José Manuel Simões, director de comunicação da Universidade de São José

“O Sétimo Sentido”, romance de José Manuel Simões vai ser apresentado no próximo dia 21 no Porto e marca um passo do autor rumo a uma escrita desvinculada do jornalismo. O lançamento do livro em Macau está agendado para Setembro

[dropcap]E[/dropcap]ste é o seu primeiro romance?
O livro “Deus Tupã” já é um romance histórico. Foi lançado em 2016 e é um livro que tem características de romance porque a visão que os indígenas têm da realidade, do seu modus vivendi, do habitat e das relações com as divindades são romanceadas com dados a partir das minhas vivências no seio daquela tribo. Confesso que fiquei admirado quando a editora considerou este livro um romance. É, mas é um romance que tem uma ligação à realidade.

Em que sentido?
As vivências da Glória Meireles, a personagem central deste livro. Ela vive uma experiência muito marcante na Índia. É uma vivência que tem por base uma viagem que fiz por aquele país em 2002, uma viagem extensa de quase seis meses. Aí, recolhi imensa informação, ou seja há um trabalho de pesquisa meu que depois é absorvido por esta personagem à sua maneira. Sim, é um romance neste sentido, embora tenha esta ligação com dois lugares que existem efectivamente. Um é a Índia, e depois um outro que é Xai Xai, em Moçambique, onde Glória é médica e vive com outras pessoas, poetas, artistas, colegas e pacientes. Pessoas que existem também na realidade.

Podemos dizer que é um livro que, à semelhança de anteriores, tem um cariz biográfico?
Não. Tem um ponto de partida onde recorri às minhas experiências pessoais. Mas, neste caso, não tem nada a ver comigo. Eu diria que a Glória vai muito mais além da minha experiência. Vai mais além do que o próprio autor. Acho que a Glória é uma pessoa maravilhosa e admirável. É uma pessoa que vive profundos silêncios e momentos de meditação, e que fala muito pouco, ou seja, particularidades que são completamente antagónicas às minhas. Diria mesmo que a Glória vai mais além de mim em vários níveis, nomeadamente comportamentais porque é, de facto, uma pessoa incrível. Um exemplo para todas as sociedades enquanto modelo de respeito, de responsabilidade, de valores, de integridade que coloca ao serviço da medicina. A Glória, às tantas, estava-me a ditar situações que nunca me tinha deparado na escrita, com uma voz fora de mim que quase me ditava passagens. Eu fico fascinado com a beleza desta pessoa e com o seu exemplo de vida, com a forma como trata os pacientes, com tudo.

A Glória parece ser uma pessoa real.
Sim, eu imagino-a fisicamente. Ela é pequena, magra. Na narração ela aparece como uma figura concreta e tem toda uma componente física e psicológica muito vincada. Tem características de personalidade muito fortes e, de facto, parece muito real. É uma pessoa que não conheço.

Mas que gostava de conhecer?
Muito. Há uma passagem em que eu vou a Xai Xai, em Moçambique, no ano passado convidado pelo festival de poesia onde participei nalgumas palestras. Antes de ir apercebi-me que era lá que a Glória iria colocar a acção ao serviço da medicina. Às tantas, nesta passagem do livro, eu estou no festival de poesia e a Glória está lá também e interage com o José Manuel Simões. Fala com ele ao jeito dela. Há uma questão entre os dois, quase início de romance, em que ela coloca os pontos muito bem vincados da impossibilidade de relação e em que eu saio a perder claramente nesta tentativa de relação. Havia ali indícios que pareciam, da parte dos dois, que havia um envolvimento, mas ela disse que não, que é uma confusão e quando se fala de transcendência, de karmas e de chacras é uma coisa, mas quando se fala de coisas mais íntimas, ela não concebe essa possibilidade entre os dois.

Estamos a falar de um livro ligado a aspectos mais transcendentes e espirituais?
Sim. A Glória vai para a Índia depois de ser traída pelo Marcos, com quem tinha uma relação desde os tempos da universidade. Ela vai para a Índia para tentar compreender a transcendência e a passagem para outros mundos, até porque lhe tinha morrido uma criança com leucemia nos braços, a Ophélia. Este acontecimento foi muito perturbante. Vai para a Índia e tem uma viagem muito difícil e cheia de revelações nomeadamente em contextos de insalubridade, de pobreza extrema que a magoam. Ela não encontrou essa espiritualidade que procurava, sobretudo nos primeiros tempos. Até que há um momento em que conhece um grupo de raparigas que estão num templo e que a convidam a lá ir. Ela vai e passa lá 23 dias. É aí que descobre, de facto, como se aproximar dessa transcendência. Descobre um lado ecuménico que passa por vária religiões. Há uma personagem que ali está e que lhe diz que ela tem uma missão nesta vida e que, mais cedo ou mais tarde, a vai encontrar até pelo seu papel enquanto médica, pela sua bondade e pelo comportamento. Aliás, o primeiro titulo do livro até era “A Missionária”. Mas depois achei que tinha um cariz demasiado religioso. Ela tem uma ligação à transcendência, às divindades mas também tem o lado da medicina com o seu contacto com as curandeiras, com a homeopatia. Descobre uma lado holístico na sua acção que é extremamente útil enquanto médica.

Está a escrever no feminino. Porquê?
Não sei.

Onde é que descobriu a Glória?
Também não sei dizer. Por vezes, os livros pedem coisas. Fui jornalista e enquanto tal tenho uma ligação à realidade e aos factos muito forte e talvez por isso ainda não me consiga totalmente desvincular da minha escrita nessa perspectiva. Este livro é uma tentativa nesse sentido. Quero assumir-me como escritor. Já escrevi dez livros e é altura de me assumir como escritor. A Glória já é um passo muito grande nesse sentido. Não é ainda total porque tem essa ligação à Índia onde vivi, sendo que ela vê essa realidade à maneira dela. Mas as personagens pedem-nos comportamentos e acções que são muito inesperadas, que são quase ditadas pela voz delas. Ela começa a ter uma vida própria. Foi vindo, foi aparecendo e criando uma atmosfera real sem o ser. É um ser vivo, mas que não existe. O nome, curiosamente, acho que é muito apropriado e surgiu logo. Não podia ser outro porque o comportamento dela é de Glória. Lembra-me o tema da Patti Smith.

Quando é que o livro vai ser apresentado em Macau?
Em Setembro, não tem ainda dia definido mas vai ser nesse mês.

13 Jul 2018

Livro “O Doente Inglês” de Michael Ondaatje escolhido melhor prémio Booker de sempre

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] livro “O Doente Inglês” (1992), de Michael Ondaatje, foi anunciado como o melhor prémio Man Booker dos últimos 50 anos, numa altura em que aquele galardão literário se encontra a celebrar as suas cinco décadas.

O livro foi editado pela primeira vez em Portugal pela Dom Quixote em 1996, coincidindo com o ano de lançamento do filme com o título “O paciente inglês”.

O filme, realizado por Anthony Minghella a partir da obra de Ondaatje, venceu nove de 12 Óscares para os quais esteve nomeado.

“’O Doente Inglês’ é o raro livro que sentimos sob a nossa pele e insiste que voltemos a ele uma e outra vez, sempre com uma nova surpresa. Move-se sem dificuldades entre o épico e o íntimo – num momento estamos perante a vastidão do deserto e noutro a assistir a uma enfermeira colocar um pedaço de ameixa na boca do paciente”, afirmou, em comunicado, a jurada Kamila Shamsie.

A organização do prémio literário Man Booker decidiu atribuir este ano um “Booker Dourado” ao livro que fosse escolhido como o melhor das 51 edições já realizadas. Primeiro, um júri selecionou um livro por década de entre os que haviam vencido o prémio no passado e, depois de divulgados os finalistas, o público votou no seu preferido.

“Poucos livros merecem o adjetivo de transformativo. Este é um deles”, acrescentou Shamsie, a jurada que teve a seu cargo a década de 1990.

“Nos derradeiros meses da Segunda Guerra Mundial, reúnem-se numa villa italiana quatro pessoas: uma jovem enfermeira alquebrada que concentra todas as energias no seu último doente moribundo, um inglês desconhecido, sobrevivente de um desastre de avião, cujo espírito navega à deriva numa vida de segredos e paixões; um ladrão cujos ‘talentos’ o transformam em herói de guerra, e numa das suas vítimas; e um soldado indiano do exército britânico, perito na neutralização de bombas, a quem três anos de guerra ensinaram que «a única coisa segura é ele próprio”, pode ler-se na sinopse do livro.

Multipremiado ao longo da carreira, Ondaatje lançou este ano o seu mais recente livro, intitulado “Warlight”.

Entre os finalistas para a edição “de ouro” do Man Booker encontravam-se ainda V. S. Naipaul, com “Num Estado Livre” (1971), Penelope Lively, com “Moon Tiger” (1987), Hilary Mantel, com “Wolf Hall” (2009), e George Saunders, com “Lincoln no Bardo” (2017).

9 Jul 2018

Melancholia revisitada

[dropcap style=’circle’] F [/dropcap] austo na versão de Thomas Mann vende a alma ao diabo para obter anos livres de criação. Em troca, o compositor Adrian Leverkuhn não podia amar. Nem sequer “abrasar-se”. Era paradoxal, segundo uma das projecções da configuração do diabo. O diabo inspira a luxúria, a violência, o priapismo. O próprio casamento para o apóstolo Paulo era a segunda melhor opção. Melhor seria que nunca ninguém vivesse com outrem. O celibato era a melhor opção para o cristão militante. O exercício da castidade é o método.

Fausto, Adrian Leverkuhn, não chega a fazer bem a promessa. Facto é que durante 24 anos, qualquer forma de amor que o ligue a um qualquer ser humano: a uma mulher ou a um sobrinho, acabaria sempre por abortar. Ninguém fica impune a um coração partido. Como se sobrevive a uma decepção romântica? Uma mulher amada que faça a vida longe com outro homem com quem teve filhos é uma abstracção concreta. Não é nunca ninguém. É sempre alguém com o volume espesso do inatravessável. É compreendida com o coração como uma transparência absolutamente opaca. Uma criança amada que tivesse morrido ou fizesse vida fora das nossas vistas é o quê? É um vulto com uma biografia e uma cronologia que passam ao largo da nossa vida. Revisita-nos de quando em vez ou sempre, na realidade ou em sonho, mas não tem a espessura que o quotidiano dá às relações humanas.

O pacto de Fausto com o Diabo é feito, quando o artista é jovem. Na versão de Goethe é completamente diferente. Fausto é um homem velho que se apaixona por uma rapariga muito jovem. Compreende-se fora de prazo para o amor. A sua compleição física não é erótica nem sensual para a menina. Vende a alma ao diabo em troca de tempo. O tempo agora é de juventude e é um tempo para amar. O sábio abdica de tudo para regressar a um tempo em que era possível recomeçar de novo. Este recomeço é feito com a certeza de que não esbanjará de novo a vida com o estudo. Será para ter uma vida amorosa, banal para o teólogo e o filósofo, burguesa para o artista.

Não nos enganemos, vivemos a projecção existencial que compreende a vida a partir da situação esboçada por Thomas Mann. Talvez Nietzsche lhe sirva de modelo. E poderá mesmo servir, porque na sua biografia há elementos importantes que o deixam na situação de Fausto. Não se sabe se terá sido ou não correspondido. Não terá sido de certeza correspondido por quem quis ter e com quis ser, pressupondo que teria tido o talento para ser marido. As vidas fora da ordem da normalidade não são compatíveis com nenhuma forma de amor, não pelo menos aquela forma de amor que faz do outro a representação do tudo que nos diz.

O ricochete dessa impossibilidade não dá a paz da neutralização. Dá outra coisa. Se todas as acções ficam em quem as pratica, a renúncia ao amor é a mais poderosa das acções. Não se rejeita toda a gente, nem todas as mulheres, nem todas as crianças, nem todas as pessoas em geral. Só aquelas que nos podem tornar escravos delas. É que a renúncia ao amor que tem como objectos amores efectivos, reais, poderosos, violentos, traz consigo o poder criativo. É desse poder criativo que vive o sacerdote, o artista, o político, o poeta, o filósofo.

Sem querer pode ter-se feito o pacto. É-nos concedido tempo, muito tempo. Mas o pacto não nos blinda em absoluto. De quando em vez, vem até nós um sonho de amor. Como teria sido se tivesse ficado com alguém para ter sido a outra versão de mim próprio?

Talvez o Fausto de Goethe seja a versão velha do Fausto de Thomas Mann. Na verdade, quer-se tudo e não se pode ter verdadeiramente nada sempre nem da mesma maneira.

As asas da melancolia, ao baterem, afastam qualquer espécie de vida que tenhamos escolhido, presumindo que a escolhemos efectivamente.

29 Jun 2018

Livro | Lançada em Lisboa versão portuguesa de “Música Católica em Macau no Século XX”

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi publicada recentemente em Lisboa a versão portuguesa de “Música Católica em Macau no Século XX”, uma obra que aborda “um fenómeno raro em território chinês”. O livro, da autoria de Dai Ding Cheng, docente do Instituto Politécnico de Macau, resulta de uma cooperação entre o Instituto Cultural (IC) e o Instituto Confúcio da Universidade de Aveiro.

A obra, um projecto no âmbito das bolsas de investigação académica, foi lançada em chinês em 2013, mas ganhou, dois anos depois, uma versão revista e outra em inglês. A versão agora lançada em português “apresenta a académicos de língua portuguesa o contexto tradicional e histórico da fase inicial da música católica em Macau”, bem como “diversos aspectos da expansão da música católica em Macau no séc. XX, um fenómeno raro em território chinês”, sublinha o IC, num comunicado divulgado ontem.

Após o lançamento em Portugal, “Música Católica em Macau no Século XX: Os Compositores e as Suas Obras Vocais num Contexto Histórico Único” foi alvo da “atenção e elogios” por parte de diversas entidades, entre as quais a Rádio e Televisão Portuguesa (RTP), a Associação Amigos da Nova Rota da Seda, a Liga dos Chineses em Portugal e a China Examiner, observa o IC.

A cerimónia de lançamento do livro, publicado pela Edições Colibri, teve lugar a 30 de Maio no Centro Científico e Cultural de Macau em Lisboa.

21 Jun 2018

Livro | Ivo Carneiro de Sousa lança “História de Timor-Leste” na próxima segunda-feira

[dropcap style=’circle’] I [/dropcap] vo Carneiro de Sousa lança na próxima segunda-feira “History of East-Timor”, esperando contribuir para que a história e a antropologia de Timor-Leste não caiam no esquecimento e despertar o interesse de jovens investigadores.

