André Namora Ai Portugal VozesNão se pode estudar sem cama Na semana passada escrevi sobre os problemas dos professores. Desta feita, refiro-me aos estudantes. Desde os mais pequeninos aos universitários, todos eles vivem horas amargas. A crise económica bateu à porta da classe média e os pais têm dificuldade em pagar uma creche privada. Para uma escola primária pública já é difícil fazer frente às despesas com materiais, roupa e calçado. Não há aluno que não tenha que levar a sua mochila e só como exemplo os pais depararam-se com um aumento no preço de 20 por cento. Tudo está mais caro e há crianças que não conseguem lugar na escola da área da sua residência. Ora, um casal pobre, sem carro, que utiliza os transportes públicos não pode levar os filhos para uma escola que fique longe. Testemunhei a ida de um casal de São Tomé que vivia em Portugal há mais de seis anos, mas que o homem estava actualmente desempregado e a mulher a ganhar muito pouco, com dois filhos pequenos sem lugar na escola e sem dinheiro, ou qualquer subsídio estatal, a embarcarem para França. Já não são apenas os portugueses a emigrar. Até aqueles que se contentavam com pouco e para quem Portugal era um paraíso já se estão a ir embora. O novo ministro da Educação foi apresentado como personalidade muito competente na matéria, mas os problemas no ensino agravam-se e quando abordamos o que se passa com os estudantes universitários, a nossa alma fica parva. Temos, no mínimo, 120 mil estudantes universitários deslocados da sua terra natal. A maioria não sabe o que fazer para conseguir uma cama para dormir. O preço das casas para alugar subiu de uma maneira exploradora. Sabemos de duas irmãs que vivem num quarto com uma amiga, são três a dormir na mesma cama. Isto, num quarto que apenas tem a casa de banho, guarda-fatos, uma mesinha e uma cadeira. Como é que podem estudar três jovens universitárias nestas condições? Sem cama não se pode estudar. A oferta em todo o país é pouco superior a 23 mil camas para os tais 120 mil estudantes universitários deslocados. Há no mínimo 20 mil camas a menos para responder às necessidades da comunidade universitária de Lisboa e Porto, refere um estudo da consultora imobiliária Cushman & Wakefield. De acordo com o mesmo estudo, em Lisboa existem, actualmente, cerca de 5500 unidades, no Porto, perto de 5300, a maioria de privados. A oferta em todo o país é pouco superior a 23 mil camas, entre residências públicas, privadas e de instituições religiosas. Este número mostra-se absolutamente insuficiente para os 120 mil estudantes deslocados. Para além destes 120 mil deslocados, temos o crescente número de estudantes estrangeiros nas faculdades nacionais. E o número de estudantes estrangeiros tem vindo a aumentar de ano para ano. A situação em Lisboa é alarmante. A Federação Académica de Lisboa já pediu a intervenção urgente e financiamento para resolver a escassez de alojamento académico no país. De norte a sul sucedem-se as queixas: não há alojamento suficiente para os estudantes que entraram para o ensino superior. Os preços de mercado são insuportáveis. O que era preocupante é agora alarmante. As queixas estão a aumentar porque na primeira fase de acesso foi aprovada a entrada de 50 mil alunos. O caso já chegou à Assembleia da República, onde o Bloco de Esquerda pediu uma audiência com o ministro da Educação sobre o alojamento académico. É grave e triste a situação gerada no país para os estudantes universitários. Mesmo que um estudante até consiga arranjar um quarto, é uma outra história saber se a família consegue pagar 300, 400, ou 500 euros por mês, para que os estudantes possam dormir decentemente para que os estudos não resultem em descalabro. E o pior disto tudo é que em 2018, imaginem, foi criado um Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior, o tal PNAES, com o objectivo de duplicar o número de camas em cada ano para estudantes universitários e que até aos dias de hoje teve uma execução fraquíssima. O que andou a fazer? Para que serve o dinheiro que vem da União Europeia e concretamente muitos milhões para benefício do ensino? O referido Plano é até 2026, ainda não começou a dar frutos e esperemos, ao menos, que possa actuar rapidamente na construção de habitação para estudantes. E de imediato, algo podia ser feito, tal como atribuir benefícios fiscais para quem aluga quartos aos estudantes e estabelecer protocolos com o Alojamento Local, à imagem do que se fez durante o tempo da pandemia. Na abordagem assim apresentada até parece que os nossos governantes devem pensar que no futuro já não são necessários, médicos, engenheiros, advogados, gestores, jornalistas… ai, Portugal, Portugal.
