Macau vs Hong Kong II

[dropcap]O[/dropcap]utro aspecto interessante das diferenças entre as duas cidades prende-se com facto de Hong Kong mergulhar as suas raízes na violência, na guerra, na humilhação de uma das partes em confronto.

Já Macau, pelo luso lado, resulta de um encontro, de uma combinação, de uma partilha de interesses, de uma curiosidade inevitável. Ali ao lado usou-se a persuasão das armas, por aqui, as armas eram outras. Assim, assistimos ao longo da curta história de Hong Kong (um mero século e meio) ao irromper cíclico de episódios violentos, de algum modo normais numa cidade que foi construída sobre os despojos de uma das mais ignóbeis guerras que a humanidade assistiu, a saber: a Guerra do Ópio.

Sim, a democrática Inglaterra impôs à China a compra compulsiva do famoso estupefaciente e perante a recusa bombardeou Cantão até à capitulação chinesa e a assinatura dos tratados iníquos. Nesse movimento, ganhou Hong Kong.

Quanto a Macau, a conversa procedeu por caminhos muito diferentes. Outros tempos, outros modos, outra gente. Mas, durante os quatro séculos e meio de presença portuguesa, só muito esporadicamente ocorreram actos violentos entre as duas principais comunidades. E sempre motivados por agentes exteriores a Macau, incluindo influência de Hong Kong. Fez bem a Air Macau ao escolher uma pomba para o logotipo. Por seu lado, a Cathay Pacific escolheu um dragão. Também fez bem.

2 Dez 2019

Discutir casas de banho 

[dropcap]N[/dropcap]o artigo que hoje publicamos sobre um estudo realizado pela investigadora Melody Lu, da Universidade de Macau, esta deixa uma frase que nos deve fazer a todos pensar, sobre o facto das leis que se estão a produzir no hemiciclo, ao nível das agências de emprego e do salário mínimo, poderem afastar potenciais trabalhadores não residentes (TNR) de Macau por ser muito caro para eles viverem no território. Melody Lu alerta também para o facto dos problemas sociais que essas mudanças legislativas vão causar não estarem a ser discutidos na Assembleia Legislativa.

Pois. O problema do hemiciclo é que discute quase tudo, menos as questões fracturantes. O deputado Mak Soi Kun está extremamente preocupado com o facto de em Macau não existirem casas-de-banho públicas suficientes, ou com os cães que andam perdidos pelos trilhos e que podem espalhar raiva pelas pessoas. Os deputados do campo pró-democracia discutem a política “Terras de Macau para Gentes de Macau” e a habitação pública (e até Mi Jian recordou esta quarta-feira que a questão já foi colocada três vezes no hemiciclo) e Sulu Sou preocupa-se com tudo, desde que não seja ligado aos não residentes.

O hemiciclo continua e vai continuar a estar afastado da sociedade como ela é. Olha apenas para os direitos de uma parte da população, quando o futuro está aí e são necessárias respostas. Sim, Macau tem trabalhadores não residentes que são necessários à economia e é preciso falar dos problemas que surgem se eles não quiserem mais trabalhar em Macau. O facto da lei das agências de emprego estar há meses em análise e só agora se prepararem para ouvir as associações de TNR é pura e simplesmente vergonhoso.

29 Nov 2019

Dissonância popular

[dropcap]P[/dropcap]erdoem-me por ainda escrever sobre o resultado das últimas eleições em Hong Kong. Eu sei, é assunto que já passou à história na voracidade da ordem-do-dia, mas quero salientar um aspecto que se repete em loop: A total cegueira de Pequim e, por contágio, do Governo de Hong Kong à vontade popular que lhes é mais antipática. Um Governo não pode ter cidadãos preferidos e outros preteridos.

Mas, primeiro os senhores de cima. Um dos tentáculos de comunicação do partido, o Global Times, concluiu que a esmagadora vitória do campo pró-democracia revela exaltação emocional e falta de pensamento racional dos eleitores. Nada melhor que chamar estúpidas às pessoas para as conquistar. Além disso, culpam uma lei de cariz comercial, aprovada ontem do outro lado do mundo, pelo resultado eleitoral.

Enquanto o Governo Central bate o pé, e repete que Hong Kong pertence à China, ignora completamente a vontade popular, para surpresa de ninguém. A agência Xinhua refere que houve eleições, pasme-se, sem mencionar os resultados.

Agora a parte deste lado. Carrie Lam tem a lata suprema de vir dizer que agora é preciso ouvir com humildade as mesmas vozes que anda a ignorar desde o início dos protestos, sem fazer qualquer concessão.

Não é assim que se apazigua o ressentimento. Aliás, isto é juntar óleo a um fogo que arde por falta de ligação entre governo e governados. Quando 2 milhões de pessoas se manifestaram pacificamente, e já se chamava terroristas a quem fazia grafitis, os ouvidos do poder nada escutaram, nem nunca o fizeram desde então. Escusado dizer que estou muito céptico em relação às renovadas intenções do poder menor para com as vozes que teima em ignorar desde sempre. Autêntica interferência interna na paz social de Hong Kong.

29 Nov 2019

À sombra do Cavalo-Dragão

[dropcap]M[/dropcap]acau vive uma época extemporânea por tudo aquilo que se passa em Hong Kong e por não haver nenhum paralelismo directo da situação, no seu dia a dia. Ainda para mais, numa altura em que se aproxima um cocktail de comemorações muito peculiar que vai ser o mês de Dezembro, onde o aniversário dos 20 anos da RAEM coincide com a tomada de posse do novo Executivo.

No passado fim de semana, no mesmo dia em que Hong Kong viu os candidatos pró-democracia conquistarem quase 90% dos assentos do Conselho Distrital nas eleições do passado domingo, em Macau o candidato único da eleição suplementar por sufrágio indirecto para a Assembleia legislativa, Wang Sai Man falava com a comunicação social à saída da assembleia de voto, podendo ter violado a lei eleitoral. Enquanto tudo isto acontecia um espantoso Cavalo-Dragão mecânico, que tive a oportunidade de ver com os meus próprios olhos, desfilava em tourné pela RAEM, em celebração dos 50 anos das relações diplomáticas entre a China e França.

As reacções de espanto e ovações foram intensas (e não era para menos) quando o animal mecânico passou às frente das pessoas que assistiam à parada, fazendo sombra à sua passagem. Mas não deixa de vir à ideia, se aquela sombra não ajudou, de forma ínfima obviamente, a desviar atenções de uma realidade que talvez peça mais vozes e contributos activos, ponderados e perspicazes de todos.

E claro que a cultura e os espectáculos de entretenimento têm um papel fundamental e não vejo, à excepção da origem do seu financiamento, diferenças de fundo para uma partida de futebol, por exemplo. Só tenho receio que possam ajudar Macau a ficar em silêncio quando o dragão passar por cima das nossas cabeças outra vez. E tanta coisa a acontecer à volta.

29 Nov 2019

Promessa tóxica

[dropcap]À[/dropcap] excepção da educação e da segurança nacional, Chui Sai On andou 10 anos a atrasar a RAEM. Na altura de fazer o balanço dos seus mandatos percebeu que tinha sido uma nulidade e que deixa uma bomba relógio na área da habitação. Talvez por isso tenha decidido cumprir a promessa de lançar um concurso para a compra de habitações económicas.

Contudo, não há base para o concurso, não foram criadas condições, não se sabe o preço de venda das casas nem os prazos de construção, apenas é público que o concurso para a decidir o construtor do prédio vai ser feito no próximo ano. É muito difícil explicar a urgência deste concurso e explicar a razão de não se esperar, por exemplo, seis meses.

Aliás, os deputados e o Governo até estão a discutir a futura Lei da Habitação Económica e o mais sensato seria esperar pelas novas regras. Todos sabemos como as regras que estão em vigor foram manipuladas e nunca em nome da transparência. Portanto, nada justifica que se lance o concurso a não ser a “necessidade” de Chui Sai On “salve a face”… Mas se queria realmente cumprir a promessa, em vez de cavalgar uma onda populista, Chui devia ter trabalhado para criar as condições favoráveis. Mas não o fez e optou pela medida fácil, populista, apressada e que é característica de partidos políticos irresponsáveis que precisam de ganhar eleições.

Chui não precisa de ganhar eleições, portanto não se percebe que mais uma vez sacrifique o bem comum. É mesmo caso para dizer que depois de 10 anos a ignorar as necessidades de habitação da população, o melhor seria mesmo que deixasse estar promessa tóxica por cumprir…

29 Nov 2019

Macau vs. Hong Kong I

[dropcap]H[/dropcap]á quem critique a população de Macau por não ser empenhada politicamente, mais concretamente por não demonstrar animosidade face à China como abundantemente fazem os nossos vizinhos ali de Hong Kong. Certamente que podemos divagar por milhares de explicações, pontos de vista, etc., mas basta talvez reparar numa questão histórico-populacional.

A saber, a maior parte das gentes chinesas de HK descendem dos que fugiram do continente em 1949, para escapar à revolução comunista. Neste sentido, mantiveram confucianamente, geração após geração, um ódio muito próprio ao regime, que os faz ver o interior da China como um lugar despótico, atrasado, subdesenvolvido, a evitar.

Já a maior parte das gentes chinesas de Macau (quando não acabadas de chegar) descendem de pessoas originárias do interior da China, nascidas em pleno regime comunista, depuradas pela experiência da Revolução Cultural e cujo olhar para o seu país é completamente diferente. Aliás, ainda durante a administração portuguesa, uma parte muito significativa da população de Macau (cerca de 30%) NÃO SABIA (!!!) que era administrada por portugueses e julgava estar sob a alçada do regime chinês. Outras gentes, outras origens, outros afectos.

Por isso não vale a pena denegrir a população da RAEM. É preciso entender que o segundo sistema também tem destas coisas: as pessoas têm o direito de estar noutra, ainda que seja diferente daquela que nós julgamos ser melhor para eles.