Seis de mais de 30 artigos que escreveu sobre Timor-Leste desde 1983 foram o ponto de partida para o livro que o investigador Ivo Carneiro de Sousa espera que ajude a compreender, de uma perspectiva antropológica, a história do pequeno país asiático. O lançamento tem lugar na próxima segunda-feira, pelas 18h30, no Clube Militar.

Embora, ao longo dos anos, tenha recebido pedidos, incluindo de um ministro da Educação timorense, para compilar alguns dos artigos que foi escrevendo sobre a terra à qual tem relações familiares, a “oportunidade” para finalmente o fazer – como descreve – só surgiu em Fevereiro do ano passado, quando foi submetido a uma operação e, ainda no hospital, começou a dar forma a “History of East-Timor” (“História de Timor-Leste”).

“A ideia foi compilar, reorganizar, reescrever os textos que permitissem compreender, de uma perspectiva antropológica a história de Timor-Leste”, explica o autor que tentou “perceber as estruturas sociais, culturais, a dispersão etnográfica e como tudo isso é tão importante hoje em dia na construção de um país independente”.

A obra não ficou, porém, reduzida a uma colectânea, dado que Ivo Carneiro de Sousa acabou por introduzir conteúdos novos, sobre os quais nunca havia escrito, e mergulhar em nova pesquisa, adicionando fontes novas. O autor destaca nomeadamente as leituras sobre as campanhas arqueológicas feitas pelos australianos em Timor: “Eu não fazia ideia que tinham recuado a presença humana de Timor de 30 mil para 42 mil anos, o que é uma descoberta científica muito importante, porque significa que são essas populações que depois vão ser os aborígenes da Austrália”.

Na feitura do livro, uma das “grandes preocupações” foi sobretudo “perceber aquilo que se designa como a história pré-colonial anterior à extensão da administração portuguesa em Timor. Isto é, as estruturas sociais e políticas”, salienta Ivo Carneiro de Sousa, apontando que o objectivo foi “trabalhar a memória e perceber como é que ela se actualiza hoje em dia”. Assim, o livro, com o subtítulo “entre mitos, reinos da memória, Macau e os desafios da antropologia cultural”, tem um corte não tanto cronológico, mas antes mais temático.

As relações com Macau

Macau também “entra” na História de Timor-Leste. “Quis mostrar a ligação muito estreita que existia, que não era apenas a económica, mas também os aspectos relacionados com o próprio conhecimento cultural e etnográfico que se faz a partir de Macau”, sublinha.

É que “além do comércio de sândalo desconhece-se significativamente que parte importante da escravatura que vinha para Macau era timorense, sobretudo feminina”, observa. “Macau era um mercado importante de venda regional de escravatura”, realça Ivo Carneiro de Sousa, contextualizando: “Filipe II proibiu a escravatura nas Filipinas e não era possível escravizar as populações locais, pelo que o que acabou por acontecer é que Macau se torna numa plataforma de venda de escravos para as Filipinas e para outros locais”.

Depois, no século XVIII, embora “seja proibida a escravatura nas colónias portuguesas de África, “continua a fazer-se em Timor e através de Macau”, salienta o investigador, dando conta da presença no território de descendentes de chineses casados com antigas escravas timorenses. Em paralelo, há “uma comunidade chinesa-timorense, fruto da emigração de chineses de Macau para Timor que também continua a existir”.

Ivo Carneiro de Sousa também procurou perceber quem em Macau estudou e se interessou por Timor-Leste, recuperando designadamente Wenceslau de Moraes (1854-1929), Bento da França (1859-1906) ou Jaime do Inso (1880-1967) que passaram por Macau e por Timor. Este último reveste-se de particular importância na perspectiva do investigador. “Ele esteve na chamada guerra de Manufahi, que é a guerra colonial de Timor e escreveu ‘Timor-1912’ que é um livro importante, mas muito menos conhecido que as célebres ‘Visões da China’ que escreveu em Macau”.

Com “History of East-Timor”, Ivo Carneiro de Sousa espera contribuir para que a história e a antropologia de Timor-Leste não caia no esquecimento e despertar ao mesmo tempo o interesse de jovens investigadores. “É para que possam existir alunos de mestrado e doutoramento que se interessem por investigar Timor que não é propriamente fácil”, afirmou, referindo-se ao facto de “existir muito pouca informação documental, porque parte dos arquivos desapareceram durante a ocupação indonésia e a invasão japonesa”.

O livro tem a chancela da Este-Oeste Instituto de Estudos Avançados, criada em 2012. A apresentação da obra, na próxima segunda-feira, vai ser feita em português, inglês e chinês.

15 Jun 2018

Obra completa de Maria Judite de Carvalho publicada nos 20 anos da sua morte

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]inte anos após a sua morte, Maria Judite de Carvalho, a escritora do silêncio e da solidão, dona de uma escrita “acutilante e atenta ao pormenor quotidiano”, vai ter a sua obra completa, e quase desconhecida, publicada na íntegra.

O primeiro volume, que inclui as suas primeiras coletâneas de contos – “Tanta Gente, Mariana” (1959) e “As Palavras Poupadas” (1961), esta última vencedora do Prémio Camilo Castelo Branco -, chegou hoje às livrarias.

A aposta na obra desta autora é da Almedina, que, através da chancela Minotauro, se prepara para lançar, até ao final do próximo ano, seis volumes que incluem a obra completa de Maria Judite de Carvalho (1921-1998), considerada pela crítica uma das escritoras mais proeminentes da literatura nacional do século XX, não obstante ser pouco conhecida do público em geral.

Apelidada por Agustina Bessa-Luís como “flor discreta da nossa literatura”, Maria Judite de Carvalho, também jornalista, dedicou trinta anos da sua vida à carreira literária, durante a qual publicou 13 livros, privilegiando as novelas, as crónicas e os contos, e escreveu sobre a solidão, histórias sombrias da vida quotidiana que observava.

A editora apercebeu-se de que a escritora “já estava na sombra há demasiado tempo”, e aproveitou o facto de alguns contos terem surgido nos manuais do ensino secundário, embora a maioria continue fora do mercado e das livrarias há muito tempo.

“Decidimos que seria a altura ideal, 20 anos após a sua morte, para fazer renascer a sua obra, e para apresentá-la a esta nova geração de leitores, que começa a ler Maria Judite de Carvalho na escola e que nas livrarias não iria ter acesso a toda a sua escrita em vida, portanto estamos a querer juntar toda a sua obra em seis volumes”, disse à Lusa Sara Lutas, editora da Almedina.

A editora entrou em contacto com Isabel Fraga, filha de Maria Judite de Carvalho e do também escritor Urbano Tavares Rodrigues, que lhe apresentou toda a obra da mãe.

Dona de uma personalidade “recatada” e “zelosa da sua privacidade”, Maria Judite de Carvalho nunca gostou de se expor, e “a obra dela sempre falou por si mesma”, explica Sara Lutas, que decidiu, por isso, respeitar essa vontade e não dar grande destaque à figura da escritora, que é apresentada na badana dos livros “de forma discreta e bastante lírica”.

A obra vai ser publicada cronologicamente, e a autora vai “envelhecendo” nas fotografias escolhidas e nos retratos que ilustram as capas e os separadores dos livros, revelando outra faceta da escritora: o desenho e a pintura.

“As capas, em vez de ter em grande plano a autora, são quadros dela, que também pintava, e decidimos dar uma roupagem diferente às obras dela através de uma Maria de Judite de Carvalho pintora”, explica Sara Lutas.

O próprio marido de Maria Judite de Carvalho conhecia o seu jeito para o desenho, antes de descobrir o seu talento para a escrita, o que aconteceu quando ela lhe leu “Tanta Gente Mariana”.

Inês Fraga, neta da autora, recorda que Urbano Tavares Rodrigues “era um leitor extremamente generoso, hiperbólico no elogio e que amava profundamente a literatura”, e que foi graças à leitura dele que Maria Judite de Carvalho publicou, porque “ele disse ‘este livro é maravilhoso, tu tens que publicar isto, isto é genial’”.

Este episódio reflete aquilo que foi a personalidade da própria Maria Judite de Carvalho, “uma pessoa e autora quase etérea”.

“Era fácil, numa era em que cada vez mais a escrita está ligada à promoção da imagem do indivíduo – para além do que escreve, do indivíduo que escreve -, que com uma personagem tão etérea, a própria obra se começasse a desmaterializar, e creio que foi por isso, embora tenha sido profundamente reconhecida no seu tempo, que não chegou ao grande publico”, afirma.

A projeção de Urbano Tavares Rodrigues e o recato a que se remetia Maria Judite de Carvalho têm levado a que se julgue que a autora teria sido sempre colocada na sombra do marido, o que a família nega.

Não só foi sempre o seu primeiro leitor – a filha era a segunda –, como foi “o grande promotor da obra dela”, e embora possa ter ficado conhecida como “a mulher do Urbano”, isso “não influiu na projeção que teria ou não”, porque a verdade é que Maria Judite de Carvalho “foi educada para a discrição”, conta a neta.

Maria Judite de Carvalho foi educada por três tias, numa “atmosfera escura e sombria”, como descreveu certa vez Urbano Tavares Rodrigues.

Essas tias eram “mulheres muito sensatas e antiquadas”, e quando Maria Judite de Carvalho ponderou ir para Belas Artes, a ideia foi afastada, porque “uma mulher séria não ia para Belas Artes, ia para Letras”, afirma Inês Fraga, explicando que o gosto e a prática do desenho e da pintura ficaram sempre, mas como um prazer e um passatempo, já que sempre os desvalorizou em termos de qualidade.

No entanto, estes desenhos que fazia, em circunstâncias tão banais como a conversar ou a falar ao telefone, refletiam o seu universo interior que era o mesmo que projetou na escrita, o universo feminino, povoado por mulheres “muito diferentes e muito iguais nessa diferença”.

“As mulheres nos quadros são uma outra abordagem às personagens femininas e à sua imobilidade. Portanto, na literatura, as mulheres da minha avó, da Maria Judite de Carvalho, surgem fechadas naqueles retângulos que são as janelas que as protegem do exterior, nas suas casas, nessas redomas, nos seus pequenos castelos, que são as suas casas, e aqui aparecem também pautadas pela imobilidade, estáticas, dentro daqueles retângulos que são as molduras dos quadros ou até a própria folha de papel”.

A editora Sara Lutas especifica, por sua vez, que as temáticas tratadas, “a forma como as suas personagens pensam e agem na vida teriam sempre esta postura de reclusão e de silêncio”.

A escrita é “acutilante”, “muito atenta à sua realidade, que permanece”, e “convoca imenso o leitor, porque só nos diz até um determinado ponto, o outro tem de ser o leitor a desvendar”, descreve Inês Fraga.

Outras singularidades da escrita de Maria Judite de Carvalho são a atenção ao pormenor do quotidiano e “as personagens, para as quais se calhar não olharíamos duas vezes, não só personagens femininas, mas personagens urbanas, as mais diversas, desde o homem que trabalha na loja, ao que abre a porta de um hotel”.

29 Mai 2018

Pagar o galo

1/04/18

[dropcap style≠‘circle’]B[/dropcap]ar La Fontaine: um livro acondicionado ao mofo da gaveta. Recuperei o título para capítulo de outro que sairá em Maio. Mas fica um lote à deriva e desencaixadas algumas traduções de que gosto. Como a do indiano, Lokenath Bhattacharya, que o Henri Michaux admirava:

«DOS CEGOS MUITO DISTINTOS

Numa palavra, eis a proposta: deves subir lá acima, e fazer soar a trombeta. De imediato, alternância do visível no invisível, e mudança de estação na floresta. Este é o programa do dia. Mas eu não sou mais que um homem vulgar, que mantém a sua oração, as mãos em prece. Se os velhos temas são mencionados – e sê-lo-ão -, se ele se compraza em repetições – é inescapável -, que se lhe queira, por bem, perdoar as deficiências, naturais para um incapaz.

Nenhum obstáculo, o minarete ergue-se à tua frente. No caminho para o seu cume, resplandecem os degraus, um após outro, de mármore branco. Do exterior, o ar quente não penetra. Desde que puseste o pé sobre a pedra – Que frescura! Lembras-te de tocar o ribeiro? – começa o louvor da viagem.

A escadaria não oferece nada de verdadeiramente tortuoso, não é sinuosa. É mais como um bom rapaz, um coração ordeiro. Sob os teus passos, desdobram-se os degraus, generosos, companheiros de um caminho desimpedido, que o esplendor chama. Se não te resolveste a subir até ao cimo, a tua respiração será amena, quase igual do princípio ao fim: treparás em brandura, amigo!

É a escadaria de um minarete, assim não te cansarás de virar. A cada volta o teu olhar esmaltará novas paisagens azuis, os teus ouvidos serão sondados por murmúrios preciosos, sempre novos e doentes de amor por este mundo de poeira. Sobre os muros: cenas dispostas uma após outra, desde a primeira hora. A cada etapa da viagem: assistência completa com cantores, instrumentos, músicos.

Subirás ao cume e soarás a trombeta, a nova há-de espalhar-se por si.

Então o pôr-do-sol deixará de exalar, o pavão esquecido de tudo selará uma imagem; ambos – atrás da porta, à espera, longe dos olhares – a roçam. Às cores, não as vês ainda, não é? E como as verás? Deitar-te-ão o meio-dia ou a tarde? Que importa? Surgirão, ao primeiro som da trombeta, cintilantes.

Vês como flui tudo, a que ponto tudo é fácil, sem obstáculo, amigo!? Inútil até transportar o instrumento, degrau após degrau. Assim que chegares à pequena plataforma, lá em cima, tendo essa minúscula cúpula, como um guarda-sol, sobre a cabeça, tu verás, junto à balaustrada de pedra lavrada em flores, a trombeta deitada sobre o chão liso. Não te restará mais que tomá-la nas mãos; depois, de pé, bem direito, na posição requerida, a perna esquerda avançada, a cintura encolhida, levar os teus lábios à embocadura.

E não cai de imediato uma chuva de flores, como convém a uma obscuridade que já se palpa, dilacerando o torso negro do céu com um foguete imenso, deslumbrante?

Lá estamos, hoje, para assistir à festa, meu amigo! Todos os da nossa cidade, jovens e velhos. A nova voou da boca à orelha. De uma ruela para outra, a vida pulula. Que se vê agora, do alto do minarete?

Tão longe quanto alcança o olhar, todas as casas estão decoradas: grinaldas de empolas vermelhas e azuis, desenhos propícios sobre os jarros, diante das portas. Sobre os caminhos, a multidão aperta-se. Nenhuma agitação. População fervente alinhada sabiamente, trajada de branco, exibindo na testa o ponto de sândalo, maxilares e queixos recobertos por tatuagens de um desejo ardente.