Carlos Morais José A outra face VozesBiden contra Biden O mundo está já habituado ao facto dos Estados Unidos da América (EUA) raramente cumprirem a palavra dada no que toca ao cumprimento das promessas feitas e dos compromissos alcançados em termos de relações internacionais. Assim se passou quanto à expansão da OTAN para Leste na Europa, quando do desmembramento da União Soviética, e não podemos deixar de pensar ter existido um dedo americano no incumprimento dos tratados de Minsk por parte dos governos da Ucrânia, resultantes do golpe de 2014, claramente apoiado e suportado pelos EUA. O resultado foi o que se sabe: a invasão russa e um conflito armado que pode desembocar num apocalipse. A OTAN, que ainda hoje se apresenta, descaradamente, como uma aliança unicamente vocacionada para a defesa no caso de ataque inimigo, não se coibiu de bombardear a Sérvia, a Líbia, a Síria, o Iraque, o Afeganistão, entre outros, com os resultados conhecidos. Depois da II Guerra Mundial não consigo encontrar um caso de intervenção militar americana que tenha, de algum modo, melhorado a vida dos cidadãos desses países e muito menos aportado “direitos humanos e democracia”, talvez com excepção da Coreia do Sul, um país onde, contudo, existe um tremendo fosso social, cultural e económico entre ricos e pobres, poderosos e destituídos, como se pode constatar, por exemplo, no filme “Parasitas”, galardoado com um Oscar, ou num tom mais sério e radical na obra do cineasta Kim Ki-duk. Contudo, as mentiras de um país como os EUA encontram, geralmente, actores diferentes, políticos que renegam o que foi dito pelos seus antecessores, procurando desse modo desculpas esfarrapadas e, mais grave ainda, elevando a níveis preocupantes a desconfiança que a comunidade internacional sente face ao que é um dos países militarmente mais poderosos do mundo e cujo regime tem o dislate de se apresentar como o “fim da História”. Curiosamente, no domingo passado assistimos a um espectáculo diferente. O presidente Joe Biden, ao proferir que os EUA interviriam militarmente caso a China decidisse invadir a ilha de Taiwan e unificar de vez o país, não apenas contraria o que tem sido afirmado pela diplomacia americana, como renega o que ele próprio afirmou num artigo por si assinado em 2001. Recordemos os factos e o contexto. Nessa altura, era presidente dos EUA o republicano George W. Bush, o homem que ordenou a invasão ilegal do Iraque com o pretexto de encontrar as armas de destruição massiva que nunca existiram. Bush foi questionado se os EUA teriam a obrigação de defender militarmente Taiwan no caso de um ataque vindo do continente. A sua resposta foi: “Sim, temos. E os chineses têm de perceber isso. Sim, eu teria (essa obrigação)”. E prosseguiu afirmando que faria “o que fosse preciso”, nomeadamente empregar “toda a força do exército americano”, para ajudar Taiwan a defender-se desse eventual ataque. Ora o então senador Biden criticou fortemente o presidente americano, num artigo intitulado “Not so deft in Taiwan”, publicado no Washington Post, onde começava por afirmar que “as palavras contam (matter), em diplomacia e na lei” e, apesar de reconhecer que “algumas horas mais tarde, o presidente apareceu para se distanciar deste novo e surpreendente compromisso, sublinhando que continuaria a seguir a política de ‘uma só China’ seguida por cada uma das últimas cinco administrações”, Biden remata que “onde outrora os Estados Unidos tinham uma política de ‘ambiguidade estratégica’ – sob a qual nos reservávamos o direito de usar a força para defender Taiwan mas mantínhamo-nos calados sobre as circunstâncias em que podíamos, ou não, intervir numa guerra através do Estreito de Taiwan – agora parece que temos uma política de ‘ambiguidade estratégica ambígua’. Não se trata de uma evolução positiva”. E continua aquele Biden de 2001: “Como questão de diplomacia, existe uma enorme diferença entre reservar o direito de usar a força e obrigar-nos, a priori, a vir em defesa de Taiwan. O presidente não deve ceder a Taiwan, muito menos à China, a capacidade de nos atrair automaticamente para uma guerra através do Estreito de Taiwan. Além disso, para cumprir a promessa do presidente, quase de certeza que queremos usar as nossas bases em Okinawa, Japão. “Mas não há provas de que o presidente tenha consultado o Japão sobre uma expansão explícita e significativa dos termos de referência para a Aliança de Segurança EUA-Japão. Embora a aliança preveja operações conjuntas nas áreas circundantes do Japão, a inclusão de Taiwan nesse âmbito é uma questão da maior sensibilidade em Tóquio. Sucessivos governos japoneses têm evitado ficar presos a esta questão, por medo de fracturar a aliança. “Por uma questão de lei, as obrigações e políticas são também mundos à parte. O presidente tem ampla autoridade política no domínio da política externa, mas os seus poderes como comandante-em-chefe não são absolutos. Nos termos da Constituição, bem como das disposições da Lei das Relações de Taiwan, o compromisso das forças dos EUA para com a defesa de Taiwan é um assunto que o presidente deve levar ao povo americano e ao Congresso.” Mais palavras para quê? Afinal, que Biden devemos levar a sério, o de 2001 ou o de 2022? Estará o actual presidente dos EUA a ser de tal modo pressionado pelos falcões ansiosos de guerra (o complexo industrial-militar), que descamba em declarações como as do passado domingo, e não terá a capacidade interior de lhes resistir, ainda que tal agudize a instabilidade que actualmente reina na cena internacional? Será que Joe Biden realmente existe e exerce o poder ou não passa de uma marioneta, cujo papel se resume a recitar o texto que outros lhe escrevem? As atitudes recentes dos EUA em relação em Taiwan parecem querer provocar a intervenção militar do continente que, legitimamente, aspira