estão entregues à comunidade macaense, mas que tem sido feito pouco por isso. Como resolver esta questão?
Desde 1999 e previamente, nos últimos anos da Administração portuguesa, houve uma grande falta nesse sentido: garantir que existiam e ficavam cá os mecanismos e instituições para a promoção da língua portuguesa. Isso passa pela comunidade macaense porque é ela que, mais do que ninguém, compreende a confluência de culturas que sempre existiu. Ao nível oficial temos visto que, no que toca ao discurso político [sobre esse assunto), ele existe.

É algo presente em quase todos os discursos, aliás.
Sim, mas sabemos também que se fala muito no contexto da promoção da língua na relação económica com os países de língua portuguesa. Mas uma coisa é a vontade política e outra coisa é o fazer: ainda existe uma grande discrepância entre essas duas realidades. Portugal tem feito muito pouco para ajudar a promover a língua no território. Há o Instituto Português do Oriente, mas poderia ser feito mais. Sabemos das várias condicionantes que existem, mas o problema de base deve-se aos últimos anos da Administração portuguesa. A perspectiva sempre foi de abandono e não de permanência. Faria todo o sentido continuarmos aqui, de forma cooperante, para ajudarmos Portugal e também Macau.

Não houve uma visão de longo prazo.
Houve uma visão de curtíssimo prazo, e estou a ser simpático. A lógica era de debandada, não era de querer deixar uma marca que ficasse e continuasse para as gerações vindouras. E que evitasse, talvez, isto: há alguns anos a comunidade macaense encontrava muita identificação com aquilo que é português. Com a normal evolução populacional, as características portuguesas têm vindo a esbater-se, há uma tendência para a aproximação à cultura chinesa, mas isso é apenas normal.

As associações locais deveriam ter um papel mais importante? Faltam apoios financeiros e a existência de uma maior estrutura em termos de associativismo?
Era positivo se houvesse isso. Sei que são feitas algumas iniciativas por parte da Associação dos Macaenses e outras instituições. Mas deveria haver uma filosofia de conjunto mais firmada, sem tantas acções esporádicas. Esse tipo de acções poderiam ser feitas com apoios vindos de Portugal. Esse papel poderia ser desempenhado pelo Instituto Camões, por exemplo, ou pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Há um problema de liderança das associações locais, não há novos rostos e parece não haver gente interessada em dirigir estas entidades. Este também pode ser um entrave a esse trabalho de preservação? Como explica esta falta de interesse, numa altura em que a comunidade portuguesa até regista um crescimento?
Isso é a volúpia da urbe e também falo disso no meu livro. Embora haja muita vontade, esse papel das gerações mais antigas é fundamental para a renovação. Contudo, e por muitas acções que sejam feitas, se não há uma vontade manifesta por parte das gerações mais novas, torna-se difícil impor. Tem de existir uma política de atracção e não de imposição. Só que voltamos ao que já disse: se não há um manifesto de interesse, se não há algo atractivo para as gerações mais novas, para encontrarem essa identificação com a cultura portuguesa… Li há uns dias que em 2016 se comemorou o centenário de Benjamim Videira Pires. Foi uma figura muito importante para a cultura do território. Ao nível de instituições locais, pelo que li, a data passou quase despercebida. Isso é um exemplo do que se passa.

Verifica-se também um quase desaparecimento da comunidade macaense da vida política, dos órgãos de decisão. Seria importante também para garantir esta preservação da cultura?
Esse é um problema de base. A identificação com a comunidade portuguesa já não é tão grande. Logo, aquela permanência da identidade macaense está quase em perigo de se desvanecer, infelizmente. A maioria das pessoas tem dificuldade em ver que os ganhos serão muito maiores se defendermos algo com características muito especiais de Macau, e esses ganhos seriam maiores para ganhar mais protagonismo, para se garantir que se conseguiriam depois cargos de maior decisão. O facto de termos consciência de que temos uma cultura enriquecida permite-nos ter uma mais-valia para alguém que tem só uma perspectiva. E Macau, como cidade intercultural, e mais cosmopolita, teria só a ganhar com isso.

No seu livro diz que o problema da falta de preservação da língua e cultura reside no facto de as “entidades governativas optarem por um encaminhamento duplo das políticas actuais”. Em que sentido?
Há um discurso oficial, mas depois não se faz o suficiente em relação ao que é dito, mas isso existe em qualquer parte do mundo. Infelizmente, Macau e a economia estão extremamente dependentes do jogo, e as autoridades teriam muito a ganhar se Macau fosse não só reconhecido pelos casinos. O facto de ser conhecido como um destino cultural, de turismo, e ser reconhecido por outras valências, seria muito positivo. Vemos o quão volátil isto pode ser, e isso percebe-se com a queda recente das receitas do jogo. Fala-se muito no aproveitamento do território para espaço de congressos e exposições, que também seria outro ponto essencial a desenvolver. Esta dependência dos casinos vai levar a uma cada vez maior descaracterização da cidade, devido à ocupação de espaços pela indústria.

Faz uma referência à construção da Biblioteca Central no edifício do antigo tribunal. Deixa no ar a ideia de que esse projecto poderá levar ao desaparecimento de mais um símbolo português.
Quando se deixou Macau, houve muitas questões que ficaram por resolver. Existem muitas questões na história de Macau que não foram bem explicadas. Isso porque sempre houve a perspectiva histórica portuguesa e a chinesa.

Não há uma única história de Macau.
Sim, e era importante fazer esse exercício, o de criar uma história de Macau que fosse feita por chineses e portugueses. Eventualmente iria permitir desvendar alguns mitos dessas questões que ficaram por esclarecer. Em relação ao edifício do antigo tribunal, é sempre um símbolo da presença portuguesa. Ao nível simbólico poderão existir algumas questões. Mas vamos aguardar com serenidade que o projecto avance.

A que se deve a existência dessas questões pouco esclarecidas? A interesses, desconhecimento do que viria após 1999?
Macau teve ao longo da sua história várias incidências que estão sempre envoltas em alguma falta de conhecimento. A maioria da população, incluindo as gerações mais novas, ou desconhece por completo ou não gosta de falar. Falo em particular do movimento “1,2,3”, muito importante para a história de Macau. Embora tenha havido um encontro de interesses entre aquilo que era a vontade chinesa e a portuguesa, também é importante lembrar que foi isso que nos permitiu ficar cá mais 40 anos. E a maioria das pessoas esquece-se disso ou não sabe. Sobre esse episódio são muito escassas as referências ao nível histórico. Mas a história foi mais sábia do que os políticos, e todos sabemos que Macau e a China tiveram a ganhar com a permanência dos portugueses durante mais este período, que permitiu uma transferência de poder pacífica. A maioria das pessoas tem uma grande dificuldade em ver a história e a sua continuidade, e da cultura, sem ter associada uma perspectiva política muito forte. Isso é o grande pecado da maioria das interpretações que são feitas.

E a política varia muito, consoante os partidos que estão no poder.
Isso acaba por prejudicar o que deveria ser contínuo, e o que vemos muitas vezes é que temos entendimentos da história que, depois, analisados à distância, temos a perfeita noção de que não correspondem à realidade, mas é isso que permanece e que é dado como verdade. Em Portugal, infelizmente, o que passa é que Macau foi um bom exemplo, em contraste com os manifestos erros que foram cometidos nas ex-colónias portuguesas. Mas a minha perspectiva não é essa: foram cometidos muitos erros durante a última Administração portuguesa e muito mais poderia ter sido feito. Ainda mais sabendo que Macau sempre foi uma terra com muitos recursos financeiros.

Macau teria a ganhar se tivesse tido uma Administração mais afastada das forças partidárias portuguesas?
Sim. Se houvesse um objectivo único, e uma definição clara e a longo prazo, mas esse continua a ser o problema de base muitas vezes. Já são raros os políticos com essa visão, há sempre visões a curto e médio prazo, e com interesses incluídos. Isso prejudica as coisas e a continuidade. Se isso existisse, independentemente de estar o partido A ou B no poder, tudo seria mantido.

O livro aborda também a questão da Escola Portuguesa de Macau (EPM), que vai ficar onde está. A EPM tem feito o seu trabalho na dinamização da língua e cultura, incluindo a sua transformação numa escola internacional?
A EPM tem um estatuto especial mas, por muito que a escola precise de sobreviver e captar mais alunos, essa necessidade de internacionalização poderá subjugar o outro papel mais importante que a EPM pode ter. Li que o número de alunos estrangeiros cresce cada vez mais, e agora ensinam o mandarim.

E há a ideia de ensinarem o cantonês.
Isso é fundamental, e essa foi uma questão que durante a Administração portuguesa não foi devidamente acautelada. Ter-se-ia ganho mais se houvesse uma política mais realista ao nível de educação em Macau antes da entrega do território, tanto na língua chinesa como na portuguesa.

Há uma referência no livro ao monumento Portas do Entendimento, que está ao abandono. É uma metáfora da representação da cultura portuguesa, que gradualmente vai desaparecendo?
É uma metáfora e um símbolo muito interessante relativamente à política de abandono que já referi. Seria mais importante, naquela altura, criar instrumentos e fazer com que as coisas acontecessem, num projecto a longo prazo, promovendo instituições e convidando instituições portuguesas a virem cá, para fazerem esse trabalho de continuidade, em vez de se deixar apenas uma matéria simbólica, porque estas valem o que valem. Embora seja importante o monumento em si, em termos simbólicos e estéticos nada me diz. Foi mais uma forma de abandonar as responsabilidades. A última Administração do território teve muito essa perspectiva. O intuito sempre foi fechar o ciclo e não promover uma continuidade.[/vc_column_text][vc_message message_box_style=”solid” style=”square” message_box_color=”chino” icon_fontawesome=”fa fa-book”]

“Macau, as Últimas Memórias de Portugal” é apresentado hoje às 18h30 no auditório do Consulado Geral de Portugal em Macau. O autor, Mário Mesquita Borges, está presente na iniciativa. A obra, que vai ser apresentada por Luís Sá Cunha, é editada pela COD.

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8 Fev 2017

Hélder Beja, director de programação do Rota das Letras: “É a maior edição do festival”

Já mexe a sexta edição do Festival Literário de Macau. Entre os principais convidados do Rota das Letras contam-se os finalistas de 2016 do Man Booker Prize Madeleine Thien e Graeme Burnet, assim como o escritor chinês Yu Hua. Sérgio Godinho apresenta o seu primeiro romance. Falámos com Hélder Beja, fundador e director de programação do festival.

[dropcap]O[/dropcap] que podemos esperar desta edição do Rota das Letras?
Esta é, de longe, mais uma vez, a maior edição de sempre do festival. Volta a crescer em relação ao ano passado, o que achávamos que não seria possível, mas que acabou por acontecer. Houve uma série de sinergias que levaram a que o festival pudesse crescer, assim como convidados que queríamos e que conseguimos trazer. Na literatura, que é o ‘core’ do festival, diria que o grande destaque de todos é a vinda de Yu Hua a Macau. Para mim, é um dos maiores autores chineses vivos. Do ponto de vista pessoal, é o que mais admiro dos autores da literatura chinesa contemporânea. É um excelente romancista, tem romances como “To Live” e “Brothers”, mas é também um grande ensaísta. O livro que mais gosto chama-se “China in Ten Words” e, ao que parece, vai ser editado em português brevemente. É, para mim, o grande destaque deste ano da programação, pelo menos em língua chinesa.

E em português?
Na língua portuguesa, conseguimos trazer, finalmente, o Pedro Mexia, que já estava para visitar o festival no ano passado. Não pôde, mas vem este ano. É um dos grandes intelectuais do seu tempo, um bom poeta e muito bom crítico literário. Será um prazer tê-lo por aqui, porque é um homem da renascença, pode falar um pouco de todas as coisas.

Que outros autores salienta no cartaz deste ano?
Na programação internacional, estamos muito contentes por termos assegurado a vinda de dois finalistas do Booker, são dois autores bastante interessantes. A Madeleine Thien tem um background relevante com relações familiares à Ásia. O seu último livro, que foi nomeado para o Booker – “Don’t Say We Have Nothing” – é a história de uma família chinesa que atravessa a Revolução Cultural. O livro é muito musical. É a história de um músico que, como outros artistas durante a Revolução Cultural, foi completamente desacreditado, perdeu um bocado o chão e foi tido como burguês. É uma narrativa muito interessante que atravessa três gerações. Depois temos Graeme Burnet, num estilo completamente diferente. O romance que o levou à final do Booker passa-se no século XIX, tem uma linguagem um bocadinho arcaica, mas uma voz narrativa incrível porque é a voz de um miúdo de 17 anos que cometeu um triplo homicídio. O que lemos são as memórias que ele teria escrito enquanto aguardava julgamento. São dois autores que saltaram para a ribalta este ano com as nomeações para a short-list de cinco livros do Booker e que, acho, nos próximos anos vão afirmar-se no panorama internacional. Estavam ambos a fazer festivais aqui na região e conseguimos trazê-los cá.

O festival caminha para a profissionalização a passos largos.
Acho que está à porta da rota dos grandes festivais literários, e este ano vamos dar vários passos nessa direcção. Em primeiro lugar, porque começámos a trabalhar numa rede de contactos com outros festivais. Por exemplo, este festival de Adelaide, onde conseguimos estes dois convidados para Macau, assim como a parceria que estabelecemos com o novo festival de Cabo Verde, o Morabeza, que está a nascer agora. Algo que também queremos fazer é desenvolver o festival dentro do espaço lusófono. O número de nacionalidades no festival também sobe, este ano temos autores de 20 países e regiões. Outro dos aspectos no caminho para a profissionalização é termos mais visitas de jornalistas de vários países como, por exemplo, os meios de comunicação dos países de origem dos convidados, não só aqui a imprensa da região. Acho que este ano estamos a conseguir que o festival se afirme, nos próximos dois/três anos o festival estará, seguramente, num roteiro de festivais que têm os principais nomes de literatura contemporânea. Por aí passará, obviamente, ter prémios Booker com regularidade, Pulitzers e, eventualmente, ter aqui um prémio Nobel. Não é o desígnio do festival mas gostaríamos de ter, pela qualidade dos autores e pela projecção.

Este ano o festival aposta também na banda desenhada.
Temos pensado para os próximos anos temas como humor e a ficção científica. O grafic novel e a BD faziam parte desse grupo e este ano, de repente, havia um grupo de dois ou três autores e a ideia começou a fazer sentido. O Filipe Melo vem cá, o que é para nós muito bom. Vem também o Philippe Graton, filho de Jean Graton, que tem a série Michel Vaillant. Neste caso tudo começou com a relação que ele tinha com Macau. Percebemos que o Philippe estaria disponível para vir e que poderia mostrar os originais do álbum “Rendez-vous à Macao”. Achámos maravilhoso poder fazer isso aqui. Depois começámos a montar um pequeno programa à volta disso. O Dick Ng vem de Shenzhen, mas vive em Hangzhou, conheci-o num pequeno festival em Cantão onde fui há uns meses. Fiquei muito impressionado com ele porque é um jovem chinês que fala muito bem inglês e que se dedica a fazer tiras de comics, acima de tudo, online, onde tem mais de 50 mil seguidores. A BD nunca tinha feito parte do festival de uma forma consistente, é uma novidade este ano.

Tem sido mais fácil conseguir convidados de renome?
Sim, é muito mais fácil porque quando fazes o convite a um autor, por exemplo, da dimensão do Yu Hua, ou da Madeleine Thien, o lastro do festival conta muito. O facto de termos tido no ano passado o Adam Johnson foi muito importante para conseguirmos este ano estes autores. Não estou a dizer que não viriam, mas claro que as pessoas informam-se, querem perceber que festival é este, e cada vez será mais fácil ter convidados com maior notoriedade.

Uma das estrelas do cartaz será Sérgio Godinho.
É uma coisa maravilhosa ter cá o Sérgio Godinho, que vem com o seu primeiro romance, editado pela Quetzal, uma editora amiga do festival. A vinda do Sérgio Godinho foi uma coincidência de timings, ele vai lançar o romance agora em Fevereiro, estará a apresentá-lo em Portugal, a dar entrevistas e depois segue logo para cá. Enfim, ele é um dos grandes cantautores da nossa língua. Obviamente, um bom poeta, não só nas letras, mas também no que tem publicado de poesia. Já tinha arriscado no conto e agora, já com a idade que tem, decide ainda arriscar no romance. Acho que é a prova de que é um artista tremendo.

Vem apenas apresentar um livro?
Não, vamos ter, também, um concerto dele. Temos dois actos musicais, ambos no Teatro do Venetian, um a 15 e outro a 16 de Março. O Sérgio Godinho com um companheiro de palco ao piano, num concerto mais intimista. Ele esteve cá há pouco tempo e houve a preocupação de fazer um concerto diferente. Depois a Christine Hsu, que é uma cantautora de Taiwan, com um repertório mais virado para as baladas, muito do agrado do público chinês. Este ano temos estes dois concertos, já houve edições em que tivemos mais música do que este ano, mas estamos muito contentes com os dois nomes que temos para esta edição.

Como vê a evolução do festival desde a fundação?
É um projecto difícil de qualificar, do ponto de vista pessoal porque, basicamente, abalroou os últimos seis anos da minha vida. Isso tem coisas muito positivas, e outras menos. Sempre acreditámos que o festival poderia crescer, mas talvez nunca tenhamos pensado que pudesse crescer tanto, em tão pouco tempo. Quando olho para o festival, não só em termos de dimensão, mas do impacto, projecção e qualidade, e vemos o que está à nossa zona em termos de festivais literários, acho que este trabalho é muito especial e muito bom. Começou muito pequenino, no Instituto Politécnico de Macau, com muito pouco know-how, a cometer erros naturais e evidentes quando se quer fazer uma coisa arriscada. No segundo e terceiro anos houve dores de crescimento e, a partir do quarto ano, a coisa começou a correr mesmo bem. O terceiro ano foi o da explosão em termos de impacto, porque o cartaz era incrível. De Portugal tivemos Ricardo Araújo Pereira, Valter Hugo Mãe, Dulce Maria Cardoso, José Eduardo Agualusa, etc. Um programa que nunca mais acabava. Mas para nós, organizadores, é no quarto ano que sentimos que o festival amadurece. No ano passado, o quinto, muito bem, e agora estamos na sexta edição. Diria que o balanço é muito positivo. Em 2016 dizíamos que não queríamos crescer muito mais, e não queremos. Em termos de sessões não cresce de certeza, no ano passado foram 104 sessões ao todo.

Então, quais os desafios que o festival tem pela frente?
O que queremos a partir de agora, e que já fazemos este ano, é alargar o festival com outros pequenos projectos. Estabelecer parcerias, uma delas com o festival Morabeza, em que a partir deste ano teremos um escritor de Cabo Verde a visitar o festival de Macau, e vice-versa. Acho que será importante para a literatura de Macau mostrar-se noutros países do espaço da lusofonia. Temos também uma parceria com a Universidade de Macau, que começa este ano, para uma residência literária, que arrancará com uma autora de Singapura. Desta vez a residência é curta, serão apenas duas semanas antes de a autora começar a participar no festival, mas queremos que seja mais longa e que desagúe no festival. Outra coisa que gostaríamos de fazer é criar no futuro, em parcerias com instituições de ensino, uma bolsa de tradução literária para um aluno interessado em desenvolver as suas capacidades na tradução português-chinês, chinês-português, de literatura, algo que não há. Há muitas opções em termos de cursos de tradução mas são todas elas, praticamente, só técnicas. Gostávamos de dar esse contributo. Outra coisa que começou no ano passado, e que queremos fazer mais em 2017, é que o festival tenha episodicamente pequenos eventos ao longo do ano.