Neste pátio, junto à porta que conduz à torre, eis a tua estreia – a sós, bem entendido. Atrás de ti, em semicírculo, a turba dos tocadores de búzios espera pronta. No seu séquito, chegados num passo firme e confiando honrar com a sua presença o lugar reservado aos convidados de marca, alguns cegos de grande distinção. Eles ouviram uma mensagem divina: hoje, recuperarão a vista.

Não há sinal de obstáculos, em parte alguma. Simplesmente, nesse momento silencioso, de espera, tu sobejas, escultura perfeita. As tuas pestanas não se mexem. Se o teu coração bate ou pelo contrário cala, não o deixas transparecer.

Subirás ou não – a escadaria? Não o queres dizer. Não a sobes.»

02/04/2018

Mais um jornalista moçambicano raptado, Ericino de Salema, e abandonado atrás dum silvado, depois de severamente agredido. Teve sorte, uns garotos iam aos pássaros e encontraram-no agonizante. O medo entulha a cidade.

Dizem-me que é um jogo de xadrez, que um antigo presidente mandou perpetrar o acto para inculpar o actual, posto o jornalista ter alfinetado na televisão o comportamento irresponsável do filho deste.

É um enredo que Shakespeare aproveitaria, como outros movimentos deste jogo de sombras. Pena os candidatos a dramaturgos moçambicanos andarem entretidos com o teatro dos espíritos e não captarem os sinais que se camuflam atrás das aparências do visível.

Milagres precisam-se, nesta “Chicago anos 20” en retard.

04/04/18

Milagre, o que aconteceu com Eva de Vitray-Meyerovitch, na França ocupada. Batem vigorosamente à porta. Eva abre e vê Frankenstein, de olhos vítreos e pronto para a degolar. Acompanha-o um oficial da Wehrmacht, que arvora um ar maçado. E perguntam-lhe pelo marido, como ela, um operacional da Resistência.

Em pânico, ignorando absolutamente a língua, Eva apanhou-se a proferir no mais castiço calão berlinense: «Esse, deu à sola com uma galdéria qualquer e, sabe que mais, estou-me nas tintas!», e continuou num arrazoado tão convincente que o oficial lhe deu os parabéns pelo alemão antes de despedir-se, resignado.

Não parou Eva de tremer, depois de saírem, e amassou numa bola o maço de tabaco que reservara para a troca de um pão.

Foi após este espantoso milagre que Eva se aproximou dos sufis e traduziu o Rumi e o Iqbal para francês e uma luz lhe embrenhou um astro nos olhos.

E pagou o galo a Asclépio.

12 Abr 2018

Helena Ramos, freelancer | Residente intermitente

[dropcap style=’circle’] Q [/dropcap] uando sobe o pano do Rota das Letras anda de um lado para outro de papéis na mão pelos corredores do edifício do antigo tribunal. Apesar da preferência pelos bastidores, todos a conhecem fora deles. Helena Ramos vem com regularidade a Macau, mas apesar de ter decidido desligar-se do Festival Literário no final da sétima edição, que terminou no final de Março, acabou por transformar-se numa “residente intermitente”. Novos projectos talvez continuem a trazê-la cá.

A primeira vez que desembarcou em Macau foi em 2013, ou seja, na segunda edição do Rota das Letras. “Quando cheguei fiquei louca com estas luzes e estes casinos todos e depois comecei a perceber um bocadinho melhor a segregação que existe e isso assustou-me. No primeiro ano sai daqui um pouco não desiludida com o festival, mas com Macau”, porque “achava que havia muito mais interacção entre culturas”. Essa primeira desilusão não a demoveu de continuar num projecto em que acreditava: “Afinal, o festival servia para isso mesmo, para aproximar as culturas, e pensei ‘vamos lá então tentar’”. Com o tempo, Helena Ramos não mudou totalmente de opinião, mas ter conhecido outras pessoas e perceber que “há, de facto, quem esteja particularmente interessado nessa mistura cultural” suavizou a primeira impressão. “Se estiveres com a mente aberta as pessoas não são assim tão fechadas. No início tive a impressão de que eram muito difíceis, porque nem olhavam para mim na rua nem me respondiam quando fazia perguntas e agora já não”, observa a freelancer.

A vida de Helena Ramos sempre girou à volta dos livros. Depois de ter ido estudar para estrangeiro, passando cinco anos em Espanha, regressou em 2004 a Portugal onde começou a trabalhar na ASA que, anos mais tarde, viria a ser adquirida pelo grupo Leya, altura em que recebe um convite para a Porto Editora. Foi, aliás, nesse “mundinho” que se cruzou com Hélder Beja, co-fundador e ex-director de programação do Rota das Letras, que mantinha um blogue sobre literatura. Ficam “grandes amigos”, pelo meio ganha vida o Festival Literário de Macau e Helena Ramos, sem possibilidade de vir a Macau, mas “com muito interesse” no novo projecto começa a participar à distância. “Comecei a trabalhar a partir de lá nos livros, a fazer traduções e a editar, porque é o que faço, mas depois percebemos que tinha de vir para aqui e coordenar os conteúdos e essas coisas todas”, conta a lisboeta de 41 anos que, embora não tenha vindo a Macau todos os anos consecutivos, era uma das pessoas mais antigas na equipa do festival.

Pelo meio, despediu-se para ser freelancer – faz tradução (de inglês e de espanhol) e edição. Contudo, o seu objectivo mantém-se: “abrir horizontes”. Um deles foi ir tirar o curso de Belas Artes (que ainda frequenta), após uma formação anterior em cinema. “O meu problema é que me aborreço imenso se fico só numa coisa. Então, estou sempre à procura de novas coisas o que, às vezes, é mau, porque não acabo uma e vou logo para outra, mas estou a tentar focar-me”, afirma.

Actualmente, tem outro vínculo com os livros, desta feita o novo desafio é escrever um, baseado na viagem de três meses que fez no ano passado, movida pela “vontade de sair” de Portugal. “Fui tipo Forrest Gump, mas a andar”, brinca Helena Ramos que apanhou um avião para Oslo e voltou a pé para Lisboa. “Foi um bocado à maluca. Fiz metade da Noruega, as montanhas todas, estive três semanas sem ver ninguém e para morrer várias vezes, porque eu nunca tinha feito isto, nem sequer sabia ler um mapa”, recorda. “Todos os dias perguntava-me o que estava a fazer ali e ainda por cima sozinha, mas aquele instinto de sobrevivência fez-me relativizar imenso as coisas do dia-a-dia que nos stressam e aprendi imenso sobre mim também”. Durante a viagem, apenas recorreu a dois meios de transporte: uma “bicicleta velha” que o desespero a levou a comprar e que a ajudou em parte do percurso, e um barco para fazer uma travessia de duas horas entre a Suécia e a Dinamarca.

Contar histórias é o que realmente lhe interessa, independentemente do formato, embora aprecie particularmente vídeo-arte, mas nada muito conceptual, porque gosta, acima de tudo, de levar a cultura aos cantos onde não chega. Na sua cabeça magica mil ideias. “No ano passado, quando tive um tempinho, comecei a fazer um trabalho aqui em Macau. Tirei umas fotografias e tenho, de facto, isso, além de que também já me disseram para fazer aqui uma exposição com os meus quadros e as minhas esculturas, mas fico um bocado envergonhada”.

“Embora tenha sido o meu último ano no Rota das Letras, tudo o que sejam projectos de cultura interessam-me e há vários em mente, a misturar culturas, e também a ver com a Ásia. Cá nos veremos outra vez noutros formatos”, promete.

 

6 Abr 2018

Livros | “Yoga-me” vai ser apresentado na Livraria Portuguesa

[dropcap style=’circle’] O [/dropcap] ioga já há muito que saiu da Índia para entrar na vida das pessoas um pouco por todo o mundo. Filipa Veiga é um bom exemplo de alguém que mudou de vida graças à prática. De aluna de direito, com passagem pelo jornalismo, a agora professora de Yoga está em Macau para apresentar “Yoga-me”.

O livro “Yoga-me”, de autoria de Filipa Veiga, vai ser apresentado no próximo dia 11. O evento tem lugar na Livraria Portuguesa, pelas 19h, e conta com a presença da autora e co-apresentação da também professora de Yoga, Rita Gonçalves. “Yoga-me” é o livro que conta as experiências que Filipa Veiga tem tido entre Bali, Índia e Portugal.

Natural de Macau, foi com a ida para a Faculdade de Direito, em Portugal, que Filipa Veiga se sentiu pela primeira vez deslocada e fora de um mundo que não era o seu. “Quando fui para Portugal foi um choque, não gostei da Faculdade de Direito. Fui logo catalogada como diferente, como hippie. Não era igual às pessoas que lá estavam”, começa por contar ao HM.

Filipa Veiga sentia falta de algo. Sem saber bem de quê, recorda agora que talvez tivesse que ver com uma espiritualidade a que associa o território e que não via no ocidente. “O facto de ter crescido em Macau e na Ásia, faz com que convivamos com outros lados da espiritualidade mesmo sem ter consciência disso. Lembro-me de ir para o liceu e ver as pessoas a fazer Tai Chi e era tudo muito natural”, recorda.

Dividida, pensou em começar a fazer ioga. “Finalmente, encontrei o sítio ideal depois de duas ou três tentativas falhadas, e senti logo que era algo que eu precisava para me equilibrar entre a vida da Faculdade de Direito e de Lisboa e um lado muito meu. Na altura, não disse a ninguém que praticava ioga. Como ninguém o fazia e eu já era diferente, então não contei a ninguém”, revela.

Ser professora da modalidade ainda não era um objectivo. Acabou antes por ficar ligada ao jornalismo. “Entrei na SIC, e no meu segundo ano do estágio de advocacia inscrevi-me no CENJOR. Nunca pensei em dar aulas de yoga, queria ser jornalista e trabalhei 12 anos na SIC”.

Mas em 2012, pediu uma licença sem vencimento e foi viver para Bali. O resto foi natural. “Tive o convite para dar aulas no estúdio, e foi assim que comecei”, conta.

Com experiência em jornalismo, e numa altura em que os blogues estavam “na moda”, Filipa Veiga aproveitou a estadia em Bali e criou o seu lugar na blogosfera. “Sentia falta da escrita e senti que agora podia escrever sobre o que estava a acontecer na minha vida”, explica.

Depois surgiu o convite da editora 20/20 para passar as experiências do ioga, de Bali, de Macau, da Índia para um livro. “Quando voltei a Portugal, em 2015, decidi que o ia fazer”. A edição que contou com 200 exemplares está a esgotar.

<h4>ioga omnipresente</h4>

Já se passaram 15 anos desde que saiu de Macau. O regresso para a apresentação de “Yoga-me” está carregado de ansiedade, mas faz parte da própria forma de existir ligada à prática. “É o ioga a actuar na vida das pessoas”, refere.

Afinal, é ao território que agradece por este percurso e esta obra. “Quero agradecer a Macau por tudo aquilo que sou e ao que essa terra me deu. É um lançamento mais espiritual do que um lançamento normal de um livro, é uma entrega e uma forma de agradecer”.

O lançamento em Macau conta com a co-apresentação de Rita Gonçalves, professora de ioga do território e responsável pelo Yoga Loft Macau. De acordo com a apresentação do evento, “é uma oportunidade para conhecer a história de duas mulheres portuguesas que cresceram em Macau antes da entrega da soberania à China, e do boom dos casinos, duas histórias de vida que seguiram rumos muito semelhantes, do jornalismo à prática e ensino do ioga”.

Filipa Veiga vai ficar em Macau mais uns dias para dar um workshop durante o fim-de-semana de 13 a 15 de Abril no Yoga Loft Macau, com aulas práticas e teóricas para praticantes iniciados e regulares.

6 Abr 2018

Chui Tak Kei | João Guedes lança fotobiografia do tio do Chefe do Executivo

O jornalista e autor João Guedes lança no próximo sábado a obra “Chui Tak Kei – História numa biografia”, dedicado à vida do tio do actual Chefe do Executivo, Chui Sai On. Chui Tak Kei foi um dos principais elos de ligação entre as comunidades chinesa e portuguesa, a par de nomes como Roque Choi e Ho Yin

[dropcap style=’circle’] O [/dropcap] Albergue SCM promove o lançamento, este sábado, da fotobiografia sobre o tio do actual Chefe do Executivo, Chui Sai On, uma figura histórica da comunidade chinesa em Macau, falecida em 2007. “Chui Tak Kei – a História numa biografia” é da autoria de João Guedes, ex-jornalista da TDM e autor de várias obras sobre a história de Macau.

João Guedes desvendou ao HM um pouco sobre a obra que ele próprio propôs realizar e que contou de imediato com o apoio de Carlos Marreiros, arquitecto e director do Albergue SCM. Além disso, a Fundação Macau também apoia o projecto.

“Não há biografias em Macau e o que existe são pequenos artigos de jornal ou resumos biográficos”, contou. “A única biografia de fôlego que conheço foi a que foi publicada sobre o Roque Choi [da editora Livros do Oriente, de Rogério Beltrão Coelho e Cecília Jorge]. Há uma quantidade enorme de pessoas com interesse que não têm biografias”, acrescentou.

Chui Tak Kei é um nome proveniente da família Chui, uma das mais importantes de Macau. Tio de Chui Sai On, foi empresário nos mais diversos ramos, um dos quais o imobiliário. No plano político destacou-se como vice-presidente da Assembleia Legislativa e participou no processo de transferência de soberania de Macau e na elaboração da Lei Básica.

Como membro da comunidade chinesa, Chui Tak Kei foi uma das figuras que serviu de elo de ligação com a comunidade portuguesa. João Guedes prefere destacar a época da II Guerra Mundial e a crise do “1,2,3”, no período da Revolução Cultural, como dois momentos importantes na vida de Chui Tak Kei.

“Durante a guerra pertencia à Associação Tung Sin Tong e deu auxílio a refugiados. Esse é um ponto importante porque é aí que inicia a sua vida política. Também fazia parte da Associação Comercial de Macau, que era uma espécie de governo sombra da comunidade chinesa na altura”, contou. De frisar que a família Chui ainda hoje está ligada à Tung Sin Tong, uma das associações de caridade mais antigas de Macau.

Versão trilingue

A vida de Chui Tak Kei é contada e revelada num livro que estará disponível em português, inglês e chinês, e que contém 240 páginas repletas de “fotografias impressas em alta qualidade e documentação sobre Chui Tak Kei que, até agora, nunca tinham estado disponíveis ao público.” De acordo com um comunicado do Albergue, Chui Tak Kei foi uma “personalidade de invulgar dimensão humana e cívica, que Macau ainda lembra com saudade e respeito”.