à unificação da China e que não poderá admitir mais passos no sentido da independência da ilha. Por enquanto, Pequim tem demonstrado que prefere uma solução pacífica do problema e nem sequer estabeleceu um calendário definitivo para a reunificação. Contudo, se as provocações americanas continuarem e encontrarem eco em Taipé, o caso poderá mudar rapidamente de figura. Talvez Biden consiga convencer Biden de que a sua actual posição é profundamente errada e perigosa para esta região e para o mundo em geral. E que Biden consiga conter os ímpetos belicistas, hegemónicos e neocolonialistas de Biden. O mundo espera para ver qual dos Biden aparecerá a seguir nos ecrãs de televisão e qual o guião que desta vez escreveu ou lhe deram para ler. Talvez Biden compreenda que a humanidade deve seguir o caminho da paz e os EUA adoptem uma política de não-interferência nos assuntos internos de outros países ou, pelo contrário, Biden acirre mais os conflitos na cena internacional e nos conduza a todos à desgraça. É que, como diria Jim Morrison, não vale a pena ter ilusões: “Daqui ninguém sai vivo”.
João Romão VozesCapitalismo insustentável A ideia de sustentabilidade explicitamente aplicada ao turismo tem cerca de 30 anos: foi no final dos 1990s que se começou a usar esta designação em títulos de conferências, jornais académicos ou documentos de orientação política. Foi relativamente pouco depois de o termo “desenvolvimento sustentado” ter aparecido e ficado como referência estratégica global, a partir da publicação de “O nosso futuro comum”, pela ONU, em 1987. Antes disso já havia, no entanto, referências implícitas e críticas sistemáticas e contundentes a processos de desenvolvimento turístico que destruíam ecossistemas sensíveis ou implicavam severas perturbações nos modos de vida de populações locais. Os temporários êxodos massivos de populações urbanas para zonas costeiras em tempos de verão, sobretudo a partir dos anos 1960 e 1970, são exemplos bem conhecidos em Portugal. Pouco tem a ver com esses tempos o desenvolvimento do turismo contemporâneo: hoje os métodos de planeamento regional e urbano estão mais generalizados e são suportados por informação, conhecimentos técnicos e tecnologias que nem sequer existiam na altura. A percepção dos impactos negativos do turismo também é generalizada e são relativamente consensuais conceitos como o de “capacidade de carga”, que define os limites físicos dos lugares para acolher visitantes, mas também os limites psicológicos dos turistas para que considerem que a sua visita valeu a pena – ou que tiveram uma experiência plenamente satisfatória, como agora se vai dizendo. Também os estabelecimentos hoteleiros passaram a ter outro tipo de preocupação na sua concepção e gestão, procurando melhorar o enquadramento na paisagem e a adequação aos recursos do território, ou passando a integrar mecanismos de poupança de água e energia, que tendem a ultrapassar muito largamente os consumos por pessoa que se praticam normalmente quando se está em casa. Pouco disto, diga-se, tem grande significado: é com os transportes aéreos e automobilísticos que o turismo impõe os seus maiores impactos ambientais, um contributo crescente para a emissão de gases de estufa e, por isso, para a aceleração dos processos de alterações climáticas a que continuamos a assistir com escassa capacidade – ou mesmo vontade – de intervenção. Essa escassa intervenção contrasta com a quantidade – e até clareza – das orientações políticas de diversas instituições, ligadas à promoção do turismo ou a outras formas de regulação económica, em diferentes escalas territoriais, da local à dos blocos continentais de países, passando naturalmente pela região e pelos territórios nacionais. Primeiro foram as sugestões sobre como o turismo pode promover a integridade dos ecossistemas valorizando recursos territoriais e garantindo experiências únicas, ao mesmo tempo que pode criar oportunidades de emprego e de iniciativas empresariais para comunidades locais eventualmente falhas de alternativas viáveis, contribuindo então para o crescimento das economias. Hoje é mais detalhada a descrição destes impactos e dos três pilares da sustentabilidade passou-se para os 17 objectivos de desenvolvimento sustentável. Para todos eles o turismo pode, diz-se, oferecer contributos relevantes. Só que o turismo, como também se sabe, não deixa de estar enquadrado num processo global de concorrência desenfreada e vagamente regulada, tendo sido também objecto de sucessivas vagas de liberalização, desde a utilização dos espaços aéreos, até aos investimentos internacionais em infraestruturas, equipamentos, atrações e serviços globais de hotelaria e restauração, facilitados pela livre circulação internacional de capitais, que aceleram a internacionalização dos movimentos turísticos, a intensificação da concorrência e, frequentemente, os processos de gentrificação associados a projectos de renovação urbanística. Dizem os manuais da especialidade que há uma fórmula para combinar o sucesso da competitividade nestes mercados globais com a sustentabilidade na utilização dos recursos do território: promover negócios locais, com a mão-de-obra residente, assente em produtos e serviços únicos e irrepetíveis, ligados