29 Nov 2019

A democracia e o crescimento económico

“It has been said that democracy is the worst form of government except all the others that have been tried.”
Winston Churchill

 

[dropcap]A[/dropcap] democracia é o sistema que funciona melhor? A democracia é mais eficaz, do ponto de vista económico? Há quem responda corajosamente com um retumbante sim. A evidência mostra que ao longo dos séculos, e em muitos países, a democracia tem promovido o crescimento de forma mais eficaz e consistente do que qualquer outro sistema político. Será possível acreditar? Tal raciocínio omite completamente o facto de que o crescimento veio de mãos dadas com o avanço tecnológico, e que a tecnologia é um subproduto não da democracia, mas de uma espécie de lógica e racionalidade forjada pelos gregos clássicos, que de facto deram origem ao “espírito científico” e, como resultado, ao prodigioso desenvolvimento da tecnologia que, sem igual, ocorreu nos últimos dois séculos no mundo ocidental.

É verdade que a civilização chinesa foi caracterizada por capacidades excepcionais e que durante muito tempo ultrapassou o Ocidente em invenções técnicas. A ciência e a tecnologia que “modernizaram” o mundo nunca floresceram em outras culturas, nem na China nem para citar o outro grande exemplo, na Índia. Assim, a correlação entre a democracia liberal ocidental e a riqueza é falsa. É de considerar que correlações à parte, que argumentos sustentam a tese da “superioridade económica” da democracia? Uma das principais razões pelas quais a democracia promove o crescimento é o de fornecer segurança para os direitos de propriedade, necessários ao progresso capitalista. Após o colapso desastroso das economias planificadas de tipo soviético, até mesmo os ditadores perceberam que “a mão invisível funciona melhor do que a bota visível”.

Assim, os ditadores acham que é do seu interesse promover os sistemas de mercado e respeitar os direitos de propriedade. Se olharmos para o mundo, vemos democracias “em crescimento” e “democracias em declínio”, bem como ditaduras em ruína económica e ditaduras que gozam de sucesso económico. Taiwan, Singapura, Coreia do Sul e a Malásia também construíram as suas “economias milagrosas” sob liderança autoritária. Na América Latina, as economias do Chile e do Peru caíram sob regimes democráticos e deveram a sua recuperação económica a governos autoritários (no Peru, o presidente Alberto Fujimori conseguiu milagres económicos ao suspender e reescrever uma constituição democrática duvidosa).

O padrão mais difundido nesta região é que tanto as ditaduras militares como os governos democráticos têm os mesmos maus resultados de desenvolvimento. Na ex-União Soviética e na Europa Oriental, a democratização precedeu as reformas económicas, tornando-as mais difíceis. A China, pelo contrário, sob a orientação de Deng Xiaoping tem sido notavelmente bem-sucedida, seguindo o caminho oposto, com a liberalização económica direccionada de cima para baixo sob estrito controlo do Partido Comunista. A proposição de que a democracia não é apenas um sistema político superior, mas também um “vencedor económico” é facilmente contrariada pelo argumento de que, nos mesmos mecanismos de mercado, governos que não estão constrangidos por pressões populares estão em melhor posição para promover o crescimento do que governos condicionados por procuras democráticas e demo-distribuição.

É de ressaltar que certamente, quando as pessoas se tornam ricas, uma das coisas que provavelmente exigirão é a democracia e nessa tese é o crescimento que traz a democracia, não a democracia que gera o crescimento. Para que a democracia seja mais eficaz não responde a uma lei natural. As democracias têm de funcionar, não só com boa vontade, mas também com incentivos e limitações estruturais. É de sublinhar o facto de que o próprio modelo, a forma política ocidental, exige urgentemente uma reparação. A falência da democracia, da chamada democracia com défice, é um perigo real e um risco para o qual as estruturas constitucionais actuais não estão preparadas.

Quando os sistemas político-liberais foram concebidos, a principal força motriz por trás do seu estabelecimento foi o princípio de não tributação sem representação (como James Otis declarou em 1761, “tributação sem participação é tirania”), mas consequentemente, quando os parlamentos se tornaram um dos pilares do Estado constitucional, exerceram o “poder do orçamento”, ou seja, o poder de levantar dinheiro e dá-lo ao detentor do “poder da espada” (o rei). Esta divisão de competências entre um executivo de despesa e um parlamento controlador atingiu o seu objectivo, enquanto os parlamentares representavam (como aconteceu ao longo do século XIX) os contribuintes reais, ou seja, os “mais ricos”, não os “mais pobres”. Nestas condições, os parlamentos eram, de facto, controladores eficazes das despesas.

Desde o século passado que se perdeu o equilíbrio entre os travões parlamentares e os aceleradores executivos e com o sufrágio universal e o subsequente passo geral do princípio da “lei e ordem” (que o “pequeno Estado” deveria fornecer) para o Estado Providência (cobrindo necessidades), os parlamentos tornaram-se mais gastadores do que os governos. A contenção natural que manteve os orçamentos em equilíbrio até meados do século XX foi a crença de que um orçamento é, por definição, um equilíbrio entre receitas e despesas. Tal crença explica o facto de que as enormes dívidas originadas durante as duas guerras mundiais poderiam ser gradualmente reabsorvidas. O feitiço foi quebrado quando a mensagem de John Maynard Keynes sobre o défice público alcançou os políticos, pois usar o dinheiro dos outros de ânimo leve tornou-se uma tentação irresistível e já não era possível encontrar nas estruturas do Estado de direito um elemento cancerígeno fiscal responsável.

Se os políticos que obtém lucros indevidos ou de forma ilícita podem contrair dívidas para o consumo (não para investimento) e depois simplesmente imprimem mais dinheiro, então as más políticas e a economia ou ambas, serão quase inevitáveis. É, pois, fundamental restabelecer o controlo do orçamento, pois, em última análise, o que se pode ter é um Estado sem pesos e contrapesos. Não é possível descriminar as possíveis soluções, mas apenas concluir que o funcionamento da democracia (em termos económicos) é determinado decisivamente pela encruzilhada do controlo do mercado de acções. É aqui que, passando da forma (estrutura constitucional) para o conteúdo político (como resultado das exigências democráticas), a democracia enfrenta o seu maior desafio.

Os direitos formais consagrados nas primeiras declarações de direitos não eram geralmente onerosos. No entanto, à medida que se expandiram para incluir os direitos materiais, tornaram-se cada vez mais onerosos e nas últimas décadas, as democracias ocidentais tiveram de lidar com o aumento das despesas sociais através de dois mecanismos que são o défice público e o proteccionismo. Desde então, ambos os recursos foram esgotados e muitas democracias ocidentais são confrontadas com “orçamentos rígidos”, ou seja, estão tão endividadas que quase não têm margem de manobra na distribuição dos fundos. É de entender que à medida que a economia global expõe inevitavelmente os produtores anteriormente protegidos (que poderiam transferir as suas cargas fiscais para os seus consumidores) à concorrência global, não é possível a existência do Estado-Providência.

Os anos vindouros serão anos de entrincheiramento e mais do que nunca, as democracias devem ser capazes de sustentar o crescimento. Mas, mesmo que o pior aconteça, e sejamos arrastados para um jogo de soma negativa, um jogo em que todos perdem, a ideia que se oferece como consolo é que, mesmo assim, a democracia liberal merece atenção e ter desprotecção é infinitamente melhor do que não a ter e uma última consideração permanece, nomeadamente, se a Ásia e a África podem ter os seus próprios “modelos” de democracia. Fundamentalmente, isto é, nas técnicas constitucionais de protecção dos cidadãos e de exercício do poder político, não existe nenhum modelo alternativo à vista e não se percebe porque querem descartar um mecanismo que provou funcionar muito bem.

Algo mais acontece, por exemplo, em relação ao sistema partidário e aos processos de articulação e agregação de interesses, em relação aos quais se reconhece que os acordos multipartidários originalmente decorrentes de fracturas de classe ocidentais fazem pouco sentido quando as lealdades são exclusivamente tribais. Os líderes africanos que inventaram este raciocínio não estão isentos da razão, mas estão errados ao propor como solução a proibição dos sistemas partidários e, na prática, o estabelecimento de um sistema de partido único ou de uma ditadura; por outro lado, quando se chega ao elemento liberal-democrático chamado “vontade popular”, é difícil generalizar.

O mundo é constituído por povos muito diferentes, enquadrados em culturas, visões do mundo e sistemas de valores muito distintos, para não falar de circunstâncias muito diversas e mesmo no Ocidente, a “vox populi” não é concebida como “vox dei”. Todavia não é possível afirmar que as pessoas tenham sempre razão, mas sim que têm o direito de cometer erros e de igual modo, deve-se permitir que a democracia seja despromovida, ou seja, deve-se permitir um poder do povo que se suprime a si próprio? Isto e uma infinidade de perguntas semelhantes incitam uma série de respostas diferentes que, por sua vez, afectam os resultados de experiências democráticas.

O ensaísta inglês, Walter Bagehot, no século XIX, elogiou a “estupidez diferencial” do inglês. A democracia será melhor servida pela arrogância desrespeitosa? É de sugerir que estas perguntas dependam de cada “Volksgeist”, de cada “espírito do povo” em particular. A teoria da democracia ocidental evoluiu (muitas vezes de forma normativa e até mesmo aperfeiçoada) para reflectir níveis avançados de democratização. Na medida em que essas teorias viajam para democracias incipientes (sendo disseminadas por estudantes formados em universidades ocidentais), os fundamentos da própria democracia ocidental são tomados como garantidos ou simplesmente ignorados, o que constitui um mau princípio para principiantes.

A democracia liberal evoluiu historicamente para englobar dois elementos essenciais que são a desprotecção (resultando em um povo livre) e o demo-poder (resultando no auto governo das pessoas). A desprotecção é assegurada pela “forma” política liberal-democrático, ou seja, pelas estruturas e mecanismos constitucionais, enquanto o “conteúdo” derivado das decisões políticas é o demo-poder. O primeiro elemento é uma condição necessária da democracia, enquanto o segundo é um conjunto aberto de implementações. Assim, é de concluir que a forma (o elemento liberal-constitucional) é o elemento universalmente exportável, enquanto o conteúdo (o que as pessoas querem e exigem) é um elemento contingente, culturalmente dependente.