Haverá também lugar à actualidade.
Sim, darem um pouco de atenção aos assuntos actuais, o festival também quer posicionar-se aí e discutir temas mais prementes, criar uma zona em que um tema da actualidade esteja presente. Isto começou com certos convidados que conseguimos confirmar e, depois, começámos a construir um programa à volta deles. A Clara Law, nascida cá, tem um documentário – “Letters to Ali” – sobre os refugiados afegãos na Austrália. Foi talvez o ponto de partida. De repente percebemos que havia a possibilidade de trazer o Henrique Raposo e o José Manuel Rosendo para falarem sobre o Médio Oriente, o terrorismo e as migrações. Depois temos também a Sanaz Fotouhi, que foi produtora de um documentário de mulheres afegãs refugiadas. Tudo isto começou a compor-se e a fazer sentido. Não digo que há seis meses este tema estivesse na nossa cabeça, mas acabou por aparecer e faz todo o sentido discutir isto neste momento.

7 Fev 2017

Da indignatite contagiosa

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á umas semanas, um amigo partilhou um excerto do meu romance Autismo no Facebook. Uma pequena passagem do primeiro capítulo no qual uma das personagens expõe, atabalhoadamente, a sua visão amarga da vida e do amor. Um rapaz da internet leu o dito excerto e desancou-o copiosamente. Estou certo de que lhe poderá ter ocorrido a possibilidade de o formato e a linguagem escolhidos serem os dispositivos narrativos mais adequados para caracterizar aquela personagem. A confusão e a grosseria não são um erro por si. A desadequação entre a natureza da criação literária e o formato pela qual se opta expô-la pode ser um erro. Ou pode ser um gesto técnico propositado. E pode resultar.

Estou igualmente seguro de que o rapaz da internet sabe que o ponto de vista do autor não tem de coincidir com o ponto de vista das personagens, embora, em certos casos, possa. Mas fazer um retrato robot das motivações do autor por um livro parece-me tão excessivo quanto redutor. Fazê-lo tendo como ponto arquimédico um parágrafo de meia dúzia de linhas é um exercício tão profícuo e certeiro como ler o destino alheio nas borras do café. No entanto, o rapaz da internet não se coibiu de demolir o excerto em causa e, en passant, o livro. Daí até chegar ao autor foi uma penada. Um gajo que escreve uma coisa destas, uma espécie de ruído triturado, não pode ser um bom escritor. E um gajo que acredite nas teses expostas não pode ser boa pessoa. Case dismissed. Podemos fechar a internet por hoje.

Moral da história: dados sermos ambos ilustres desconhecidos, tanto eu como rapaz da internet, nada de mal veio ao mundo. O Valter Hugo Mãe escreveu um livro – O nosso reino – que uma comissão designada para o efeito incluiu no plano nacional de leitura para o oitavo ano de escolaridade. O livro tem uma passagem que fala de sexo anal, algo que parece ter chocado com a moral e as intenções pedagógicas de alguns pais dos alunos da escola que seleccionou o livro para ser lido e comentado nas férias de Natal. Alguns jornais noticiariam o assunto. Daí à crítica demolidora do livro bastaram três partilhas no Facebook. Doze partilhas depois, já era a obra toda do Valter que estava a ser posta em causa. Da obra ao carácter do Valter foi questão de meia centena de partilhas. Bastaram três linhas descontextualizadas para entupir o feed de insultos. O Valter, enquanto autor, já há muito tinha sido desconvidado a participar da conversa que se seguiu, na qual o tom incidia, sobretudo, em dois pontos de vista, por vezes coincidentes: como é que alguém responsável pelas escolhas do PNL pode ter incluído aquele livro no catálogo de obras aconselhadas a alunos do oitavo ano e, por outra parte, como é que o Valter tinha coragem de escrever uma coisa daquelas para miúdos daquela idade?

Relativamente ao primeiro argumento, concedo que a sensibilidade de cada um possa reagir de forma distinta a estímulos semelhantes. Um pai pode não querer que o seu filho seja exposto a uma realidade que considere desadequada à idade. Discordo dessa posição. Numa época em que mais ou menos qualquer assunto está disponível à distância de um ecrã táctil, a educação como sistema de filtros a serem retirados à medida que as crianças vão crescendo parece-me pouco proveitosa e, na maior parte das vezes, votada ao fracasso. Não existe forma de impermeabilizar a criança relativamente ao mundo. Nunca existiu. A curiosidade tem braços mais longos que o cuidado, e a curiosidade encontra sempre uma forma de se satisfazer. O que está nas nossas mãos, enquanto pais e mães, é o poder de contextualizar e de dar sentido a essa cascata permanente de experiências a que chamamos mundo e à qual os nossos filhos, a não ser que habitem uma versão da cave de Fritzl, estão e estarão continuamente expostos.

O Valter, como é óbvio, não escreveu “aquelas coisas” para miúdos de oitavo ano, assim como não há qualquer obrigatoriedade de os miúdos as lerem. As escolhas do PNL são recomendações e são facultativas. E, pelo que foi posteriormente comunicado pelos responsáveis do PNL, terá havido um erro na atribuição daquele livro a miúdos daquela faixa etária. Mas nem por isso a indignação baixou de tom. A internet parece ter o estranho efeito de catalisar emoção e pensamento a velocidades radicalmente desproporcionais. De repente, ser apodado de escritor medíocre era a coisa mais benigna que se podia ler sobre o Valter. Confundindo a recomendação do PNL com uma deliberação intencional do autor, a indignatite grassava no pasto confuso onde se misturam obra e autor, estética e ética. De um lado, Valter, o porco. Do outro, as crianças do oitavo ano, carmelitas em excursão pelo mundo.

Há, na verdade, um rol infinito de coisas nos escritores, e nas suas obras, passíveis de crítica. O facto de recomendarem os seus livros para inclusão no plano de leitura e o facto de eles escreverem cenas de sexo ou sobre sexo não me parece ser motivo para tanto barulho. Quer dizer, tendo em conta a qualidade das cenas de sexo escritas em português, talvez não fosse mau trocarmos umas ideias sobre o assunto.

6 Fev 2017

Luís Brito: “Escrevo tanto o que vivo como o que penso”

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]pesar de ainda só teres 30 anos, tens três livros publicados: Alcatrão (Abysmo, 2013), que é um livro de viagens, Arigato, eu (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016), que relata a tua experiência no Japão, e Jejum (Tea For One), que é um livro de poesia. Julgo que os teus livros deveriam ir para Macau, pois além de serem bons (escrevi uma pequena resenha sobre Alcatrão, para uma revista brasileira), inscrevem-se num universo muito caro às pessoas que ali vivem. Viajaste desde o Chile à Índia, passando por África e, mais tarde, passas uma longa temporada no Japão. Acerca de Alcatrão escrevi: “O viajante tem, em suma, de transformar-se em um sem-abrigo. Só nesta condição todo e qualquer metro quadrado do planeta se transforma em sua morada e esta em sua possibilidade de ver o mundo. A dúvida acerca da proximidade e distância entre viajante e sem-abrigo, é, aliás, exposta em algumas passagens do livro.” O que te leva a viajar é o mesmo que te leva a escrever? São da mesma ordem, esses movimentos, para fora e para dentro?
A verdade é que gosto de viajar como um zarolho. Um olho aberto e outro fechado, sabendo que o primeiro vê o que vai lá fora, e o segundo espreita para dentro. A meu ver, as viagens devem ser simbioticamente exteriores e interiores, pois é nos espelhos do mundo, e na autoconsciência do que eles reflectem em nós, que está o verdadeiro crescimento. E isso aparece-me na escrita. Escrevo tanto o que vivo como o que penso, sabendo que pensar é viver. E viver sem pensar é-me impossível. O que me leva a viajar talvez seja o mesmo que me leva aos livros: a curiosidade, virada para o mundo e virada para mim, e ainda o encontro com o homem nas situações mais exíguas, sem quaisquer luxos ou distracções, onde a sua natureza mais crua se revela.

Recentemente numa entrevista disseste, e passo a citar-te: “O lançamento do livro é um desporto com cada vez mais popularidade. Em Lisboa, em Portugal, no Mundo, e eu também aderi à modalidade.” Achas que deixámos de ler, para ir aos lançamentos dos livros? A literatura e a poesia passaram a ser fait divers?
É difícil que os livros tenham a importância que merecem, quando há cada vez mais informação, eventos, actividades e ideias. Eu próprio sou um mau leitor, por isso essa frase, em tom de brincadeira, é antes de mais uma auto-crítica, mas sempre é melhor as pessoas irem aos lançamentos do que não irem de todo, assim lá se aumenta a probabilidade de lerem, e pelo menos o autor tem o prazer de ver caras queridas. Se os lançamentos e as obras modernos são fait divers? Talvez seja verdade, mas pelo menos não são dos piores. Sempre se aprende qualquer coisa e, salvo as árvores que se decapitam para dar lugar às folhas de papel, na arte normalmente ninguém sai prejudicado.

Além de viajares por países em modo pouco turista, vives também de um modo pouco turista, apesar de dependeres deles. Trabalhavas numa agência de publicidade e despediste-te para passares a tocar hang drum (ou cataplana, como eu lhe chamo) para os turistas. Esse teu modo de viver continuamente sem rede é fascinante. Não consegues mesmo viver como os outros?
Tanto no que toca às viagens, como a esta nova carreira de músico de rua, as pessoas costumam dizer-me que sou um tipo de coragem. Eu respondo-lhes que corajoso seria se me mantivesse muito tempo no mesmo sítio, por exemplo, fechado num escritório. Há, sem dúvida um contra senso: sou anti-turista e agora vivo do turismo. Pode-se dizer que faço haiki-dô, usando a meu favor a força do inimigo. No entanto, este trabalho permite-me viajar sem sair do sítio, pois contacto com gente de muitos lugares, acabando até por conhecer também alguns viajantes pouco turistas. E da fissura entre essa ideologia e a prática concreta, pode nascer um caso de estudo, aliás, ando a escrever sobre essa experiência. Se não consigo viver como os outros? Cada um é a vida como ele a vê. E a verdade é que estas opções que tomo não são assim tão radicais, se as compararmos a um nível global e aos verdadeiros loucos, os que fazem coisas verdadeiramente audazes, arriscando a vida e até a vida dos que lhes são próximos, ou viver uma vida longe deles.

Concordas com esta frase: “viajar é um exercício de tentar perder-se de si, um dos caminho mais rápidos em direcção a nós mesmos”?
Não só concordo como subscrevo, e atrevo-me a corrigir. É o mais rápido e o melhor, pelo menos tal como eu concebo a vida. Para nos tornarmos em quem somos, precisamos de nos soltar do mais possível do que nos ensinaram, do que aprendemos, do que vivemos dia a dia sem perguntar, a famosa zona de conforto, a acumulação de ideias que temos sobre nós mesmos. No vazio, no anonimato e na errância encontramos mais e mais camadas de força e inteligência, além da tão necessária capacidade de fazer contacto humano. Quanto mais diferente de nós for o outro, mais intensa pode ser a catarse. É um lugar comum, mas a verdade é que só nos perdendo nos podemos encontrar.

3 Fev 2017

Respiração das coisas

Bedeteca da Amadora, 19 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma caneta de tinta permanente, não a primeira, mas a mais viajada. Um rato de computador, antigo quanto baste, também não o inicial, mas com ele andei horas sem conta de mão dada na solidão da pradaria fluorescente. Um velho fio-de-prumo, gasto e sujo de cimento, este herança de pai que se gastou no moldar das pedras e no erguer das casas. Espero que seja suficiente para colocar a dúvida na meia dúzia de almas que passará os olhos por estes três objectos nas vitrinas, lado a lado com recortes de jornal com tiras impressas, notas rasuradas e esquemas coloridos. Um argumentista trabalha nas obras? Ao cabo de muitas dezenas de exposições sobre o trabalho dos outros, ser posto na qualidade de objecto deste «Banda Escrita: uma exposição em torno do trabalho do argumentista» perturbou-me. Mexer no passado põe-me a fazer contas de cabeça. Sem exageros, que é coisa modesta, como convém, em curva entalada entre o elevador e as lombadas. Amostra será, mas capaz de me fazer olhar, por primeira vez, para este somatório como corpo. Gosto de ver corpos, mas terá este as partes essenciais para se erguer do esquecimento, autor ou Frankenstein? Depois, basta folha velha para iluminar momento em que o caminho bifurcou. (Foram tantas as vezes, que duvido até do caminho.) Estava sublinhada a palavra importante? Ou urgente? Havia ali a possibilidade de outra vida? O passado continua promissor. Não nos levemos a sério. Só o puro gozo me empurrou para o terreno baldio das bandas desenhadas, algumas delas aqui e agora evocadas, por força do esforço desamparado (politicamente) do Pedro Moura. Duram um relâmpago mais, se alguma vez contiveram luz. O trabalho do argumentista resume-se ao despertar no desenhador o desejo de imagens, disse Benoît Peeters, o das frias cidades mentais. Mantenhamos o assunto atado à âncora volátil do desejo.

RTP 3 | Facebook, 20 Janeiro

Devo um obrigadinho a Trump, o despenteado mental. Para comentar a sua tomada de posse, António José Teixeira, velho amigo agora na RTP 3, encomendou 30 segundos aos Spam Cartoon, projecto de cartoon animado que partilho há anos com o André Carrilho, a Cristina Fazenda e o João Fazenda. A Cristina fez da criatura um boxeur desastrado que, em dança macabra, castiga tudo e todos até que a própria força o derruba. Visão esperançosa, bem entendido, mas pouco nos resta além disso: revolta, pensamento e… esperança. Não o podemos reduzir à caricatura que incarnou neste filme de série B com que nos atormenta, mas o riso e a raiva são o nosso trabalho, reclamando, pelo menos, a mesma liberdade que ele afirma para cuspir barbaridades. O mundo não pode limitar-se a ser saco de pancada. No momento em que escrevo, na métrica da contemporaneidade, i.e., no Facebook vai em 40 mil e tal partilhas, 5600 gostos e mais de milhão e meio de visionamentos. Curiosamente ou não, a maioria dos comentários defende-o com a energia do insulto.

Santa Bárbara, Lisboa, 20 Janeiro

A nossa casa cresceu. Primeira consequência de quando um gato toma posse. Chão é apenas começo e a descoberta da novidade não se fica pelas traseiras do sofá. O olhar felino define nas ombreiras e nas portas, nos interruptores e nos puxadores, nas estantes e gavetas, nas bancadas e mesas, até no tecto, sinais ocultos de respiração das coisas. Inúmeros lugares saltam à vista: bons de dormir, ideais para desaparecer, perfeitos para a provocação. O bicho tigrado preferia que lhe fosse roubar a bola com que se entretém desdobrando-se em múltiplos, o que atira e o que apanha, o que salta e o que rebola. Juro que os vejo em simultâneo. Onde antes havia tédio nasce enigma. Começámos por lhe chamar Pires, invocando a alma peluda de Rafael Bordalo Pinheiro, mas o puto insiste em comportar-se como Ivan. O frenético.

Livraria Miguel Carvalho, Coimbra, 21 Janeiro

Estava um frio de rachar convenções e até as hirsutas máscaras africanas me surgiram arrepiadas, quietas na paragem entre a ironia e o desdém. Impressão minha, elas não encarnam doutores. Pedro Serra partilhava leituras para «Beleza Tocada», uma bíblia roxa de tão negra na qual se conserva a voz singular de José Emílio-Nelson. Prometendo desenvolvimentos para breve, em começo de conversa propôs dois eixos, o da merda e o do ar, que cruzou depois com interpretações de obras de Manzoni, para afirmar a extrema materialidade em que assenta esta poesia: a alma esfuma-se com a morte, mas o corpo mantém-se como cadáver. José Emílio acendeu a verve e apresentou o seu programa: «escrever as últimas palavras possíveis antes de ser queimado em auto de fé». Exige que o pecado seja inscrito na normalidade e filia-se na danação. Em contínuo diálogo com a pintura, a música e o cinema, condenados a ecoar no luxuriante labirinto do catolicismo, os seus versos parecem desenhados a escopro em fragas ora de granito ora de mármore: «A Língua, beleza tocada, sopra em órgão, no escarlate martírio amortalhado / em frenético espasmo. ». Diz o poeta que o detalhe é a fissura, pelo que tenta a emenda até ao último suspiro, tendo quase enlouquecido Luiz Pires dos Reys, que desenhou com sublimes minúcias o volume de 726 páginas. Em volume antigo, «Pénis Pénis», composto ainda em chumbo, acrescentou à boca da máquina a palavra excremento para indignação do compositor. No volume impresso, saiu escremento. Confrontado, respondeu o velho tipógrafo: «deixe lá, sempre disfarça».

25 Jan 2017

Tâmaras

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]âmaras (Douda Correria, 2016) é um livro que, logo pelo título, nos remete para outras geografias, para outras latitudes, outras paisagens, outras referências culturais a que não estamos habituados: Tel Aviv, Jerusalém, desertos, Talmud… O próprio fruto, Tâmaras, quer dizer em árabe “dedo de luz”. E embora o poema que dá título ao livro pareça estender-nos um tapete de leitura muito mais prosaico do que o significado da palavra em árabe, que também é língua oficial em Israel, país de onde vêm as tâmaras que o poeta come no seu poema, a verdade é que este dedo de luz está intrinsecamente ligado à poesia de João Paulo Esteves da Silva ou, pelo menos, a este seu livro. Escreve o poeta no final do terceiro poema do livro: “seguramos nestas ferramentas / que quase não existem / e fazemos coisas do outro mundo.” As coisas de outro mundo sugere uma separação, um corte entre um mundo e outro mundo, ou entre o humano e a natureza ou entre a arte e a vida. Esta separação existe para o poeta, como se pode ler em “Profecia mínima”, a separação entre um prelúdio em si bemol menor e a vida de um pardal:

Quando menos se espera, começa
a chover sobre a erva seca.
O pardal pousa na soleira,
sacode as penas,
fica uns segundos a ouvir:
– o prelúdio em si bemol menor
do segundo caderno.
Aparentemente, aquilo
Não lhe prende a alma.
Voa por entre as gotas
grossas
de Maio.

Ainda que esta separação exista, ainda que ela aconteça, o advérbio “aparentemente”, no início da penúltima estrofe, ilumina a possibilidade de haver uma misteriosa e desconhecida ligação entre a alma do pardal e o prelúdio que se escuta. Tâmaras é um livro misteriosamente metafísico e anti-metafísico. Metafísico, porque mergulhado profundamente no mistério e na aceitação de que viver é um contínuo não se saber o que está a acontecer; anti-metafísico porque entende o “para além” como inexistente e absurdo. Leia-se o poema “O filósofo”: “Hoje, / mudei as fraldas / ao meu mestre de filosofia. / Pairava no quarto um cheiro / levemente azedo / que não me incomodou. / Continuou a dar-me lições. / O eterno retorno existe; / é esta a opção; / se não quiseres, há outras, / por exemplo: / Confia no que não existe. Tenta não olhar para trás.” Aquele “confia no que não existe” atinge-nos como uma autêntica pedra. Podemos ler essa frase literalmente, metafisicamente, ou ironicamente, anti-metafisicamente. Por outro lado, confiar no que não existe não é somente confiar em Deus ou em teorias improváveis ou inexplicáveis. Confiar no que não existe é também confiar na vida que temos, isto é, no tempo que somos. Nós vemo-nos no futuro, ainda que o futuro seja um dia depois ou as próximas férias ou o próximo ano, embora esse dia não exista, embora esse cada um de nós lá, nesse dia, não exista, tal como o próprio poeta escreve, num poema quase no fim do livro, “Ainda outro fim”: “Sabes, acredito no futuro, / confio muito no que não existe”. O que faz deste livro uma enorme clareira de paradoxo. De um modo talvez melhor: este livro ilumina o paradoxo que somos, de um modo muito particular, não só pelas referências e um olhar quase estrangeiro, mas também pela aceitação em guerra, que se tem com a nossa situação, a deriva constante entre metafísica e anti-metafísica. Se se lê “confia no que não existe”, como ironia ou até sarcasmo, também se pode ler literalmente, como por exemplo no “Prólogo”, primeiro poema do livro, “Dentro dos sons / ouve-se sempre um chapinhar” ou ainda o verso já aqui lido, “fazemos coisas do outro mundo.” Que são mesmo de outro mundo, literalmente, pois a arte, a palavra, no fundo, a expressão humana é outro mundo em relação à natureza. Mais: a arte é outro mundo em relação a nós mesmos.