Chui Tak Kei nasceu em Macau em 1911. Licenciado em Farmácia e com o curso técnico de Arquitectura, assume os negócios da família, ligados à construção civil, a partir de 1935. Figura preponderante do mundo empresarial de Macau, presidente da Associação Comercial de Macau, funda, nos anos 70, a Associação de Construtores Civis de Macau, de que seria o presidente executivo e mais tarde presidente honorário até ao fim da vida.

Foi uma figura de vulto nas instituições públicas e privadas do território e nos órgãos políticos de Macau, tendo ocupado o cargo no Conselho Consultivo do Governador e na Vereação do Leal Senado. Foi membro do Conselho da Redacção da Lei Básica da RAEM e da Comissão Preparatória da RAEM, bem como presidente do Comité Consultivo para a Lei Básica da RAEM. Amante de música e de Belas Artes, dedicou-se, nos tempos livres, ao desenho, pintura e caligrafia chinesa, além de ser um grande apreciador e coleccionador de arte chinesa.

5 Abr 2018

E depois disto?

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]erminada uma trilogia que me ocupou os últimos cinco anos de vida, é inevitável pensar no que vai acontecer a seguir. No que vou escrever. Um romance é uma longa travessia solitária de resultados imprevisíveis que não enriquece ninguém – salvo raríssimas excepções. É preciso estar apaixonado – ou doido – para querer continuar a fazê-lo. E, ainda assim, o sujeito que escreve tem mais receio de ficar parado do que das longas distâncias pelas quais se mede a produção de um livro.

Neste momento, estou na fase do flirt. Atraem-me algumas ideias, sobretudo as que comportam a possibilidade de perceber um nadinha melhor o mundo depois de trabalhar longamente nelas. Uma dessas ideias tem que ver com as teorias da conspiração que não cessam de granjear adeptos. Enquanto estas não produzem quaisquer consequências de monta, é fácil ignorá-las. No fundo, até parecem ter piada. São uma espécie de excentricidade louvável numa sociedade muitas vezes desinteressante e cinzentona. É aquele tipo que passa duas horas de um jantar de Natal da empresa e explicar-te que, afinal, nunca fomos à lua. “É o embuste do século”, diz, entusiasmado. “Tudo não passou de uma encenação razoavelmente bem urdida para fins políticos. Era a guerra fria, pá, e os americanos tinham de marcar pontos!” A cereja no topo do bolo vem na normalmente na forma de um segredo sussurrado: “sabes quem estava a trabalhar para a NASA na altura? O Stanley Kubrick.” Say no more.

Mas nem sempre as conspirações são inócuas e, a espaços, divertidas. Por vezes remetem para assuntos sérios que podem ter graves consequências no bem-estar e na saúde daqueles que não perfilham as crenças dos conspiradores. A ideia segundo a qual as vacinas são, na verdade, mais prejudiciais do que benéficas é uma delas. Grande parte dessa crença radica num estudo fraudulento de 1998, de um médico entretanto caído em desgraça, que apontava para uma ligação causal entre a administração da vacina tríplice e o autismo. O estudo em questão mereceu o escrutínio amplo da comunidade científica, que foi lesta a apontar-lhe tanto as lacunas como as falsidades. Mas a dúvida, junto da opinião pública, ficou. Como dizia um amigo meu, “experimentem colocar um aviso na porta de um refeitório a anunciar que o sumo de laranja já está próprio para consumo e atentem em quantas pessoas bebem sumo de laranja nesse dia”. A desconfiança – legítima ou não – é uma nódoa muito difícil de limpar.

Portugal está a braços com um surto de sarampo. O sarampo é uma das doenças abrangidas pelo plano de vacinação nacional. Acaso a vacinação tivesse a cobertura desejada, o efeito de protecção desta faria com que os casos de sarampo fosse apenas residuais e episódicos. Mas, além de a cobertura não ser a ideal, por motivos alheios à vontade de todos, existem pessoas que, por motivos alheios à racionalidade, não vacinam os filhos. Desconfiam da bondade da vacina e confiam na imunidade de grupo que a vacinação produz. No fundo, pensam, até não estão a fazer nada de mal: os outros estão vacinados e isso faz com que todos estejamos seguros. Não cuidam de se preocupar com a quantidade de pessoas que podem pensar da mesma forma. Mesmo em doses moderadas, os conspiradores acham-se na posse de uma verdade de teor secreto que os distingue dos restantes, da manada. Esse é, alias, o poder das teorias da conspiração: o de nos fazer sentir especiais e únicos.

Estas brechas de imunização passam muitas vezes despercebidas porque nada resulta delas. E isso convence as pessoas de que podem continuar tranquilamente a ignorar a comunidade médica e aquilo que ela recomenda há décadas. No entanto, quando as fissuras atingem uma determinada dimensão, basta uma faísca para termos um surto de uma epidemia qualquer. Parece que estamos condenados a não aprender nada por via da história. As coisas têm de nos acontecer ou de acontecer no nosso tempo de vida. E isso é assustador.

28 Mar 2018

Rota das Letras| Rui Paiva lança livro e inaugura exposição no Sábado

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Livraria Portuguesa vai ser palco no sábado, pelas 14h30, do lançamento do livro “Nuvem Branca” e da exposição “Paisagens Literárias de Um Viajante”, da autoria de Rui Paiva que regressa a Macau para o Rota das Letras.

“Nuvem Branca”, recentemente editada pelo próprio autor, é “um livro de artista e, em simultâneo, um livro de vida”. “Achei que era interessante pela primeira vez e, de uma forma natural, contar a minha vida enquanto artista. É profusamente ilustrado com as minhas obras de arte desde início e vai mesmo aos primeiros desenhos que fui guardando da minha juventude”, começa por explicar Rui Paiva ao HM.

A obra percorre as “diferentes fases” do percurso artístico que Rui Paiva foi trilhando, desde como começou a pintar, incluindo uma cronologia que “mostra todas as exposições individuais para que se perceba que há uma consistência relativamente à carreira”. Esse fio condutor foi preparado pelo filho que cresceu entre as telas do pai, o “Rui da Economia”, como lhe chamava o Monsenhor Manuel Teixeira. Afinal, foi nos Serviços de Economia que Rui Paiva iniciou, em 1979, a sua vida profissional em Macau, antes de enveredar pelo mundo da banca que o levou também a Hong Kong e, posteriormente, de regresso a Portugal.

Foi sensivelmente há três décadas que começou a participar de forma mais activa em exposições individuais e colectivas em latitudes tão distintas como Vietname, Malásia, Coreia do Sul ou Japão, além de Macau, Hong Kong e Portugal. Rui Paiva fala com entusiasmo das exposições, elencando uma e outra, com datas, e até convidados, até fechar o ângulo para pormenores de pinturas ou desenhos.

Uma das mais significativas foi precisamente em Macau porque a viu como uma causa. “Sépias e Sanguíneas do Deserto” era o título da mostra de 1991 – também na Livraria Portuguesa – que, apesar de inaugurada em dia de tufão, acabou por ser “um sucesso”. O tema: a guerra do Golfo. “Tratei-a como uma guerra espectáculo porque era como a víamos através da CNN quando chegávamos a casa. As pessoas viam os mísseis e iam dormir tranquilas. Essa indiferença e passividade em geral relativamente a uma guerra fundamental em termos geopolíticos e económicos deixava-me de algum modo preocupado”. Os trabalhos, retratados no livro, eram principalmente desenhos, “quase como uma insinuação de banda desenhada”, mas também “havia colagens de papéis rasgados”, recorda.

“Nuvem Branca” tem “outra particularidade”. “Embora haja uma cronologia tem também pequenas ilhas”, assinala o artista, dando o exemplo da “Série das Máscaras”: “Em 2009 começou a dizer-se que ia ser o ano da crise em Portugal – infelizmente durou quase uma década. Quando se começou a falar achei que metaforicamente devia conceber um ano com 16 meses porque achava que ia ter mais de 12, pelo que criei uma máscara para cada um desses meses de 2009”.

Já a faceta do livro de vida surge a partir do entendimento de que “as obras de arte não devem surgir do nada”, pelo que cobre a sua vida profissional e dá a conhecer “os bastidores” do artista para que o autor e a sua obra possam ser compreendidos. “Mais importante do que ter sucesso é o artista ter uma identidade”, sublinha Rui Paiva.

Um peculiar início de carreira

O início da carreira artística foi fora de comum. Tudo começou depois de ter mostrado desenhos a um homem que não sabia exactamente quem era. Deixou-o ver, tirar fotocópias, mas nunca mais soube dele, até que, passado um mês, enquanto passava pelo Leal Senado viu um desenho seu, o primeiro de quatro, plasmado no jornal, acompanhado por “uma crítica altamente positiva”, descobrindo que o apreciador era, afinal, um crítico de arte que escrevia para o Va Kio.

Deixou o território em 1982 – pela primeira vez. Regressado a Portugal decidiu ir burilar as habilidades, frequentando a Sociedade Nacional de Belas Artes durante dois anos. Em 1988 estava de volta a Macau, onde efectivamente começa a expor. “Macau foi sempre importante”, realça Rui Paiva, sem esquecer as pedras que surgiram pelo caminho. “Foi um a luta muito grande para entrar no meio artístico de Macau, porque havia barreiras enormes e muitos preconceitos. Eu era um director de banco e, se calhar, por disso, achavam que não podia ser artista”, observa.

Na obra, Rui Paiva também faz uma incursão pela terra natal: Moçambique. Nomeadamente pelos tempos em que, depois de tirar um curso de cinema, andou pelos subúrbios de Lourenço Marques (actual Maputo) a filmar com um grupo de companheiros que lhe ofereceram as pequenas bobinas quando foi para Portugal. Essas imagens, mostrando o fenómeno das mulheres apanhadoras de amêijoas ou as aulas de alfabetização com ‘mamanas’, trouxe-as consigo na expectativa de as poder exibir durante a exposição a inaugurar no Sábado, a par com o lançamento de “Nuvem Branca”.

Intitulada “Paisagens Literárias de Um Viajante”, a mostra reúne mais de 30 obras, da pintura, ao desenho, passando pela instalação, incluindo, entre outros, um conjunto inédito, em papel de arroz sobre tela, “mais espiritual”.

 

16 Mar 2018

Subsídios actualizados no próximo ano lectivo

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap]s subsídios para a aquisição de manuais escolares vão ser actualizados no próximo ano lectivo. Segundo um despacho do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, publicado ontem em Boletim Oficial, o montante sobe 200 patacas para cada um dos níveis de ensino.

No caso dos ensinos infantil e primário, o apoio aumenta de 2.200 para 2.400 patacas; enquanto o do secundário vai passar das actuais 2.900 para 3.100 patacas.

O mesmo despacho, com efeitos a partir do próximo ano lectivo, também revê em alta o montante do subsídio de alimentação de 3.400 para 3.600 patacas.

Já o subsídio para pagamento de propinas mantém-se em todas as frentes: 4.000 patacas para os estudantes dos ensinos infantil e primário; 6.000 patacas para os do ensino secundário geral e de 9.000 para os do ensino secundário complementar.

Os subsídios para pagamento de propinas, de alimentação e de aquisição de material escolar destinam-se a apoiar famílias carenciadas, pelo que são atribuídos com base no rendimento mensal do agregado familiar. No caso de uma família com dois elementos, por exemplo, o limite é de 11.160 patacas, enquanto numa de quatro o tecto corresponde a 18.690 patacas. Já para famílias de oito ou mais membros o rendimento médio mensal máximo é de 25.930 patacas.

13 Mar 2018

Livros | Lobo Antunes e Carmen Miranda para os mais novos

[dropcap]E[/dropcap]ntre as novidades literárias deste ano da Imprensa Nacional Casa da Moeda para 2018 estão as biografias ilustradas do escritor António Lobo Antunes e da artista Carmen Miranda, assim como um livro informativo sobre a águia-imperial-ibérica.

De acordo com o plano editorial divulgado, na colecção “Grandes Vidas Portuguesas” sairá uma biografia sobre António Lobo Antunes, escrita por Jorge Reis-Sá e ilustrada por Nicolau. Quanto à biografia de Carmen Miranda, é assinada por Tito Couto e ilustrada por Sofia Neto. As biografias do General Humberto Delgado é da autoria de José Jorge Letria, com ilustração a cargo de Richard Câmara.

Está também planeada, apesar de ainda não ter data de publicação, uma biografia em moldes semelhantes sobre Mário Soares.

À agência Lusa, o director de arte e coeditor das obras, André Letria, explicou que está prevista ainda a edição de livros informativos sobre a águia-imperial-ibérica, com texto de Carla Maia de Almeida e ilustração de Susa Monteiro, e sobre exemplos de etnografia portuguesa, dos caretos ao bordado de Castelo Branco, da autoria da antropóloga Vera Alves e da ilustradora Carolina Celas.

Desde 2014, a Imprensa Nacional tem investido na edição de livros para a infância e juventude, com grande destaque para a vertente visual.

“É uma forma de trabalhar com autores diferentes e prestar um serviço público com estes temas e estes ilustradores”, explicou André Letria, ilustrador, autor e editor.

O plano editorial para 2018 incluirá ainda um livro sobre a Biblioteca Nacional, escrito por Luísa Ducla Soares, ainda sem ilustrador definido, e outro de Pedro Vieira e André Letria, com histórias sobre o Diário da República, cuja origem, com outra designação, remonta ao século XIX.

A colecção infanto-juvenil da Imprensa Nacional reúne quase duas dezenas de títulos, a maioria já recomendada pelo Plano Nacional de Leitura.

7 Mar 2018

Livros | “Cair para dentro” encerra trilogia de Valério Romão

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] o último volume da trilogia “Paternidades Falhadas” de Valério Romão. Depois de “Autismo” e de “O da Joana”, “Cair para dentro” conta a história de duas mulheres, Virgínia e Eugénia, unidas pela relação mãe-filha.

Eugénia, a filha, não foi educada para ser um adulto independente e, embora seja professora universitária, a mãe controla o seu dinheiro, o seu tempo, proibindo-a até de ter telemóvel. Quando Virgínia começa a desenvolver sintomas de demência, Eugénia vê-se obrigada, deixando aquela infância artificial construída pela sua mãe, a crescer e a cuidar de todos os aspectos práticos da vida de ambas. Até descobrir que, no estado em que a mãe se encontra, a vingança é uma possibilidade. “Cair para dentro” explora até ao limite as dificuldades das relações humanas e os dilemas morais que delas decorrem, refere o texto de apresentação da obra.

O autor publicou ainda três livros de contos: “Facas”, “Da Família” e “Dez razões para aspirar a ser gato”. Valério Romão escreve também peças de teatro e poesia, por enquanto inédita (mas está previsto, para breve, o lançamento do livro-cd “Poetas Portugueses de Agora”, que integra poemas seus).