A “domesticação” e pacificação da política é uma pré-condição essencial para respeitar os resultados eleitorais e permitir a alternância no poder. A desprotecção é indiferente às condições económicas e permite, como hipótese, uma democracia pobre, enquanto o demo-poder, que exige demo-benefícios, necessariamente requer riqueza e crescimento. A mera identificação da democracia com a demo-distribuição torna actuais as diversas crises, entre elas a crise fiscal particularmente preocupante onde quer que ocorra.

Porque se deve lidar com o passado liberal da democracia liberal? Porque a incipiente democracia na Ásia ou em qualquer outro lugar enfrenta os mesmos problemas que a democracia encontrou inicialmente no Ocidente? Não há dúvida de que uma vez inventado e testado um sistema político, em pouco tempo reproduz-se em outro lugar. Assumindo que, em princípio, é relativamente fácil construir uma democracia “por imitação”. No entanto, o problema é a diferença entre o tempo histórico e o calendário, e copiar um modelo político é um processo síncrono baseado em calendário. Importamos o que existe mas em relação ao tempo histórico, alguns países estão separados por milhares de anos. Historicamente, o Afeganistão, por exemplo, e milhões de aldeias espalhadas por áreas subdesenvolvidas (para não mencionar as não desenvolvidas) são mais ou menos onde era a maior parte da Europa nos tempos negros da Idade Média. Por conseguinte, a possibilidade de importar a democracia não é tão fácil como às vezes se imagina.

A importação envolve “diferenças temporais” enganosas, de modo que encontra problemas cada vez que se trata de estabelecer abruptamente um modelo avançado sobre uma realidade mais atrasada. Embora de acordo com o calendário possa ser o mesmo dia nos Estados Unidos como no Afeganistão, uma transposição do modelo da primeira para a segunda é um enorme salto. É de reformular esta questão em termos das condições prévias da democracia. A ideia de pré-condições de democracia geralmente refere-se às pré-condições económicas por referência aos antecedentes históricos que são dois, em que o primeiro, é a secularização, e o outro, a “domesticação” da política.

A secularização ocorre quando o Reino de Deus e o Reino de César, ou seja a esfera da religião e da política são separados. É de entender que como resultado, a política não é mais reforçada pela religião pois perde a intensidade e a rigidez delas derivadas do último (dogmatismo). Só nesses casos é que surgem as condições para a domesticação da política. É por isso que se deve entender que a política já não mata, deixando de ser um assunto belicoso, e a vida política pacífica se reafirma, como “modus operandi” habitual da comunidade política.

Não se torna necessário olhar muito para trás para captar a ligação entre essas condições históricas e a democracia. Esta última assume que os resultados eleitorais dão e revogam o poder e que rotineiramente requerem a alternância no poder, mas se os detentores do poder têm motivo para temer que renunciar ao seu exercício possa colocar em perigo as suas vidas e bens, resistirão em abandoná-lo. Assim, enquanto a política não se secularize e domestique, isto é, até que não se outorgue a suficiente protecção do ser humano, será improvável que os políticos renunciem ao poder e se retirem.

A comunidade internacional não está bem aconselhada quando pede aos países actualmente confrontados com a onda do fundamentalismo islâmico que “certifiquem” a sua democracia através da realização de eleições. Numa estrutura belicosa, não secularizada, em que o perdedor teme ser assassinado, nenhuma democracia é possível. É provável que o facto de dispor de um protótipo que possa ser copiado seja uma desvantagem para os Estados que chegaram mais tarde à democracia. É de esperar que os recém-chegados se actualizem, ignorando o tempo histórico, a um ritmo excessivamente rápido, tenderão a sofrer “sobrecarga”, uma situação incontrolável que surge de demasiadas crises e falhas simultaneamente.

A este respeito, é importante lembrar que há um século a democracia era apenas uma forma política, e que o Estado constitucional não fornecia, e não se esperava que fornecesse, “bens” económicos; apenas garantia a liberdade e as “coisas boas” dela derivada. Durante mais de um século, nunca se argumentou que a democracia tivesse prévias condições económicas que a sua sobrevivência dependesse do crescimento económico e prosperidade. O importante é que a demo-protecção que proporcionava o Estado liberal do século XIX não tinha exigências de riqueza. Se a democracia é concebida como uma forma política, é igualmente possível uma “democracia pobre”.

Quando as democracias ocidentais se desenvolveram e alcançaram os mais altos níveis de democratização, o demo-poder converteu-se em demo-apetite e a contenda política nos sistemas liberais-constitucionais centrou-se, cada vez mais, em temas distributivos sobre “quem recebe quanto de quê”. Provavelmente esta viragem era inevitável e foi reforçado o desprezo pela ética, pelo “materialismo” marxista e pela corrente fortemente utilitária que moldou a teoria e a prática da democracia na sua versão anglo-americana. Sem dúvida estes são os factores culturais que podem ser compensados quando a democracia se enraíza em outras culturas. Se a democracia é importada como um sistema de demo-poder cuja principal preocupação é a demo-distribuição, o futuro da democracia está intimamente ligado ao desempenho económico e consequentemente, a questão crucial actualmente, em quase todo o mundo, é de saber se a democracia também proporciona crescimento económico.

28 Nov 2019

Vagina de superpoderes

[dropcap]A[/dropcap]inda se fala pouco da vagina sem se corar um pouco, ou da vulva, porque são muitas vezes confundidas. Muito menos falar de uma vagina com superpoderes, daqueles que são super porque ainda nos são extraordinários. Em mundos paralelos pessoas detentoras de vaginas seriam veneradas como entidades maravilhosas de feitos maravilhosos, mundos paralelos que deixam para trás a mundanidade com que se encara a vagina hoje em dia. O primeiro erro é assumir que a vagina prevê a feminilidade – a vagina é tão mais inclusiva do que isso; e consegue concretizar coisas magníficas. Juro.

A vagina é só uma parte, a vulva é outra. Os elementos que compõem os órgãos internos e externos dos genitais foram cuidadosamente pensados para a procriação, o prazer e a necessidade última de urinar (porque a uretra também faz parte da vulva). Tantas coisas maravilhosas vêm destes genitais. Durante o sexo estes elementos transformam-se, o clítoris enche-se, incha e disponibiliza-se para o orgasmo, a lubrificação natural é abundante, e se não for, pode-se sempre utilizar uma ajuda extra. O potencial que esta fisionomia oferece pode ainda ser trabalhada – com a prática do pompoarismo que trabalha os músculos pélvicos para maior prazer e bem-estar (que não é só para quem quer atirar bolas de ping-pong por este canal do sexo, mas se quiserem, está tudo bem). O parto é a prova derradeira de que a vagina tem poderes fora deste mundo, é flexível e passível de transformações. Poderes que tomamos como garantidos, mas que precisam das suas celebrações e, quiçá, de investimento. Há imensos partos a acontecer neste momento de pessoas detentoras de vaginas que não sabem (se calhar sabem, mas nunca interiorizaram) o potencial elástico da vagina e do seu olhar atento para todo o processo. A sincronização é perfeita – confiar nas vaginas, elas sabem muito bem o que estão a fazer. Ao contrário do que a cultura popular assume, as vaginas são muito mais cooperantes no que toca a parir.

A hiper-higienização da vagina é outra tentativa de descredibilizá-la como não capaz de lidar com os seus problemas. A indústria dos produtos íntimos bem que tem utilizado a heurística de que o suposto estado natural da vagina é sem cheiro, sem muco, sem nada a acontecer-lhe. Frequentemente é negligenciado o sistema de autolimpeza que impulsiona várias dinâmicas de corrimentos. Estes movimentos são muitas vezes incompreendidos. Vive-se num contexto que tem perpetuado a ideia de que tudo o que é confusão e micróbios são maléficos. Assumimos que para o estado de saúde individual e global é necessário exterminá-los a todos, na vagina incluída. Só que cometer genocídio bacteriológico na vagina é desaconselhado para um estado vaginal saudável. A vagina desprovida de micróbios de boa espécie permite que se desenvolvam os fungos da pior espécie (como a toma de antibióticos parece despoletar). Aí é que aparecem os corrimentos menos desejáveis, comichões em partes chatas, e outros sintomas de uma candidíase. A vagina raramente consegue lidar com este caos sozinha (vai necessitar da ajuda de outros sistemas imunológicos).

Mas o superpoder de comunicar o seu estado de saúde só funciona se compreendermos estes maravilhosos ciclos e dinâmicas pelos quais as vaginas passam. Mais importante ainda – se entendermos o superpoder da sua homeostasia.

A vagina é parte de um complexo sistema fisiológico que afecta o bem-estar de quem a tem de várias formas. Perceber os seus superpoderes é só um caminho para maior consciência do corpo e maior compreensão da sua saúde. Parece mentira, mas a vagina não só é super-competente a lidar com as transformações do mundo, como é super-poderosa a contribuir para a diversidade do mundo. Diversidades no prazer, no bem-estar, e nas suas múltiplas formas de existir.

27 Nov 2019

Medo do escuro

[dropcap]O[/dropcap] secretário Wong Sio Chak estranhou que a comunicação social lhe fizesse sempre perguntas sobre garantias quanto à extensão do poder das forças de segurança sobre a sociedade civil, bem como sobre a defesa do Estado.

É compreensível: os jornalistas deviam talvez insistir sobre questões mais “terrenas” como a fraca formação das ditas forças, nomeadamente das que estão em contacto directo com a população. Ou sobre alguns comportamentos menos expectáveis da parte de quem tem o dever de proteger e servir dentro dos padrões de civilidade que a segunda metade do século XX impôs. Nomeadamente no contexto do segundo sistema.