O livro vive também da irreconciliação entre os tempos que somos. E nestes tempos que somos, ainda a soma dos lugares aonde vamos sendo, muitas vezes nem sequer por ordem cronológica, ou sentidos sem cronologia, como no belíssimo “Tel Aviv”:

Não se explica o amor
nem se é amor o amor
Aqui sinto-me bem
no sentido mais estúpido do termo
talvez eu seja daqui
ou então tenha sido feito para chegar aqui
a estes pátios floridos
e ao barulho do mar junto à janela
Mas, se calhar, nem uma coisa nem outra
e o sítio sem argumentos
é o meu lugar fora do tempo
lugar de todos os tempos
Talvez o pó de estrelas mortas
de que sou feito seja o mesmo pó do deserto
que me irrita a garganta
agora
no oásis
com amor

Contas feitas há só uma coisa que sabemos, ainda que não se saiba bem, como tudo ou quase tudo do humano: o amor é um oásis. E uma vez mais o paradoxo ilumina-nos, pois o amor não se explica, nem sequer se é amor, mas ele é um oásis, e isso é identificável; isso sabe-se, na garganta que não fica irritada com o deserto e com o deserto da vida. Não se explica o amor e nem se reduz o mesmo ao que quer que seja. O amor aparece como aquilo que faz sentido, o que confere sentido à existência, foi o que nos fez chegar aqui e o que nos mantém aqui. O tempo é um estado de consciência, ilumina-nos o poema “Estados Alterados de Consciência”: “A furgoneta deitada sobre o lado esquerdo, / rodopios, som de metal raspando o asfalto, / chispas, e o tempo pára. / Os segundos do acidente duram anos / (…)”. Já o sabíamos antes, com outros poemas lidos anteriormente, mas aqui a iluminação fica mais intensa, e o tempo vê-se melhor, como se ele fosse agora espaço, como se fosse, por exemplo, o gesto em que morre a infância: “Já o amigo a trair-me em plena batalha, / naquela última guerra de fisgas / com abrunhos, / aí sim, doeu que se fartou. / E a infância morreu.” (Início da última estrofe do poema anterior)

No poema “Na colina” vemos a silhueta definida de como o poeta vê a vida, algo que podia ter sido ali, (…) mas não era ali. Aquilo que mais interessa ao poeta, tal como escreve num poema quase no início do livro, “Rua Barros Queirós”, “também eu, prefiro a vida”, parece a cada poema, a cada página ser um lugar fora do mundo à vista. A estrofe final do poema “Ainda outro fim” parece resumir as linhas de força deste livro, que temos tentado fazer ver: “Isto não vai durar muito / os dias acabam repetidamente / e quando nascem vêem cheios de noite. / Sempre gostei das tuas luzes escuras.” Podíamos usar para a vida o mesmo verso que o poeta brasileiro usou para o amor: a vida, isto, não dura muito, mas enquanto dura é infinita; para o bem e para o mal. Perpassa ao longo do livro uma ambiência ligeiramente estranha, como a própria vida de cada um para si mesmo. Deixo-vos agora com um último poema de João Paulo Esteves da Silva:

Ano novo
Voltamos ao princípio,
com uvas, escolas, diospiros.
O ano parte daqui, e recomeça.
Deita-se mais o sol, o dia do perdão ressoa
e paira sobre os outros dias.
Algumas árvores vão ficar sem folhas.
Não leves muito a sério as nossas falhas;
inscreve-nos na vida.

24 Jan 2017

Raquel Serejo Martins: “Os meus poemas são frutos para comer crus”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s poeta (acerca do teu livro de poesia, primeiro e até agora único, Aves de Incêndio, escrevi neste jornal esta semana), e escritora. Aliás, tens mais obra de prosa editada do que de poesia, dois romances na Editorial Estampa, A Solidão dos Inconstantes (2009) e Pretérito Perfeito (2013). Assinas ainda uma crónica semanal na revista “Sábado”, onde na realidade escreves pequenos contos. Qual de todas estas actividades é para ti a principal, se é que há uma principal, e não me refiro ao teu trabalho diário, que nada tem a ver com as letras?
Nunca pensei nisso e não consigo dizer qual a principal, aviso já que sou óptima a não conseguir explicar as coisas, todavia consigo dizer que o romance me exige mais fôlego, sufoca-me, tenho medo que me falte o ar, o pé, de não me encontrar, é um burilar longo e penoso, processualmente duro. No romance sou escafandrista, enquanto na crónica ou no conto respiro. Muitas vezes chego ao papel já com uma história, com princípio, meio e fim, três linhas de história não mais, depois, aranha competente, vou tecendo a teia, acrescentando pontos ao conto e não são raros os momentos em que consigo divertir-me a escrever, a escolher as palavras, a limar as arestas, a polir e a puxar o lustro aos parágrafos. Já a poesia é um mistério, é um caso sério, é garimpo à procura de minério, de palavras pepitas, palavras que brilham e que juntas fazem luz, mesmo se dolorosas e escuras, a poesia acontece, é um relâmpago e, em consequência, os meus poemas são frutos para comer crus e muitas vezes com casca. E apesar de serem três registos diferentes, parece-me, dizem-me, que a poesia contamina tudo o que escrevo.

E como entendes a poesia. De outro modo, imagino que leias e gostes de poesia diferente daquela que escreves, que procuras nos poemas que lês e o que procuras nos que escreves?
Uma vez escrevi sob o petulante título Brevíssimo Manual

Desconfia do poema se:
Não te corta a respiração
Não te sufoca
Não te acelera o bater do coração
Não te faz sorrir.

E, de facto, é mais ou menos isto que eu procuro e quero da poesia, que me encante, que me deixe boquiaberta, que me roube à rotina dos dias. Sendo que, provavelmente, quase de certeza, escrevo por esse mesmo motivo, para roubar-me à rotina dos meus dias, porque são demasiados os dias em que nada disto tem sentido.

E como vês a poesia actualmente em Portugal? Achas que se atravessa um período pujante ou antes pelo contrário?
Eu tenho um amigo poeta, João Bosco da Silva, que diz que só os poetas compram livros de poesia e é quase verdade. Por outro lado, com base no volume de poesia que vejo circular pelas redes sociais, também me parece que nunca se fez e leu tanta poesia como hoje, assim como, em Lisboa e pelo que sei também no Porto, voltou a ler-se poesia em cafés e bares, e são várias as editoras especialmente vocacionadas para a poesia, o que indicia que a poesia está na moda. E, em estando na moda, há muita gente a escrever má poesia, há um excesso de péssima poesia que fere e prejudica o género, mas também há gente boa a encantar. É que dizer que Portugal é um país de poetas, não quer dizer que todos somos poetas, mas que temos excelentes poetas. Sendo que, obviamente, também me coloco a questão, será que posso chamar poesia ao que escrevo.

Sentes que pertences a alguma geração de poetas? Que há essa geração?
Sinto que andamos todos muito sozinhos, ou eu ando muito sozinha, é tão fácil fazer generalizações sem fundamento, pelo que não me reconheço nesse sentimento de pertença, mas dito isto, ultimamente tenho tido a boa ventura de conhecer uns quantos poetas e são pessoas que gosto de abraçar, pelo que melhor adiar a resposta a esta pergunta por uns tempos.

E para quando o teu segundo livro de poesia?
O meu próximo livro de poesia está na gaveta, tem dentro 100 poemas de amor, e um dia, não sei dizer quando, vai sair da gaveta. Neste momento não tenho pressa em editar, assim como me parece que o Aves de Incêndio ainda precisa de espaço para voar.

13 Jan 2017

Paisagens que não existem

Horta Seca, Lisboa, 3 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ei bem como fui deixando que acontecesse, as festas são apenas sinónimo de mais afazeres. Faltou-me tempo para lamber mais uma cria: Poesia I – Odes Modernas e Primaveras Românticas, o primeiro volume de uma edição crítica da poesia de Antero de Quental muito laboriosamente preparada pelo Luiz Fagundes Duarte. A todas as suas outras qualidades, devo acrescentar o entusiasmo com que foi recebendo as propostas gráficas do Miguel Macedo. Sem desrespeitar o lado científico, a opção foi colocar algum aparato ao serviço do poema. Sabendo dos cuidados de ex-tipógrafo que punha nas suas edições, agrada-me sobremaneira a elegância da mancha, usando pela primeira vez a Gazeta, a fonte de Ricardo Santos, bem como o papel diferente nas páginas do aparato crítico. O alto-relevo no Antero da capa dá-lhe carácter, com o fundo azul a fazer regressar as primeiras edições. Tudo somado, as mãos não querem largar o objecto e os olhos lêem nele paisagem. E depois há o logótipo. Não sei se sabem, a abysmo não se fixou num logótipo, antes convidando cada designer ou ilustrador a interpretar a palavra. A brincadeira virou um caso e temos agora dezenas de identidades. Nos estudos preparatórios, o Miguel descobriu-a nos manuscritos de Antero. Deixou-lhe ficar uma vírgula, a pausa que se torna a sua marca de autor, e eis-me impante por ter para lá do tempo o poeta a dizer a editora.

CCB, Lisboa, 20 Dezembro (2016)

Ziguezague, os passos em volta estendem-se assim mesmo. Não se estranhe, não pedirei desculpa pelos saltos no tempo. Ao fim de mais de um ano de intenso trabalho e de uma mão-cheia de concertos, os No Precipício Era o Verbo subiram ao palco do pequeno auditório. O frio ficou fora e confirmou-se, para mim, o essencial: temos espectáculo. Encontro espessa coerência no alinhamento, na subtil encenação, feita sobretudo de luz, de chegadas à boca de cena e recuos para a escuridão, com o diferente grão das vozes e a melodia dos modos de dizer calibrados. Bom trabalho de grupo, sob respiração ansiosa do José Anjos. Escusado será dizer que o contrabaixo de Carlos Barretto se faz o eixo sobre qual tudo gira. Aqui, faz-se furacão e arrasta em remoinho palavras, corpos, gestos. Ali, faz-se farol atraindo olhares, desviando atenções. Não deixa nunca de ser feixe luminoso dirigido ao coração da palavra suspensa do corpo que a diz. Não há nada de novo nisto do espectáculo de poesia. Há qualquer coisa de novo neste. Não acho espectáculo a palavra exacta. Não sei ainda o que trazem de radicalmente novo os NPEV. Houve muita alegria, humor, densidade. Houve memória nos dias seguintes. Estão para as curvas.

Enquanto não chega o livro, cujo esboço da dupla André da Loba e Dulce Cruz anuncia ser entusiasmante, circula já o disco, embrulhado em cartaz onde quatro corpos dançam rodando sobre si nas coloridas cinzas de um vulcão por extinguir. Da Loba tem recolhido um conjunto de figurações que se alinham como letras de alfabeto criativo, seres dispostos a falar dos seus lugares no mundo. Estes quatro estão agora nessa paisagem que inclui jornais, paredes, impressões do mais variado tipo. A Dulce dobrou um origami que aconchega uma «bolacha» onde os corpos parecem peças de «puzzle», restos de branco boiando em negro com transparência. Sem os terem visto ao vivo adivinharam que muito disto resulta do namoro entre a luz e a obscuridade.

Horta Seca, Lisboa, 4 de Janeiro

A Associação para a Promoção Cultural da Criança pontua a sua programação anual com a edição, por esta altura, de um par de pequenos álbuns. Este ano o desafio foi uma visita ao seminal «Utopia», de Moore. A Inês Fonseca Santos juntou-se ao Nicolau para contar «Vincos», história na qual as marcas no corpo fazem anunciar possibilidades, onde os corpos podem até tornar-se mapas e as personagens caminham sobre as nuvens do sonho. Vi o pequeno álbum em tons laranja ir se desdobrando perante os meus olhos. E soube-me a tangerina. Naturalmente, pois está uma delícia.

O segundo coube-me a mim, que há muito não escrevia para os putos, independentemente da idade. O desgraçado que teve que absorver os meus atrasos de vida foi o Rui Rasquinho, que se desenrascou de modo notável, com ligeireza e elegância. Fomos ver do avesso das cidades, tocando-as com as mãos, até descobrirmos um velho marinheiro que fala de palavras e do modo como se tornam navalhas de rasgar impossibilidades. Este velho marinheiro, que prefere as paisagens que não existem, trouxe-me de volta o velho amigo Júlio Pinto. Saudades.

Passevite, Lisboa, 9 Janeiro

Dois anos depois do atentado ao Charlie Hebdo, e a pretexto do lançamento do fanzine Uppercut (stolen books), que reúne cartoons do André Carrilho, juntámo-nos coma Cristina Sampaio e o António Jorge Gonçalves, no atelier galeria do Rui Lourenço e cúmplices, para discutir se «somos todos charlie». Duas ou três conclusões breves de uma conversa rasgada. O humor é o lugar da absoluta irresponsabilidade. Somos melhor sociedade, mais oxigenada, se nos dermos esta liberdade. O humor gráfico nacional nunca foi punk e tempera a raiva com o apuramento estético. Estas conversas, em torno do ofício do desenho de opinião, deviam prolongar-se indefinidamente, talvez mesmo passarem a papel, em busca de mais olhos e ouvidos. Sugiro aqui fazermos nova edição do fanzine desenhando a conversa.

Os 300 exemplares (assinados e numerados) de Uppercut foram impressos em riso, essa nova técnica, barata, portátil, artesanal, algo primária, que reintroduz o erro humano na impressão. Quando os ecrãs brilham a ponto de esconderem o original, a maneira de o multiplicar faz de cada objecto caso único. Isto do regresso do erro diverte-me.

11 Jan 2017

Macau

26/12/2016

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m vício (já o Henry Miller tem um livro intitulado Leituras na Retrete): nunca me enfio na casa-de-banho sem me munir de um livro sacado ao acaso da estante que, no corredor, lhe fica em frente. Calhou-me Macau, um livro de poesia do brasileiro Paulo Henriques Britto, que, com este livro, ganhou o antigo prémio Telecom, hoje denominado Oceanos.

Usa-se a palavra “Macau” num único poema, que pertence à série Sete sonetos simétricos, onde se lê: «(…) esse minúsculo/império sem território, Macau/sempre à mercê do latejar de um músculo (…)». Para além da ironia, do leve tom cómico-marítimo que atravessa o livro, não há nenhuma outra referência ou justificação para o título do livro. Contudo, diz-se num poema anterior a este, em Bagatela para a mão esquerda: «À mão esquerda é vedado/ o recurso falso e fácil/ de dispensar a partitura/ a fraqueza (dita força)/ do hábito. (…) (No entanto ela escreve coisas/da mais esconsa eloquência:/atropelar o sentido/ ao contrapêlo da pauta/ é a sua ciência.)». Talvez então Macau represente esse exercício de «pensar contra si próprio» que tem um símil no obrigar-se a escrever à canhota, como exercício de disciplina espiritual, e que simbolizaria muito do não-dito da gesta portuguesa: um louco exercício de descobrir um fundamento fora de si mesmo, ainda que seja nos antípodas. E talvez o quarto de Dez Sonetóides Mancos forneça a chave do livro: «Também já estive aí, no não-lugar/onde você agora não se encontra./Também não me encontrei.//Aliás foi justamente contra/a tal necessidade de seguir alguma/rota que jurei lutar. Lutei, perdi,/ e pronto: agora estou aqui,/ a alguns centímetros do meu próprio umbigo.// Se tudo correr bem, também a tua derrota/ vai ser de bom tamanho. Pode contar comigo.» Este poema é de uma fascinante ambivalência. Por um lado, ao nível mais geral do âmbito do livro, pode ler-se como uma desconstrução sacana de algo que inclusive não nomeia: a Saudade, esse sentimento que os portugueses inventaram para se ejectarem fora-do-lugar onde se encontram, num intangível e oblíquo esplendor ideal, descobrindo-se embora a alguns centímetros do seu próprio umbigo, pois, afinal, quem a si mesmo escapa? Por outro lê-se como auto-derrisão, no sentido de os homens (e o poeta idem) estarem condenados ao auto-engano (a procura da tal rota ou sentido para a vida) e a buscar nos não-lugares as suas miras. Neste sentido, Macau significará o mesmo que Madagáscar, no meu imaginário, quando escrevi:

«Os meus binóculos varrem as águas na direcção de Madagáscar. Enclavinhada na linha do meu olhar desponta a ilha. Enorme, o recorte da sua costa reflecte invertida a costa de Mozambique – é mar que nasceu de cesariana!

Não se vê, a ilha, mas já lá pus os pés e é um bom lugar para morrer, mais belo e intenso que o lado de cá. Escolhi voltar, mas a semente do que daqui não vejo frutificou: eis-me prenhe do que em mim doravante se chama Madagáscar, um cenário onde ainda respiram piratas e lemingues, ideal para uma topografia do sonho.

Vim para África recuperar o primeiro olhar, desapropriar o nome. Terei alguma vez a coragem de o mudar? Identifico-me totalmente com essa figura mítica de São Sebastião de Maranhão que se perdeu nas selva amazónicas, com o seu cortejo de elefantes, serpentes de prata, carroças cheias de tesouros, flores e palmas por toda a parte, pajens, alabardeiros e formosíssimas escravas – só não me identifico mais porque, azar de rosto humano, o processo histórico me negou as escravas.»

Macau: um livro absolutamente a redescobrir.

28/12/2016

Quatro da manhã. Toca o telefone. Nem tenho tempo de atender, vai abaixo. O número não pertence a nenhuma das operadoras telefónicas oficiais em Moçambique. É um 87, dizem ser uma linha que só usa a polícia. Não faço ideia. Ao fim de cinco tentativas, na calada da noite, resolvo atender. É a voz de uma mulher, que me fala em changana, ou ronga, sei lá. Digo-lhe logo que é engano, e corto a chamada. Ela insiste, à quarta vez atendo de novo, explico que não falo a língua dela – ela não parece importar-se. Calo-me e durante cinco minutos ouço o tom lamentoso de alguém que está na agonia de algo, a respiração sai-lhe sôfrega – pede-me ajuda? Fala português, pergunto. Inglês? A toada continua, numa língua que desconheço, parece-me aflita, isso é certo, mas tudo nos separa – e de repente é noite, diria o Ungaretti.

Uma vez, nos idos de 80, fiz uma interrupção no jornalismo e trabalhei na RTP. Numa série de humor miserável. Era «script girl» – anotador. Na edição da série (a montagem, como então se chamava), via-me metido nas catacumbas do Lumiar, onde ao longo de um corredor penumbroso se sucediam os gabinetes para a montagem. E o meu trabalho, em oito horas penosas, consistia em consultar o meu dossier de 20 em 20 m  para responder à pergunta monocórdica do realizador: António, o take 431 é o take 431? Eu consultava os meus apontamentos para responder, Confere. Ao fim de uma hora via-me verde de agonia, três horas depois a cabeça latejava. O meu único entretém era o corrupio no telefone público, encastrado na parede do corredor em frente ao meu gabinete, e permanentemente ocupado por uma miúda de estalo, que era script-girl como eu. Naquele dia as coisas não lhe estavam a correr bem. Estava sôfrega e ansiosa, devido a uma decepção. E às tantas ouço-a gritar, Tu não me podes fazer isso! E sai do telefone numa corrida, deixando o auscultador pendido. Tive de me levantar para ir pousá-lo no bocal e antes, a curiosidade mata, levei-o ao ouvido, no intuito de ouvir a voz do animal que magoava uma lasca daquelas. E ouço do outro lado, “Ao segundo sinal serão 12 horas, 42 minutos e treze segundos…” Era o Serviço do Tempo. Ela já não estava muito boa da cabeça, e aquela era a sua evasão. No dia seguinte demiti-me.