ao património natural e cultural de cada região e suportados por tecnologias digitais que promovam comunicações rápidas e eficazes. Em vez produtos massificados mais baratos que os dos territórios concorrentes, promovam-se serviços únicos, de alto valor acrescentado, com menor procura mas maior benefício económico para as comunidades. Na realidade, não tem sido assim: grande parte dos destinos turísticos concorre com o preço mais baixo possível pela maior fatia possível dos mercados globais do turismo contemporâneo. Aliás, mesmo que assim fosse dificilmente se poderia dizer que se tratava de um processo bem enquadrado nos tais princípios da sustentabilidade: na realidade, tratar-se-ia de produtos e serviços caros, dirigidos ao consumo de uma minoria da população – a mais rica. Em última análise, a sustentabilidade económica e ambiental seria paga por quem pode, levando a novas formas de exclusão social numa actividade que até se foi democratizando com a sua massificação. Essa massificação é, aliás, uma condição necessária para a grande maioria das actividades económicas contemporâneas: não haveria computadores, telemóveis, televisões, câmaras fotográficas, automóveis, aspiradores ou máquinas de lavar se não fosse a massificação das suas produções e a inerente prática de preços relativamente baixos e acessíveis a grande parte da população. Sempre com a utilização máxima de recursos, diga-se: enquanto o benefício atingido superar o custo de se aumentar a produção, produz-se mais, para mais gente. Os limites do planeta continuam a contar pouco para esta equação. Não é diferente com o turismo: é a massificação planetária que permite haver voos a preços relativamente acessíveis, diferentes formas de alojamento nos mais remotos lugares, formidáveis sistemas integrados de informação que nos permitem escolher roteiros, comprar bilhetes de transporte, reservar quartos em hotéis ou garantir o acesso a lugares e eventos a partir do conforto do nosso telemóvel. É esse mercado de massas que permite que o negócio global funcione e que vão emergindo nichos frequentemente designados como mais sustentáveis. Na realidade, no capitalismo contemporâneo o negócio do turismo pouco difere de outros negócios: é insustentável.
Hoje Macau VozesA maioria das estruturas externas construídas em edifícios e habitações são ilegais, mas não há prazo que obrigue a demolir Por Mário Duarte Duque, arquitecto (continuação de ontem) A voracidade dessas construções era tal que os arquitectos corriam ao local da obra na véspera da vistoria, para poderem fotografar a sua obra acabada de construir. Sabiam que logo que a licença de habitação fosse concedida, as obras ilegais prosseguiriam de imediato e o edifício não mais seria reconhecível. Os mesmos anos 80 estão extensivamente representados na RAEM pelo eclectismo da arquitectura Pós-Moderna. Todavia, algo que só é possível documentar em desenhos de projecto, em fotografias que se encontram apenas na posse dos autores desses projectos, ou no dia em que esses edifícios forem libertados de todas as estruturas ilegais. Algumas dessas estruturas ilegais eram já mesmo negociadas na conclusão dos edifícios entre os construtores e os compradores, com a confiança de que os funcionários da Divisão de Fiscalização da DSSOPT se manteriam desatentos. O curso destes acontecimentos corresponde à passagem do Eng. Carion pelas chefias da mesma Divisão de Fiscalização, pelo Departamento de Urbanização, pela Subdirecção para a área do Licenciamento da Construção e Planeamento Urbanístico, e finalmente pela Direcção da extinta DSSOPT. Do que aconteceu antes deste estado de coisas é mais difícil obter relato. Mas é possível obter testemunho nas paredes dos edifícios pintados que retêm várias camadas de tinta de cores diferentes, onde cada camada representa um intervalo de tempo de pelo menos 5 anos. O formato do curso destes acontecimentos é o formato das rotinas que foram descontinuadas, todavia disposições que se mantêm em vigor e são necessárias, mas ainda ninguém soube como as retomar. O resultado é assim uma realidade formada à-toa, face àquilo que persiste e é ao arrepio tanto da legalidade como da razão, e que se processa com incerteza, mesma na vigência de um Plano Director. Nessa disfuncionalidade, continuou a assistir aos Residentes da RAEM o direito de prosseguirem obra no silêncio da Administração, sendo apenas sua responsabilidade a confiança de que a mesma é passível de legalização. A mesma Divisão de Fiscalização, entretanto integrada na nova DSSCU, passou a ser a unidade funcional mais difícil de ser abordada pelos particulares, o atendimento com apenas um funcionário deixou de ser possível. Todavia, a actividade de fiscalização sobre construções existentes ainda só prossegue por queixa. As intimações são efectivamente feitas, e já com a advertência de que, se os particulares não prosseguirem os trabalhos de rectificação necessários nos prazos da intimação, a Administração prosseguirá trabalhos para a reposição da legalidade, em substituição desses particulares, de quem cobrará os encargos, coercivamente se necessário. Todavia os casos em que a DSSOPT prosseguiu nesse modo são apenas os que anunciou e que fez disso exemplo. A DSSOPT também não seguia o