Mas o que o secretário também não pode esquecer é que uma coisa é o Estado, outra é o país. E não coincidem. Daí que no contexto de Macau seja natural os jornalistas quererem saber e informar que poderes e que saberes tem o Estado sobre as nossas vidas. Sabemos, por exemplo, que o Estado é boa pessoa, mas os que ocupam as cadeiras nem sempre o são. E é por isso que existem leis para controlar os seus poderes e comissões independentes para vigiar a sua acção e desempenho. Isto além, é claro, da comunicação social, que não mais representa que os olhos e ouvidos da população. E esta não pode ser deixada no escuro. É que o escuro faz medo…

27 Nov 2019

Lei anti-máscaras considerada inconstitucional

[dropcap]N[/dropcap]o passado dia 18, O Tribunal de Primeira Instância de Hong Kong deliberou que a “Lei Anti-Máscaras”, promulgada pelo Governo da cidade ao abrigo do estado de emergência, viola a Lei Básica de Hong Kong. Desta forma, a “Lei Anti-Máscaras” deverá ser abolida.

O Governo local não aceitou a ordem de abolição desta lei. A população sabe que a promulgação da lei teve origem nos incidentes violentos desencadeados por pessoas que se manifestavam contra a revisão da Lei de Extradição, com os rostos cobertos por máscaras negras. Estes incidentes violentos resultaram na destruição de edifícios, linhas de metro, fogo posto, etc. O rosto tapado torna impossível identificar os autores dos delitos, sendo portanto impossível imputar a responsabilidade criminal a desconhecidos por estes actos. Se a lei tivesse sido aprovada, os elementos responsáveis poderiam ter sido julgados. Teria sido uma forma de garantir a responsabilização criminal dos autores dos delitos e uma forma de acabar com as atrocidades. Mas o Tribunal de Primeira Instância declarou a inconstitucionalidade da lei, por considerar que ia contra a Lei Básica de Hong Kong e que teria de ser revogada. Foi uma notícia recebida com apreço pelos manifestantes e com desagrado pelo Governo.

O Governo de Hong Kong apelou de imediato para que a revogação fosse suspensa. No passado dia 22, o Supremo Tribunal da cidade aprovou a suspensão. A suspensão é válida até dia 29 deste mês, para que o Governo tenha tempo de formalizar o apelo.

A aprovação da suspensão traz um raio de esperança ao Governo. O Executivo deve aproveitar esta oportunidade para pedir ao Tribunal que considere a lei anti-máscaras constitucional, visto ter sido promulgada no âmbito do estado de emergência. A questão aqui não é o Governo ter perdido na Primeira Instância. O que é importante é que o Tribunal declare que o Governo de Hong Kong tem poderes suficientes para promulgar leis de excepção sempre que o estado de emergência seja declarado, medidas tendentes a acabar com as atrocidades e restaurar a paz social. Por agora, a população de Hong Kong aguarda ansiosamente a decisão do Tribunal.

O Comité Jurídico do Congresso Nacional do Povo (CJCNP), declarou que a decisão do Tribunal de Primeira Instância enfraqueceu seriamente o poder do Chefe do Executivo e do Governo de Hong Kong. Considera também que esta decisão é inconsistente com a Lei Básica e com a decisão do Comité Permanente do Congresso Nacional do Povo (CPCNP). Saliente-se que, antes da reunificação de Hong Kong, o CPCNP considerava que a declaração de estado de emergência estava em conformidade com a Lei Básica da cidade.

Como tal, após a reunificação, a declaração do estado de emergência é legal em Hong Kong. É regulada por um conjunto de leis que integram o Artigo 160 da Lei Básica. A declaração do estado de emergência foi uma decisão do CPCNP. Enquanto tribunal local, o Tribunal de Primeira Instância de Hong Kong não tem qualquer poder para declarar inconsistente uma decisão do CPCNP .

Em resposta às declarações do CJCNP, Andrew Li Guoneng, antigo Secretário da Justiça de Hong Kong, salientou que, desde 1997, os Tribunais locais têm poder para decidir se as leis promulgadas em Hong Kong estão ou não de acordo com a Lei Básica. Em 1999, ou um pouco depois, quando o CPCNP analisou a Lei Básica, não se opôs a este princípio. A interpretação deste pilar da legislação da cidade pelo CPCNP é também uma das suas partes integrantes. Os Tribunais de Hong Kong devem deliberar de acordo com a interpretação da Lei Básica feita pelo CPCNP.

Andrew Li Guoneng também salientou que o CPCNP pode apenas ter pretendido mostrar que a interpretação do Comité Permanente vincula os Tribunais de Hong Kong. No entanto, o Comité Permanente só se deve pronunciar sobre a Lei Básica em circunstâncias extraordinárias. Esta posição deve ser comunicada antes da deliberação dos Tribunais. Caso contrário pode ter consequências negativas na independência jurídica de Hong Kong.

Como antigo Secretário da Justiça da Região Administrativa Especial de Hong Kong, não é surpreendente que Andrew Li tenha um certo peso e represente alguns pontos de vista dos profissionais da área jurídica. Na verdade, o CJCNP pronunciou-se após a decisão do tribunal de Primeira Instância, e as declarações de Andrew Li sobre o impacto negativo na independência jurídica de Hong Kong foram feitas nessa sequência. A preocupação sobre a independência jurídica dos Tribunais de Hong Kong para interpretar a Lei Básica advém desse poder ser conferido pelo CJCNP. A posição deste Comité Jurídico Nacional quanto ao poder dos Tribunais locais decidirem sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade das leis à luz da Lei Básica, pode criar nestes organismos a sensação de estarem a ser sujeitos às críticas de autoridades superiores, e a pressão naturalmente faz-se sentir.

Embora Andrew Li tenha levantado a questão do impacto negativo na independência jurídica da cidade, neste caso particular, não me parece ser relevante. Como a declaração de estado de emergência foi revista e confirmada pelo CPCNP antes da reunificação de Hong Kong, está de acordo com a Lei Básica. Esta disposição foi feita quase 20 anos antes da actual decisão do Tribunal de Primeira Instância. Em que é que esta situação pode afectar a independência jurídica?

No apelo do Governo de Hong Kong, é altamente provável que tenha sido dado ênfase ao facto de a declaração de estado de emergência estar prevista e de acordo com a Lei Básica. À luz da jurisprudência, não parece possível haver qualquer argumentação que refute esta posição.

Do ponto de vista dos residentes comuns, a abolição da Lei Anti-Máscara significa que dispõem de menos uma ferramenta para controlar os motins e a violência. A segurança da população deve ser uma preocupação. Felizmente, o Supremo Tribunal emitiu uma ordem de suspensão da abolição da lei. Desde que o Governo de Hong Kong ganhe o recurso, acredito que este problema ficará completamente resolvido, quer a nível legal quer ao nível da comunidade.

 

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
26 Nov 2019

Eleições e o seu contrário

[dropcap]A[/dropcap]s eleições de Hong Kong, apesar de se destinarem aos concelhos locais, constituíram uma gigantesca derrota para o governo de Carrie Lam. Por aqui se vê que não é preciso ameaçar pessoas, partir estabelecimentos ou escolas, vandalizar o metro, suspender a vida de uma cidade, para expressar a opinião e a escolha de forma eficaz. Ou seja, um acto eleitoral é sempre uma oportunidade que não deve ser rejeitada porque até numa região supostamente oprimida por forças autoritárias o povo consegue, através das urnas, fazer ouvir a sua voz. E essa voz aponta claramente a Carrie Lam a porta da rua.

De Tung Chee-wa a Carrie Lam, passando por Donald Tsang e CY Leung, não se pode dizer que Hong Kong tenha conhecido um verdadeiro líder. Ou sequer um bom governo. Em termos sociais, a conjugação do confucionismo autocrático com o neoliberalismo criou uma sociedade altamente hierarquizada do ponto de vista financeiro com um vasto buraco no meio.

Pequim deixou-se sempre enredar pelo dinheiro e pelos discursos patrióticos dos capitalistas locais, deixando apodrecer o status quo da população. Todos sabemos já quais são as grandes carências em Hong Kong e também sabemos que Macau não enfrenta uma situação semelhante devido à sua dimensão e a uma melhor distribuição dos proventos fáceis do Jogo.

Falta agora Pequim ouvir a voz do povo, demitir Carrie Lam e nomear um governo interino que prepare o sufrágio universal para a eleição do futuro Chefe do Executivo. Com a salvaguarda de que os candidatos não pugnarão pela independência. Se o povo não gostar de nenhum dos candidatos que vote em branco. Mas votem. A democracia é assim: a violência o seu contrário.

26 Nov 2019

Candidato único

[dropcap]O[/dropcap]ntem aconteceu mais um simulacro de democracia em Macau. Desta vez foi a eleição suplementar por sufrágio indirecto para a Assembleia Legislativa (AL). Trocado por miúdos, o teatro burocrático para atribuição do lugar vago deixado pela saída de Ho Iat Seng da AL.

Muito se tem falado de democracia e do caminho para a democracia nas regiões administrativas especiais. Os dois pólos da discussão dividem-se entre o tribalismo utópico daqueles que consideram possível que um regime autocrático, uma ditadura liderada por um homem que personifica o poder e o país, permita a livre expressão política dos povos das regiões que está a integrar. Este polo tem como derradeiro reduto argumentativo o popular e sempre apetecível chavão “então e os amaricanos”. Além disso, relativizam processos democráticos no resto do mundo como emanações próximas da plutocracia, ou outro sistema político divorciado da população, na esperança que isso desculpe a acção repressiva da autocracia.

O pólo pró-democrata amedronta-se e cala-se, receoso de ser arrastado para a diabolização de quem defende liberdades, direitos e garantias consagrados nas leis básicas pelo contágio dos manifestantes violentos de Hong Kong.