5 Jan 2017

Entrevista | António Paula Saraiva, autor de “Árvores e Arbustos de Macau”

“Árvores e Arbustos de Macau” é um livro que resulta de quatro anos de trabalho e descreve as mais de 200 espécies da flora local. Da autoria de António Paula Saraiva, a obra é a ilustração da natureza do território e serve de alerta para a necessidade de a conhecer. Está disponível em Janeiro

[dropcap]P[/dropcap]orque é que sentiu necessidade de explorar as espécies de Macau?
Considero que uma das falhas da nossa educação é o pouco caso que se faz da educação biológica. Tenho feito perguntas a várias pessoas acerca de aspectos que, para mim, são muito simples, e as respostas que tenho tido mostram um profundo desconhecimento dos factos mais simples da biologia ou mesmo do ambiente em geral. Tenho um amigo, por exemplo, uma pessoa informada, que ficou muito espantado quando lhe falei do nome das nuvens. Nem lhe passava pela cabeça que as nuvens pudessem ter nome. A maior parte das pessoas desconhece o nome das rochas e anda à procura de Pokémon, que são coisas que nem existem.

Considera que há um desconhecimento da realidade natural à nossa volta?
Sim. Hoje em dia as pessoas passam largos anos na escola e, no entanto, não sabem o nome das árvores que as rodeiam. Mas, por exemplo, sabem as marcas de automóveis. Se não existissem carros, o homem poderia viver, mas sem árvores, não. Há 200 ou 300 anos, havia um interesse e um conhecimento da botânica que não existe hoje. Penso que houve uma regressão. Não só estávamos numa fase de exploração activa do mundo, como havia o espanto da descoberta. A curiosidade acaba por se estender às plantas. Outro aspecto importante é que, antigamente, os remédios eram encontrados nas plantas e por isso muitos botânicos eram médicos. Dizia-se por brincadeira que as senhoras de um certo estrato social tinham de tocar piano e falar francês, mas houve épocas também em que o conhecimento da botânica era um apanágio do homem culto. É algo que hoje em dia desapareceu.

O facto de actualmente existir uma maior consciência ecológica em nada contribui para um maior conhecimento da botânica?
Isto é discutível, mas há muitas coisas que são fingidas e não correspondem à realidade. Toda a gente gosta de falar em ecologia, mas depois isso não se traduz em verdadeiras preocupações. Por exemplo, fala-se que é preciso gastar menos energia, mas as pessoas cada vez têm mais aparelhos de ar condicionado. É uma preocupação um pouco postiça.

Neste estudo da flora local, que particularidades encontrou?
Há um aspecto muito característico de Macau e ainda pouco estudado: a existência das raízes aéreas. Vemos as plantas crescerem contra a lógica porque há situações em que não há terra, nem água e as plantas continuam lá. Isso significa que se estão a alimentar através dessas raízes e sem suporte, mas ainda não se sabe como.

Em Macau há uma maior quantidade desse tipo de plantas?
Talvez, porque este tipo de plantas aparece mais em lugares com muita humidade.

Como é que decorreu toda esta investigação?
Não se pode dizer que seja uma exploração exaustiva, mas tentei que fosse completa. Há dois aspectos que contribuem para que não seja uma investigação exaustiva. Um deles é que estamos na era da globalização e, como tal, aparecem cada vez com mais frequência espécies de outras regiões. Por outro lado, e em relação às plantas espontâneas, há umas que apresentam características mais especiais e por isso saltam à vista, e outras que se confundem. Logo, é possível que aquelas que não apresentam aspectos muito característicos ou distintivos acabem por passar despercebidas e não constem no meu trabalho.

Mencionou a globalização e o acréscimo de espécies com esse fenómeno. Macau é um lugar de misturas. Podemos aplicar a miscigenação à flora local?
Posso responder de duas formas a esta questão. As pessoas quando vão para outros locais adaptam-se sempre, mas tentam também ter algo do seu mundo de origem. Um aspecto muito característico deste fenómeno verificou-se na Nova Zelândia em que os ingleses que foram para lá tentaram recriar a fauna do seu país. Em Macau verifica-se, por exemplo, que houve pessoas que trouxeram videiras. As videiras são características de climas mediterrânicos, mas infelizmente aqui já desapareceram quase todas com o avanço da urbanização. Mas ainda se encontram figueiras que, também sendo do mesmo tipo de clima, permanecem. As misturas culturais não se aplicam à botânica. Existe mesmo a noção de espécie invasora, ou seja, uma espécie que provém de uma outra localização geográfica, mas que se instala de tal forma que começa a acabar com a flora espontânea. Para dar um exemplo conhecido, em Portugal tem havido várias campanhas para acabar com as acácias que são da Austrália ou mesmo com o chorão das praias.

Podemos dizer que este trabalho é o primeiro do género a ser publicado, visto ser uma compilação e estar em três línguas, português, inglês e chinês?
Existe em Macau uma publicação acerca da flora local, mas só está publicada em chinês. É muito completa mas tem a limitação da língua. Nesse sentido, este livro tenta ser mais abrangente a chegar a pessoas que possam falar português ou inglês também. É um livro que tenta entrar por outros caminhos que ainda não foram explorados, nomeadamente o aspecto da reprodução das plantas que, para mim, tem uma importância fundamental: estamos numa época em que tudo é comprado, há viveiros onde se podem comprar as plantas, mas pode ser interessante as pessoas cultivarem as suas próprias espécies e, para isso, é necessário terem alguns conhecimentos. Os livros de botânica que existiam falavam apenas das plantas e não na sua cultura. Outro aspecto que também tentei abordar foi a história da introdução das plantas em Macau. Não havia praticamente fontes sobre a introdução de espécies no território. Encontrei apenas duas listas, uma de 1886 e outra de 1933 mas, entretanto, devido ao fenómeno da globalização e até do enriquecimento de Macau, foi possível trazer mais plantas para cá. Um número razoavelmente grande de espécies já entrou no território perante os meus olhos. É um dos capítulos mais insuficientes do livro e que gostaria de explorar mais, mas acabei por achar que era melhor pôr alguma coisa, e dar início a essa abordagem, do que não pôr nada. Quando introduzia espécies não tinha, por vezes, o cuidado de fazer uma descrição dessa introdução. Isso depois teve de ser feito a partir da memória.

Com factores como o desenvolvimento do território e a poluição, a flora está em risco?
Os chineses gostam mais de fazer as cidades em locais planos ao contrário dos europeus que preferem cidades em colinas. Aqui deitam por vezes montanhas abaixo para planar o terreno e é aí que fazem as suas cidades. No caso de Macau, toda aquela zona do Cotai é uma zona plana e isso leva a que as plantas localizadas nas montanhas estejam mais protegidas, enquanto aquelas que se situam nos locais mais baixos estão mais em risco ou já foram mais ou menos eliminadas. Não totalmente porque, sendo plantas de sítios húmidos, têm mais resistências do que as de sítios secos. Com certeza que a poluição causa danos; no entanto, como é que isso se traduz na evolução da população ou no desaparecimento de certas espécies, já é mais difícil de afirmar.

Quais as maiores dificuldades que teve na concepção deste livro?
Há espécies que não são de fácil identificação e, por isso, pedi ajuda a colegas para o fazer de uma forma mais precisa.

Este é um livro acompanhado de ilustrações. Porque é que decidiu recorrer a este tipo de representação?
O livro tem ilustrações técnicas na parte geral e depois tem a descrição das espécies acompanhadas por fotografias. A opção pelas 44 ilustrações que foram feitas pela Catarina França e pela Mafalda Paiva foi um retomar da tradição dos antigos botânicos que faziam, numa altura em que não havia fotografias, ilustrações e muitas delas muito bonitas. Quando se tira uma fotografia, a planta, que é constituída por uma série de planos, vai aparecer com aspectos focados e outros mais desfocados. Por outro lado, os desenhos têm ruído, ou seja, têm muitos aspectos secundários que dispersam a atenção. Nestas ilustrações todos os órgãos da planta aparecem ‘focados’ para que a sua leitura seja fácil. Há um ajeitar da natureza de forma a torná-la mais compreensiva. Mas foi sobretudo uma homenagem aos antigos botânicos.

EXPOSIÇÃO

https://www.facebook.com/events/1078674292241318/

Entre os dias 29 de Dezembro e 13 de Janeiro, os desenhos da flora de Macau que ilustram a obra de António Paula Saraiva serão objecto de uma exposição no auditório do Instituto Internacional de Macau. Para acompanhar o evento basta seguir a ligação em cima.


29 Dez 2016

Língua suja

FACEBOOK, LISBOA, 13 DEZEMBRO

[dropcap]N[/dropcap]os terrenos da minha infância cresciam unas ervas esguias com tons de primavera e sabores invernosos. Depois das corridas e outras ocupações suadas, espremíamos o seu suco entre dentes. A sabedoria científica do bairro chamava-lhe azedas, mas a palavra não contém o arco-íris de sabores agridoces. Este poema-raio da Rita Taborda Duarte, que espremi, entre afazeres, soube-me a azeda. E fez chorar um gajo que nunca será mãe, e dificilmente será mulher, também pela razão simples de que tem saudades de filhos que não chegou a parir.

«QUANDO A MULHER SE TRANSFORMOU MÃE // As mães,/ azedas,/ transformam em leite/ tudo aquilo em que tocaram e/ aflitas / escavam uma cova funda no coração do útero.// Todos os meses têm mênstruos férteis/ e povoam o mundo com as saudades / dos lhos/ que não chegaram/ a parir// Só depois/ puxam como Arianes loucas/ o cordão dos lhos entrançado/ na meada da infância/ – dobam-no até à raiz do tempo –/ e guardam no ventre desabitado/ o novelo de uma imensa solidão»

EL CORTE INGLÉS, LISBOA, 13 DEZEMBRO

Mais uma sala cheia para ouvir Helder Macedo lançar preciosas pistas de navegação no alteroso oceano que é a obra de Shakespeare. Outro espectáculo subtil da inteligência, não apenas na análise das quatro obras, centrada em um conceito (culpa, em Hamlet; nada, para Rei Lear; traição, em Otelo; bond, i.e., vínculo, título de dívida, e mais…, para O Mercador de Veneza), mas nas múltiplas articulações com os nossos dias.

Interessa-me, aqui e para já, cometer a inconfidência da conversa ajantarada e avantajada. O Helder foi Secretário de Estado da Cultura de uma breve e exaltante experiência de governação, capitaneada pela carismática e saudosa Maria de Lurdes Pintasilgo, nos finais de 1970. Isso, de par com a sua posterior candidatura à Presidência da República, marcou o fim da minha infância, de complexa e azeda maneira. Tê-lo, à mesa, a testemunhar de um tempo que fez um nó no tempo, derrubou as paredes da sala e colocou-nos, também ao José Anjos e à Susana Santos, no meio de um filme, misto de Buñuel com Pasolini e pitada de Fellini. Muito do que agora se dá por adquirido na cultura de Estado, apesar das ameaças constantes, teve então gestos primordiais, que valia a pena revisitar. Como esse estranho episódio de interrupção da democracia por razões técnicas à maneira do canal único de televisão, cometido pelo governo que se lhe seguiu, liderado por Sá Carneiro, com Vasco Pulido Valente no lugar de SEC e onde surge – nas Finanças, claro! – a sombria figura de Cavaco: cada uma das medidas tomadas pelo governo Pintassilgo foram suspensas, nalguns casos até ao nível do despacho. Um deles autorizava a resolução de problema eléctrico no Museu de Arte Popular, que acabou por estar na origem do célebre incêndio que destruiu preciosa obra colectiva (Vieira da Silva, Pomar, João Vieira, entre muitos outros), na qual se celebrava o primeiro aniversário da revolução. Shakespeare, sempre tão próximo.

PASSEVITE, LISBOA, 17 DEZEMBRO

A polémica que por aqui lavra confirma o peso das palavras. O Ricardo Araújo Pereira disse que hoje seria difícil hoje fazer uma velha rábula com «anões, coxos e mariconços», que incluía também vesgos, fanhosos e atrasados mentais. A provar que tinha razão, explodiu uma troca de argumentos muito interessante. Ou quase. Eduardo Pitta, no seu blogue armou que «Ricardo Araújo Pereira lamenta não poder achincalhar os mariconços. Eu não sei o que é um mariconço.» Paulo Corte-Real, da Ilga, fez o curto-circuito aos crimes de ódio. “Conhecendo a dinâmica dos crimes de ódio como conheço, também conheço a sua ligação aos insultos.” Hoje, no Expresso, a deputada Isabel Moreira acrescenta uma aula de ciência política. «Se achas mesmo que a liberdade de expressão não deve ter limites e que não devemos ceder à autocontenção do discurso, és de direita, sabias?». A liberdade, diz ela, embora com nuances, é valor de direita. A esquerda é mais igualdade.

Defendo, como absolutamente basilar, o direito até à ofensa no contexto do humor, do jornalismo e da literatura. Tanto faz que candidata a guru de seita me exclua. Ainda tenho a fraternidade.

A pele das palavras muda e é divertido imaginar que as conseguiremos limpar até ficarem brilhantes de tão puras. Velho tornou-se depreciativo? Chamemos-lhe sénior. Demos-lhe mais anos de vida? Anão passou a magoar? Tratemo-lo por indivíduo desproporcional ou de baixíssima estatura. Com isso cresceu?

Uma amiga contou-me da dificuldade que teve, ao longo de meses, em passar a tratar por clientes os deficientes com quem trabalha. A bem do rigor, foi banido o uso de utente, paciente, etc. Hesitei na palavra deficiente, mas melhora se a substituir por pessoa portadora de deficiência? Não creio que o combate vital à descriminação se resolva assim. E perigosa me parece esta deriva, em gente tão atenta aos detalhes da língua, que lê insulto no humor. Obviamente, o humorista não está livre de crítica e pode ignorá-la, mas também desaparecer por falta de graça. Ora uma das grandes conquistas da civilização, a duras expensas, foi a liberdade de expressão e do grito, por exemplo, no espaço polémico do desenho de humor, da caricatura. Como em inumeráveis atitudes e leis censórias, o argumento de defesa dos assassinos dos desenhadores do Charlie Hebdo foi a defesa da honra perante terrível ofensa, no caso, religiosa. Defendo, como absolutamente basilar, o direito até à ofensa no contexto do humor, do jornalismo e da literatura. Tanto faz que candidata a guru de seita me exclua. Ainda tenho a fraternidade.

André Carrilho, que inaugurou ex- posição de brutais serigrafias (Uppercut, na Passevite, até 5 de Janeiro) feitas a partir dos seus cartoons (o que ilustra a crónica foi capa do DN na sequência do Charlie Hebdo), que se acautele: vai ter que emagrecer muito gordo, revestir muita careca e corrigir narinas. Ele tem histórias para contar.

HORTA SECA, LISBOA, 18 DEZEMBRO

Acabo de saber que, segundo um colega editor, as edições da abysmo são «apanascadas». Deu-me uma alegria redentora que nem vos conto.

21 Dez 2016

A vida fechada a tijolos

[dropcap]I[/dropcap]maginai uma casa ou um edifício sem portas, sem janelas, apenas com espaço interior fecha- do em si mesmo, como se alguém tivesse posto tijolos a fechar as janelas e as portas, para que ninguém mais possa entrar! Como aqueles edifícios que encontramos nas partes antigas da cidade, que já foram espaços com alegria e hoje são vazios, como unhas ocas. Uma casa totalmente fechada no seu interior, como um humano sem portas e sem janelas para outro. E agora imaginai que isso é um livro de poesia: A Habitação de Jonas, de Inês Fonseca Santos; que o edifício é uma baleia e que no espaço, lá dentro, há um homem. Jonas habita a baleia, a solidão, o isolamento eterno a que está votado; foi condenado a ser só como todos nós. “Jonas caminhava por procurar outro. / Talvez ele existisse: / o homem dos sinos. / Talvez ele fosse um homem infinito.” (p.13) Neste início de poema, o VI da parte “Primeiro Dia Primeira Noite” dá-nos a confirmação de que habitação se fala aqui neste livro. Uma habitação fechada para a rua e onde se caminha por procurar outro. Procurar outro não é um m. Jonas não caminha “para” outro ou para procurar outro, Jonas caminha “por” procurar outro, Jonas caminha como quem vai ser só para sempre. Jonas é um infinito de só, uma casa completamente fechada, sem portas, sem janelas, uma casa para nada.

No poema II (p. 9) lê-se: “Apenas uma sílaba com som: dor. // Jonas soube: não existia / na cidade outro homem.” Esta condição de Jonas, esta imagem do humano enquanto Jonas, que está só, completamente só na cidade, caminhando por procurar outro é uma imagética profunda do que é o ser humano, uma parábola à dimensão do paradoxo da existência. Devemos repeti-la, porque a cada esquina nos é repetida. Devemos repetir, porque a cada página nos é repetida, a cada verso. E não há parábola sem a febre da imagem e um horizonte de sentido, ainda que longínquo, ou que possa parecer longínquo. Leia-se o segundo poema do livro (p. 8):

“Jonas chegou a casa:
no lugar da porta, a boca do peixe.
Empurrou um dente, entrou. Sentou-se

na enorme afta daquela língua
desconhecida que habitava.
Olhou em volta: um lugar em ruínas, não
uma casa em ruínas; uma boca
tentando ser uma cidade inabitada.

Na primeira cidade com hálito, os sinos
soavam de quarto em quarto
de hora.”

E é aqui que estamos, no livro como na vida: num lugar em ruínas, não numa casa, mas num lugar.

“Jonas levantou-se. / Queria arrumar o coração no lugar / certo, descer por ele até mais do que uma sílaba: / até uma palavra.” (p. 10) Em todas as páginas, em todos os versos ao longo deste precioso livro escutamos as nossas próprias vidas, mais próximas do que se fosse dela mesma, a nossa, que a poeta escrevesse, tão mais próximo como só a imaginação que transfigura o sentimento o pode fazer. A demanda de Jonas é a nossa demanda. E o outro é o próprio, que busca outro como a si mesmo. Uma palavra basta, uma palavra. Mas onde escutar essa palavra? Onde há essa palavra, que se houver nos basta? O que seguir, que caminho seguir para encontrá-la? Não será essa palavra uma boca, um beijo, um coração puro a palpitar nas mãos de todos os nossos sonhos, eternamente sonhos? Os dias, aquilo que deram a Ruy Belo, ao invés da vida – Eu vinha para a vida e dão-me dias (Ruy Belo in Homem de Palavra[s]) – é o que nos dão a todos, o que dão a Jonas, nesta boca, nesta cidade, neste livro. Quem ao andar na rua não sente agora as paredes altas do céu da boca da baleia, o tecto opaco da vida, o badalo do sino antes da descida vertiginosa para o estômago do animal? A cada esquina que viramos ouvimos os sinos, a anunciação de nenhuma palavra, a lembrança do silêncio que nos veste como uma farda. “Era uma voz / de abismo, de fundo de copo, / E repetiu: dor.” (p. 11) Lisboa, a baleia por onde ando, por onde a poeta escreve, a cidade onde não há outro homem. Em nenhuma cidade há outro homem, mas esta é a minha baleia. Esta é a minha baleia, grita por um livro inteiro a poeta Inês Fonseca Santos. Lisboa, a minha baleia; eu, Jonas, a caminhar por procurar outro. “As paredes, ao se afastarem os móveis, / erguem-se, despidas, coradas até à raiz dos rodapés, / como paredes sem móveis: demasiado brancas (…)” (p. 5) A loucura não é a vertigem do álcool, o voo das drogas, a euforia dos corpos, um armazém chinês com tudo o que não nos faz falta. A loucura é a casa vazia, sem janelas, sem porta, as paredes brancas de nada, os móveis velhos e gastos, afastados dos rodapés, mostrando os anos que passaram, os anos que passaram para nada, pois nada se viu, nada vimos, nada aprendemos, nada cresceu dentro de nós, como cresce no interior de uma grávida. Só engravidando não somos sós. Só engravidando não somos um vazio puro, uma ruína. E depois? E depois da gravidez? De novo um ruína de nós mesmos, uma ruína da infância. Uma ruína do que poderia ter sido, sem que na realidade alguma vez pudesse ter sido, pudesse ser.