desenvolvimento das intimações que produziu, nomeadamente a respeito de demolições, que por sua vez também correram à margem de licença, nomeadamente de licença para trabalhos de demolição. Digamos que demolir pisos inteiros e reconstruir terraços de cobertura, para reposição dos moldes aprovados ou homologados da construção, é mais complexo, e processa-se de modo diferente, que simplesmente remover grades ou palas de janelas. Efectivamente, a actuação dos agentes da fiscalização não mais se caracteriza pela mesma passividade do passado, mas a desarticulação que disso resultou persiste. Do mesmo modo que pinturas não mais foram realizadas nos exteriores dos edifícios, também não mais foram realizadas nas escadas comuns interiores desses edifícios. E, onde foram entretanto produzidas ordenações para remover portões e grades que bloqueavam escadas comuns, e reunidas assim condições para que essas escadas interiores fossem reparadas e pintadas, para a Sr.ª Eng.ª Chan Pou Ha, enquanto Subdirectora da DSSOPT, a esse prosseguimento não bastava uma acta de reunião de condóminos que decidisse obras de conservação. Importava que a mesma especificasse “reparação de escadas comuns”, mesmo constando em auto dos Serviços que isso era necessário, fundamentando assim indeferimento de pedidos de licença para obras de conservação. A mesma dirigente também produziu embargos a trabalhos aprovados pela DSSOPT, que manteve sem prazo para resolução, estando ao seu alcance representar que assiste o direito dos particulares em prosseguir trabalhos já aprovados, nomeadamente no silêncio da Administração na emissão de licença de obra. Assim como permitiu que se aprovassem modificações de fachadas de edifícios, sem a autorização dos demais condóminos, em fracções que não eram no rés-do-chão, nem tinham entrada directa pela via pública. Mais excentricamente, a própria, enquanto Directora da DSSOPT, permitiu e encomendou trabalhos, exactamente de colocação de grades no edifício da Assembleia Legislativa, em vãos que servem caminhos de evacuação. Ou seja, A expressão do Chefe do Departamento de Urbanização da DSSCU, que herdou a chefia do actual Director da DSSCU, sobre a inexistência de prazo que obrigue à demolição de obras ilegais, é expressão de que não se sabe como lidar com modificações perpetradas aos edifícios, ainda está por reatar uma lógica funcional a respeito de conservação dos mesmos edifícios, mesmo depois de não mais se verificarem muitas das circunstâncias perniciosas do passado. Pertinente é também o conhecimento de que, no mesmo Departamento de Urbanização, é onde os projectos particulares são escrutinados, onde se averigua da coordenação do conjunto de participações de especialidades em projecto, e onde a falta dessa coordenação determina instruções aos particulares para rectificação ou aperfeiçoamento desses projectos. De igual modo, as posições do mesmo departamento esperam-se coordenadas com os diplomas que são especialidade daquele departamento aplicar, com as regras por que se pauta a actividade administrativa no seu conjunto e, necessariamente, com princípios fundamentais definidos na Lei Básica. Nomeadamente no que assiste aos residentes da RAEM a respeito de protecção do ambiente, que na RAEM é predominantemente construído. Assim como direitos e legítimos interesses dos residentes autores de obras de arquitectura, a quem assistem as contrapartidas daquilo que produzem, sobre quem recai espectativas de intervenção profissional qualificada e zelosa, para que o seu brio pela obra não seja mercê de desfiguração ilícita, ao arrepio de uma salvaguarda que é transversal a todos os domínios de produção intelectual. Muito menos por beneplácito administrativo, avesso às providências do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (o PIDESC) a que a RAEM está vinculada nos termos da Lei Básica, e ao abrigo do qual o Governo da RAEM produz relatórios regularmente sobre a aplicação na RAEM, para discussão junto da ONU. Chegados aqui, no mesmo alcance de interpretação, afigura-se útil uma analogia à Teoria dos Contrastes, no modo como serve a compreensão da realidade. Na arte, os contrastes são um artifício expressivo de representação da realidade, em que se recorre à confrontação com a diferença, ou à deslocação do contexto. É assim que uma realidade dormente ressalta em acréscimo de expressão ou em acentuação de valor, uma vez representada assim excêntrica ou dramaticamente. Na teoria da cor, as cores são mais brilhantes confrontadas com outras mais pálidas, como são mais quentes confrontadas com outras mais frias, e melhor se identificam uma vez confrontadas com as cores que lhes são complementares ou opostas no espectro cromático. Igualmente: Numa sociedade, onde os humanos habitualmente se cruzam olhando para o infinito, não podemos deixar de reparar em quem nos fixa nos olhos; Perante o que se organiza logicamente, necessariamente ressalta o que é desarticulado do discurso da razão; Quando a interacção entre os humanos se pauta apenas por contrapartidas reais e premeditadas, sobressaem os actos de bondade que são aleatórios; Onde proliferam edifícios com falta de manutenção, pejados de estruturas ilegais, só podem sobressair os que se resguardam na classificação de património cultural, que se encontram impecavelmente tratados, por vezes até para além do que é inevitável e intrínseco à precaridade da matéria. Se queremos ser mais felizes, fixamo-nos no que nos alegra, e viramos a cara ao que se revela ser diferente disso e nos incomoda.