Tenho de deixar uma coisa clara. Sou, obviamente, contra qualquer manifestação de violência, seja ela por amotinados, seja ela de Estado. Portanto, também alinho nas críticas ao imperialismo americano, mas não o troco por outro imperialismo. Desculpem, não consigo nem quero.

Também não sou crente na fé partidária, ou seja, não papo grupos conspirativos que menosprezam o evidente descontentamento da população que vimos numa manifestação pacífica em que participaram quase 3 milhões de pessoas. Completamente ignorados pelo poder, já agora. E, não, a questão não é meramente social, não é apenas devido ao apocalipse imobiliário nascido do acasalamento entre magnatas locais e Pequim. Não, o descontentamento era essencialmente político, como se podia ver tão nitidamente. Mas as autocracias são sempre vesgas, nunca enxergam o povo, nem o encaram de frente.

Mas voltando a esta eleição local. Esta é a vossa democracia. Refastelem-se neste pobre espectáculo, mais um sufrágio onde ninguém vota para eleger um único candidato. A votação de ontem foi a representação perfeita do caminho para a democracia que Macau diz querer prosseguir.

Apenas um candidato que nem sequer tem a capacidade para não violar as leis eleitorais. Não tinha de fazer nada, apenas fazer corpo presente. Aparecer e ir para casa. Mas, não. Decidiu dar uma entrevista à porta do local do voto e partilhou o seu programa de campanha em clara violação da lei eleitoral.

Também em declarações aos jornalistas, o presidente da AL, Kou Hoi In, referiu que o facto de haver um único candidato não quer dizer que não tenha havido concorrência. Tirando o óbvio absurdo da frase, Kou referia-se à forma como a selecção do candidato é a verdadeira eleição, antes do acto simbólico de ontem.

É esta a democracia que querem? Ou o sufrágio de candidatos obrigatoriamente aprovados por Pequim? Uma espécie de versão das eleições iranianas, em que os “candidatos” que vão a votos são escolhidos por um restrito grupo de aiatolas e juristas especialistas na lei islâmica.

Finalmente, o argumento de que há povos que não entendem a democracia, que não podem viver nesse sistema porque são demasiado estúpidos ou tribalistas também não me convence, além de tresandar a privilégio ocidental.

Quem vota mal aprende para a próxima eleição porque tem de viver com a consequência da sua acção. Faz lembrar o conceito de existência do Jean-Paul Sartre, que professa que o homem está condenado a ser livre e a ser responsável pelo que faz. É um processo de crescimento, aprendizagem, evolução. É algo que carece de aperfeiçoamento e coragem por parte do poder para se colocar olhos nos olhos com quem representa.

Pessoalmente, com o pouco conhecimento que tenho da história recente da política chinesa, tenho sérias dúvidas de que o livre sufrágio universal alguma vez tenha estado nos planos das divindades políticas de cima. Aliás, tenho quase a certeza, por mais que seja inscrito nas promessas políticas de longo-prazo, ou nas leis estruturais.

Mesmo a nível dos líderes locais, que se blindam num olimpo de poder inacessível ao comum dos mortais, a necessidade permanente de demonstrar amor ao partido, que se confunde politicamente com o país, afasta-os cada vez mais de qualquer intenção de serem eleitos livremente pelos governados. E, pronto, assim ficamos, à espera que um milagre aconteça. Até lá, resta-nos rir deste episódio de Monty Pynthon que foi a eleição de ontem, onde ficou patente a inabilidade para ganhar uma eleição, de acordo com a lei, como diria o presidente da CAEAL, numa corrida a solo.

25 Nov 2019

Valores asiáticos

[dropcap]A[/dropcap]lguma inteligência americana criou o conceito de “asian values” (valores asiáticos), atribuindo-lhe sobretudo características autoritárias, não somente ao nível do tipo de governação mas estendendo esse autoritarismo a outras áreas da sociedade como as relações familiares, por exemplo, ou mesmo as económicas.

Assim, por oposição aos “western values”, que incluem a democracia liberal, mercado livre, direitos civis, etc., os valores asiáticos seriam hoje “o inimigo”. Simples, não? E está arrumado o assunto. Estaria não fosse a aborrecida realidade não dar corda à ideologia. “Ásia” vem, ao que dizem, do assírio “asu”, exportado para o grego, e quer dizer leste.

Portanto, para os gregos, Ásia eram as terras que ficavam para leste, cuja extensão era desconhecida e cuja monstruosa dimensão começou a ser entendida depois das conquistas de Alexandre que, lembremo-nos, nem sequer passou os Himalaias. Estas montanhas, aliás, marcam a fronteira entre culturas radicalmente diferentes, podendo-se argumentar que existe uma Ásia aquém e outra além delas.

Como existem civilizações radicalmente diferentes no chamado Médio Oriente islâmico ou nas ilhas do Sudeste Asiático. De facto, o que terá a Jordânia a ver com o Japão é difícil de detectar… Resumindo: não há uma Ásia como não existem os “valores asiáticos”. No nosso afã de tudo entender, tendemos em dividir em dois, criar oposições no nosso pensamento e na nossa moral porque assim nos é mais fácil pensar e existir. Ficamos é sem perceber nada disto e fazemos gigantescas mistificações sobre o que consideramos Outro. Depois, constantemente, foge-nos a boca para o ódio e o disparate.

25 Nov 2019

José Mário Branco, solidário para além da vida

[dropcap]N[/dropcap]a última vez que o vi, já lá vão mais de 5 anos, ele não estava: foi uma das primeiras apresentações públicas de “Mudar de Vida”, detalhado e preciso documentário sobre a vida e a obra de José Mário Branco, exibido em sessão muito especial da edição de 2014 do festival IndieLisboa, sintomaticamente alojada numa das pequenas salas que resultou do esquartejamento de um dos grandes cinemas do centro de Lisboa, transformado em espaço mais moderno, flexível e multi-qualquer-coisa. Estava cheia, contudo, a pequena sala. Cheia de caras conhecidas, já agora. Assinalavam-se por aqueles dias os 40 anos do 25 de Abril e a exibição do filme era também um tributo à Revolução. Por isso José Mário Branco não quis lá estar: em mensagem gravada pediu desculpas ao público presente e explicou a ausência: não havia nada a celebrar naqueles 40 anos de Abril. Não nos prendamos, portanto, a uma onda qualquer de celebração nostálgica.

Eram tempos muito adversos. O país voltava a viver sob sequestro do FMI, desta vez em versão alargada, com a sinistra Troika com que a União Europeia assinalava a sua adesão inequívoca às cartilhas neoliberais dominantes: privatizações em larga escala, renúncia sistemática ao investimento público e empobrecimento generalizado, com os resultados habituais e previsíveis: ainda menos crescimento económico, ainda maior desigualdade, mais miséria e mais milionários, menos esperança e mais desespero, menos justiça e mais evasão fiscal, menos projetos e mais emigração, menos alegria e mais suicídios, menos ideias e mais miséria. Não havia nada a celebrar, de facto, naquele final de Abril que assinalava 40 anos desde que os cravos vermelhos tinham restituído ao país um horizonte de futuro. E de presente, já agora, que nós – como o José Mário Branco – queremos ser felizes agora.

Artista de variedades, compositor popular e aprendiz de feiticeiro – nunca José Mário Branco se apresentou ao público como economista. Mas é, ainda assim, exímio analista histórico das nefastas presenças em Portugal do Fundo Monetário Internacional. Pessoalmente, foi um privilégio ter lá por casa o FMI, o disco publicado em 1982 e que me acompanhou a adolescência: também eu tinha visto o meu povo a lutar, durante a infância, e soube bem a companhia para o desalento de quem cresceu assistindo à substituição progressiva das utopias comunitárias pelo individualismo galopante e as ambições económicas, sociais e políticas que o “progresso” ia trazendo – à esquerda e à direita, já agora. O FMI viria decretar a definitiva inviabilidade de qualquer alternativa de política económica ao neoliberalismo que na altura se começava a afirmar como ideologia e prática globalmente hegemónica. Talvez não fosse assim tão nosso, o Carvalhal.

Seria quase dez anos depois do FMI – o disco – que havíamos de nos cruzar com alguma regularidade. Depois de militâncias no PCP (antes do 25 de Abril) e na UDP (desde a sua fundação, em 1974), José Mário Branco havia de regressar à atividade partidária numa campanha eleitoral do PSR, por onde eu andava em 1991: uma minoria absoluta que juntava à agenda social e económica da esquerda temas até então pouco ou nada discutidos (o racismo, o militarismo, a legalização das drogas ou as liberdades sexuais) e que mobilizava um conjunto relativamente alargado de pessoas dos universos laboral, cultural e artístico, sobretudo em meios urbanos. Percorremos o norte de país com comícios em várias cidades e tive essa rara oportunidade de conhecer o José Mário Branco enquanto orador, com a mesma inquietação, o mesmo rigor, a mesma capacidade de captar a atenção de quem o ouve – não para cantar, mas para discutir novas propostas e abrir novos caminhos. Mas mais do que esse orador clarividente e com notável capacidade performativa, descobri como presença do José Mário Branco transmitia fraternidade, cooperação, aprendizagem permanente, sempre novas possibilidades de construção. Aprendia-se muito de utopias com aquele convívio e aquele trabalho conjunto. Valeram então a pena todas as travessias.