“VIII
Jonas só compreendeu a palavra
‘ferida’ ao alcançar o topo da língua.
Assistiu, do monte, à invasão da cidade:
coágulos de sangue cobrindo a grande boca.
Jonas sufocou. Pôs sobre os olhos
as mãos. E desejou nos ouvidos o toque
dos sinos.”
(p. 15)

Desejamos. Desejar é uma pele, uma segunda farda, a farda dos dias de festa, a farda com que vamos aos dias de gala, para além da farda do silêncio do dia a dia. Esta é a nossa vida, grita Jonas, pôr as mãos sobre os olhos e desejar o toque dos sinos. Que sabemos de nós? Como caminhar por procurar outro e não sabermos quem somos? Como não desejar a música dos sinos, as palavras silenciosas da música, que nos tocam, literalmente nos tocam, que nos fazem vibrar como o tempo vibra numa ruína. “Paredes, estais hoje mais velhas do que nós”, escreve num verso, a poeta. Nós estamos mais velhos do que nós, escrevo eu. As ruínas, as paredes, o tempo a descascar a vida, a descascar a vida e a deixar marcas nos dedos sujos, desta nossa consciência a assistir a tudo. “A nossa vida, disse ela, / aqui de cima.” (p. 22) A nossa vida, diz a consciência, aqui de cima. E o que a consciência se dá mal com os dias! E o que a consciência se dá mal com as ruínas! E o que a consciência se dá mal com a sua própria ruína! Jonas, sou eu agora que te peço, eu o teu leitor, eu aquele que te traz aqui à beira de seres outro, à beira da estrada de seres outro, não me mostres mais o que é a vida, não me escrevas mais estes versos: “eram pedaços de intestino, / onde também dói / quando tudo o que resta / é uma porta fechada // sobre a memória, / sobre ela / sobre mim.” (p. 28) A vida fechada como uma casa onde puseram tijolos no lugar de portas, onde puseram tijolos no lugar de janelas, onde puseram tempo no lugar de braços, onde puseram dor no lugar de um horizonte.

Este é um livro de descida ao mais íntimo dos me- dos, à mais íntima das solidões, como só quem escreve sentimentos sobre a lâmina da imaginação o sabe. Se esta minha leitura vos parece um enorme “só”, é porque este livro é isso mesmo. Imaginai Jonas no interior da baleia! Imaginai-vos, cada um de vós, no interior da existência!

O livro, que é um objecto de arte, traz ainda um conjunto de ilustrações de Ana Ventura, cuja beleza não mitiga o terror da escrita. Termino com um poema da poeta Inês Fonseca Santos, último da segunda parte do livro “Segundo Dia Segunda Noite”:

“XI
As minhas dúvidas,
como poderei saber se são as mesmas,
se são as minhas? Perguntou-lhe
ele, erguendo-se
uma última vez.

Sentada diante dele, ela
agarrou a certeza como ele
agarrou as pedras:
na boca e nos ouvidos, o toque
dos sinos e só então a voz.

Eu sei, como tu sabes, quem é esse que habita as paredes da casa.

Eu sei, como tu sabes, que única mão é essa que folheia os livros, que apanha as pedras.

E eu sei, como tu sabes, que ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos assim tão pequenas.

Mas eu olho, como tu olhas, essa mão minúscula
cosendo um corredor de almofadas, aguardando
que sobre elas durma.

E eu sei, como tu sabes, que essa mão translúcida comanda os versos, abusando de pensamentos e palavras, actos e omissões.

Sabes?

Antes de mim,
antes de ti,
já existia este jardim.”
(p. 30)

20 Dez 2016

Pedro Gonzaga: “Meu temor é perdermos a capacidade de dizer”

[dropcap]É[/dropcap]s poeta, cronista do Zero Hora, jornal de Porto Alegre, e professor de literatura. Como vês o estado da língua portuguesa no Brasil? E da literatura? E quais achas que são hoje os piores inimigos da língua e da literatura?
A literatura, me parece, sofre o mal da simplificação e do maniqueísmo que tomaram as ideias e a expressão das ideias (a linguagem) em nossos tempos. A internet de potente forma de divulgação, converteu-se em leitura rápida e leviana, práticas inimigas da poesia. O português aqui em terras brasileiras ganhara, na mãos dos grandes poetas de 1930, uma encantadora fluidez e um impactante poder de expressão para os dramas sociais e individuais da nação. Meu temor é perdermos a capacidade de dizer. Mas acho que esse é o temor de todos os poetas.

O Brasil é um continente e tu vives na capital de um dos estados fronteiriços, Rio Grande do Sul. Há em Porto Alegre conhecimento da poesia que se faz na totalidade do Brasil, ou fica-se pelo chamado eixo Rio – São Paulo? E neste eixo, a poesia do Rio Grande do Sul chega lá?
O Rio Grande do Sul é uma ilha, em certo sentido autônoma, mas, sem dúvida, bastante isolada. Nosso norte máximo é São Paulo, Rio de Janeiro se pensamos no Brasil tropical. A poesia encontra grandes dificuldades de divulgação num país continental como este, e com tantas diferenças regionais. Para muitos, entre os quais me incluo, o nosso eixo cultural está muito mais voltado para a Bacia do Plata, ou seja, Montevideu e Buenos Aires. Também capitais isoladas em países ainda bastante rurais.

As relações culturais entre Porto Alegre e Buenos Aires são mesmo reais, ou isso não passa de um mito, ou talvez de um desejo?
Há um desejo muito grande da cultura dita gaúcha de estabelecer um vínculo com o mundo platino, Uruguai e Argentina. Me parece que há uma ideia difusa, mas talvez verdadeira, de uma sensação das coisas ao sul do mundo.

E por falar ao sul do mundo e em Uruguai e relações fronteiriças, não podia deixar de te perguntar por esse grande romance, que é Don Frutos, de Aldyr Garcia Schlee, passado na Jaguarão de finais do século XIX, e os últimos seis meses de vida de Frutuoso Rivera, o primeiro presidente do Uruguai. Que dizes desse romance? Sei que o Brasil ainda não o descobriu, mas ele já se torna incontornável no Rio Grande do Sul?
Aqui no Brasil, mas creio que no mundo todo, há certas injustiças literárias inexplicáveis. É o caso desse livro magistral chamado Don Frutos, que tem aquele aspecto de narrativa infinita que só os grandes romances podem ter. Seu conteúdo e sua linguagem local me parecem superáveis como acontece com Grande Sertão: Veredas, por exemplo, de Guimarães Rosa. Para a cultura sulista, como tu bem disseste, é incontornável. O que só torna mais grave o silêncio que aqui se faz. Era livro para estar em todas as escolas do Rio Grande do Sul.

Neste momento, no Rio Grande do Sul, parece-te mais pujante a poesia ou a prosa? E no resto do Brasil, és capaz de responder, apesar do continente gigantesco, que é o teu país?
É um momento bastante complicado para a produção artística no Brasil. Com as grandes conturbações sociais, os escritores parecem estar perplexos, incapazes de sínteses e mesmo de depoimentos pessoais consistentes que ultrapassem a mera ideologia partidária. O romance, com seu poder totalizante, e também mercadológico, ainda não viu surgir um panorama da Era FHC, ou da Era Lula. A poesia, num país continental como este, não consegue espaço para divulgação e acaba fenecendo. No entanto, é geralmente nessas horas que se erguem novas vozes criativas. Quem sabe o conto pudesse voltar a explodir, como nos anos 60. Mas nesta arte, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan ainda são para mim as vozes mais interessantes dos últimos cinquenta anos. Quanto ao romance, há um belo romance de Paulo Scott, chamado O Habitante Irreal, que trata da questão indígena no Brasil, com uma visão social contundente e uma forma bem arrojada.

Quanto à poesia no Brasil, ela carece de um ressurgimento. Desde o esgotamento da geração dos poetas marginais, da morte de Ana Cristina César, depois do Leminski, cuja obra me parece supervalorizada, o que há é uma espécie de poesia preguiçosa que lhes é herdeira, feita de trocadilhos e linguagem midiática, ou então um outro caminho também frouxo, de temática social, nada inovativa, seja em forma ou conteúdo. Há um tipo também de poesia desencantada, de cotidiano, que me desagrada bastante, marcada por um prosaísmo que não tem luz ou revelação. Claro que há belas exceções, os consagrados Antônio Cícero, Eucanaã Ferraz e Paulo Henriques Britto, e pelo menos dois nomes da nova geração: a anteriormente mencionada Mariana Ianelli e também um conterrâneo aqui do sul, um poeta chamado Diego Grando.

Esta semana escrevi aqui para o jornal sobre um livro que me impressionou muito, em dez anos de Brasil, Página Órfã (2007), de Regis Bonvicino.
Uma bela lembrança. Bonvicino tem a força, a contundência que me parece tantas vezes faltar em nossos tempos. A verdade é que há muita gente boa espalhada nesse país com tamanho de continente. Impossível não cometer injustiças e esquecimentos.

Tens dois livros de poesia publicados, Última Temporada (2011) – que foi abordado aqui no Hoje Macau – e Falso Começo (2013). Para quando o teu terceiro livro?
Deve sair aqui no Brasil no início de Maio do ano que vem e haverá de se chamar Em Outros Tantos Quartos da Terra. Terá apresentação da Mariana Ianelli.

16 Dez 2016

Literatura | Carlos Morais José convidado para o Correntes d’Escritas

É inédito: em 2017, o mais importante festival literário de Portugal vai contar com um autor do território. “O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja” é o bilhete que leva Carlos Morais José até à Póvoa do Varzim. O escritor quer que, com ele, sigam todos os outros que não são devidamente reconhecidos

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi com surpresa que Carlos Morais José recebeu o convite: o autor vai participar na edição de 2017 do festival literário Correntes d’Escritas, um evento que se realiza na Póvoa do Varzim e que conta, ano após ano, com os principais nomes da literatura em português.

“Estou surpreendido porque não é habitual Macau ser considerado como ponto literário da lusofonia. Por outro lado, sinto-me muito honrado com o convite, na medida em que este é o mais importante festival literário de Portugal, com extensões ao Brasil e aos países de língua castelhana”, explica. Pela importância do evento, Morais José espera poder “representar bem a RAEM, mostrando que por aqui existe um forte movimento cultural lusófono, cujas raízes mergulham numa relação secular entre duas grandes civilizações: a chinesa e a portuguesa”.

Porque vive em Macau há 26 anos, o autor fala numa “escrita de exílio”, que é agora reconhecida, o que o deixa “muito satisfeito”. “Mais por Macau do que por mim”, diz. “Esta cidade é, em si mesma e na sua mitologia literária, praticamente inesgotável e há ainda muito por descobrir e explorar.”

Quanto à importância que poderá ter a participação no festival da Póvoa do Varzim, Carlos Morais José confessa-se “algo eufórico” com o facto de, pela primeira vez, um autor de Macau ser convidado a participar.

“Espero levar comigo a literatura lusófona de Macau e farei um esforço no sentido do seu reconhecimento. Escritores como Alberto Estima de Oliveira, Henrique de Senna Fernandes, Luís Gonzaga Gomes, Deolinda da Conceição, Fernando Sales Lopes, Manuel Afonso Costa, Fernanda Dias, António Conceição Júnior, Yao Feng, entre outros, sem nunca esquecer Camilo Pessanha, precisam de ser referenciados e divulgados no espaço lusófono, impondo a RAEM como um lugar extremo da lusofonia onde vivificam de forma singular as letras em português”, explica.

O escritor não deixa de salientar que “é espantoso que em Macau subsista uma tradição muito própria de escrita que, fugindo ao mero exotismo, tenha um lugar na universalidade da nossa língua”. Por isso, pretende que a participação no Correntes d’Escritas consiga contribuir para a divulgação do território “como um espaço longínquo onde o português acaba e o nada começa”.

“Se Pequim pretende fazer desta terra uma ponte para a lusofonia, será sobretudo através da cultura que a nossa comunidade poderá desempenhar um papel útil a esta região”, defende. “A minha escrita, apesar de compulsiva e individual, gostaria de ser uma chave para abrir portas até hoje fechadas, e espero que o foco sobre o meu trabalho seja suficiente para iluminar as obras de outros autores locais que escrevem em português e mesmo a de alguns autores chineses locais, cuja obra se encontra imbuída de características únicas, no contexto da Grande China”. É que, entende, “Macau precisa de ser conhecido no mundo lusófono, além dos casinos e do exotismo bacoco”.

O encanto da ficção

O convite para a participação no Correntes d’Escritas surge depois de ter sido lançado em Lisboa o livro “O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja”, uma obra que foi apresentada esta semana em Macau. É um texto que foge ao que têm sido as incursões literárias de Carlos Morais José.

“Estou surpreendido pela aceitação que o livro está a ter, mas o facto de ser uma novela ajuda muito, pelos vistos, à sua divulgação e aceitação – muito mais do que a poesia ou outras formas literárias, geralmente consideradas mais elitistas e destinadas a um público muito específico”, observa.

“A minha obra é diversificada mas, até agora, não incluía este tipo de ficção. Por isso, de certo modo, não me espanta que a prosa ficcionada tenha mais aceitação do que o resto. As pessoas adoram ouvir histórias porque as fazem sair do seu próprio mundo e entrar num outro reino.” Mas não é só isto: “Parece-me que a minha novela também interroga o leitor de uma forma extrema, na medida em que apresenta um personagem cheio de defeitos e malícias, ou seja, como todos nós. Só uma estrutura moral muito forte nos afasta do Mal e, mesmo assim, crescem dúvidas. Assumem a forma de ervas daninhas na nossa mente mas, ao mesmo tempo e pelo contrário, são essas mesmas dúvidas que instituem a riqueza dos indivíduos e a sua capacidade questionadora e criativa”.

Carlos Morais José é licenciado em Antropologia e vive em Macau desde 1990. É director do Hoje Macau e proprietário da editora Livros do Meio. A 18.a edição do Correntes d’Escritas acontece entre 21 e 25 de Fevereiro de 2017.

15 Dez 2016

Irmãos esquecidos

Santa Bárbara, Lisboa, 27 Novembro

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste exercício de andar à gandaia de sobras dos dias para compor em colagem nem sei bem o quê tem algo de perturbador. Se me pede avaliações, aqui e ali penosas, também me obriga a ser capaz de suspender toneladas de afazeres em atraso. A mão que escreve arrasta esse peso. E quando acontecer que nada tenha vivido ou visto ou lido que interesse, que nos interesse? E quando o cansaço me vencer? Este que rima com as marés.

Biblioteca Camões, 29 Novembro

Foi por mensagem que chegou o aviso da chegada do Carlos Quiroga, com quem tenho assuntos pendentes, que o mesmo é dizer livro no prelo. «Uma cerveja no inferno ainda presta.» Soou-me logo o sotaque, onde noto, vá-se lá saber porquê, nevoeiro e ternura. Descia da Finisterra para atirar de varanda de biblioteca A Imagem de Portugal na Galiza, em espelho com essoutra, de Carlos Pazos-Justo, A Imagem da Galiza em Portugal. Li de um fôlego o pequeno volume e dei-me conta de quão longe morava deste assunto. Sabia vagamente das causas, sobretudo em torno da língua que, apesar dos afastamentos, teima em dizer-se a mesma. Não tinha tomado consciência de que, como o Carlos logo explica a abrir, o seu assunto pedia que o outro fosse estrangeiro, o que não é o caso de Portugal para os galegos. Mesmo resolvida, com porosidades, a questão das fronteiras, «os laços de família por via da emigração e troca continuada», sobretudo mais a norte, fazem com que não haja a distância essencial para o retrato. Que irmão esquecemos no sótão? Que sabemos dele, mais do que nos foi dizendo Fernando Assis Pacheco? Desconfio bem que muito pouco. Solidamente sustentado em numerosas e variadas fontes, começa por tornar claro o óbvio: não nos podemos pensar sem eles, pedaço esquecido de uma mesma entidade, que a língua tanto ajuda a coser como a desatar. «Portugal para a Galiza ou é indiferente ou é uma espécie de Paraíso perdido. A Galiza, sendo Portugal, é o espaço-cabeça de um corpo crescido para o mar e sobre o mar que tem esquizofrenicamente saudades desse corpo, hoje separado. Uma parte da consciência da Galiza, pequena, teima em reverter as consequências de circunstâncias históricas concretas que a separaram de Portugal, que por outra parte e desde há séculos, criou novas cabeças, e acha ainda nessa ligação um ponto de apoio fundamental para construir a sua identidade.» De tão próxima, esta solidão afigura-se-me bastante ingrata. Alguém que nos lê, cultura e língua, com extremosa atenção e disso faz lugar de resistência merece mais, muito mais. Lá vociferava o Assis: «Indignar-me é o meu signo diário. / Abrir janelas. Caminhar sobre espadas. / Parar a meio de uma página, / erguer-me da cadeira, indignar-me / é o meu signo diário.»

Costa da Caparica, 30 Novembro

Acompanho Artur Henriques e a sua pequena tribo a um daqueles não-lugares, ao Centro Comercial O Pescador, para mais uma sessão em torno de livros organizado pela associação Gandaia, que é animada, entre outros, pelo meu velho amigo, de costela macaense, Ricardo Salomão. Goa, Ida e Volta, ao contrário do que o título parece sugerir, não reúne apenas memórias do serviço militar ali passado no final dos anos 1950 e de um regresso ansiado duas décadas depois. Em pinceladas impressivas e grande sentido da pequena história, também o meio publicitário e artístico e a própria cidade de Lisboa vão surgindo no retrato. Fascinante, o seu modo nonchalant de viver, continuamente de bem na própria pele, tomando o mundo por casa, como em canção de Françoise Hardy, mesmo quando o entorno se esboroava. Ele há gente assim, capaz de fumar um cigarro enquanto a polícia política lhe vasculha o atelier. E de, quando um agente lhe pede cigarro, responder “não posso, só tenho 19”. Na plateia, contudo, o interesse ia direitinho e por completo para Goa: como se vivia no quotidiano, como eram vistos os soldados ou tão só Portugal, e mais longuíssimo etecetera. Não me anima, por me parecer aquecido pelos lumes do politicamente correcto, esta tendência outono-inverno do pós-colonialismo, mas as questões da identidade continuam mais vivas que cardamomo em sarapatel. A Gandaia é um daqueles projectos que vivifica os não-lugares, gestos brutos de cidadania que nos vão empurrando para fora da mais salazarenta das heranças: a dependência absurda e claustrofóbica do estado. Sem alarde, estou em crer que esta federação de vontades vai ajudando a perceber o mais óbvio dos esquecimentos de Lisboa. Quantas capitais, no mundo inteiro, estão tão próximas da praia? Do oceano?

Horta Seca, Lisboa, 3 Dezembro

António Variações nasceu num destes dias (frios) no campo e a norte. Era excêntrico, que o mesmo é dizer, ousou-se. Hoje, até os concêntricos vestem extravagâncias, mas perderam o interesse. Que os move, se Nova Iorque se cruza com Braga? «A vida é sempre uma curiosidade / que me desperta com idade / interessa-me o que está para vir / a vida, em mim é sempre uma certeza / que nasce da minha riqueza/ do meu prazer em descobrir.» Ouvi-lo a cantar Amália (Povo que lavas no rio) e depois ouvir Camané a cantá-lo a ele (Quero é viver) pode bem tornar-se início de conversa sobre identidades.

Horta Seca, Lisboa, 4 Dezembro

Fidel Castro morreu. A sua importância histórica, se preciso fosse, pode medir-se nas enormidades ditas nestes dias, onde se deve incluir o gosto pelo vinho do Porto e ascendência galega. Edel Rodriguez, ilustrador cubano que lhe desenhou muitas vezes o rosto, escreveu, por dentro do assunto, uma perturbadora metáfora: «Tentei descobrir uma maneira de explicar a situação a alguém que a não viveu. Comparei, então, Castro a um pai abusivo, um monstro, que bate brutalmente nos filhos em casa e depois os leva a jantar ou brinca com eles em público. Toda a gente vê as boas acções, mas não percebe o que, de facto, se passa em casa. A não ser as crianças, que, por terem vivido assim o tempo todo, acham que é a única realidade. Até podem ir ao seu funeral e derramar algumas lágrimas, porque ele foi o único pai que eles conheceram.»