António Cabrita Diários de Próspero VozesGodard e o deus preguiçoso 18/09/22 Chove copiosamente em Maputo, como se de um modo espasmódico mil florestas procurassem o seu unicórnio. Leio num café, espero que a coisa abrande. Um ardina entra em passo de corrida, refugia-se, metade dos jornais estão uma papa. E então impinge-me um, “para compensar o prejuízo…”: pede. Cedo, compro o “Savana”, o mais antigo semanário da terra. E logo na página dois, no artigo intitulado, “Nyusi acerta posições”, leio, sobre as eleições dos membros para o Comité Central, ao nível das províncias: «Em muitas províncias, os documentos de alguns candidatos desapareceram dos processos submetidos às comissões eleitorais e a maioria deles só foi notificada nas vésperas da votação, facto que não abriu espaço para a regularização da situação. Na província de Gaza, por exemplo, os candidatos que foram confrontados com a falta de documentos nos seus processos, apresentaram provas, através de duplicados, que não havia nenhuma irregularidade na documentação, mas a comissão eleitoral não aceitou receber as suas reclamações. Desesperados, estes levaram o caso para o chefe da brigada central destacada para Gaza, liderada por Tomás Salomão. Este, por sua vez, ordenou a reverificação dos processos e constatou-se que estava tudo legal e que os excluídos poderiam concorrer. No entanto, antes da votação, no intervalo, estes foram coagidos a desistir da corrida, facto que veio confirmar-se. Em algumas situações, as manipulações e manobras para o afastamento de candidatos incómodos e não alinhados foram lideradas pelos próprios secretários dos comités provinciais. A compra de votos foi a outra estratégia usada para a conquista do voto». O problema da liberdade é que são mil florestas a correr afogueadas na perseguição de um unicórnio. Pode parecer uma ilusão, mesmo antes de cansar. O problema da democracia é que são mil florestas desgrenhadas à procura de um pente, fora a dignidade dos carecas, que, em protesto contínuo, incessante, bufam. Chove lá fora. A rodos. A temperatura baixou uns oito graus, de ontem para hoje. Ao fim de dezoito anos em Moçambique já nem lamento que não se queira aprender com os erros, que se delapidem gerações com o embuste, que todos os filhos da burguesia que vão estudar para fora não queiram voltar. A acção dos “insurrectos”, ao norte, alastrou para Nampula ao norte, mas não se tiram ilações, a causa-efeito não existe para a mentalidade da política local. Desde que haja dinheiro para se comprar os votos tudo se adia, tudo se vai empurrando com a barriga, como aqui se diz! Não admira que a invasão da Ucrânia nunca tenha conhecido por estes lados qualquer nota de repúdio. Se eles lá também comprarão os votos dos referendos nas regiões “conquistadas”! 19/09/22 Revejo o “Week-End”, do Godard, de 1967, o último filme da primeira fase do cineasta. Em “Week-End” retratam-se os escroques, são personagens que claramente Godard detesta, a nata mais perversa e venal da burguesia, cujo consumismo antecipa um apocalipse sem remissão. Ao casal de protagonistas só move o instinto sórdido de apressarem a morte da mãe dela, para se apoderarem da herança. E cada um deles tem um amante, com quem combina ficar depois de se apoderarem do dinheiro. Filme inclemente, é como um libelo cruel (foi aqui que chegámos: agora aguentem!) que expõe o triunfo dos porcos; aliás, simultaneamente, assistimos ao massacre programado e dantesco dos porcos, em nome do progresso, ou com o apelo ao assassinato simbólico e o canibalismo, que no final do filme se torna literal. Só os dez minutos a retratar a insanidade do engarrafamento na estrada vale o filme, onde em cada esquina há mortos e feridos e carros virados ou incendiados sob o olhar indiferente dos que estão em trânsito. Está-se já para lá do trauma de uma guerra civil, na sobrevivência agónica de quem vive a distopia e acorda em si o predador. É uma parábola sobre o Inferno interiorizado e climatizado, «um filme encontrado num ferro-velho», diz uma legenda ao princípio», e onde o Mozart é agora música para pasto (ou seja, estrume), para vacas e galinhas. Do ponto de vista formal é uma “desgarrada” menos dominada do que “Pierrot le Fou”, de 1965, e repete-lhe muitos dos processos, mas politicamente “Week-End” é de uma ferocidade inigual. Todo o desnorte moral e ideológico dos movimentos radicais de guerrilha urbana que hoje conhecemos está escancarado nesta comédia negríssima, com uma presciência e truculência buñuelianas. O que é “divertido”, em revendo-se o filme, para além do seu carácter profético, é imaginar como hoje seria objecto de polémica e de censura: a insídia dos seus temas “politicamente incorrectos” é superada em muito pelo despudorado “abjeccionismo” dos comportamentos. Diz Corinne/Mireille Darc ao amante, sobre o marido: «Eu de vez em quando fodo com ele e então o coitado julga que o amo!», e a pedido daquele (que também se quer excitar) conta-lhe durante dez minutos uma cena de orgia em que participou (cena extraída a um romance de Bataille): «Paul ficou de joelhos para me lamber o cu, não foi desagradável, o sexo molhado de Monique palpitava contra a minha nuca, os seus pentelhos misturados ao meu cabelo. E tive que descrever-lhes o que que sentia, para excitá-los. Ela beijou-me o sexo. Depois masturbamo-nos os três e Paul começou a gritar: “Para a cozinha, bebês!”