Valério Romão, nasceu em 1974, licenciou-se em filosofia e é escritor, contista, dramaturgo, tradutor. Seleccionado como Jovem Criador nacional no início do século, tem diversos livros publicados e é um dos nomes sonantes da nova literatura em Portugal. Foi finalista do Prix Femina 2016.

26 Fev 2018

“Quotidianos” | Nova obra de António Conceição Júnior lançada segunda-feira

O autor e artista macaense afirma não se cansar de pensar sobre o território que habita e que é também uma parte de si. Em “Quotidianos”, António Conceição Júnior reflecte sobre a sua Macau em exercícios de cidadania que se espelham em 43 artigos. A obra é lançada na próxima segunda-feira no consulado-geral de Portugal em Macau

 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m “Escritos do Amor e do Desafecto – Crónicas de Cidadania”, António Conceição Júnior, artista macaense, pensou a sua cidade num dos momentos mais importantes enquanto território, aquando da transferência de soberania de Macau para a China.

Depois dessa obra, lançada com a chancela da Livros do Meio, o autor volta a reflectir sobre o território que habita e do qual faz parte. “Quotidianos” reúne um total de 43 textos escritos num período compreendido entre 2015 e 2017. Trata-se, como o autor disse ao HM, “de um somatório de textos datados, quase um registo de bordo de uma navegação existencial”.

Nascido e criado em Macau, depois de ter feito os estudos na área das artes em Portugal, Conceição Júnior nunca se separou das suas raízes e da sua essência macaense. O autor de “Quotidianos” pensa a sua cidade como se respirasse.

“Sou um reincidente e não me canso (embora, talvez, possa cansar, mas assumo o risco!) de falar e reflectir sobre Macau, a cidade e como nela podemos intervir. Trata-se como que de um registo datado daquilo que, em cada momento, me impeliu a escrever”, acrescentou ao HM.

No comunicado enviado à imprensa, lê-se que este livro pretende levar o leitor a “uma incursão pelos pressupostos fundamentais da própria existência numa cidade”.

“Quotidianos” é uma edição de autor, por opção do próprio António Conceição Júnior. A apresentação do livro tem lugar no auditório do consulado-geral de Portugal em Macau, contando com prefácio do professor António Aresta e apresentação do historiador Luís Sá Cunha.

Conceição Júnior explana a ligação que mantém com o autor do prefácio da sua obra desde há muito. “Tenho mantido correspondência relativamente assídua com Dr. António Aresta desde há alguns anos, ambos manifestando o nosso envolvimento com Macau e a sua essencialidade. Admirando o seu trabalho sobre a minha terra, perguntei-lhe se me dava o gosto de escrever o prefácio, ao que anuiu prontamente e que muito agradeço.”

“Este livro é não só ‘um exercício de cidadania corajosa, culta, actualizada e com um poder de contágio simpático’, mas também um meio para atenuar fronteiras por se apresentar ‘desigualmente repartido entre a antropologia filosófica, a ciência política, a literatura de ideias e o pensamento urbano’”, conforme escreveu António Aresta no prefácio.

Um dever, mais do que exercício

António Conceição Júnior não tem em mente criar linhas de pensamento de coisa nenhuma, mas sim a de mostrar as reflexões sobre um território que tão bem conhece. Nascido em 1951, filho da escritora Deolinda da Conceição, o artista havia de regressar a Macau depois de se licenciar em Artes Plásticas e Design pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Por convite do governador Garcia Leandro, Conceição Júnior tornou-se, a partir de 1978, responsável pela formulação da política cultural do território, tendo sido também, entre 1984 e 1997, chefe do departamento de cultura do Leal Senado e, posteriormente, assessor para a cultura do Governador de Macau.

Aquilo que escreveu em “Quotidianos” não é considerado um mero exercício de escrita, muito menos uma obrigação de publicar enquanto autor, mas sim um dever. “É dever de cada um participar neste colectivo em que todos nos integramos, seja de que forma for. Não tenho a veleidade de propor uma reflexão inovadora sobre o contexto da cidade, mas não me abstenho de ir partilhando as minhas perspectivas sobre o gostaria de ver posto em prática para uma melhor qualidade de vida.” Nesse sentido, Conceição Júnior pretende tão somente mostrar pensamentos sobre uma cidade cheia de diversidade e de contrastes.

“Quotidianos” é, portanto, “uma de muitas outras maneiras de reflectir esta cidade onde coabitam múltiplas culturas, lugar único onde a raiz ocidental se posicionou na costa meridional do Império do Meio.”

“Essa forma de coexistência, de legado histórico, traz à superfície o modo como as culturas em presença se interpretam, e interpretam e interpelam a cidade. Trata-se de um conjunto de escritos independentes entre si, mas ligados por uma preocupação, em oposição à indiferença, pela edificação diária de uma cidade com uma história multi-centenária. É também dirigido àqueles que têm a missão de entender a essência da cidade e de a valorizar”, frisou.

O autor recorda mesmo a sua participação em 2001, num congresso da União das Cidades Capitais Luso-Afro-Américo-Asiáticas (UCCLA), que decorreu em Macau.

“A propósito de Cidades Criativas, tive oportunidade de – como participante – dizer que ‘a cidade criativa é não só um novo contrato social mas também um método de planificação estratégica, examinando o modo como as pessoas podem pensar, planear e agir criativamente na cidade. Em suma, é a instalação do diálogo pleno com vista a conduzir a uma compreensão sobre a maneira como se pode humanizar e revitalizar as cidades tornando-as mais produtivas e eficientes, recuperando o talento e a imaginação dos cidadãos’”.

Sobre as cidades criativas, e sobre o próprio território em que habita, Conceição Júnior cita o escritor britânico Ian Morris, também professor de História e Arqueologia na Universidade de Stanford. “There is no more need for writing; what is left is to pratice” (Não há mais necessidade de escrever; o que falta é praticar).

21 Fev 2018

Morreu a escritora Natália Nunes

Natália Nunes (1921-2018)

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] escritora Natália Nunes, autora dos romances “Regresso ao Caos” e “Assembleia de Mulheres”, morreu ontem, na Ericeira, aos 96 anos, disse sua filha à agência Lusa. Nascida em Lisboa, a 18 de Novembro de 1921, destacou-se nas letras, através de romances como “Autobiografia de Uma Mulher Romântica” e “Vénus turbulenta”, mas também como dramaturga e ensaísta, e construiu uma das mais vastas obras, como contista, na literatura portuguesa, com títulos como “Ao Menos um Hipopótamo”, “As Velhas Senhoras”, “Louca por Sapatos”.

Resistente antifascista, durante os anos de ditadura, membro da direcção da Sociedade Portuguesa de Escritores, encerrada pela PIDE, polícia política do regime, em 1965, era “considerada unanimemente uma das jovens mais bonitas da capital”, como a definiu o seu marido, o escritor e pedagogo Rómulo de Carvalho (1906-1997), conhecido poeta António Gedeão.

Natália Nunes estreou-se na literatura em 1952, com “Horas vivas: Memórias da Minha Infância”, a que se sucedeu “Autobiografia de uma Mulher Romântica” (1955). Vivia então em Coimbra, onde fez o curso de Bibliotecária-Arquivista (1956), depois da licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas (1948), na Universidade de Lisboa.

No primeiro livro, “Horas Vivas”, a escritora “reflecte o ambiente quase medieval, dessa altura, na Beira Alta, onde fez a maior parte da instrução primária”, destaca a Plataforma Escritores Online, do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa.

A partir de então, a escrita esteve sempre presente na sua vida, a par do trabalho nas Bibliotecas da Ajuda e Nacional, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e na Escola Superior de Belas-Artes, como bibliotecária e conservadora.

Da sua obra destacam-se “A Mosca Verde e Outros Contos” (1957), “Regresso ao Caos” (1960), “Assembleia de Mulheres” (1964), “O Caso de Zulmira L.” (1967), “A Nuvem. Estória de Amor” (1970), “Da Natureza das Coisas” (1985), “As Velhas Senhoras e Outros Contos” (1992), “Louca por Sapatos” (1996). “Vénus Turbulenta”, o seu último romance, data de 1997.

Em memórias, além do livro inicial, contam-se “Uma portuguesa em Paris” (1956) e “Memórias da Escola Antiga” (1981). É autora da peça de teatro “Cabeça de Abóbora” (1970).

A obra de ficção disponível da escritora está publicada na editora Relógio d’Água. Publicou “A Ressurreição das Florestas, Estudos sobre a obra de ficção de Carlos Oliveira”, pela Imprensa Nacional Casa da Moeda. No ensaio, Natália Nunes escreveu ainda sobre Dostoievski, Raul Brandão, Augusto Abelaira, José Cardoso Pires, entre outros autores, sobretudo para as revistas Vértice e Seara Nova. Traduziu Dostoievsky, Tolstoi, Simonov, Elsa Triolet, Violette Leduc, Balzac e Roger Portal, para editoras como a Portugália, Edições Cosmos e Edições Aguilar, do Rio de Janeiro.

O Dicionário de Literatura Portuguesa, coordenado por Álvaro Manuel Machado destaca, em Natália Nunes, o “sentido do intimismo e do confessional, do mistério e da solidão, herdado em grande parte da geração presencista”, a que juntou a “temática feminina e de intervenção social”, próxima do neo-realismo.

A pedido do marido, completou as “Memórias” do escritor, incluindo a data da sua morte, em Fevereiro de 1997. “Não te digo adeus, a minha alma estará sempre contigo”, escreveu, no termo da obra.

Natália Nunes era mãe da escritora Cristina Carvalho, autora de “O Olhar e a Alma”, prémio Autores 2016.

Numa entrevista à Página da Educação, Natália Nunes confessou: “Nós temos projectos que nunca se realizam, porque vêm outros que nos exigem mais ou porque a vida não deixa. A vida não nos deixa fazer muitas coisas”.

20 Fev 2018

Rota das Letras | Jung Chang e JP Simões marcam abertura do festival literário

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Começa já no próximo dia 10 de Março o festival literário local “Rota das Letras”. Os nomes já começaram a ser divulgados há algumas semanas e ontem foi dada a conhecer a lista completa de convidados. O destaque vai para a presença na abertura do evento da autora de “Cisnes Selvagens”, Jung Chang e do concerto do português JP Simões

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ão cerca de 60 os convidados da sétima edição do festival literário de Macau, “Rota das Letras”. Jung Chang, autora de “Cisnes Selvagens – Três Filhas da China”, considerado pelo Asian Wall Street Journal o livro mais lido sobre a China e que retrata uma centena de anos no país através dos olhos de três gerações de mulheres, tem presença confirmada na abertura da edição deste ano do evento. A informação foi dada ontem em conferência de imprensa pelo director, Ricardo Pinto. De acordo com o responsável a presença de Jung Chang merece especial destaque. “Na minha geração, eram os romances da Pearl S. Buck, hoje em dia talvez “Os Cisnes Selvagens” seja, de facto, essa porta de entrada na literatura chinesa e, sobretudo na história recente da China. É uma autora com uma dimensão enorme, popularíssima”, referiu.

A autora é ainda conhjecida pelas obras “Mao: A História Desconhecida” e “A Imperatriz Viúva – Cixi, a Concubina que mudou a China”. As obras de Jung Chang estão traduzidas em mais de 40 idiomas, tendo vendido acima dos 15 milhões de exemplares. Vencedora de diversos prémios, incluindo o UK Writers ‘Guild Best Non-Fiction e o Book of the Year UK, foi distinguida com doutoramentos honoris causa por universidades no Reino Unido e nos EUA.

Nascida na província de Sichuan em 1952, durante a Revolução Cultural (1966-1976), Jung Chang trabalhou como camponesa, “médica de pés descalços”, operária siderúrgica e electricista, antes de se tornar estudante de Inglês na Universidade de Sichuan. Mudou-se para o Reino Unido em 1978 e doutorou-se em Linguística pela Universidade de York, tornando-se a primeira pessoa da China comunista a obter tal grau numa universidade britânica.

Vidas multiculturais

Ricardo Pinto destacou ainda a presença de Li-Young Lee, poeta americano premiado e autor de várias colectâneas de poesia e da autobiografia “The Winged Seed: A Remembrance”.

Nascido em Jacarta, filho de pais chineses, “Lee cedo aprendeu sobre a perda e o exílio”, refere a organizção. O seu avô, Yuan Shikai, foi o primeiro Presidente republicano da China logo após o período provisório de Sun Yat-sen, e o pai, cristão fervoroso, foi o médico de Mao Tse-Tung. Quando o Partido Comunista da China se estabeleceu, os pais de Lee mudaram-se para a Indonésia. Em 1959, o seu pai, depois de passar um ano como prisioneiro político do Presidente Sukarno, fugiu com a família para escapar à xenofobia contra os chineses. Depois de um périplo de 5 anos, passando por Hong Kong, Macau e Japão, fixaram-se nos Estados Unidos em 1964.

Ricardo Pinto espera ainda que a presença em Macau do escritor durante duas semanas possa vir a inspirar os seus escritos futuros. “Espero que Li-Young Lee use estas duas semanas para escrever algumas histórias sobre o território”, disse.

Por fim, o director do “Rota das Letras” sublinhou a presença de Marco Lobo. Com ligações a Macau, o escritor residente em Tóquio é conhecido pelo seu interesse na diáspora portuguesa. O facto de ter tido acesso a uma educação multicultural que teve início em Macau e Hong Kong, e se estendeu pela Ásia, Europa e pelas Américas permitiu-lhe observar de perto as diversas sociedades em que a cultura portuguesa se difundiu. Os seus romances históricos, “The Witch Hunter’s Amulet” e “Mesquita’s Reflections”, exploram a temática dos conflitos culturais envolvendo raça e religião, aponta o organizador.

No que toca aos países lusófonos, a Rota das Letras traz ao território Rui Cardoso Martins, escritor e argumentista, autor das crónicas “Levante-se o Réu” e “Levante-se o Réu Outra Vez” — Grande Prémio APE/Crónica 2016 e dois prémios Gazeta. Tem ainda quatro romances publicados, com destaque para “Deixem Passar o Homem Invisível”, Grande Prémio APE, 2009.

Também Isabel Lucas, jornalista, crítica literária e autora de “Viagem ao Sonho Americano” vai marcar presença no território.

Com um pé na literatura e outro na música, vai estar em Macau Kalaf Epalanga, membro da ex-banda Buraka Som Sistema e autor de três romances.

Juntam-se a estes, a historiadora e escritora Isabel Valadão, a professora catedrática, poeta, ensaísta e dirigente do projecto Literatura-Mundo Comparada em Português, Helena Carvalhão Buescu, a cabo-verdiana Dina Salústio, e Albertino Bragança de São Tomé e Príncipe.