Não nos encontrámos muito depois disso. Na realidade, ambos tivemos passagens fugazes pelo Bloco de Esquerda – onde PSR e UDP viriam a desaguar – mas só coincidimos na falta de persistência: não estivemos lá ao mesmo tempo (ele esteve na fundação e quando eu cheguei já o José Mário Branco se tinha sabiamente retirado) e não nos cruzaríamos por ali. Havíamos, no entanto, de nos ir cruzando, mais ou menos ocasionalmente, ao longo da vida que se foi seguindo, que as rotas não têm como divergir assim tanto: eventos culturais, celebrações de Abril ou de Maio, manifestações pontuais, organizações diversas. E sempre encontrei a mesma disposição fraterna e incondicional. Nós, os que choramos a sua morte, aprendemos com ele que a morte nunca existiu. Sabemos que nos deixou um legado poético, político e humano que o fará continuar mais vivo do que morto por muitos anos. Sabemos que se pode ser solidário para além da vida e que de cada perda se pode fazer uma raiz. Sabemos que, apesar de todas as improbabilidades, podemos ser felizes. Mas ainda assim choramos. E sabemos que choramos mais do que a morte do José Mário Branco. Choramos as derrotas. Choramos os barcos que deitámos ao mar e ficaram pelo caminho. Choramos não ter sabido usar como devíamos a sabedoria que nos trouxe no ventre das canções. Choramos por o ter deixado partir num mundo que não fomos capazes de tornar melhor, apesar de tudo o que nos ensinou. Se não o fizemos com o Zé Mário ao nosso lado, como o poderemos fazer sem ele?

22 Nov 2019

Corridas loucas

[dropcap]O[/dropcap] Grande Prémio de Macau é disputado nas ruas da cidade, atingindo os veículos, que se lançam em curvas e contra-curvas através de ruas e vielas, velocidades superiores a 100Km/hora. Se fizéssemos isto no nosso dia a dia, seriamos considerados loucos e causaríamos terríveis acidentes. Mas Macau é um local peculiar, onde esta corrida, que faz disparar a adrenalina, se celebrizou e se tornou um acontecimento anual. Devido aos melhoramentos que foram feitos ao longo dos tempos no famoso Circuito da Guia, este ano não se registaram acidentes graves.

Muitas das ruas da cidade foram fechadas durante os quatro dias da competição. Com a ajuda da polícia de trânsito e a colaboração dos condutores locais, não houve problemas de tráfego de maior.

Ao longo dos anos, as vedações de segurança de bambú deram lugar às vedações de metal e o sistema anti-colisão tornou-se mais sofisticado. Estes melhoramentos trouxeram muito mais segurança aos pilotos e ao público. A corrida de velocidade já não é tão “selvagem”, tornou-se mais “civilizada” e procura atingir níveis de excelência.

Tomemos a “Taça do Mundo de GT da FIA” como exemplo. Quer Laurens Vanthoor, quer Earl Bamber são pilotos da Porsche, pertencem portanto à mesma equipa. Laurens Vanthoor deixou Earl Bamber ultrapassá-lo para apanhar o piloto da Mercedes, Raffaele Marciello. Na última volta, quando estava a chegar à Rua dos Pescadores, Earl Bamber não conseguiu ultrapassar Raffaele Marciell. Bamber, em vez de tentar entalar com o seu carro o da Mercedes, o que poderia ter provocado um acidente grave, manteve-se atrás dele, chegando a abrandar para permitir que Laurens Vanthoor retomasse a 2ª. posição. Com esta postura demonstrou que lutar pela vitória não é apenas lutar pelo 1º lugar, mas sim dar o nosso melhor. O que importa realmente é ter espírito competitivo e respeito pelos outros.

Nesse mesmo dia, a polícia e os manifestantes estavam envolvidos em confrontos na Universidade Politécnica de Hong Kong, numa escalada de violência após os acontecimentos na “No.2 Bridge”, que liga a Universidade Chinesa de Hong Kong à zona ribeirinha.

Em 1973, no mesmo dia, 17 de Novembro, a Junta Militar grega enviou tanques de guerra para a Universidade Técnica de Atenas (Metsovian) para esmagar pela força a revolta estudantil. O resultado foi a morte de 23 estudantes. Por causa desta tragédia, foi implementada a “Lei de Asilo Universitário”, destinada a banir a presença da polícia dos campus universitários, mas infelizmente foi abolida em Agosto de 2019.

O Grande Prémio de Macau foi-se tornando mais seguro ao longo dos anos e o tráfego da cidade também melhorou, porque o Governo aprendeu a lição com aqueles que o precederam. A corrida decorre num circuito fechado, supervisionada por procedimentos seguros e fiáveis, da responsabilidade da Comissão Organizadora do Grande Prémio de Macau. Os quatro dias deste evento decorreram “sobre rodas” devido à cooperação entre a polícia, o público e as instituições.

Em Hong Kong passa-se o contrário. O Governo, em vez de dar atenção às cinco reivindicações dos manifestantes, apenas atendeu a uma delas, a retirada da revisão da lei de extradição, e ignorou as outras quatro. Esta atitude fez com que a intenção de “acabar com a violência e com os distúrbios” se limitasse a ser um simples slogan e o “esforço de cooperação inter-departamental” um projecto sem conteúdo. Depois de ter sido promulgada a “Lei Anti-Máscara”, as manifestações e os distúrbios continuaram a aumentar.

Quando o Supremo Tribunal de Hong Kong interditou esta lei anti-constitucional, forçando a polícia a suspender a sua acção, o Governo de Hong Kong apelou. Desde o início do movimento “anti-extradição” até 15 de Novembro, mais de 4.400 pessoas, com idades compreendidas entre os 11 e os 83 anos, foram presas, 521 das quais formam acusadas. Mais de 9.100 bombas de gás lacrimgéneo, 14 projécteis e 4.300 balas de borracha, foram disparados e foram usadas mais de 1000 granadas de fumo. Embora as autoridades policiais tenham afirmado em sessões de esclarecimento que as acções de alguns agentes foram “desadequadas”, até agora nenhum polícia foi acusado. Ao longo dos últimos meses, o Conselho Independente, constituido para receber e avaliar as queixas contra a polícia, não fez absolutamente nada, ao passo que alguns especialistas externos, contratados por este Conselho, declararam não ter poderes para fazer prosseguir a investigação.

A violência não resolver os problemas e quando as pessoas lhe estão expostas durante longos períodos de tempo, acabam por enlouquecer. Uma cidade deve evitar ser arrastada para uma espiral de loucura e aprender a arte da negociação, porque as lutas internas só podem acabar em “destruição mútua”.

22 Nov 2019

SS e o Cometa Halley

[dropcap]O[/dropcap]ntem o GCS publicou um comunicado dos Serviços de Saúde (SS) às 9h40 sobre dois casos de infecção colectiva de gripe. Foi um dos momentos mais belos a que assisti. Não por ter qualquer predilecção virosa, mas pela raridade do evento.

Apanhar um comunicado dos SS a horas decentes num dia normal de expediente jornalístico é um acontecimento que deveria encher os céus de Macau com fogo-de-artifício, música nas ruas, beijos apaixonados e sorrisos rasgados. Se o caro leitor tiver a felicidade de aceder ao GCS e fizer uma busca por SS desde o início do mês vai reparar num padrão.

Dos 30 comunicados lançados este mês (até ontem às 16h40), apenas a gripe das 9h40 de ontem foi publicada de manhã. Se incluirmos este caso no universo de publicações verificamos que dos 30 comunicados, 5 viram a luz do dia até às 19 horas, aliás, depois do sol posto. Depois das 21h foram publicados 15 comunicados. Metade! E depois há aqueles que são lançados depois das 23h. Este mês não é excepção, se fizermos uma busca ao ano inteiro vemos o mesmo padrão. Daí a beleza da manhã de ontem.

Ainda me lembro quando vi o Cometa Halley, estávamos no ano de 1986. Primeiro era só um risco sem importância a cruzar os céus, depois um cosmos de magia abriu-se quando percebi o significado da raridade a que tinha assistido. Quem nasceu depois de 1986, ou estava a olhar para o chão nesse dia, só pode ver o Halley em 2061. Veremos quanto tempo um comunicado dos SS vai demorar a dar a volta ao GCS até ser avistado de manhã. Não sei quanto tempo será preciso, mas quando acontecer será mágico.

22 Nov 2019

A verdadeira indignação

[dropcap]D[/dropcap]isse o deputado Si Ka Lon esta semana na Assembleia Legislativa que os protestos em Hong Kong “indignam muita gente em Macau” e que devem ser reforçadas matérias e mecanismos ao nível da segurança do Estado. Si Ka Lon até pode ter razão, sobretudo se falarmos de gerações mais velhas que não conhecem outras realidades ou que estão habituadas a certos status quo.

Mas duvido que os jovens pensem assim. Aliás, diria mesmo que muitos jovens de Macau querem expressar o seu apoio ao que está a acontecer em Hong Kong, mas não podem. O que verdadeiramente indigna as pessoas, ou pelo menos deveria, é a forma como as autoridades lidam com este assunto. A deter pessoas no Leal Senado sem motivo aparente, só porque vestem umas roupas pretas. A proibir a entrada de jornalistas que, por acaso, viram a sua creditação aceite para o Grande Prémio de Macau. A negar a entrada a pessoas no território, incluindo residentes da RAEM, com base em pressupostos que podem não ser verdadeiros.

Esta deveria ser a indignação, mas num parlamento amorfo como é o de Macau, pouco se fala disto. Hong Kong é o elefante no meio da sala.

22 Nov 2019

Tiros nos pés

[dropcap]O[/dropcap] Grande Prémio de Macau é sem dúvida o evento mais internacional que se realiza no território, mas este ano ficou marcado por um episódio muito negativo, que não se coaduna com a reputação internacional da prova. Começo por apontar a proibição de entrada aos jornalistas do Apple Daily.

Neste caso a responsabilidade é totalmente de Wong Sio Chak e a comissão organizadora merece ser ilibada, até porque não controla as entradas. De acordo com os relatos, eram 10 jornalistas do Apple Daily, estavam todos acreditados, com hotéis marcados, com planos de fazer a cobertura, mas foram impedidos de entrar. Como acontece sempre nestas situações a justificação foi a ameaça à segurança. Presunção de inocência?