7 Dez 2016

Livro | João Botas investiga a vida de Manuel da Silva Mendes

O jornalista e vice-presidente da Casa de Macau em Portugal, João Botas, passou por cá para apresentar o livro “Wartime Macau – Under the Japanese Shadow”. Ao HM, falou do novo trabalho que tem em mãos e em que aborda a vida de Manuel da Silva Mendes, figura da história local que, considera, tem sido “menosprezada”

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om fortes ligações a Macau, onde nasceu e viveu até ir para a universidade em Portugal, João Botas está a preparar mais um livro sobre a história de Macau. O jornalista, que tem dedicado os últimos anos à exploração do passado local, vai dedicar a próxima obra a Manuel da Silva Mendes que, considera, é uma figura histórica cuja importância tem sido menosprezada. “A certos níveis, e é possível perceber nos livros, comparando com Camilo Pessanha, [Manuel da Silva Mendes] é muito mais significativo”, referiu ao HM.

A ideia de abordar a história de Manuel da Silva Mendes tem já alguns anos. “Em 2013, a última vez que cá estive, vim fazer pesquisas relacionadas com a história da vida de uma personalidade, para mim marcante, do primeiro quartel do século XX em Macau. É Manuel da Silva Mendes, que viveu entre 1867 e 1931”, explicou.

Com o andar da pesquisa, Silva Mendes foi-se revelando enquanto “personagem curiosa: chegou cá em 1901 e era uma pessoa discreta, formada em advocacia em Coimbra”. Já em Portugal, o advogado tinha sido o primeiro autor de um livro acerca do socialismo e do anarquismo. “A partir de certa altura, sentiu-se desintegrado: a monarquia não mudava e, ao mesmo tempo que defendia um certo anarquismo, não era um homem de ir à luta de forma muito prática. De repente, teve a oportunidade de ter um exílio para clarificar as ideias e vir para Macau. Concorreu para professor do liceu e ganhou” o lugar. De professor do ensino secundário passou a advogado, um percurso que era comum a muitos “bacharéis que, na altura, chegavam a Macau”, explica João Botas.

O primeiro sinólogo português

A relevância para Macau deste homem de início de século XX é, para o investigador, óbvia. “É um homem que, a partir de certa altura, embrenhou-se na cultura chinesa, no gosto e na ânsia de querer aprender e apreender a cultura chinesa, aos mais variados níveis.”

De entre as preferências de Silva Mendes estavam as manifestações artísticas e a filosofia, nas quais “se embrenha de tal forma que se torna um sinólogo de forma praticamente autodidacta e tão exigente para com ele próprio que não há ninguém que o tenha rebatido naquilo que ele foi escrevendo”.

Paralelamente, foi um homem que viveu os problemas do território e “ajudou a fundar alguns dos jornais de Macau, escreve centenas e centenas de artigos ao longo dos 30 anos que aqui viveu, e escreveu também os primeiros livros sobre cultura e filosofia chinesa”.

A vida política também não passaria indiferente ao advogado, e “há quem diga que foi presidente do Leal Senado”, sendo que João Botas refere que, da sua investigação, acredita que possa ter exercido o cargo mas apenas de forma interina.

Manuel da Silva Mendes não é o único vulto que João Botas considera “esquecido” na história de Macau. Ao HM referiu exemplos que mereciam mais destaque. “José Neves Catela é também um homem do início do século XX que veio para Macau. Era da marinha mercante e aqui transformou-se em fotógrafo e agente turístico, tendo trabalhado nos serviços de turismo. Tem umas fotografias brilhantes da década de 20, 30 e 40”, ilustrou o jornalista.

Uma história ímpar

Acerca da colaboração no livro “Wartime Macau – Under the Japanese Shadow”, uma obra que junta, em inglês, trabalhos de João Botas, Roy Eric Xavier e Stuart Braga, com a coordenação e edição de Geoffrey C. Gunn, João Botas conta que a ideia surgiu na sequência do livro que lançou em 2012: “Macau 1937-1945, os Anos da Guerra”.

“Na sequência disso, Geoffrey Gunn, que está em Nagasaki, desafiou-me a dar um pequeno contributo para uma edição da Hong Kong University Press.” O capítulo de que é autor “versa sobre as consequências económicas do território fruto da invasão japonesa na China, primeiro, em 1937, e depois quando a Segunda Guerra Mundial se alastra à Ásia”.

“Em Dezembro de 1941, o Japão fez o ataque a Pearl Harbour, os Estados Unidos entraram na guerra. Poucos dias depois, o Japão tinha as tropas às portas de Hong Kong e começa a invasão daquele território, que é consumada a 24 de Dezembro desse ano. A partir dessa altura, as coisas aqui mudam radicalmente”, contextualiza.

Apesar de Macau não ter sido invadido pelos japoneses, as consequências foram inevitáveis. “O anel de tropas japonesas à volta de Macau impôs um bloqueio económico total, por via marítima e também por via terrestre. Isso fez com que, por via do grande fluxo de refugiados, a população tenha quase triplicado – não há números muito fidedignos em termos oficiais –, mas terá passado de 200 mil antes da guerra para mais de 600 mil”, recordou João Botas.

6 Dez 2016

Albertine, o Continente Celeste, de Gonçalo Waddington

61216p12t1[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]onçalo Waddington acaba de editar uma nova peça de teatro, O Nosso Desporto Preferido Presente, na Abysmo, mas no início de 2015 saía na mesma editora Albertine, O Continente Celeste, livro que iremos ver aqui hoje. Esta peça de Gonçalo Waddington, composta em três actos, cruza a mecânica quântica e a teoria da relatividade com a obra de Marcel Proust, Em Busca Do Tempo Perdido, ou, como escreve o escritor Valério Romão no posfácio que acompanha esta edição da Abysmo: “(…) uma fatia do tempo perdido, [e não o todo da obra] através da qual se faz a arqueologia da narrativa de Proust (…)”.

Mas para além das relações cruzadas entre o tempo de Proust e o tempo das ciências do micro e do macro cosmos, aquilo que primeiro salta à vista é a ligação deste texto com os da tragédia grega. Em que sentido? No sentido da tradição, no sentido da mitologia, isto é, no sentido em  que Gonçalo Wadddington toma a obra de Marcel Proust do modo que os tragediógrafos tomavam a tradição mitológica. Através da obra de Proust, Waddigton cria uma peça de teatro; através da mitologia da Hélada, os tragediógrafos criavam as suas tragédias. A fala de Marcel a Albertine, no segundo acto, abre a possibilidade de a “tradição” de Proust ser revisitada, de se escreverem outras peças, outras tragédias acerca deste corpo de mitos que é, agora, o a obra de Proust: “Mas não é para isso que serve esta soirée, minha querida. Se quiseres podemos combinar uma outra noite com essa temática.” (p. 53)

Não é, contudo, somente esta relação transversal com a tragédia grega que encontramos como diálogo estabelecido com a tradição teatral. Há também, e aqui sem dúvida incontestavelmente consciente por parte do autor, uma apropriação, em alguns momentos da peça, dos artifícios técnicos usados por Pirandello em algumas das suas mais conhecidas peças, como sejam o caso de Esta Noite Improvisa-se e Seis Personagens Em Busca De Um Autor. Principalmente na primeira das obras citadas, que começa com o encenador no palco falando aos espectadores, antes do início da peça (aqui, em Waddington, o efeito aparece através do Anfitrião, que se dirige a nós leitores antes de entrarmos na peça propriamente dita); e, depois da fala do Anfitrião, a espera dos autores no palco pela entrada do público. Mas ao longo da peça, encontramos nos diálogos entre Marcel e Albertine um desacordo em relação ao que cada um deveria dizer, em relação ao que estaria ou não escrito pelo autor, mas que os actores deturpam ou improvisam, deixando isso inteiramente a claro. Veja-se à página 40, a fala de Marcel para Albertine: “Mas não é isso que está escrito.”, Ao que responde Albertine com: “É sim.” Ou à página 48, também em uma fala de Marcel: “Eu não escrevi nada disso.” Ao que Albertine replica, na página seguinte, com: “Pois não. Não assim. Mas as memóórias enganam.” O que nos leva a ver que, se por um lado o artifício técnico é o do grande escritor siciliano, por outro serve aqui propósitos diferentes. Não se trata propriamente do autor da peça, a que as personagens se referem, como em Pirandello, mas ao inventado autor personagem Marcel (Proust). E se em Pirandello o jogo de sombras e luz, através da verdade e da mentira, são o grande leitmotiv da pergunta pela realidade, aqui nesta peça de Gonçalo Waddington é a memória e a sua natureza de criação e recriação da realidade passada, do acontecido, que está em causa, que arde na noite.

Por outro lado, a mecânica quântica ou a teoria da relatividade, a teoria das cordas, os buracos negros, os buracos de minhoca, a anti-matéria acabam por aparecer para nós um universo tão paralelo como o universo de Proust, na sua obra, fazendo com que a memória, aquilo que constrói e desconstrói o acontecido, seja um instrumento quântico de alcance de nós e dos nossos actos; um instrumento quântico que, à imagem do princípio de incerteza de Heisenberg, não nos permite certeza nenhuma acerca do acontecido, daquilo que acontece. Não há certeza acerca de nada do que se fez ou fizemos, colocando a obra de Proust numa dimensão ainda mais problemática do que a que ela já tinha antes do início desta peça. A posição de Waddigton face à obra de Proust, ao invés de lhe dar uma mão de coerência, de linearidade, aumenta-lhe a entropia, termo fundamental para a leitura desta peça. “(…) a entropia é a tendência para a desorganização” (p. 27); “A tendência, com o passar do tempo, é para a desorganização” (Ibidem) Assim, também toda e qualquer interpretação da obra de Proust, naturalmente exposta à entropia, ao passar do tempo, aumenta-lhe a desorganização, abre brechas nas paredes das páginas, socalcos nos parágrafos; aumentam também os resíduos, o lixo, que cada vez mais nos impede de ver o quarto limpo que Proust escreveu. A chave com que se abre esta peça, que nos permite entrar no mundo de Gonçalo Waddigton, encontra-se nesta surpreendente e bela passagem, à página 29, na cena 5 do primeiro acto, em um monólogo de Marcel: “(…) warmholes (…) um túnel, ou atalho, que junta dois pontos distantes no espaço-tempo. O equivalente às madalenas embebidas em chá, no meu universo.” A existirem, os buracos de minhoca, permitir-nos-ia viajar no tempo e encurtar espaços, por conseguinte, viajar a paragens do universo às quais jamais poderíamos ir, sem esse artifício. Também é assim a memória. Ela faz-nos não só viajar no tempo, como também nos faz viajar no espaço, no sentido em que nos projectamos aos lugares que de algum modo carregamos na memória. Mas aquilo que parece interessar mais, a Gonçalo Waddigton, acerca da memória é o efeito de criação que ela mesma tem. A memória não é apenas um artifício de recolha de informação, de nos lembrarmos do que aconteceu ou do que aprendemos, ela em si mesma, nesse seu modus operandi de retorno, recria a realidade do acontecido. Como textualmente se pode ler na fala de Albertine, à página 49: “(…) Mas as memórias enganam. Fundem-se como buracos negros e tornam-se uma só. Não respeitam as regras espácio-temporais. Cada memória que fabricamos, mais uma memória que engavetamos, mais uma peça para o puzzle-eu, maior a entropia da nossa singularidade [e não esquecer a passagem já aqui citada, acima, “(…) a entropia é a tendência para a desorganização” (p. 27); “A tendência, com o passar do tempo, é para a desorganização” (Ibidem)]. O destaque anterior é de minha responsabilidade. É nesta capacidade de fabricarmos memória, que reside a nossa identidade. A identidade de cada um de nós vai sendo fabricada à medida que também fabricamos as memórias. Nem todas as memórias são fabricadas, evidentemente, mas só essas importam à identidade, só essas importam àquilo que vamos fazendo de nós mesmos. Assim, contrariamente à canção antiga, que dizia que recordar é viver, em Albertine, O Continente Celeste, criar é viver. Vive-se criando o nosso presente, no passado que fomos. Por outro lado, e nas relações estabelecidas na obra entre memória e mecânica quântica, tudo o que se cria, pelo passado que fomos, passa também a existir. Aquilo que alteramos no presente, e em relação ao passado, passa realmente a existir, mesmo que antes não tivesse existido. Veja-se a passagem, já no acto final, à página 61: “Em todos os mundos, ao invés de acontecer um colapso, como na interpretação de Copenhagen, no momento em que levanto a mão direita, há um split, uma divisão. E dois mundos-universos passam a coexistir, como linhas paralelas que nunca se tocam.” O acontecido e o fabricado em relação ao acontecido coexistem em todos os tempos, como aparece no poema final do livro, à página 63:

“Em todos os mundos
Albertine continua a tocar
As minhas sonatas preferidas
Na pianola do meu quarto.

E a acariciar-me,
Como eu quero,
Às horas que eu quero.
Albertine fica trancada no seu quarto,
Quando eu quero, sempre que eu quero.
Albertine, Albertine,
De split, em split, em split”

Mas há também nesta peça, e como não poderia deixar de ser, já que dentro do universo de Proust, o problema das relações humanas, em particular a da relação entre Marcel e Albertine (no segundo acto, apenas), mas que pode ser extensa às relações entre qualquer um de nós, em uma relação amorosa ou, melhor dito, nesse lugar peculiar que é o “depois do fim de uma relação amorosa”, como à página 52: “Porque é que nunca te casaste comigo? Porque é que não respondeste aos meus telegramas?” Ou à página 58: “Porque é que não me salvaste?” Ou ainda o tão conhecido “Achas que nós poderíamos ter ficado juntos?” (Ibidem) Albertine, O Continente Celeste mostra-nos um autor com um mundo próprio, reflexivo e que estabelece um diálogo com várias tradições, sem deixar de expor a fragilidade humana, que levanta voo com o desejo e a criação do amor.

6 Dez 2016

António de Castro Caeiro: “A poesia arcaica, a epopeia, a lírica e a tragédia sempre me interessaram”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s professor de filosofia na Universidade Nova de Lisboa, tradutor de Aristóteles e de Píndaro, e recentemente editaste um livro entre a filosofia e a poesia, chamado Um Dia Não São Dias, que tive a honra de apresentar. Como entendes tu esse livro?
O livro é uma tentativa de escrever fenomenologia do tempo fora de um estilo e âmbito estritamente académicos. Usei como embrião um texto escrito na USF (University of South Florida) de 2004 sobre os dias da semana. Cada dia tem o seu tom, a sua vibração específicas. A temporalização que organiza e estrutura o dia tem também diferenças. Assim também a semana, as semanas de um mês, os meses de um ano, os anos. A possibilidade teórica está dada desde a antiguidade. Em Homero e Píndaro, mas também em Tácito, os dias ou o ano são o “sujeito” que serve de plano de fundo estrutural ao ser de tudo o que acontece, ao desenrolar do tempo, ao começar e ao expirar dos prazos. Quis redigir todos os dias um pequeno texto e foi o que fiz, quando tive um Blog no Expresso online. Escrevi todos os dias durante nove meses aproximadamente. Foi esse conjunto de apontamentos que serviu de base para aquilo que depois tu (PJM) editaste.

Quais os próximos projectos de tradução, tanto os que já tenhas terminado quanto os que ainda irás começar?
Estão para sair as constituições perdidas de Aristóteles num conjunto de fragmentos dos livros perdidos de Aristóteles: os Historika. Estão a ser preparados para sair também na Abysmo dois outros volumes de traduções de fragmentos: um volume sobre o que contemporaneamente se pode chamar Estética e um outro dedicado a textos de teor científico. Sairá também pela Abysmo uma tradução das odes Olímpicas de Píndaro. Ainda por fazer está uma tradução dos fragmentos éticos dos velhos estóicos em colaboração com um colega meu, desta feita para o IFIL Nova, unidade de investigação a que pertenço.

A tua relação com a poesia vem de longe, e foi concretizada em livro numa primeira vez na tradução das Píticas, de Píndaro, em 2005, pela Prime Books e depois, mais tarde, reeditado pela Quetzal, em 2010. Recentemente aceitaste participar num projecto de leitura de poesia ao vivo com música (o contrabaixo de Carlos Barretto), chamado No Precipício Era O Verbo, juntamente com o poeta José Anjos e o actor André Gago. Já fizeram vários espectáculos pelo país e gravaram um disco. O que te levou a este projecto?

Sim, a edição das Odes de Píndaro pela Quetzal com ensaios em 2010 é já uma reformulação da tradução das Odes Píticas, editadas em 2005 pela Prime Books. A poesia arcaica, a epopeia, a lírica e a tragédia sempre me interessaram, porque aprendi que para se ler Platão não basta saber o grego em que ele escreveu, mas os princípios genéticos do Ático. A sabedoria popular ou o folclore são formas de manifestação das inquietações do espírito dos tempos e não podem ser ignoradas. No Precipício Era o Verbo não existiria sem vários factores humanos na base do seu nascimento. O João Paulo Cotrim da Abysmo apresentou-me ao José Anjos, este ao Carlos Barretto, e eles ao André Gago. Numa sessão de apresentação de Um Dia Não São Dias, na Barraca, organizada pelo poeta Miguel Martins, o Carlos Barretto propôs que tentássemos fazer leituras com Contrabaixo. O João Paulo Cotrim associou-se ao projecto e, assim, aos poucos, demos corpo a um reportório com poesia ou textos poéticos do José dos Anjos, André Gago e meus, com versões de poesia estrangeira (dórico e alemão) lida no original. A experiência do palco ressuscita a minha juventude quando actuei como baixista nos Mata-Ratos. Tem sido gratificante a partilha e fazer parte de um projecto em que acredito pela sua consistência e originalidade. Aproveito para dizer que o nosso percurso será coroado pela primeira vez com a actuação no CCB, no dia 20 de Dezembro.

Pensas em escrever acerca de poesia, de modo a produzir um livro?
Por defeito, tudo o que leio tem vista poder falar sobre o assunto nas aulas, assim também tudo o que escrevo visa a possibilidade de uma publicação, no sentido lato do termo. Tenho feito várias apresentações de livros de poesia de autores contemporâneos portugueses. Sempre produzi texto para o efeito, porque nunca consigo falar “de cor” nestas circunstâncias. Gostaria, contudo, de fazer despistagens de maior fôlego sobre o modo como a poesia exprime e se posiciona relativamente a problemas mais intimamente ligados à metafísica: a vivência da temporalidade humana, crónica e finita, definição de orientações e direcções em encruzilhadas, indecisões, destino, contra tempos, atrasos de vida, perda de sentido, crises afectivas, impactos emocionais, disposições, etc., etc.. A economia da formulação poética sempre me impressionou muito mais do que o encadeamento argumentativo. Talvez sejam duas formas indispensáveis para “dizer o humano”, complementares, indissociáveis.

E para quando um novo livro teu de filosofia?
Tenho estado a estudar a melancolia como manifestação do espírito desde os Hipocráticos, passando por Platão e, claro, Aristóteles que tem, este último, uma referência explícita ao fenómeno, nos Problemata. Depois, tenho estudado o fenómeno do ponto de vista da psicopatologia e da fenomenologia. O conjunto de estudos que sairá de um semestre que farei sobre melancolia, depressão, mania e euforia, constituirá um conjunto de anotações e de textos. O que sair desse curso permitirá a redacção de um texto. Não sei ainda qual o seu formato, mas pretendia que pudesse ser lido sem os tiques do ensaio académico e que se aproximasse mais do modelo encontrado para Um Dia Não São Dias.