Outro dos convidados do festival deste ano é o romancista, jornalista e professor universitário filipino Miguel Syjuco. O seu romance de estreia, Ilustrado, foi NY Times Notable Book em 2010 e vencedor do Man Asian Literary Prize.

Estes nomes vão juntar-se à dissidente e ativista dos direitos humanos norte-coreana Hyeonseo Lee, a Suki Kim, que passou seis meses infiltrada naquele país, aos lusófonos Maria Inês Almeida, Rui Tavares e Ana Margarida de Carvalho, Ungulani Ba Ka Khosa, de Moçambique, e Julián Fuks, do Brasil.

Os autores locais terão também um papel importante no programa da Rota das Letras. A poetisa, catedrática e cronista Jenny Lao-Phillips, o catedrático e escritor de infanto-juvenil Paul Pang, o poeta Rui Rocha, o poeta e historiador Fernando Sales Lopes e a romancista Isolda Brasil participarão em várias sessões ao longo das duas semanas do evento.

Outras artes

No que toca às artes plásticas e visuais, o “Rota das Letras” volta a apresentar uma série de exposições. Uma mostra colectiva de artistas e arquitectos locais, com curadoria da arquitecta Maria José de Freitas traz nomes como Ung Vai Meng, Carmo Correia, Adalberto Tenreiro, António Mil-Homens, Chan In Io, João Miguel Barros, Francisco Ricarte, Gonçalo Lobo Pinheiro e Manuel Vicente numa exposição sob o tema “River Cities Crossing Borders: History & Strategies”, no Edifício do Antigo Tribunal.

O artista local João Ó exibirá “Modelo para Impossível Tulipa Negra”, parte de um projecto maior intitulado Palácio da Memória. Apresentado inicialmente no Museu Nacional da História Natural e da Ciência, de Portugal, o projecto reflecte sobre a figura e feitos do sacerdote e cientista Matteo Ricci, jesuíta italiano do século XVI que se estabeleceu, via Macau, na China continental. O nome invoca a “Carta Geográfica Completa de Todos os Reinos do Mundo”, desenhado por Ricci em 1584 e impresso em xilogravura em 1602.

Na Livraria Portuguesa de Macau, o “Rota das Letras” apresenta “Paisagens Literárias de um Viajante”, uma exposição do artista português Rui Paiva, que viveu em Macau durante vários anos. Juntamente com a sua obra e objectos de colecção, Rui Paiva irá lançar o seu livro recentemente publicado, “Nuvem Branca”, livro de artista e de vida.

Duas outras exposições organizadas por parceiros de longa data do Festival, a Fundação Oriente e a Creative Macau, farão também parte do programa. “Rostos de Poesia”, do artista chinês Chen Yu, será inaugurada a 13 de Março na Casa Garden, seguida por uma sessão de poesia. “Pinacatroca”, pelo cartonista local Rodrigo de Matos, estará patente na Creative Macau de 22 de Março a 21 de Abril.

Letras na tela

São cinco os filmes apresentados pela sétima edição do festival literário de Macau.

A realizadora portuguesa Rita Azevedo Gomes terá duas películas: “Correspondências”, baseado na troca de correspondência entre Sophia de Mello Breyner Andresen e Jorge de Sena, e “A Vingança de uma Mulher”.

Ju Anqui traz a Macau o seu último título, “Poet on a Business Trip”. O escritor e realizador Han Dong irá mostrar “At the Dock”. Já o poeta Yu Jian apresentará o documentário “Jade Green Station”.[/vc_column_text][vc_column_text css=”.vc_custom_1518569357434{margin-top: 10px !important;border-top-width: 1px !important;border-right-width: 1px !important;border-bottom-width: 1px !important;border-left-width: 1px !important;padding-top: 8px !important;padding-right: 8px !important;padding-bottom: 8px !important;padding-left: 8px !important;background-color: #f9f9f9 !important;border-left-color: #777777 !important;border-left-style: solid !important;border-right-color: #777777 !important;border-right-style: solid !important;border-top-color: #777777 !important;border-top-style: solid !important;border-bottom-color: #777777 !important;border-bottom-style: solid !important;}”]

Ritmos, canções e letras

JP Simões apresenta-se actualmente sob o nome Bloom

A edição deste ano conta ainda com a apresentação de dois concertos. No sábado, 10 de Março, pelas 21h, no Pacha Macau, JP Simões-Bloom subirá ao palco, seguido da DJ Selecta Alice.

Bloom é o novo pseudónimo de JP Simões, músico e compositor português que esteve envolvido em vários projectos como Pop dell’Arte, Belle Chase Hotel e Quinteto Tati.

De acordo com a organização, “a busca de uma nova sonoridade levou-o para caminhos musicais bastante distintos do seu trabalho habitual”. “Tremble like a Flower” é o nome do seu primeiro álbum a solo, que se move por ambientes próximos do folk e do blues atravessados por paisagens psicadélicas, e será apresentado em dueto com o músico, compositor e produtor Miguel Nicolau.

Logo a seguir, a DJ Selecta Alice toma o controlo da pista de dança. Ela é uma das impulsionadoras e pioneira da World Music em Dj set em Portugal. Curadora do palco do Sacred Fire no Boom Festival, Selecta Alice homenageia nos seus sets a cultura da festa e da celebração da vida através da música e do ritual da dança. Os ritmos de África, América Latina, Balcãs e Índia são paragens obrigatórias nas suas viagens sonoras à volta do mundo.

Domingo, 18 de Março, pelas 20h, é a vez de Zhou Yunpeng subir ao palco no Teatro D. Pedro V. Zhou é um cantor folk e poeta natural de Shenyang, que ficou cego aos nove anos. Aos 10 anos, começou a frequentar a Escola para Crianças Cegas de Shenyang e, posteriormente, o Instituto de Educação Especial da Universidade de Changchun (1991), onde estudou Língua Chinesa. Concluído o curso, mudou-se para Pequim e começou a sua carreira musical. Em 2011, recebeu os prémios de “Melhor Cantor Folk” e “Melhor Letrista” da Chinese Media Music, e o seu poema “The Wordless Love” foi considerado “Melhor Poema” pela revista People Literature. Também participou no filme Detective Hunter Zhang e assinou a banda sonora do mesmo – a película veio a ganhar o galardão de Melhor Filme no Festival de Cinema Golden Horse (Taiwan). Em 2017, foi responsável pela banda sonora do filme At the Dock.

Contos com fartura

A edição deste ano ao concurso de contos contou com uma adesão recorde. Foram um total de 190 textos recebidos nas línguas portuguesa, chinesa e inglesa. “A maioria são em português com participantes de Portugal, Macau e muitos do Brasil”, referiu o director de programação, Helder Beja. Para o responsável, o aumento do número de trabalhos recebidos é visto com muito “bons olhos na medida em que é o reflexo do trabalho que o festival tem vindo a desenvolver ao longo dos anos”.

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13 Fev 2018

Entre Zelig e Maigret

Pulvis et umbra sumus.
HORÁCIO

[dropcap]C[/dropcap]onforme prometido na semana passada, seguem-se algumas histórias, historietas e reflexões avulsas. Creio que, a par das que há já alguns meses vos venho confiando, serão reveladoras de um aspecto da minha personalidade no qual, modestamente, emulo o grande Comissário Maigret, criatura maior de Georges Simenon e o Zelig de Woody Allen: a vontade de ser toda a gente, de me fundir com todas as paisagens físicas e humanas com que me cruzo, o que, certamente, resulta em que seja uma pessoa de traços pouco claros, dificilmente apropriável, talvez mesmo vaga. Mas, agora, é tarde para mudar e, na verdade, não me parece que conseguisse aprender a ser de outro modo. Passemos, pois, adiante, na costumeira toada:

1 – D., arqueólogo, estava cansado de ouvir um museólogo cujo trabalho se centrava, sobretudo, nos chamados ecomuseus e cuja personalidade era, sem dúvida, algo autocentrada. Teve, então, a seguinte tirada: “É natural que te interessem os ecomuseus, porque são os únicos museus com eco: ecomuseu — eu, eu, eu…”.

2 – F., um amigo que, trabalhando para a O.N.U. e para a Cruz Vermelha, tem vivido as últimas décadas entre teatros de guerra e de fome, encontrava-se algures na Indonésia, a gozar umas miniférias da sua participação no processo de estabilização da independência timorense. Ao abandonar uma esplanada, foi abordado por um meliante local que, a cada recusa sua, lhe propunha um novo item de uma infinda ementa de iniquidades: drogas leves, drogas duras, meretrizes, mancebos, etc. Após uma última e enfática recusa, o dito malfeitor deu-se por vencido durante alguns segundos, mas, vendo, subitamente, uma luz ao fundo do túnel, aventou ainda: “Óculos escuros?”… F. não pôde deixar de sorrir face ao inesperado downgrading das mercadorias e, apesar de tudo, lá lhe comprou um par de lunetas.

3 – Ernesto Sampaio foi um dos mais interessantes escritores e críticos da segunda metade do século XX português. O seu livro “Fernanda” (editado pela Fenda em 2000, um ano antes da sua morte) é uma das mais belas elegias da língua. Ora, nos últimos meses da sua vida, tive oportunidade de beber bastantes copos com o Ernesto, num bar que então tinha no Bairro Alto (o mesmo se podendo dizer, pasme-se, de Cleonice Berardinelli, decana dos estudos portugueses no Brasil). Num texto publicado em 2013, o enorme Manuel da Silva Ramos recordaria: “(…) convidei o Ernesto para jantar n’A Provinciana, que é uma tasca ali perto do Coliseu, por detrás do Teatro Nacional. O Ernesto veio e comemos sardinhas. Ele andava cada vez mais triste mas o nosso jantar foi mais uma vez um modelo de humor, de como o riso pode ser a salvação do mundo. Rimos muito como dois desesperados absolutos e bebemos bem e no final levei-o ao Bairro Alto. Continuámos a beber e isso fazia-lhe bem. O Miguel Martins tinha nessa altura um bar na rua da Rosa e foi aí que levei várias vezes o Ernesto para ver se o trazia de novo à vida. O Miguel, grande admirador da obra do Ernesto, nunca nos deixou pagar nada. Bebíamos pois no meio da juventude, no meio da agitação geral”.

4 – Também conheci Fernando Lopes-Graça, nas comemorações de um seu aniversário na sua cidade natal de Tomar. Disse-me que, havia não sei quantos anos, não abria um piano. Para compor, bastavam-lhe a imaginação e a ciência, sem necessidade de verificação sonora. O mesmo constatei, anos mais tarde, suceder, por vezes, com António Victorino de Almeida, a meias com quem escrevi quatro canções para uma peça de Gogol encenada por Maria do Céu Guerra. Cinco linhas nas costas de um envelope ou num guardanapo de papel e a música flui.

5 – A dado momento da minha vida, após anos de audições musicais e reflexão sobre elas, decidi dedicar parte da minha limitada criatividade à “improvisação não-idiomática”, o que teve como corolário a gravação de bandas-sonoras para vários filmes e séries de televisão e, sobretudo, a edição, em 2014, do CD “Dada Dandy: A Favola da Medusa feat. George Haslam” pela prestigiada editora Slam Records, em cujo catálogo pontificam todos os nomes maiores do free-jazz britânico e, bem assim, luminárias como Max Roach ou Mal Waldron. Mas, antes disso, tocara já, por exemplo, com músicos como Anabela Duarte (dos Mler ife Dada), Beverley Chadwick (saxofonista de Robert Wyatt), Dennis González, Floros Floridis, Filipe Homem Fonseca (meu irmão siamês na música e membro do inenarrável duo Cebola Mol), Gail Brand, Jon Raskin, Ken Filiano, Patrick Brennan, Rodrigo Amado ou Wade Matthews, o que é para mim um privilégio e um prazer ímpar. Este último, no folheto do seu disco “Oranges”, escreve: “Imagine we’re eating dinner at Miguel Martins’ house. Imagine the wine is extraordinary. Miguel has brought me to Portugal to play three concerts, and I end up playing four…a real treat.”

6 – Tenho tido, também, a oportunidade de ver letras minhas registadas em disco por artistas como Marco Rodrigues, Cuca Roseta, Carla Pires, João-Paulo Esteves da Silva, Fernando Alvim ou Ciganos d’Ouro. E de ter poemas meus gravados na Sérvia e no Brasil. É uma experiência curiosa, essa de ouvi-los, em vez de lê-los.

7 – Elogio da dispersão: “Quando alguma coisa é alguma coisa, deixa logo de ser as outras todas, e isso é uma pena. O que é preciso é ser tudo ao mesmo tempo”, Agostinho da Silva.

8 – No meu caso, como em muitos outros, a acumulação destas actividades só é possível mediante o abandono das expectativas económicas que a maior parte dos cidadãos portugueses consideraria mínimas e pelo desenvolvimento de estratégias de sobrevivência quase sempre bastante fastidiosas. E é castrador que assim seja. Não posso deixar de pensar no que seria a produção de tantos e tão talentosos amigos caso não tivessem de debater-se com tais constrangimentos. Mas, pelo menos por cá, tarda em cimentar-se a percepção colectiva do facto óbvio de que ter gente confortavelmente dedicada à produção cultural é caro, mas que muito mais caro é não tê-la.

31 Jan 2018

Agreste matéria

Vila Nova de Cacela, 3 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]estes dias em que se celebra com intensidade a passagem do tempo, se nem tudo pára, muito se faz vagaroso. Fazemos pausa e partimos ao encontro do mar. O sol ilumina os contornos de um frio palpável, as horas são marcadas pela passagem de comboios que parecem vir do passado sem destino definido. Por aqui não se sente a confusão, pouco se vê de turistagem, estamos fora. Um largo terraço mantém-nos suspensos, sem saber se o céu nos sustenta ou se a terra evita que descolemos. Aproveito para ler, entalado também pelo tempo: revisito obras (quase) completas, espreito propostas em busca de futuro, cedo até ao prazer, sem horário tatuado pelas mensagens e chamadas, sem o ritmo insidioso das miúdas urgências que atormentam um preguiçoso confesso. Durou pouco, mas foi suficiente para ressurgir velha resolução de ano novo: aprender a parar.