Não interessa. Proteger a imagem internacional da prova num fim-de-semana especial? Não interessa. Haveria mesmo razões que justificassem a proibição de entrada? Nunca vamos saber. Afinal de contas, até uma criança com um ano pode ser uma ameaça à segurança de Macau, desde que tenha nome de pró-democrata. O que é triste é o Grande Prémio de Macau ser afectado por este episódio. É o grande evento do território e merece ser protegido. Hoje o vento sopra a favor, mas amanhã não sabemos o que vai acontecer…

Uma última nota sobre a confusão da corrida das motos: houve uma falha de comunicação da organização, não vale a pena dourar a pílula porque, infelizmente, foi muito grave, mas ninguém acredita que tenha sido intencional. Deve ser assumida para se seguir em frente.

22 Nov 2019

O Carrasco invertido

[dropcap]P[/dropcap]orquê tapar a cara a alguém? Se quiser, acho que ela própria tratará de o fazer. Não precisa que alguém tenha a bondade de lhe enfiar um saco preto pela cabeça abaixo. Ah bom, mas assim é possível salvaguardar a identidade dos arguidos! Correcto!

Mas então será que é preciso montar um espectáculo para as câmaras dos meios de comunicação social de todas as vezes que a PJ promove uma conferência de imprensa para captarem aquele infeliz momento em que os arguídos do caso, tal qual um touro no curral antes de entrar na praça, passam, algemados e empurrados para a frente de objectivas, imaginando onde devem estar a pôr os pés, somente através dos furos feitos no seu traje oficial de carrascos invertidos? Talvez não!

Concordo, naturalmente que a justiça seja aplicada, os casos tratados e os individuos transportados, levados, ouvidos e sujeitos a todos os procedimentos. O que é para mim difícil de perceber é o momento em que, quem enfia o saco na cabeça, parece usar os encapuzados para validar o seu papel de justiceiro.

22 Nov 2019

Democracia: um processo, não um estado

[dropcap]É[/dropcap] verdade que a democracia se conquista e se perde. Aqui em Macau, por exemplo, estamos a perder oportunidades, uma atrás da outra, de alargar o espectro da representação democrática e tudo por causa de Hong Kong.

Sim, Hong Kong tem sido o atraso de vida na senda para a democracia. Senão vejamos. Quando as manifestações começaram em 2014, era suposto existir um sufrágio universal em 2017. As manifestações, que na realidade se estenderam até 2016, impediram a sua realização. Onde é que já se viu gente que diz querer democracia impedir um acto eleitoral, ainda que imperfeito?

Em Hong Kong, pois claro. Ora se tivesse acontecido em 2017 em HK, provavelmente teríamos votado este ano em Macau. Assim, nada, nicles, niente. Ficámos a ver os barcos a passar, que é como quem diz os tais activistas a remeterem para as calendas quaisquer possibilidades de entendimento que aprofunde a democracia nas duas regiões. Eles perderam e nós também. Como se sabe muito bem nos países onde existem actos eleitorais normais (quais são?), o avanço para a democracia é um processo de sucessivas conquistas, de permanentes novas realizações.

Passa também por um melhor acesso à educação, por exemplo. Passa por garantir o voto a todos os cidadãos (os negros só votaram plenamente nos EUA em 1968, por exemplo), passa por muitas outras coisas. É um processo, não um estado. E hoje, no século XXI, usar a violência é claramente um passo atrás nesse processo. E o pior é que a democracia é de tal modo um processo que nos países europeus, onde era suposto estar implantada, assistimos todos os dias à sua decadência.

22 Nov 2019

A questão da cibersegurança (II)

“The Internet is the first thing that humanity has built that humanity doesn`t understand, the largest experiment in anarchy that we have ever had”.
Eric Schmidt

 

[dropcap]A[/dropcap] dissuasão por punição, por outro lado, depende da capacidade de contra-atacar. É de argumentar que se o atacante sabe que a retaliação seria “certa, severa e imediata”, isso o dissuadirá. A questão é se a dissuasão cibernética pode funcionar da mesma forma que a dissuasão nuclear. A dissuasão nuclear funciona porque ambos os lados conhecem com bastante precisão a natureza, o tamanho e o escopo do arsenal nuclear um do outro e os meios de provimento. Durante décadas, as negociações sobre controlo de armas foram focadas em questões como transparência e verificabilidade dos arsenais uns dos outros.

Foram desenvolvidas “Medidas Detalhadas de Fortalecimento da Confiança Nuclear (MGCs na sigla inglesa)”, com base na verificação. Foram feitas tentativas para compreender as doutrinas nucleares uns dos outros e no caso nuclear, os actores eram poucos (actores não estatais não possuíam armas nucleares).

Assim, no ciberespaço, a situação é muito diferente pois, não há transparência sequer sobre o que significa um ataque cibernético. Não existe uma definição acordada de arma cibernética, bem como não há meios de verificação. Vários actores operam no ciberespaço com total anonimato. Os cépticos salientam que a dissuasão cibernética falhará devido à falta de imputabilidade no ciberespaço. No ciberespaço, onde o anonimato é a chave, é difícil identificar com precisão quem é o atacante. A não atribuição é a fraqueza fundamental do argumento da dissuasão cibernética. Existe, no entanto, alguma literatura que sugere que o problema da atribuição pode ser ultrapassado mais cedo ou mais tarde. Tais afirmações são, no entanto, não verificáveis actualmente. Para que a dissuasão cibernética seja significativa, um país teria de definir os seus limiares através de sinalização adequada.

Teria de indicar os seus limiares cibernéticos e alguma ambiguidade será, sem dúvida, deliberada. No entanto, um potencial atacante deve saber que a retaliação seria grave e inaceitável se uma determinada linha vermelha fosse ultrapassada. A indicação de linhas vermelhas dependerá das capacidades, intenções e interesses de um país. Hoje, porém, as linhas vermelhas estão ausentes e por exemplo, a ciberespionagem, dirigida contra alvos militares e não militares, deveria ser tratada como um acto de guerra cibernética? Será um ataque às redes bancárias, bolsas de valores e de energia um acto de guerra? A ciberespionagem merece um contra-ataque? A retaliação deve ser feita no ciberespaço ou por outros meios? Com perguntas-chave sem resposta ter uma dissuasão cibernética na linha da dissuasão nuclear parece difícil.

O “Manual de Tallinn 1.0”, originalmente chamado “Manual de Tallinn sobre o Direito Internacional Aplicável à Guerra Cibernética”, trata de cenários de conflito no ciberespaço onde o direito internacional se aplicaria. Embora o “Manual de Tallinn” não seja um documento oficial, o seu trabalho é patrocinado pela “Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN)” e outros países. Actualmente, está a ser elaborada uma segunda versão com o nome de “Manual de Tallinn 2.0”. Trata da aplicação do direito internacional ao ciberespaço em tempo de paz. Uma reunião realizada em Haia, de 2 a 3 de Fevereiro de 2016, tratou destas questões.

Durante as discussões, foram feitas tentativas de criar uma lei diplomática para o ciberespaço. Foi sugerido que o ataque aos sistemas informáticos de uma embaixada estrangeira deveria ser proibido por lei. Foi também afirmado que a intervenção no ciberespaço pode ser permitida em determinadas circunstâncias.

Assim, por exemplo, do ponto de vista da Índia, o “Manual de Tallinn”, embora seja um exercício útil, não reflecte a legislação existente sobre o assunto devido à ausência de práticas estatais que são críticas ao desenvolvimento do direito internacional consuetudinário. Apesar destas dificuldades, os países estão a avançar com a incorporação da cibersegurança nas suas doutrinas militares. Tais doutrinas postulam que um país, ao exercer o direito defesa, poderia retaliar a um ataque cibernético por ciberataques ou qualquer outro meio. A “Estratégia Nacional dos Estados Unidos” diz que poderiam usar ferramentas cibernéticas ou outros meios para retaliar ataques cibernéticos. O problema dos ciberataques não pode ser visto isoladamente.

Actualmente, o ciberespaço está interligado com outros domínios da guerra, nomeadamente a terra, água, ar e o espaço. Este entrelaçamento implica que os ciberataques não serão vistos apenas como tal.

A retaliação sob forma não cibernética, ou seja, a retaliação através de meios não cibernéticos, incluindo possivelmente meios militares, não pode ser excluída. Os ciberataques, como meio de guerra, apenas alargariam o domínio da batalha. A ciberguerra pode induzir os países a optar por uma dissuasão total do espectro. A ciberguerra é um conceito contestado. A ciberespionagem, ataque a infra-estruturas críticas, etc., são acontecimentos rotineiros no ciberespaço. Até agora, não foram utilizados meios militares para deter os ataques. Também não foram utilizadas sanções económicas porque a atribuição de um ataque cibernético tem sido muito difícil. Além disso, muitas vítimas sentem receio de denunciar ciberataques. Tais incidentes não têm sido considerados como actos de guerra até agora, porque não existe uma definição de guerra cibernética. Se um ataque cibernético é visto como um componente da guerra cibernética dependerá do contexto do ataque.

Os autores do “Manual de Tallinn” lutaram durante muitos anos para chegar a algumas definições aceitáveis, mas o progresso tem sido lento. A Índia por exemplo, não pode ignorar estes desenvolvimentos. O uso da Internet está a espalhar-se rapidamente na Índia e embora a penetração da Internet no país ainda seja baixa, quase quatrocentos milhões de pessoas estão a usar a Internet. A Índia digital levará a Internet de banda larga a todas as aldeias. A revolução na conectividade está a varrer a Índia com mil milhões de assinantes de cartões SIM. O futuro progresso e crescimento da Índia estão ligados à expansão da rede digital, superando as disparidades digitais e garantindo que políticas robustas de segurança cibernética sejam adoptadas desde o início.