. Na cozinha pediu-me para subir para o lavatório, foi buscar um ovo ao frigorífico, partiu-o e escorreu-o sobre a minha vulva …». E Corinne descreve como se excita partindo os ovos que contrai entre as nádegas, para depois sentir a clara fria no seu sexo. E imaginamos nós as vozes puritanas que se levantariam contra o genocídio dos pintainhos! Imensamente divertido é também o Anjo Exterminador (assim é designado) que os sequestra para lhe darem uma boleia (forçada) e que, entre os tiros com que vai eliminando alguns “escolhos” na paisagem, se apresenta deste modo deliciosamente herético: “Eu sou Deus, porque sou preguiçoso!”.
Hoje Macau VozesA maioria das estruturas externas construídas em edifícios e habitações são ilegais, mas não há prazo que obrigue a demolir Por Mário Duarte Duque, arquitecto Foram estas as declarações do chefe do Departamento de Urbanização da DSSCU à TDM-Rádio Macau no passado dia 7, à margem do programa Fórum da Ou Mun Tin Toi. É essa a mesma unidade orgânica herdada da extinta DSSOPT, que integra a Divisão de Fiscalização e a quem compete o tratamento das ilegalidades perpetradas na edificações particulares. Para a consideração destes termos importam vários elementos de interpretação que explicam o curso do que chegou a este estado de coisas, assim como as implicações e contribuições que tiveram para o ambiente da RAEM. Ambiente que tanto é físico como é social, tanto é natural como é construído, e que até é assistido por normas jurídicas para salvaguarda do que se considera ser essencial. Importa ainda ter presente que uma estrutura ilegal no exterior de um edifício, realizada depois de o edifício construído, pressupõe que não foi requerida autorização administrativa, muito menos obtida a sua aprovação. Para obtenção dessa aprovação importa que a mesma reúna o acordo de pelo menos de 2/3 de representação de um edifício constituído em propriedade horizontal, esteja tecnicamente suportada por quem está habilitado a conceber estruturas urbanas, cumpra normas de interesse público em vigor, obtenha uma aprovação administrativa e, nesse seguimento, a obra seja executada por quem está habilitado a construir, sob direcção técnica igualmente acreditada. Importa também ter presente que antes de existirem ordenamentos urbanísticos houve tradições construtivas consubstanciadas, que passaram a ter letra em ordenamentos urbanísticos, nomeadamente quando passou a ser importante salvaguardar o que caracterizou as realidades urbanas onde se fixou valor cultural. Exactamente a respeito de grades nas janelas, que na RAEM é o elemento recorrente da discussão a respeito de estruturas ilegais, essas até poderiam ser elementos característicos, como acontece em muitas cidades mediterrânicas, e que Sevilha é possivelmente o exemplo mais conhecido, sem que isso obscurecesse a arquitectura dos edifícios, atentasse contra o estado da sua conservação, ofendesse uma expectativa, ou significasse falta de brio de quem habita nesses edifícios. Efectivamente, estruturas ilegais, tal como as conhecemos na RAEM não produzem evidência de terem resultado de uma vontade legítima, carecem da confiança de que foram concebidas e construídas por quem está habilitado para o fazer, não foram escrutinadas à luz de normas de interesse público, carecem de garantias de segurança, não resultam de conhecimento desenvolvido ou de uma tradição construtiva consubstanciada, não contribuem para uma paisagem urbana qualificada, ou seja: Não podem ter lugar num ordenamento urbanístico. Não são expressão de uma cultura urbanística qualificada. Apenas são expressão de desencontro entre o ordenamento urbanístico e as aspirações de quem habita. A persistência dessas estruturas empata a reabilitação de uma cidade, que no caso da RAEM até é mais próspera que muitas outras, que não se devia interessar apenas pelo arranjo e higiene das zonas classificadas de interesse cultural ou turístico. Protela o ordenamento físico, assim como a possibilidade de esse ordenamento poder ir ai encontro das aspirações de novas gerações. Efectivamente está em causa um fenómeno de geração. A geração anterior foi predominantemente imigrante, aproveitou edificações que não compreendeu o seu ordenamento, e logo as desfigurou em sentido de retirar delas mais e outras contrapartidas. Naturalmente com estruturas que não incorporaram vetustez às edificações, muito pelo contrário, pois logo e precocemente retiraram a vetustez que é inerente a uma construção nova. Presentemente são estruturas cujo investimento está mais que amortizado, outro valor não têm que o residual, reservam contrapartidas que sequer são lícitas, e é a isso que a DSSCU não tem prazo para dar fim. Por outras palavras, se essas estruturas fossem veículos, não passavam na inspecção, encontravam-se fora de circulação, se não estivessem já abatidas. A geração que sucedeu