Horta Seca, 4 Janeiro

A lista de afazeres em atraso, contudo, não deixou de se agravar. Somos poucos para dar vazão ao que se vai criando. Uma editora não se pode limitar a imprimir livros. Deve procurar incansavelmente leitores, que andam preguiçosos e assediados, sem tempo ou vontade. Não penso em marketingue, que procura soluções em modo básico, infantilizando o comprador, importando o estafado de outras áreas. Cada vez mais teremos que oferecer experiências, passagens, viagens. O livro, por si só, contém isso, mundos e muito mais, mas há que gritar-lhe a existência no meio de uma enxurrada de mais de 40 títulos a desaguar, por dia, nas livrarias. Além disso, entendo a editora como plataforma de projectos, desde logo pelo curto-circuito com a ilustração e a assumida luxúria do design, mas também por força do talento que fomos acolhendo. Constato com alegria infantil que a contemporaneidade se exprime em várias linguagens, da música à pintura, com assustadora normalidade. Tenho para mim que esta revolução silenciosa começou algures nos interstícios do sistema de ensino da democracia, ainda que em turbulência nem sempre didáctica, para explodir depois com o advento das redes sociais, que facilitaram o acesso a oceanos de informação e a ferramentas como tutoriais, conferências ou a interacção directa com pensadores e criadores. Natural se torna, portanto, que nasçam exposições que são algo mais, conversas que partem de interesses surpreendentes, bandas de música que fazem da palavra instrumento, convites para se reinventar o escritor. Fazer dinheiro com isto, eis desafio que ainda não consegui resolver.

Outra lista, essa atormentadora, resulta das centenas propostas que nos chegam pelas mais diversas vias. Algumas são enviadas ao mesmo tempo para dezenas de editoras, revelando o desconhecimento de catálogos, filosofias, espíritos. Há tempos, alguém se oferecia em leilão: tínhamos que enviar resposta aos quesitos, que eram vários, até determinada hora. Ou perdíamos a oportunidade de uma vida. Perdemos. Pais atiram a enésima versão harrypotteriana assinada pelos filhos adolescentes. Reformados, mais que muitos, sugerem livros de história, que explicarão finalmente e de uma vez o que já se esqueceu. Best sellers também se anunciam, assim definitivos e com estrondo capaz de resolver os nosso problemas. «Poesia», essa atreve-se sem vergonha em quantidades aflitivas. Demasiadas sugestões vêm travestidas de pedidos de orçamento, confirmando a disseminação do modelo de auto-edição, o princípio do autor-pagador… Por aqui, há quem ganhe dinheiro, que a imortalidade tem o formato de um livro. Pelo meio, acontece coisa de interesse, mas não se distingue com facilidade. Há humor, abordagens originais, logo engolidas por cadência tão avassaladora que, se a ela nos entregássemos, não faríamos mais nada. Até por todas exigirem resposta atenta, justificação detalhada, vislumbre de direcção, esquecendo que não estamos obrigados a responder a algo que não solicitámos. Se por cada oferecimento que entra saísse livro pago teríamos que aumentar as parcas tiragens.

Horta Seca, 5 Janeiro

Chega relatório de vendas de Dezembro a confirmar o que se adivinhava: perdemos o Natal, muito por incapacidade nossa de recuperar atrasos, mas também por causa de um mercado disfuncional, viciado em novidades e incapaz de trabalhar fundos. A falência da distribuidora fez-se pretexto para devolver os títulos empurrados para a sombra. Quantos são agora os dias de sol para um livro acabado de sair?

Outra lista cresce, confirmando para minha surpresa que existimos: a de distribuidoras oferecendo-se para nos ajudar a encontrar leitores, isto é, colocar livros em algumas livrarias. Estamos, para já, servidos, obrigado. E estamos, a prazo, obrigados a inventar novos serviços.

Casa d’Avenida, Setúbal, 6 Janeiro

«Somos Contemporâneos do Impossível» volta a servir de pretexto para, em toada íntima, me pendurar no microfone a fazer leituras do [José] Anjos enquanto o [Carlos] Barretto dança nas cordas. O contrabaixo dá, como nenhum outro instrumento, corpo e paisagem às palavras. Dois acordes e o ambiente está lançado. Depois os volteios definem o perfil do se vai dizendo, o que se solta do nosso peito. A poesia do Anjos, ferida de infância, dá-se bem com estes preparos.

A Casa renovou-se e a luz marca agora o lugar. Para assinalar a mudança, a Maria João [Frade] convidou o José Teófilo [Duarte] a rasgar janelas com as suas pinturas (uma delas reproduzida aqui na página). «O Truque do Mel», assim se chamava a exposição, coincidiu a finissage nesta tarde. Aliás, na tela maior encontrava-se rima gráfica com o desenho do Simão Palmeirim para a capa do «Somos…», coincidência pura. Na maior parte das telas, o fundo faz-se da luta das cores para se soltarem do branco. São fragmentos feridos de parede, que procuram em vão conter essa vida que se liberta dos tons ocre, da família dos suaves. Deixam-se atravessar por tábuas mal aparadas, cordéis e ramos de videira, miolo de cartão canelado, que abrem e procuram fechar fendas, passagens, dividindo a quadrícula, que sugerem contenção, construção. Não evitam o ressumar da cor, o gesto do pincel, o devaneio da textura, uma muito subtil dança de sombras. Assim à vista desarmada, pareceram-me boa ilustração para a melancolia, mas posso estar enganado.

10 Jan 2018

Se assoprar posso acender de novo

Horta Seca, 20 Dezembro

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]recisamos muito de água, mas o que chove são listas. Esse auxiliar de memória, que Umberto Eco elevou à categoria de arte erudita, mas que, no pós-jornalismo onde moramos, raramente se ergue da mera enumeração, sem critério que se entenda, com valor informativo mínimo, a titubear equilíbrios toscos, quando não usado como arma de arremesso. Dizem-se os melhores (livros, podendo ser qualquer artigo) do ano, mas os meses finais agigantam-se, de súbito e em bold. Por exemplo. Para o habitual exercício de listar, o ano encolhe e os meses do Inverno, a não ser que tocados pelo sortilégio de qualquer prémio, perdem-se no nevoeiro da desmemória. Patinhamos no agora, agora mesmo. Coisas de somenos, bem sei, mas a vida em sociedade (comercial) obriga-nos a alinhar por estes compassos, a atentar no assunto. Edita-se demais, o livro vale de menos. Para surpresa minha, o Arno Schmidt ainda passarinhou nestas gaiolas, mas nem que o conjunto das nossas edições fosse incluído mudava o essencial: o rol dos «melhores» pouco mais vai sendo que forma distraída de passar pelo essencial. Nem diária atualização apanharia a corrente de ar dos tempos. Não basta nomear, há que viver com os livros, dialogar com eles, criticá-los, permitir que nos incomodem. Quem passe pelos arquivos, lugar derradeiro da memória, percebe melhor do que falo. Os jornais deixaram de ser espelho. Ainda que estejam pejados de umbigos.

Horta Seca, 21 Dezembro

Mesmo cuidadosamente envelopado, como só ele sabe, o mais recente volume da obra polimórfica do mano Tiago [Manuel], no caso atribuído à sueca Tilda Markström, tem uma mossa na capa e nos primeiros cadernos. Uma marca que logo interrompem a circulação de azul em torno da palavra-título: «Cancer» (ed. Mmmnnnrrrg). Impossível não ver nisto um sinal, uma semiótica dos acasos. A viagem marcou-o. Uma cicatriz, portanto. Com uma força extraordinária, aliás comum nos seus trabalhos, o Tiago desenvolve o álbum em sucessão de imagens que obedecem a perspectiva única: um alto pode-se tornar o ponto, o cerne que nos muda a textura do corpo e do mundo. O entorno vai ganhando texturas e padrões, os mamilos e as veias transfiguram-se na linguagem que nos rodeia, que nos cerca, que nos atrai a rede cada vez mais apertada, cenário no qual tudo diz e é sinal da morte. Sem palavras, sem nunca dizer cancro em português, língua que tem por costume evitá-la, substituí-la, coisificá-la. As linhas da cicatriz transfiguraram-se em rarefeito contorno onde acomodar as sombras que a doença ainda permite. No fecho, três textos curtos, páginas arrancadas a um diário. «Já não é possível voltar ao paraíso de onde fui expulsa pela morte». Dolorosíssimo testemunho em carne viva de um íntimo processo, viagem que a todos nos toca, tocou, tocará.

Santa Bárbara, 22 Dezembro

Raramente me lembro dos sonhos, ao contrário do [José] Anjos, que os descreve como quem encena, atirando posições, detalhes e falas. Estou quase a acreditar que não sonho. Desta vez, descobri o sentido físico do pesadelo. Um peso enorme entornava-se sobre mim, que dormia de bruços, como sempre me entrego, corpo de chumbo com asas que me cobria impedindo que voasse ou tão só me erguesse. Ou respirasse. Tive que acordar para resolver. Não voo, ainda assim.

Horta Seca, 23 Dezembro

A melhor revista de bordo do mundo, para os prémios da especialidade e para mim, fez 10 anos em Novembro e dedicou-se a São Paulo – poema concreto, cidade natal da minha querida Paula [Ribeiro], directora até aos mais mínimos detalhes. Com a UP voa-se, mesmo sem estarmos no avião. Só agora consegui subir a bordo e já chegou nova a chamar-me para Londres, logo com as fotos do Fernando [Martins]. Acontece mensalmente, mas este ergue-se em exemplar arranha-céus de conteúdo e fruição. Dezenas de talentos das mais diversas áreas revelam fragmentos daquela urbe imensa, dos ícones da moda aos ângulos urbanísticos, das obras de arte ao perfil do paulistano, traçado por Marcos Caruso. «Tudo é farto em São Paulo». O tema estende-se por um sem número de detalhes que dá gozo descobrir, que tudo tem que fazer sentido e dançar. Os separadores são cinco fotografias «sinistras» de Bob Wolfenson, retratos em cinco décadas diferentes. A moda, assinada pelo Paulo Gomes, faz sonhar. A entrevista da Rita Lee faz sentido. E ninguém faz revistas em Portugal como a Paula, renovando uma tradição onde o jornalismo incluía atenção, curiosidade e serviço com fartura. Há mais, muito mais. Desconfio que a leitura deve dar à justa para uma ininterrupta volta ao mundo. Entrevista-se até Fernando Lemos, velho embaixador do surrealismo e outras inquietações, que inaugura exposição agora no MUDE, em Lisboa. Um exemplo de alguém entre cá e lá, mestre maior do preto e branco. «Orra, meu!» Esta amplificação de um Brasil que dói de tão cosmopolita sem perder ponta de tropicalidade é excepcional. Sim, nos dois sentidos. O que a paulistana directora da UP tem cometido, mesmo fora dos milhares de páginas que fez levantar voo, e com discreto alarde, vem sendo uma intransigente e amorosa descoberta e demonstração do que Portugal possui de melhor. Ramón Gomez de la Serna via Lisboa como navio de terraços transatlânticos. Quem os tem conduzido de cá para lá e de lá para cá tem sido a Paula, que gosta bastante mais de nós que nós próprios, esse tão estranho hábito.

Horta Seca, 27 Dezembro

Tombei nele por acaso e coincidiu tornar-se banda sonora destes dias menores. Adoro Adoniran Barbosa, ângulo de uma SP que jamais conhecerei, mas que ele expandiu ao universal. Brota sabedoria dos seus versos, apelo agridoce à preguiça impossível, um fulminante bom senso capaz de nos virar do avesso, pondo-nos a dançar com a tristeza, mas piscando o olho à alegria. Um amigo descobriu umas dezenas de páginas rabiscadas pelo João Rubinato, o nome de dia do artista. «De dia não sou ninguém/ de noite sou alguém/ que toca o violão.» Eram inéditos que suscitaram este magnífico «Se Assoprar Posso Acender de Novo» (ed. DaFne Music), boteco onde se juntam nomes como Criolo, Ana Julia, Diogo Poças, Ney Matogrosso, ou Liniker, entre tantos outros. Além de puxar lustro às pérolas, o produtor Lucas Mayer acrescentou o extremo bom gosto de amantizar a tradição e a contemporaneidade de modo único. Delícia que merece visita a torto e direito. Depois, contém o hino desta passagem de ano. «O mundo vai bem mal e a vida não vai bem/ Vivendo afinal, eu penso ser alguém/ O mundo vai bem mal e a vida não vai bem/ O mundo vai bem mal e a vida não vai bem/ Mas com o pensamento puro aguardamos o futuro.”

3 Jan 2018

Fernando Sobral, autor de “O Silêncio dos Céus”: “A obesidade da riqueza traiu os portugueses”

No novo romance do jornalista Fernando Sobral, com a chancela da Livros do Oriente, um homem, Diogo Inácio, sonha com a independência de Macau em relação ao reino português, enquanto deambula pelas ruas húmidas em busca da vingança pela mulher portuguesa que o deixou. Por entre histórias de seitas e de homens perdidos, viciados em ópio, o livro é também o retrato da sociedade de Macau no século XIX

[dropcap]E[/dropcap]sta não é a primeira vez que se debruça sobre o Oriente. Porque decidiu voltar a escrever um romance passado nesta zona do mundo?
O Oriente é a minha estrela polar. Guia-me, há muito. E, talvez por isso, alguns dos meus livros têm a ver directamente com esse mundo, para mim fascinante. Foi o que sucedeu com “O Navio do Ópio”, com “O segredo do Hidroavião” e, agora, com este “O silêncio dos Céus”. Todos estes têm a ver com Macau, mas reflectem a relação dos portugueses com um império flutuante onde estiveram perto de se tornar deuses, como queria adivinhar Camões. Este fascínio tem a ver com o esquecimento a que Lisboa votou, por exemplo, Macau, mas não só. E que só nos derradeiros anos de administração portuguesa se tentou remediar à velocidade da luz. Mas os séculos, o cansaço da descoberta e a obesidade da riqueza acabaram por trair os portugueses. Perderam as ligações comerciais e culturais com este enorme mundo que vai das margens do Mediterrâneo até aos mares da China. E, sobretudo, desprezaram a curiosidade. O sonho de pertencer à Europa, criada para garantir a paz e que faz tudo depender da existência de uma moeda única, fez perder a noção do Atlântico e do Oriente. Esquecemos Macau. E nos meus livros pretendo, modestamente, lançar pontes para recuperarmos uma ligação memorial. Será uma pena não aproveitarmos este rico património para a nossa ficção. Por isso voltei, com este romance, a Macau. E espero voltar mais vezes.

O livro refere-se a um período específico da história de Macau. Porque decidiu abordar a época da Guerra do Ópio?
A Guerra do Ópio, a primeira, é apenas um pano de mundo. Para situar a decadência em que vivia Macau, sobretudo depois dos sonhos expansionistas, ligados ao comércio, do Ouvidor Miguel de Arriaga. Com a Guerra do Ópio acaba o tempo do império chinês, o centro do mundo, e estabelece-se o reinado britânico, fruto da Revolução Industrial e da lei da canhoneira. E Portugal, finalmente, percebe, na pele, que é apenas um império para consumo próprio. “O Silêncio dos Céus” nasce disso: face ao poder britânico, ao esquecimento de Lisboa, criei uma ficção onde se sonha com a independência de Macau. Mas que não é mais do que um canto do cisne de quem apenas quer sobreviver. Como sempre fizeram os portugueses na Ásia, na África ou nas Américas. Ou em Portugal.