2 Dez 2016

Shee Va, autor de “Espíritos”: “As comunidades não interagem”

É apresentado hoje ao final da tarde o primeiro romance de Shee Va. Depois de um livro em que assumia a ideia de fazer a ponte entre Ocidente e Oriente, o médico recorre agora a outro género literário para descodificar, em português, uma realidade chinesa que não se vê

[dropcap]C[/dropcap]omo é que surgiu a ideia de escrever um livro de ficção?
É uma ideia que vem de há muito tempo. Os espíritos acompanham-nos e estes, à moda chinesa, acompanham-me desde criança, porque ouvi falar deles pela primeira vez – ainda por cima, a povoar Macau – por um amigo de infância. Nessa altura eu vivia em Moçambique, esse rapaz chegou de Macau e contava as histórias todas sobre os espíritos e fantasmas que habitavam as casas antigas de Macau, de modo que isso fez o meu imaginário. Entretanto, quando aqui cheguei, em 2012, conheci um médium, que me contava histórias. Foi a partir do imaginário de infância e das histórias do mestre que resolvi escrever este livro. São crenças e superstições do povo chinês. Vem na linha daquilo que pretendo transmitir com os livros: dar a conhecer ao mundo lusófono – porque escrevo em português – a cultura chinesa. No meu primeiro livro, “Uma Ponte para a China”, tinha mesmo essa intenção.

Neste caso, optou por um romance para fazer passar a mensagem.
Sim, e há ainda a minha faceta de médico. O espírito deste livro é o de uma criança que morreu com uma doença genética. Cinco anos depois, os pais decidem refazer a vida e terem outro filho. Procuram ajuda junto da medicina ocidental e dos espíritos, porque a mãe da criança sentiu um espectro na altura em que o filho faleceu. Guardou o segredo durante cinco anos, nunca contou nada ao marido, mas quando decidem refazer a vida revelou que viu esse espírito, pelo que quer descobrir quem é.

Macau tem uma sociedade extremamente pragmática, consumista. É uma cidade que não pára. A vivência espiritual encontra espaço aqui?
Sempre. Os espíritos fazem parte da cultura chinesa, tanto que existem duas festividades chinesas relacionadas com os antepassados: uma no quarto mês lunar e outra no nono. O culto dos mortos é muito importante para os chineses. Uma das coisas que este mestre que conheci me disse – e que está também na base do livro – foi que se eu quisesse conhecer o futuro dos meus filhos poderia consultar um médium, que através da condução dos antepassados se pode prever a vida futura. Ou seja, há uma ideia na cultura chinesa de que os entes falecidos, que moram no firmamento, são espíritos bons que conduzem a nossa vida. Por isso é que, na cultura chinesa, é prestado culto a esses antepassados, para que nos protejam. Isto existe muito mesmo nesta população que é citadina e não tem que ver com o facto de haver muitos imigrantes que vêm de zonas rurais. Faz parte da educação, faz parte da cultura chinesa.

Tendo vivido grande parte da vida no Ocidente – primeiro em Moçambique, depois em Portugal, com algumas passagens por Macau –, mas tendo um contexto familiar chinês, sente que está numa posição privilegiada para desdobrar este tipo de códigos culturais?
Julgo que sim. Por poder fazer essa ponte é que pretendo fazer isso, mesmo que seja através de um romance. Consigo interpretar aquilo que os chineses sentem e transmitir ao mundo ocidental. Na apresentação que Beatriz [Basto da Silva] fez em Lisboa deste livro, achou interessante ter, pela primeira vez, uma pessoa chinesa a falar destes aspectos, porque normalmente os chineses são muito fechados, não se revelam muito. Eu, provavelmente sendo um aculturado, consigo revelar algumas coisas que os outros eventualmente não revelariam. Acho que posso ser essa ponte que liga o mundo ocidental ao mundo oriental.

Como é que lida com o facto de ter influência de tantas culturas diferentes?
A minha cultura é ocidental e a forma de pensar será ocidental. Mas não posso deixar de ter as raízes chinesas e elas chamam. Esta forma de revelar as coisas é talvez um chamamento. Tenho a necessidade de aprender – porque para mim também é uma aprendizagem – com a cultura chinesa e verificar que tem aspectos interessantes, mesmo que sejam no oculto. Por exemplo, há aspectos da medicina tradicional chinesa que são interessantes. Enquanto médico, devo compreendê-los. Outros, provavelmente, nunca chegarei a compreender, porque são conceitos fora do parâmetro ocidental. Quando se pergunta se a medicina ocidental se poderá ligar à oriental, penso que há aspectos em que sim. Em relação à cultura, penso o mesmo. Vivendo eu com um sentir ocidental, também sinto algumas coisas da cultura chinesa. Este sentir poderá ser raiz ou é genético? Isso não sei explicar. Este livro é também a procura da vida além da morte – podemos ir buscar as explicações conforme as religiões ou conforme as culturas. Talvez esta seja a minha pesquisa para o lado oriental. Acho que tem muito interesse quando se lida com uma cultura diferente poder compreendê-la. Talvez seja isso que quero transmitir. Portugal, neste momento, tem muitos chineses, o mundo inteiro tem muitos chineses. As populações não podem viver fechadas. Uma coisa que sinto em Macau é que foi durante muito tempo – e hoje em dia também – um sítio multicultural, mas em que as comunidades não interagem. Para mim, isso é mau – podia ganhar-se muito mais com a comunicação.

É médico, é amante de música clássica e faz estas incursões pelo mundo das letras. Como é que funciona o exercício da escrita?
É um hobby, tenho um prazer enorme em escrever. O trabalho é enorme, o trabalho de médico é stressante, talvez isto seja uma maneira de fugir ao stress. Para mim, o acto de escrever é muito individual, preciso de estar muito isolado para poder escrever e reflectir. É uma necessidade – é como se formasse um jardim meu e, quando estou a escrever, estou sozinho. Normalmente aproveito para escrever de madrugada, porque já descansei o suficiente: quando acordo tenho a cabeça e as ideias arrumadas. Poder-se-á dizer que o exercício da escrita é um escape, mas também é um prazer.


Depois de Lisboa, Macau

O livro de Shee Va, “Espíritos”, é apresentado hoje, às 18h30, na Fundação Rui Cunha, depois de ter sido lançado em Lisboa, no Fórum do Livro de Macau. À semelhança do que aconteceu na capital portuguesa, a sessão de hoje conta com a apresentação da historiadora Beatriz Basto da Silva. A obra é editada pela Livros do Oriente. As receitas da venda revertem integralmente para a Associação Amigos do Livro em Macau.


Uma semana, dois livros

“Espíritos” não é o único livro da autoria de Shee Va a ser apresentado esta semana em Macau. Amanhã, ao final da tarde, também na Fundação Rui Cunha, o médico lança uma obra sobre ópera: trata-se do primeiro tomo de dois acerca das óperas que fizeram parte dos cartazes do Festival Internacional de Música ao longo dos seus 30 anos de existência. O primeiro volume aborda as óperas até 1999. O lançamento do livro encerra a última sessão do ciclo “Conversas ilustradas com música”, sob o tema “Os sete pecados mortais na ópera”. O último pecado abordado é a ira, com a “Elektra” de Richard Strauss. A sessão começa às 18h30.

30 Nov 2016

O leitor cheira a tinta

El Corte Inglés, Lisboa, 21 Novembro

301116p16t1[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]omentos há em que temos de suspender a incredulidade, que o mesmo é dizer, acreditar. Parece ficção, uma sala de cinema com 242 pessoas em fim de tarde chuvoso para ouvir António Mega Ferreira em belíssima dissertação, de quase duas horas, em torno de Cervantes e do seu Quixote, apenas interrompida por tosse esparsa e as fulgurantes leituras de Pedro Lamares. Acredite-se, então, que os ouvintes serão leitores. Aqueles que Mega coloca no centro do jogo. «O texto é de uma generosa abertura ao mundo e ao leitor, e, por isso, preserva uma margem de indeterminação (o não-dito, o indizível, o possível, o imaginável), que é o traço inaugural da narrativa moderna. Veja-se, por exemplo, o capítulo 20 da primeira parte, em que, através de um engenhoso diálogo entre D. Quixote e Sancho, se levantam questões de técnica narrativa (a suspensão e continuidade da narração, a descrição exaustiva e o poder da elipse narrativa) que hão de estar no centro da estética romanesca ocidental nos séculos seguintes. Mais: ao abrir essa margem de indefinição, Dom Quixote não dispensa a participação de quem lê para fazer valer a sua verdade, que é feita de todas as verdades que lá queiramos encontrar. Ao mesmo tempo que se inventa como romancista, Miguel de Cervantes inventa um novo tipo de leitor, o que assume o papel de cúmplice do autor, destinatário e avalista da narrativa improvável.»

Horta Seca, Lisboa, 22 Novembro

A chegada de um livro abafa o resto. As urgências malditas, a inadiável pressão, o absurdo imediato, nada importa quando o cheiro a tinta nos exige febrilmente o objecto entre os olhos e as mãos. «A Minha Casa Não Tem Dentro», do António Jorge Gonçalves, veio para parar o tempo. Duas ou três linhas a abrir, negro tipográfico sobre branco, anunciam que o autor morreu e regressou à vida, em «acontecimento que atravessou espaço e tempo separando e unindo em simultâneo». Queria colocar a banda desenhada, que pela primeira vez edito, na Arranha-céus, chancela que vejo também como casa de imagens, onde está já a fotografia. Em decisão de última hora, optei pela abysmo, tal o enigma que «A Minha Casa …» contém. Mais do que narrativa, parece-me um poema gráfico, no lugar dos versos imagens fortíssimas, duras, mas sobretudo oníricas, de sonho e pesadelo, que mergulham raízes no grande oceano do imaginário, dos mitos fundadores, das representações da morte, da infância, do desenho e da música, enfim, da criação. Vejo uma mão, a do cuidado e da ameaça, a que se ergue da ruína e a que faz sombra, a mão do lápis. E vejo uma menina, uma Alice que descobre, por detrás de uma cortina de sangue, o peso da mão, uma cidade que se monta e o grande circo do espectáculo. Há anjos caídos no tecto. O trabalho sobre a cor faz dela outro protagonista. O desconcertante conjunto vai explodir ou, muito provavelmente, ser ignorado, como as nuvens no céu e na contracapa. Desafios assim têm a sua exigência e os dias não estão para isso, para que nos deixemos ficar comovidos a olhar para as nuvens. A capa, sem mais que um miúdo desenhando, não é macia, dá-se sem verniz nem plastificação, mas o miolo, tal a quantidade de tinta, ganhou um acetinado, uma segunda pele. Gosto de pensar os livros como segunda pele.

Bar Irreal, Lisboa, 23 Novembro

Nesta altura em que tanto sumo-sacerdote incensa nuns e vigia noutros uma suposta pureza poético-moral, ouvir o Helder Macedo pedir como quem exige, a meio de caóticas leituras da poesia de José Manuel Simões, um dos do Café Gelo, que os lessem sem os entronizarem, sem os sacralizarem, sem os imitar a destempo, aos da sua geração e a ele, que se «limitaram» a incarnar uma ética a partir do acto de recusa, de múltiplas recusas, caiu que nem tromba-d’água. E chovia mesmo. Na noite que Simões traduzia assim: «Do chão onde ontem enterrei / a noite irrompe como um garfo, / noite de hoje que eu não conheço / e todavia já / noite velha que sei de cor.»

Caldas da Rainha, 25 Novembro

Passo demasiado tempo à mesa, dizem-me. E logo os olhares comentam a barriga. Talvez passe demasiado tempo à mesa. Contudo, raras são as vezes em que me limito aos prazeres da dita. Não me sento para comer, entro em campo. Os gestores de topo jogam golfe. Os políticos da mediania vão ao futebol. A sociedade frequenta o ténis. Eu jogo-me à mesa. Quantos projectos acontecem de garfo na mão? Quanto de amizade estiquei, ou encolhi, já agora, de copo na mão? Não me interessa muito fazer essas e as outras contas. Mede-se demasiado nesta vida. Um editor deve cultivar a desmedida. Venha daí outra dose de lingueirão da «Casa Antero», em Caldas da Rainha, capital do meu oeste, para molhar o extraordinário pão com a Luísa, a Graça e o João. Ou de polvo à lagareiro com batatas a murro do «Cruzeiro», regado com Meandro, para saborear com o Carlos e o Jacinto. Nasceram ideias, talvez tenham morrido outras. Tenho por certo que uma refeição nos dá mais do que vida. E por aqui, onde desfearam paisagem e arquitectura, sabem prová-lo com a beleza do humor ao servirem-nos, à laia de ponto final, um pequeno falo de chocolate.

Bar Irreal, Lisboa, 25 Novembro

A cidade estava toda iluminada, mas de concertos num evento musical com nome de marca e mediatizado à náusea. Na exacta lonjura do centro, os «Não Simão» concertavam «reflexos de aventura». A ausência de palco permitiu estar em intimidades lado a lado com a bateria e a sentir na nuca cada nota dos sopros. A inteligência das composições, com a sinuosa variação de ritmos desfez a noite em puro gozo. E não teve nada a ver com a inclusão de um abat-jour no percurso da precursão.

30 Nov 2016

Fera Oculta, de Vasco Gato

[vc_row][vc_column][vc_column_text]feraoculta1[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]era Oculta, de Vasco Gato, editado pela Douda Correria em 2014, é um livro peculiar por várias razões, mas duas delas saltam de imediato à vista: livro pequeníssimo, de 13 páginas escritas, divididas em cinco poemas, e dedicado ao filho que estava para nascer. O nascimento de um filho, embora não salve o mundo, nem produza nenhuma ruptura ontológica, desata nos pais uma vontade de que as coisas sejam diferentes do que têm sido. Não uma diferença na vida pessoal, embora aqui e ali também a vida pessoal pudesse estar mais afinada – “(…) Gostaria no entanto de te receber / num outro lugar / não neste boi tombado / que dá pelo nome de vinte e um / peso morto arrastado pelos cornos / apenas para que não o devassem / as moscas / (…)” –, mas uma diferença universal, ou, para não sermos tão absolutistas, uma diferença nacional – “Perdoa a falta de graça / o tom melancólico a guerra / mas é que vivo numa época / que como muitas antes dela / repetiu os subsídios ao nojo / bateu o sangue em castelo / (…)” – isto é, a consciência do mal do mundo não aumenta, mas agudiza-se. Agudiza-se através daquele ser prestes a nascer, como se fosse uma parte do poeta (e da sua mulher) onde o mundo se faz sentir mais, onde o mundo mais dói ou passa a doer mais. É sabido, um filho é o calcanhar de Aquiles dos pais em relação ao mundo.

E, do centro desta vulnerabilidade, desta dor, Vasco Gato escreve meia dúzia de poemas onde mais do que a vontade de mudar o mundo, ou de que o mundo seja diferente, como por exemplo no poema de Jorge de Sena “Carta A Meus Filhos Sobre Os Fuzilamentos De Goya”, se desenha o absurdo do mundo, a geografia do absurdo do mundo. Logo no primeiro poema:

“(…)
Sei que haverás de te deslocar
timidamente
por estas ruas e prédios que bocejam
dos nomes que lhes deram
e que contigo terão uma razão mais forte
para conspirarem na longa malha
inanimada
em que se decidem os bichos
a que chamamos homens
e que tão pobremente os têm
habitado – garanto-te –
à excepção de uma ou outra carne
mais obstinada em escapar
à bala comum
Para tudo isto terás tempo
ainda que rapidamente te dês conta
de que tudo é já tão tarde
eu próprio lamento o tempo que esperei
(…)”

Apesar do cenário não ser brilhante, apesar de trazer o filho a estas ruas não muito famosas de amor, de todos os amores que as palavras inventaram e aos quais também escondem, apesar de saber que inventa um filho para “o fruto magro que hás-de roer noite dentro / nalgum bairro de pormenor / quando o escasso amor que te deram / for o alimento oportuno / de um amor mais desenvolto”, ainda assim o poeta reconhece que não perdeu tempo em dar ao mundo esta sua invenção, uma invenção conjunta com a mãe do filho, tal como singularmente está inscrito no início do livro: “Com a Inês / para o Rodrigo”.

Há assim neste pequeno livro duas defesas: a da paternidade e a da linguagem. A defesa da paternidade não implica necessariamente a obrigação da paternidade, mas a de alguém que reconhece, pessoalmente e não universalmente, à laia de teoria, ser melhor ser pai do que não ser, como podemos ler no verso citado anteriormente “(…) eu próprio lamento o tempo que esperei (…)” ou “(…) a mulher que transpôs comigo / o limiar do cinismo (…)”. Assim, a paternidade não produz uma ruptura ontológica, mas pode produzir uma ruptura ética, como a que se descreve neste livro: a transposição do limiar do cinismo. E é nesta corda ética, esticada entre o que agora se passa e o que o poeta espera para o filho, embora não espere nada que não exista agora, apenas que não piore a um ponto irrespirável – “Os momentos em que a claridade / é um capricho dos eléctricos / e os corpos se demoram nas praças / como se de facto houvesse alma / e devêssemos salvá-la / da crueldade e do tédio / são esses os momentos que te desejo / nalguma cidade futura / nalguma encruzilhada de gente (…)” –, é aqui que os poemas se estendem do princípio ao fim.

A linguagem, e apesar dos versos do poema V – “(…) / como se fosse possível / ir de verbo / ao segredo de uma boca // Não guardes por isso destes poemas / o que certamente está aquém / das águas que / te trazem / (…)” –, tem uma luz própria: a misteriosa luz que leva o poeta a registar esta passagem em livro. Apesar de um poema como este – “(…) não receies por isso deus nenhum / nem eternidade nenhuma / a tua carne é o único tesouro / (…)” –, onde parece exaltar a transitoriedade, a carne, o poeta não esquece que tudo é mistério, que tudo é inexplicável, que tudo é estar à deriva.

“(…)
Ninguém sabe ao certo
com que esmero será capaz de arrombar
a frágil película das horas
a pilhar esse instantes de fraternidade
com o espanto de existir
(…)”

Este livro, talvez mais do que qualquer outro livro, faz vir à consciência o problema da escrita em geral e da poesia em particular. A realidade é uma página por escrever num mundo sem escrita. Uma vontade que vem não se sabe de onde. E mesmo que alguém soubesse o que é um poema, ainda assim não deixaria de escrevê-lo, se fosse pela sua mão. E mesmo que alguém soubesse o que é um homem, ainda assim não deixaria de recebê-lo, se fosse seu filho. Esta estranha ligação que alguns de nós, humanos, temos com o desconhecido, quer seja o poema quer seja o nascimento de um homem, fica bem expresso na metáfora certeira que Vasco Gato usa para dizê-lo: nadar. “(…) Ouço-te nadar sempre nestes meus dias / de náufrago (…)”. Nadar não é existir, nada-se, enquanto se espera por vir à existência. Nada-se enquanto não se alcança esta terra perdida, indecifrável, que é o mundo, a vida, a existência, o estarmos aqui de mãos fechadas uns para os outros, desconfiados que a comida não chegue, desconfiados que o amor não chegue, desconfiados que a vida não chegue. Por isso, este pequeno livro torna-se o tesouro mais bem guardado que alguém pode deixar a quem chega à vida. De desconhecido para desconhecido, de poema para uma existência a vir, de agora para o futuro. Nunca um livro foi uma tão perfeita imagem de um vir à existência, como este de Vasco Gato. Eis o último poema do livro, VI, onde tudo é dito de modo perfeito:

Que não te enganem
os que compram as horas por atacado
para do teu suor extraírem
a bandeira de um país que nunca será o da atenção
que nunca será o da morada
mas sempre e sempre
o território homeopático da extinção
em que os troféus são
joelhos vergados à condição de cera
para os soalhos do progresso
cujo verdadeiro nome é
despovoamento
Vender-te-ão o conforto
a perseverança o brio
como se tivéssemos por fito
a acumulação de tempo
sem o fruirmos boca a boca
desesperadamente
garantir o futuro dir-te-ão
sem repararem na estupidez do repto
pois que poder temos nós
sobre as válvulas biológicas
do nosso prazo
para nos arrogarmos a garantir
o que quer que seja
quanto mais o sumo fruto da inexistência
esse futuro-cano-enfiado-na-boca
para ser disparado sem falta
de manhã e ao deitar
Em volta sucedem-se clarões
e abismos inóspitos
os elementos torcem-se na pesca à linha
dos lugares fundamentais
há uma convulsão de panoramas
para o brevíssimo turismo
dos olhos
mas o importante é a matemática mesquinha
do sangue que furtamos uns aos outros
a medalha de carne pútrida
com que esperamos aparecer
nas fotografias da época
Que se foda a época
digo-te já
que se foda a sépia dos futuros
eu quero aparecer no dia
do teu nascimento
desarmado como uma árvore
sem outra missão que não
amparar-me o susto
e dizer-te baixinho
bem-vindo ao continente dos frágeis
podes parar de nadar

[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

29 Nov 2016

Espírito do Mundo

[vc_row][vc_column width=”1/2″][vc_column_text][dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] mundo transporta no seu seio uma dualidade (dicotomia) que nada nem ninguém pode superar (que é insuperável). NATUREZA E ESPÍRITO representam os dois pólos de uma realidade que é non facientia unum. O ser da natureza consiste cada vez mais em ser objecto de representação, de conhecimento científico, de exploração técnica. O ser do homem consiste em se colocar como sujeito face ao mundo concebido como um objecto essencialmente estranho ao homem, mudo no que diz respeito ao seu destino.