A Índia tomou várias medidas no passado recente para fortalecer as suas capacidades de defesa cibernética sendo de mencionar algumas como uma política nacional de segurança cibernética que foi anunciada e está a ser implementada; uma elaborada estrutura nacional de garantia da segurança cibernética que está em fase de implementação; a nomeação do “Coordenador Nacional de Segurança Cibernética”; a coordenação entre várias agências melhorou; foi criado um “Centro Nacional de Protecção de Infra-estrutura de Informações Críticas (NCIIPC na sigla inglesa)”; existe um diálogo regular com os principais sectores da economia; está a ser construída uma parceria público-privada; existe um diálogo activo entre o governo e o sector privado; está a ser criado um “Centro Nacional de Cibercoordenação (NCCC na sigla inglesa)”; estão a ser envidados esforços para desenvolver as competências em matéria de cibersegurança no país; novos cursos de cibersegurança estão a ser introduzidos nas faculdades; a política de “Pesquisa e Desenvolvimento (P&D)” em matéria de cibersegurança também tem sido objecto de consideração activa por parte do governo.

A “Equipa Indiana de Resposta a Emergências de Computadores (CERT-In na sigla inglesa)” criada em 2004, realizou um trabalho significativo no tratamento de incidentes cibernéticos, bem como na sensibilização. A Índia está a desenvolver uma ciberdiplomacia activa, estabelecendo diálogos sobre cibersegurança com vários países e participando em vários fóruns internacionais, incluindo a ONU sobre cibersegurança. Todos estes esforços sincronizados e coordenados estão a dar resultados. Mas não podemos ser complacentes face às ameaças crescentes e à evolução das tecnologias. Devido ao crescimento explosivo das TIC, é provável que o cenário da cibersegurança continue a ser um desafio. Os países terão de trabalhar arduamente nos vários aspectos da cibersegurança, incluindo os desafios emergentes. Assim como outros países, a Índia também enfrenta a tarefa assustadora de interromper e prevenir ataques cibernéticos nas suas redes.

A Índia terá que estudar de perto a evolução da ideia de dissuasão cibernética. Construir capacidade de dissuasão cibernética implicaria edificar redes robustas que possam ser defendidas, incentivar a P&D abrangente na área de cibersegurança e fortalecer a fabricação nativa de produtos das TIC. Será também necessária uma forte ciberdiplomacia para garantir que a Índia e outros países não sejam os destinatários finais do regime emergente de controlo das exportações das TIC ao abrigo do “Acordo de Wassenaar”. É necessário também analisar de perto os padrões dos ciberataques contra os países e criar medidas de resposta adequadas, incluindo a capacidade de realizar ciberoperações, se necessário.

Alguns países teriam de tomar em conta as doutrinas de cibersegurança cada vez mais assertivas que estão a ser adoptadas por outros países e ajudarão a elaborar as suas doutrinas de cibersegurança. É de salientar que existe uma falta de consenso na comunidade internacional sobre as normas de comportamento no ciberespaço. Estamos em uma fase em que a tecnologia está muito à frente do nosso pensamento sobre as leis e normas cibernéticas. A UNGGE provou ser uma plataforma útil para discutir essas questões, mas a ausência de uma plataforma representativa mais ampla, onde as questões controversas possam ser discutidas e o consenso possa ser alcançado, é evidente pela sua ausência.

Os grupos “ad hoc” que adoptam procedimentos para deliberar sobre agendas de segurança cibernética não construirão necessariamente um consenso. A comunidade internacional precisa de se reunir para discutir como lidar com ameaças no ciberespaço que estão a crescer a cada minuto. A tarefa pode parecer assustadora, mas os países devem reflectir seriamente se o mundo precisa de uma convenção cibernética sobre segurança cibernética. Ao contrário dos outros bens comuns, nomeadamente a terra, mar e o espaço, em que o direito internacional cresceu imediatamente, o ciberespaço continua a ser, em grande medida, ilegal. É necessária uma discussão sustentada por especialistas internacionais para gerar ideias sobre o caminho a seguir para a construção de um consenso sobre questões de cibersegurança.

21 Nov 2019

Hannah, 14 anos de idade

[dropcap]A[/dropcap] CNN entrou ontem no campus da Universidade Politécnica de Hong Kong para dar conta da situação. Entre outros, surge na reportagem o testemunho de uma miúda, que dá o nome falso de Hannah. Hannah tem 14 anos e, confessa, esteve presente em todos os protestos.

Contudo, não se limita a gritar palavras de ordem ou fazer de corpo presente: Hannah tem como missão (ou seja, é utilizada para…) “neutralizar as granadas de gás lacrimogéneo, que a polícia atira, ou atirá-las de volta às autoridades”.

Hannah está ali porque “se confronta um governo autoritário”. Não se percebe se o actual executivo de Hong Kong, se o de Pequim, se o que estará para vir. Ela também não sabe. Sabe, no entanto, que a sua mãe estava lá fora, entre os pais que cercaram também a Universidade Politécnica preocupados com os filhos.

Hannah, de 14 anos, não é, com certeza, uma estudante desta universidade tal como a maior parte dos manifestantes que ali se concentraram e destruíram o estabelecimento de ensino. A mãe devia ser presa. E a filha levar uns tabefes e umas lições de história, política e, já agora, sobre essas coisas chamadas “democracia” e “liberdade”. A ver se estes disparates acabam e os responsáveis pela manipulação destes miúdos são presos e presentes à justiça.

21 Nov 2019

Felizes para sempre

[dropcap]O[/dropcap] casamento sugere que encontrámos a pessoa perfeita para as nossas vidas, e que vamos viver felizes para sempre. Há quem queira ser romântico e veja o casamento como a prova última do amor. Tal como o tamanho do anel de noivado, ou o tamanho do gesto romântico que um pedido de casamento implica. Os preparativos, a festa, os convidados ou o dinheiro que se gasta, realça que não há nada mais romântico do que partilhar a vida com alguém para sempre. Mas também não há nada mais assustador do que partilhar a vida com alguém para sempre.

O casamento transforma-nos nesse alguém. Um peão numa díade de intimidade. Ganha-se um título que será vivido em função das expectativas monogâmicas vigentes. Todos os rituais maritais e pré-maritais são importantes para o luto dos amores que não se viverão. Não que a monogamia não exista no pré-casamento, mas a ligação torna-se mais rígida. Tornamo-nos fiéis àquela relação num contrato legal e religioso que é tido como um sinal de maturidade. Como os católicos dizem, um vínculo de estabilidade para lidar com o(s) pecado(s) do mundo.

A teorização religiosa do casamento é bastante complexa. O casamento serve um propósito. Mas para os não-religiosos o casamento parece ainda ser um ritual irreflectido, como o Natal para quem não acredita no menino Jesus. Um passo burocrático para os que querem poupar nos impostos, ou uma forma de garantir residência na instabilidade das geografias actuais. Um rito de passagem para um caminho prototípico.

Nascemos, crescemos, encontramos alguém para sexar para sempre, e morremos. A simplicidade da vida parece incluir este contrato e torna-se num objectivo de vida porque o contruímos como um objectivo de vida. Só que a naturalidade do processo revela a dificuldade do processo também. O casamento sobreviveu até aos dias de hoje com base em expectativas heteronormativas de família, e em muitos lugares do mundo, outras formas de família ainda não são vistas como legítimas para este vínculo. O casamento, apesar de necessitar de uma reinvenção, ainda não é um direito de todos. Talvez quando for, é que poderemos abalar o conceito.

A ideia de que a felicidade vem com o casamento, ou uma relação íntima estável, monogâmica e duradoura, precisa de ser mais flexível. Para fugir ao estigma que ser solteira implica, recentemente a Emma Watson autodenominou-se de self-partnered, i.e., parceira de si própria. A procura de legitimidade de estados solteiros saudáveis e felizes precisa de ser incluída no diálogo da vida adulta também. Uma vida madura e relacional não se pode limitar a um namoro estável ou ao casamento. Despirmo-nos destas expectativas é despirmo-nos de ideias pré-históricas de que estamos programados para um único curso de vida.

‘Supostamente’, as pessoas organizam-se em parelhas porque é melhor existirem duas pessoas de vinculação segura para a sobrevivência da espécie (neste momento, combater as alterações climáticas será mais eficaz à sobrevivência da espécie, mas essas são outras conversas). Da mesma forma: a parentalidade, que muitos acreditam ser essencial à existência, não precisa de ser.

As novas formas de vida, seja sozinho, com amigos, ou com os gatos, são formas legitimas de felicidade. É importante começar a reescrever narrativas para desconstruir a pressão social de certos rituais – ao entendermo-los à luz das expectativas individuais e colectivas. Cabe a cada um de nós perceber como é que o casamento faz parte de um plano de felicidade, ou como a ausência de casamento também pode fazer parte de uma vida completa e satisfatória.

20 Nov 2019

Democracias há muitas

[dropcap]A[/dropcap] questão da democracia tem muito que se lhe diga, é certo, mas é muito mais importante é o que se faz. Um exemplo que vem de dois países europeus com posturas radicalmente diferentes perante o mundo.

O primeiro é Portugal que, mal conseguiu implantar um regime democrático, teve como preocupação central acabar com as colónias, na medida em que a sua existência repugnava aos nossos dirigentes. Demos imediatamente a independência a todas chamadas províncias ultramarinas, se calhar nem sempre respeitando os “timings” correctos, mas a verdade é que fomos dignos de usar o nome de “democratas”.

Já a Inglaterra, que é suposto ser uma democracia há muito mais tempo, agarrou-se o mais possível às suas possessões ultramarinas e criou sempre problemas de modo a dizer-se que depois da sua saída (geralmente forçada) era o caos. De forma iníqua, pois os ingleses sempre acreditaram firmemente na sua superioridade em relação a “brancos” e, sobretudo, “não brancos”, quiseram sempre manter as relações coloniais com os que consideravam súbditos ( e não cidadãos, tanto que nunca outorgaram cidadania aos colonizados) da sua esclerosada rainha.

Daí também que Macau nada tenha a ver com Hong Kong e que por aqui reine há muito tempo o princípio “um país, dois sistemas” e é de tal forma bem sucedido que ninguém (ou quase) dá por ele. Há que afastarmo-nos das influências perniciosas da ex-colónia britânica se aqui queremos sobreviver como comunidade. Tal qual fazemos há cinco séculos, muito antes dos ingleses saberem que a China existia.

20 Nov 2019