As seitas representam, ainda hoje, uma temática misteriosa e fascinante?
As seitas, ou as tríades, são sempre uma fonte de mistério. Até porque nelas encontramos as sementes das sociedades secretas ocidentais. Mas as sociedades secretas chinesas trazem-nos também algo de épico, por causa das suas ligações políticas. E da sua presença constante em momentos determinantes da história chinesa.

Como foi o processo de pesquisa histórica para este livro?
Não foi muito diferente do que tenho seguido para outros livros cujo epicentro é Macau. Muita leitura de documentação histórica e a sua utilização num contexto ficcional. Neste caso até há menos utilização de muita memória, ao contrário do que sucedeu no caso de “O Segredo do Hidroavião”, passado após a II Guerra Mundial, e onde era preciso perceber bem os contornos do tráfico de ouro em Macau.

Um dos personagens, Diogo Inácio, deseja a independência de Macau em relação ao reino. Esta foi uma tomada de posição da sua parte, uma tentativa de imaginar uma nova versão dos acontecimentos?
A ideia da luta pela independência é completamente ficção. Situo-a como um sonho, quase leviano, no meio da cobiça das grandes potências pelo domínio do comércio com a China e onde Macau se arriscava a passar a ser irrelevante. Tem a ver com a necessidade de sobrevivência dos portugueses, como sempre, face a acontecimentos que não podem dominar. E onde se refugiam no destino, como acontece muitas vezes. Basta ver que a conspiração para a independência é tipicamente portuguesa: fala-se muito, mas no momento da verdade pouco se fez. E aquilo desmorona-se por falta de estratégia e de organização. É um sonho. Bonito. Mas só isso.

Ao ler o livro não deixei de notar que certas passagens sobre o comportamento da sociedade e da comunidade portuguesa da altura ainda se mantém actualmente. Concorda? O livro pretende ser esse retrato social de um território peculiar?
É impossível falar de Macau sem colocar um espelho defronte da sua face. E dos que aqui têm vivido. Falar de Macau é falar dos que ali vivem ou viveram. Dos seus sonhos, medos, pesadelos e, sobretudo, formas de sobrevivência.

Há muitas referências ao Confucionismo. Identifica-se com esta forma de pensamento?Considera que há ainda muitas histórias de Macau ainda por contar? Que projectos para romances tem, a seguir ao lançamento de “O Silêncio dos Céus”?
Macau está cheia de histórias por contar. Gostava de poder contar ainda algumas que tenho guardadas à espera de as poder escrever de forma ficcionada. Mas, para já, a seguir a “O Silêncio dos Céus”, estou a terminar um policial passado nos nossos dias em Lisboa, mas onde uma das personagens vem de Macau. Deve sair no primeiro semestre de 2018. Depois é muito provável que volte aos mistérios e maravilhas de Macau.

Como é que a literatura sobre Macau é encarada em Portugal? Há um distanciamento, passa despercebida ou, pelo contrário, há interesse e curiosidade?
Acho que há curiosidade. Mas também penso que na pobreza cultural que é hegemónica em Lisboa dá-se mais atenção a um escritor menor que vem dos Estados Unidos do que a quem escreve em, ou sobre, Macau (ou Goa, ou outra região oriental onde esteve a cultura portuguesa). Lisboa é uma aldeia onde vários Clubes do Bolinha vivem a sua pacata insignificância. E não têm curiosidade por nada que fuja à sua zona de influência. É aqui que acho que Macau poderia ser o centro de uma nova onda da literatura de língua portuguesa. Uma fonte de juventude, de rejuvenescimento. De liderança e de ruptura. Espero que possa ser.

29 Dez 2017

Birmânia: Livro desvenda presença portuguesa mais de 500 anos depois

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s antepassados chegaram entre 1510 e 1512. Hoje, não têm um nome português, nem sabem onde fica Portugal, mas dizem-se portugueses. Esta certeza está em histórias contadas oralmente desde que os exploradores portugueses aportaram à Birmânia. A história é contada no livro de James Myint Swe, “Cannon Soldiers of Burma”, cuja versão portuguesa vai ser lançada em Portugal e em Macau, no primeiro trimestre de 2018, pela Gradiva e a Macaulink, com o apoio do Instituto Internacional de Macau.

“É extraordinário que, na mesma zona onde os portugueses se estabeleceram pelo ano de 1633, em Ye U, uma localidade situada entre os rios Chindwin e Mu [norte da Birmânia], as populações continuem a sentir-se portuguesas”, sem qualquer contacto e a mais de nove mil quilómetros de distância, contou o autor à Lusa. “Não se sabe ao certo a dimensão destas populações… cerca de 200 a 300 pessoas por aldeia, o que nas localidades maiores poderá ir até às duas/três mil. As autoridades estão a tentar fazer um levantamento para saber quantas aldeias existem e quantas pessoas ali vivem”, acrescentou James Swe, que nasceu Chan Tha Ywa, na zona de Ye U, em 1947.

As pessoas desta zona “parecem europeus, o cabelo e a pele são mais claros, alguns têm olhos verdes” e são maioritariamente católicos, disse, lembrando que, nos anos 1970, o Governo não reconhecia esta população como birmanesa. “Para o Governo, erámos estrangeiros”, afirmou o autor, formado em ciência política pela Universidade de Western Ontario, Canadá.

À medida que a aposta das autoridades no ensino cresce no país e que os acessos à zona melhoram, os elementos mais jovens destas comunidades deslocam-se para as cidades para entrar nas escolas e “esta relação com Portugal começa a perder-se”, alertou James Swe, a residir no Canadá desde 1976.

Mas este afastamento já vem de longe e está retratado na declaração atribuída pelo investigador ao capitão António do Cabo que, em 1628, em Ava, no norte birmanês afirmou: “Muitos de nós nascemos em Portugal, ou pelo menos em Goa [Índia]. Passámos muitos anos aqui na Birmânia. Sempre nos sentimos como prisioneiros, ou hóspedes, ou visitantes. Agora chegou a altura de aceitar que a Birmânia é o nosso país. Ainda somos portugueses, mas nunca voltaremos a ver Portugal. Alguns de vós nunca viram”.

O objectivo deste livro, com primeira edição em inglês em 2014, era divulgar a história dos portugueses no país e, ao mesmo tempo, o papel de exploradores, comerciantes e soldados vindos de Portugal a partir do século XVI na estrutura actual da Myanmar, disse. “Com as armas que trouxeram e as alianças que cimentaram com os reinados Mon, Arakan [Rakhine, na atualidade] e Bama/Birmanês, os portugueses foram determinantes na construção da actual Birmânia”, sublinhou James Swe.

Os 300 anos que medeiam entre a chegada dos portugueses (1500) e os ingleses (1800) foram quase eliminados da história oficial do país, acrescentou. “Eu só conheci estas histórias porque, durante as férias do verão, os meus avós falavam da vida de Paulo Seixas ou Luísa de Brito”, afirmou sobre alguns dos longínquos protagonistas de guerras, alianças, traições e comércio no país, que faz fronteira com a China, o Bangladesh, o Laos e a Tailândia. “Foi no Canadá que descobri que a História e aquilo que os meus familiares contavam coincidiam”, disse, sublinhando as dificuldades de estender a pesquisa aos arquivos birmaneses, fechados desde 1962 pelo regime militar.

Para James Swe, é “altura de reaproximar os dois países”, num momento em que a Birmânia precisa de consolidar a implantação do regime democrático, depois da vitória eleitoral da Liga Nacional para a Democracia (LND), em 2015. A Birmânia é uma terra rica e de oportunidades de negócios. “Os empresários portugueses podiam começar com pequenos negócios, como restaurantes, e depois expandir para outras áreas”, considerou James Swe, cujas pesquisas se estenderam por dez anos, entre o Reino Unido, o Canadá e Portugal.

Impedido de entrar nos últimos 40 anos na Birmânia, Swe contou com a ajuda de amigos e familiares no país para investigar a história dos seus ancestrais. Neste período, voltou pela primeira vez a Myanmar, em 2012.

27 Dez 2017

Predador de sombras

Bica, Lisboa, 12 Dezembro

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]rrefeceu mais o bairro, aquele que mora nas traseiras dos que passam a arrastar olhos nos azulejos, dos que desaprenderam a ver apesar das lentes e dos ecrãs e dos guias. O meu bairro de íntimas escarpas e abruptos declives deixou descer de vez o Sô Manel e assim se perderá bastante mais do que as sortes que revendia e praticava com o afinco dos perdedores crónicos. Foram-se os sorrisos rasgados, as festas no Pantufa, que o tratava como pai ganindo ausências, desfilava com canino orgulho trajado à Benfica, quando não alinhava pela selecção, e não dispensava um gole ou dois na mine. O meu bairro de sol pelas esquinas perdeu o fervor da flash interview praticada com o subtil acinte dos velhos parceiros que, apesar das cores contrárias, nunca se perdem do terreno de jogo: o coração.

Mymosa, Lisboa, 13 Dezembro

Um jantar casual com o Bruno [de Almeida] e o Alentejo reentrou na nossa vida tal chuva de estrelas. Sob aquele céu, a solidão parece impossível. Acontece amiúde este horizonte de sul, apesar de outras paragens do afecto, mas celebro aqui a habilidade do contador com a força das descrições, o equilíbrio da sugestão, o cheiro a pão da miragem posta ali na mesa, bastante mais duradoura do que a chama do álcool. Temo, contudo, não vir a conhecer outro refúgio que não em mim. A conversa seguiu depois outro rumo, que espero venha a desembocar em livro, tal o somatório de histórias e intricada reflexão em torno da doença e da criatividade.

Horta Seca, Lisboa, 14 Dezembro

A onda melosa do Natal cansa-me ao vómito. Tornou-se condenação inescapável, agravada pelo generalizado dever da alegria. E os nossos ritmos têm que sujeitar-se, por mais que pensemos alternativas. Acresce ser esta a estação dos livros, em país onde quase nunca chove. Há que aproveitar as gotas de água, sopesando os temas ou, por exemplo, a apetência «da época» por beaux livres. Este ano, quando mais precisávamos, falhámos todas e cada uma das ideias, por uma panóplia de razões que parece sortido de bombons baratos, a vencer o prazo de validade. A falência da distribuidora escavou sorvedouro de tempo e energia que desfez qualquer possibilidade de normal funcionamento. A própria matéria da normalidade se deixou afectar e o que, de ordinário, não faria grande mossa resultou em pequenas e médias catástrofes. Cada palavra fora de lugar, cada demora de autor ou deslize de colaborador, cada falha de matéria-prima ou cobrança de atraso, cada incapacidade nossa foi erguendo intransponíveis. Neste contexto, termos conseguido abrir, pela quarta vez, a colectiva «Princípios de Colecção» conforta-me parvamente. Sublinha que será infindável o recomeço, mesmo quando olhamos para trás, baralhando e voltando a dar parte do que fomos mostrando ao longo do annus horribilis, ou trazendo à luz os fundos, sobretudo de ilustração, que vamos recolhendo por gozo ou suscitando com os nossos projectos. O mais bonito na nossa cave, além de ser híbrida em que se desce e sobe, espelhando o bairro, são as janelas: abrem para a rua e dão para o céu. Com ou sem nuvens.

Music Box, Lisboa, 14 Dezembro

Estou na mesa a atirar obrigados a uma multidão de cabeças sem rosto em fundo negro (preciso aprender a distinguir no escuro) por causa de «Somos Contemporâneos do Impossível», do mano [José] Anjos. Para a pequena multidão serão mera cortesia, para mim fazem-se chão. De tão orgânico, «Somos…» compôs-se objecto dos representam «a vida no seu sentido adjectivo». O plural em ser dá logo ideia da cristalização de colaborações, de olhares, de gestos, de tempos e espaços que acontecem a cada página. Os encontros e desencontros, em palco e fora dele, noite e dia, à volta da palavra e apesar do gesto, íntimos mas colectivos, sopram nesta cidade. A pintura sobre papel do Simão Palmeirim, que faz capa e contracapa (reproduzida nesta página), descreve esse lugar de planos diferentes, de degraus e acessos, de contornos rápidos e toadas de branco. Tão fácil perdermo-nos nesta geometria, sem palavra. A não ser a de abysmo, onde a linha de horizonte se encolhe em curvas e contracurvas definindo a palavra antes de se voltar a perder. Esta abordagem continua no interior, com gravuras e desenhos, de arestas e passagens e florestas de prismas quadrangulares, mas também na sua proposta de reorganização da obra. «Somos Contemporâneos…» está pejado de pormenores, que o autor tem horror ao vazio. O tal índice de Palmeirim, que propõe arrumação outra, ilustra-se com máquina de escrever pautas, mas não de fazer música. Essa ficou a cargo do Carlos [Barreto], que suspira Deambulações, e acompanha esta noite as leituras da Catarina [Santiago Costa], do Valério [Romão], e da Cláudia [R. Sampaio] ainda antes do concerto dos Não Simão, de que ambos, Anjos e Simão fazem parte. Alguns dos poemas ouvem-se também «No Precipício Era o Verbo», e todos eles partilham momentos e projectos de leitura de viva voz, pelo que a intensidade invadiu a sala. Para não fugir ao habitual, a generosa leitura do mano António [de Castro Caeiro] rasga sentidos nas mais imprevistas direcções para acabar empurrando-nos em apneia para a palavra, para a amizade, para a vida. Sei que são apenas mais três vezes que as palavras-lugar-comum se escrevem, palavra, amizade, vida, mas nestas circunstâncias afianço que são a matéria dos caboucos deste livro. Tem mais. «Somos Contemporâneos do Impossível» vive do poema e para o poema, nele mergulha raízes e ergue ramos. As imagens torrenciais configuram a geografia movediça da infância e a respiração das casas erguidas ou almejadas, as ruínas dos amores e a arquitectura de existências esperando corpo, mas tudo parte ou regressa ao poema, aqui pura chama, ali relato de oficina, umas vezes cais outras navio. Recolho-me ao meu lugar: «o predador de sombras é também refém/ da vida projectada dos outros/ o estranho que se detém perante a fotografia abandonada/ que lhe dá/ e ganha vida/ enquanto novo sujeito no destino aleatório/ da contemplação»

Arquivo, Leiria, 15 Dezembro

Esta livraria consegue o milagre de inventar quem venha ouvir, em fim de tarde de sexta-feira, três maduros a ler poemas na companhia do contrabaixo. Parece impossível. Não é: somos contemporâneos da Arquivo.

20 Dez 2017