[/vc_column_text][/vc_column][vc_column width=”1/2″][vc_single_image image=”13988″ img_size=”257×400″ add_caption=”yes” alignment=”center” style=”vc_box_shadow_border” css=”.vc_custom_1480424001469{margin-right: 4px !important;margin-left: 4px !important;}”][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]A posição do homem era muito clara quer face ao cosmos antigo quer face ao universo teofânico da Idade Média. Mas com a ruína do universo medieval, tudo se desmoronou:

— O lugar do homem que se tornou problemático e

— O universo que se esvaziou progressivamente da sua substância.

Agora a situação do homem é a de um ser afastado de tudo, profundamente isolado no seio de um mundo infinitamente aberto que exclui qualquer sentimento de simpatia entre o eu pensante (sujeito) e as coisas. É nisto que consiste em larga medida o desencantamento do mundo. É o fim de uma relação amorosa.

“It’s all in pieces, all coherence gone” cf. John Donne. E é também esse o sentido da obra de Pascal, … ambos autores do BARROCO exprimem a dolorosa perda da totalidade.

O sentimento de perda da sensação de totalidade.

Daí o sentimento concomitante de estranheza. A perda da totalidade destrói a intimidade. O Universo serve agora para calcular e medir. É uma exterioridade! Já era! Mas agora inapropriável globalmente. O facto de se reduzir a cacos inviabilizando uma reconstrução possível provoca um vazio que nada pode preencher, e uma tristeza incurável.

Em tempos o Mundo fora considerado como um testemunho de Deus. Como o signo por excelência da existência de uma Inteligência ordenadora e fonte de todo o Valor.

Ora o que anacronicamente procuraram fazer todos os grandes apologistas do século XVIII foi Restaurar, ressuscitar, um paradigma já obsoleto. Nesse plano a primeira grande reflexão existencial sobre o tema pertenceu ao Barroco. O que veio depois é empobrecedor.

Já nenhuma certeza ontológica emana do curso do mundo.

O estupor desencantado de Pascal diante da solidão gelada do Universo culmina no verso de Rimbaud: “não somos do mundo!” , ou “nós não pertencemos ao mundo”.

É então que Vico, face à dúvida cartesiana (barroca), viu na HISTÓRIA o único firmum et mansurum ao qual o homem poderia aceder.

Única realidade considerada ao alcance do conhecimento do homem dado que produzida por ele aparece ao homem, no dealbar da modernidade, como a grande fonte de certeza de si, ao mesmo tempo englobante e totalizante…

Face ao desaparecimento de Deus, face à natureza emudecida e inaudível, o homem opunha este fragmento dérisoire do tempo que ele conseguiu fazer seu e do qual espera extrair a verdade o seu ser assim como a norma da sua acção com vista ao futuro. Hegel até extrairá daqui a via do Absoluto.

Hegel propõe um grande sistema filosófico em que o mundo, como Espírito, se encontraria em um processo histórico contínuo de racionalidade e perfeição cada vez maiores. A teleologia proposta por Hegel será explicitada tanto na análise da totalidade do universo, quanto nos diversos processos e desenvolvimentos que o constituem, através do método dialéctico, em que as tendências contrárias (tese e antítese) se entrechocam resultando em uma síntese, por definição mais perfeita e completa que as anteriores. Hegel tem como mérito a criação de uma nova tendência na filosofia: a de abordar os diversos assuntos a partir da investigação de sua génese ao longo da história.

“Na história, o pensamento está subordinado aos dados da realidade, que mais tarde servem como guia e base para os historiadores. Por outro lado, afirma-se que a filosofia produz suas Ideias a partir da especulação, sem levar em conta os dados fornecidos. Se a filosofia abordasse a história com tais Ideias, poder-se-ia sustentar que ela ameaçaria a história como sua matária-prima, não a deixando como é, mas moldando-a conforme essas Ideias, construindo-a, por assim dizer, a priori. Mas, como se supõe que a história compreenda os acontecimentos e acções apenas pelo que são e foram e que, quanto mais factual, mais verdadeira ela é, parece que o método da filosofia estaria em contradição com a função da história.” (HEGEL)

Ao contrário de uma possível contradição metodológica entre essas ciências, Hegel afirma que a história do mundo só pode ser contada e contemplada à medida que ela se valha da filosofia.

É pela especulação e reflexão racional que a filosofia se sustenta. E haja em vista que “na história do mundo as coisas aconteceram racionalmente”, (HEGEL, 2001: 53) vislumbramos o início dessa união entre as ciências supracitadas. Para provar a existência de uma razão no mundo, Hegel dá-nos o exemplo de Anaxágoras, cujo feito foi observar que há um sistema solar no qual os planetas giram ao seu redor. Porém, diz Hegel, ao grego não foi possível inferir qualquer racionalidade sendo contemplada, pois no seu tempo ela estava ainda velada. Percebe-se claramente que a história do mundo hegeliana visa, portanto, uma teleologia. Ora, sendo uma teleologia comandada pela razão, não iria ela ser contra qualquer doutrina religiosa? Não para Hegel, já que ele vê em Deus a Razão Absoluta. Aliás, Razão e Deus são termos correlatos e, pode-se dizer, significam uma mesma coisa: requisito lógico do mundo, cujas potencialidades inerentes se manifestam no decorrer da história. Metodologicamente, Hegel assim compreende o estudo da história do mundo: “devemos tentar seriamente reconhecer os caminhos da providência, os seus significados e as suas manifestações na história, e seu relacionamento com o nosso princípio universal[1]” (HEGEL, 2001:57) (“Reconhecer os caminhos da providência” implica uma certa passividade daquele que estuda ou quer conhecer a história passada; não é a toa que ele emprega o verbo contemplar em sua obra.) Se assim é, qual o objectivo final do mundo?

Dissemos acima que o mundo, para Hegel, deve ser pensado racionalmente, que todos acontecimentos históricos passados foram necessários; donde seu aspecto teleológico. Esse plano divino é manifestado ao mundo mediante o “Espírito de um povo”, visando a Ideia de Liberdade. Ou seja, esta Ideia é a força motriz da história, ao passo que o Espírito de um povo é expressão de uma realidade histórica finita, que por processos dialécticos busca sobrepujar as potencialidades infinitas da Ideia.

Pelo carácter objectivo do “Espírito de um povo”, as subjectividades que constituem uma nação e até mesmo as dos próprios indivíduos, são consideradas por Hegel apenas como um primeiro passo do movimento dialéctico. Todas as paixões particulares servem para serem aniquiladas, dando lugar à universalidade de que a Ideia de Liberdade necessita. Nem mesmo os heróis, aqueles que serviram de exemplo para uma mudança do Espírito de uma época à outra, tinham consciência da objectividade de suas paixões, pois “a história do mundo dá início ao seu objectivo geral – compreender a Ideia de Espírito – apenas em uma forma implícita (ansich), ou seja, como Natureza, como um instinto muito profundo e inconsciente” (HEGEL, 2001: 71). Torna-se preciso, então, compreender a ligação entre o particular e o universal, – entre o subjectivo e o geral – cujo casamento propicia a história do mundo.

Sendo a Ideia, condição lógica para o mundo, ela não está contida nele. Ou melhor, ela não necessita dele para sua preservação. Enquanto tese, a Ideia “é o universal, o imanente, o representado” (HEGEL, 2001: 72), isto é, ela não tem ao quê se comparar. É necessário, pois, um outro lado cujas qualidades neguem o conteúdo da Ideia. Este outro lado é chamado por Hegel de consciência, Ego, ou átomo. Estes conceitos são a “negatividade infinita” da Ideia. Eles são sua finidade e sua forma. É desta lógica dialéctica que Hegel vê surgir o mundo, como síntese entre a Ideia e o Ego[3].

O mundo é composto pela Natureza e pelo Espírito. O primeiro, o campo da necessidade, o segundo da liberdade. Enquanto aquele se manifesta mediante a natureza; este se caracteriza, em uma primeira instância, por meio do indivíduo.

É pela característica da liberdade que o homem é um ser moral. Tal facto implica “em que ele cumpra os deveres de sua posição social” (HEGEL, 2001:76), além de ter a consciência de pertencer a um determinado “Espírito de um povo”. Pois “o indivíduo não cria o seu conteúdo, ele é o que é, expressando tanto o conteúdo universal quanto o seu próprio conteúdo”. (HEGEL, 2001: 77) . Ou seja, a ligação entre o subjectivo e o geral, dá-se neste momento.

A união supracitada, segundo Hegel, só se manifesta por meio do Estado. Esta instituição abarca todo o conjunto moral de seus indivíduos. Só através de sua presença é possível falar em liberdade e auto-consciência no indivíduo. Porque “a Ideia de liberdade necessariamente implica lei e moral”. (HEGEL, 2001, 92). O Estado é o campo das objectividades. Um espaço pontual no qual podemos assinalar e nos referir quando pensamos na História do mundo. Enquanto o indivíduo morre, o Estado, através de abstracções, permanece. Isto é, apesar do Estado grego morrer com o povo grego, ele permanece historicamente. A sua “morte”, deu lugar, concordando com Hegel, a outro Estado mais perfeito, mais consciente de si e tendo seus indivíduos com o conceito da Ideia de Liberdade mais aflorado e rígido.

Por se tratar apenas de um texto de apontamentos sobre a referida obra de Hegel, pararemos por aqui. Entretanto, deixaremos uma última citação de Hegel que confirma a enorme função que o Estado tem para seu sistema filosófico: “O Estado é a realização da Liberdade, do objectivo final absoluto, e existe por si mesmo. Todo o valor que tem o homem, toda sua realidade espiritual, ele só a tem através do Estado.(HEGEL, 2001:90)

Karl Popper, crítico de Hegel em A sociedade aberta e seus inimigos, opina que o sistema de Hegel constitui uma justificação vagamente dissimulada do governo de Frederico Guillermo III e da ideia hegeliana de que o objectivo ulterior da história é chegar a um Estado que se aproxima ao da Prússia do decénio de 1831. Esta visão de Hegel como apólogo do poder estatal e precursor do totalitarismo do século XX foi criticada minuciosamente por Herbert Marcuse em Razão e revolução: Hegel e o surgimento da teoria social, arguindo que Hegel não foi apólogo nem do Estado nem da forma de autoridade, simplesmente porque estes existiram; para Hegel, o Estado deve ser sempre racional. Arthur Schopenhauer desprezou Hegel por seu historicismo e tachou sua obra de pseudofilosofia.

A filosofia da história de Hegel está também marcada pelos conceitos da “astúcia da razão” e do “escárnio da história”. A história conduz os homens que crêem conduzir-se de per si, como indivíduos e como sociedades, castigando suas pretensões, de modo que a história-mundo, ao fazer troça deles, produz resultados exactamente contrários e paradoxais aos pretendidos por seus autores, a despeito de, nos períodos finais, a história se reordenar e, em um cacho fantástico, retroceder sobre si mesma e, com sua gozação sarcástica e paradoxal convertida em mecanismo de criptografia, cria também ela mesma, sem querer, realidades e símbolos ocultos ao mundo e acessíveis tão-somente aos cognoscentes, id est, àqueles que querem conhecer.[/vc_column_text][vc_separator css=”.vc_custom_1480425835216{margin-bottom: 30px !important;}”][vc_tta_tabs style=”modern” shape=”square” active_section=”1″ css=”.vc_custom_1480425795405{margin-top: 5px !important;}”][vc_tta_section title=”Biografia” tab_id=”1480423549556-ac307ab4-8964″][vc_column_text]HEGEL nasceu em Stuttgart a 27 de Agosto de 1770 e faleceu em Berlim a 14 de Novembro. Hegel encontra a sua posição na história da filosofia no seio do chamado Idealismo Alemão, representando por um lado o seu apogeu, o idealismo absoluto e a transição para a Filosofia do Romantismo. Estudou na Tübinger Stift, (seminário da Igreja Protestante, em Württemberg). A sua Fenomenolgia do Espírito desenvolve a ideia dialéctica de que o espírito humano se manifesta através de um conjunto de contradições e oposições que acabam por se integrar numa poderosa síntese. Todos os elementos se integram unem-se, no quadro de superações sistemáticas, o que significa que os elementos em confronto não se eliminam. Exemplos de tais contradições incluem aqueles entre natureza e liberdade e entre imanência e transcendência. Deste ponto de vista ele é o grande filósofo da Modernidade, da ideia de progresso e de totalidade do Espírito.[/vc_column_text][/vc_tta_section][vc_tta_section title=”Ficha” tab_id=”1480423549788-702a8d9a-b0d3″][vc_column_text]Hegel, Georg Wilhelm, Friedrich, A Razão na História (Introdução à Filosofia da História Universal), Edições 70, Lisboa, 1995
Descritores: História da Filosofia, Historicidade e historicismo, Espírito, 223 p.
ISBN: 972-44-0906-6
Cota: A-4-13-9
[/vc_column_text][/vc_tta_section][/vc_tta_tabs][/vc_column][/vc_row]

28 Nov 2016

Os crimes montanhosos e outros vales

15/11/2016

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]espedirmo-nos dos ofícios também faz parte da vida.

Todos temos um talento escondido, que os outros detectam primeiro. O meu era fazer diálogos, diziam os professores na Escola de Cinema. Ao fim do segundo ano recrutaram-me para lhes fazer os diálogos dos seus filhos. Assim me tornei guionista, ofício de que vivi durante anos.

Um dia, já de “reputação firmada”, telefona-me o António Escudeiro. Queria fazer um filme sobre o Camilo Pessanha, em Macau. Num formato “docudrama”. Afinámos ideias, objectivos, calendários. Pairava no ar a promessa de também eu me deslocar a Macau. Em 15 dias li o que tinha a ler e pouco depois entreguei o primeiro draft, de 50 páginas. Uma memória descritiva, com a narração de todas as cenas previstas para o filme mas sem o tratamento final nem diálogos.

Ambicionava atingir uma precisão de relojoeiro nos diálogos, devido à linguagem preciosa do poeta, à sua relação com os locais e com essa língua que o cercava como um imenso mar ignoto, e sobretudo queria escrever belas cenas dele com as mulheres. Um “docudrama”, uma mistura de documentário e ficção, permitia a reinvenção da intimidade do poeta.

Contra a entrega do draft, ele pagou-me o que era devido. Seguia-se a segunda fase, combinámos conversar depois dele o ter lido. E então o Escudeiro desapareceu. Soube dele um ano depois, ultimava já a edição do material que tinha trazido de Macau.

Nunca vi o filme, não o quis ver. Vi o Camilo Pessanha e Macau por um canudo.

Por isso aconselho todos os jovens guionistas a tomarem esse ofício como hobby ou biscate, quando se põe excessivo empenho nos projectos vem a “autoria colectiva”, própria ao cinema, desenganar-nos e traz dissabores.

Já me aconteceu inclusive, no caso de Um Rio, de Carlos Oliveira, que co-escrevi com o escritor Luís Carlos Patraquim (adaptando um romance de Mia Couto), que o filme (por problemas de produção) parecesse ter sido feito “contra” o guião.

No romance, os erros só a mim pertencem. Sucessos ou insucessos só ao meu trabalho devo a provação dos labirintos.

17/11/2016

Há duas semanas, o matutino O País noticiava que a Autoridade Tributária já não podia taxar certos impostos, os impressos necessários não estão disponíveis para quem faz a sua declaração anual dos impostos. Motivo: os fornecedores deixaram de fornecê-los, por dívida continuada do Estado.

Já nem as suas próprias receitas directas o Estado moçambicano consegue assegurar. Eis um processo em que um Estado perpetua contra si mesmo, como vi escrito num semanário local, “crimes montanhosos”.

Entretanto a minha filha mais nova, com nove anos, resolveu ir “ajudar” a mãe, numa feira do livro. Toda a gente achou graça ao parlapié da gaiata e contribuiu para que as vendas nesse dia aumentassem. E o Notícias, matutino oficioso, fez uma reportagem e entrevistou a mais nova “livreira” da feira. Foi a minha empregada quem trouxe o recorte, “orgulhosa da menina”. Toda a gente gostou, menos ela. “É a tua primeira entrevista, tás toda bonita na fotografia, qual é o problema?”. E explicou ela: “não gostei que tivessem colocado a minha fotografia, porque assim vão me identificar na rua e podem raptar-me…”. Fiquei interdito, percebi que por muito que queira não a consigo proteger do clima geral.

À beira da explosão social, com a guerra civil a prolongar-se, a inflacção a disparar em flecha (quase cem por cento num ano), o colapso financeiro, a fome a apertar em muitas regiões e o medo inscrito na pele das crianças (brancas, sobretudo “monhés”- os indianos -, alvo da actual “indústria de raptos”), a Pérola do Índico, um país com imensa água e oitenta por cento da terra arável mas que nem consegue produzir os tomates e alfaces para a salada (vêm da África do Sul), atravessa um momento deprimente.

19/11/2016

A pronúncia do Shangana e do Ronga, línguas do sul de Moçambique, lembra-me uma goma de arroz com acentos guturais fortes.

Uma vez adormeci a ver filmes do Kurosawa e nessa madrugada apanhei um “chapa” (um transporte semi-colectivo com dezasseis lugares) para a fronteira, a 90 km. Pelo caminho, ouvindo as falas locais, espantei-me pelas parecenças fonéticas com o japonês que ouvira horas antes. Pensei ser uma fantasia minha e não liguei mais ao assunto.

Agora, releio um livrinho precioso do grande actor japonês Yoshi Oida que trabalhou décadas com o encenador Peter Brook. Ele conta como foram à Nigéria, para uma digressão de seis meses nas zonas rurais. Chegavam às aldeias, estendiam o tapete e representavam Shakespeare e foram especialmente bem acolhidos. Porém, inesperada foi a descoberta pessoal que ele fez. Ele estava radiante por vir a África e pensava que ia estar diante da alteridade absoluta, de uma cultura sem pontos de contacto com a sua, e descobriu que afinal toda a gramática facial e a linguagem não-verbal dos camponeses da Nigéria era absolutamente idêntica às dos camponeses do Japão.

Somos todos mais parecidos do que supúnhamos e fará mais sentido do que admitiríamos à partida que as locução e as fonética das línguas, nesta metade oriental do planeta, comunguem de afinidades subterrâneas.

21/11/2016

Flanava distraído pela ruas de Maputo, a apreciar os jacarandás. Um tipo novo começa-me a sorrir a dez metros de distância e ao passar por mim atira: “Pai, ando à procura do George Michael, fast love!”. Fiquei atarantado, ele atirara o barro à parede, a tentar, mas nunca um jovem prostituto se me dirigiu tão directo, e só cinquenta metros depois me veio a resposta-do-fim-da-escada: “Desculpa lá, já não tenho idade para seres o meu first love!”

24 Nov 2016