e que habitou os mesmos edifícios não teve a oportunidade de crescer em edificações que não tivessem grades apodrecidas nas janelas, terraços a que pudessem aceder, escadas comuns que não estivessem degradadas e pejadas de cabos, tubos e ocupações informais. Sequer teve oportunidade de observar ou compreender as fachadas dos edifício onde habitam, no modo como foram efectivamente desenhados e construídos. Ou seja, a aprendizagem urbana dessa geração resultou de uma configuração deturpada do ordenamento urbano em vigor. Foi essa a realidade incutida na formação da cultura urbana dessa geração, e que sequer era devida ou suposta. Foi somente consequência da negligência da função fiscalizadora da actividade administrativa e é hoje incapacidade de lidar com essa realidade, mesmo depois de repudiada. Se essa geração que sucedeu reage hoje a este estado de coisas é porque passou a viajar e apreciar os sítios onde o mesmo não acontece, ou simplesmente é oriunda desses sítios, e muitos ficam já aqui ao lado. Em verdade, sobre o muito do que aconteceu, e como aconteceu, é ainda possível obter relatos que remontam aos anos 80. A partir dessa década os edifícios novos em Macau foram muitos e passaram a ser revestidos por mosaico. Até essa ocasião, as rotinas de fiscalização para a manutenção obrigatória dos edifícios cada 5 anos centravam-se principalmente nos trabalhos de pintura de paredes exteriores, para os quais sequer era necessário escrutinar os estado das edificações. Bastava que a última licença para execução de trabalhos de pintura tivesse sido emitida há mais de 5 anos. Seria apenas necessário inspeccionar o local se a licença administrativa para esses trabalhos não fosse requerida, ou se o proprietário achasse que as mesmas ainda estavam em estado aceitável, e pedisse a inspecção da DSSOPT para que esta lhe concedesse a prorrogação dessa obrigação. Essa rotina de pinturas deixou de ser necessária quando os edifícios passaram a ser revestidos a mosaico e, a reboque disso, extinguiram-se as rotinas de manutenção e de inspecção dos edifícios depois de construídos. Foi assim que as construções ilegais passaram a ter terreno fértil. (continua amanhã)
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesEutanásia VS homicídio (I) Um réu foi condenado a 12 meses de liberdade condicional, depois de ter sido responsável pela morte de uma pessoa. Esta sentença parece-lhe demasiado leve? Recentemente, no julgamento de um caso de homicídio em Hong Kong, o réu era o viúvo da suposta vítima. Estavam casados há 30 anos e eram muito ligados. Em 2018, a mulher foi diagnosticada com um cancro em fase terminal e o marido deixou o emprego para se dedicar exclusivamente a tratar da esposa. Em 2020, os médicos informaram-no que ela teria muito pouco tempo de vida. As dores provocadas pela doença impediam-na de comer e de dormir. Mesmo com doses duplas de morfina a dor não acalmava. Já não conseguia falar e limitava-se a expressar-se por acenos de cabeça. Finalmente, o marido perguntou-lhe se ela queria partir. Segundo as notícias, em resposta a esta pergunta a mulher acenou afirmativamente por diversas vezes. Depois de ter massajado a esposa e conseguido que ela adormecesse, o marido calafetou a porta e as janelas do quarto, pôs carvão a queimar e dispôs escrituras Budistas. Mais tarde, chamou a polícia e declarou que tinha morto a mulher para que ela pudesse descansar em paz. Para alguns, este foi um caso de homicídio premeditado. Inicialmente, a acusação queria que fosse julgado por assassinato, mas, após avaliação feita por dois psiquiatras, apercebeu-se que sofria de depressão grave motivada pela doença da esposa. A acusação, então, achou que estava “fora de si” quando matou a esposa e aceitou que fosse acusado de homicídio. A lei de Hong Kong define assassinato como um acto que pretende deliberadamente causar a morte de outrem. O crime de homicídio subdivide-se em “homicídio voluntário” e “homicídio involuntário”. Este caso é claramente um “homicídio voluntário”. No homicídio involuntário não existe intenção de matar enquanto que no voluntário existe. Embora existam sinais de homicídio voluntário, sabe-se que o marido sofria de uma grave depressão quando matou a esposa. Estava privado do pleno uso das suas faculdades mentais e não distinguia o certo do errado. Na ausência de “intenção de matar”, foi condenado a 12 meses de liberdade condicional, que se crê ser a pena mais leve de todos os casos de homicídio. “Ordem de liberdade condicional ” significa que o réu não cumprirá pena de prisão, mas terá de se encontrar regularmente, durante o período em que a sentença estiver em vigor, com os assistentes sociais que seguem o seu caso e aceitar as condições estabelecidas. Se durante este período cometer algum crime, a liberdade condicional é suspensa e pode enfrentar uma pena de prisão, que vai variar consoante as circunstâncias do crime cometido. Quando o juiz se pronunciou sobre este caso deixou claro que se tratava de uma “tragédia humana”. O único objectivo do marido ao cometer o crime era que a esposa tivesse uma morte pacífica sem sofrimento. Por isso, o caso deve ser abordado com compaixão. Para o público em geral, o homicídio é, afinal de contas, um crime grave que deve ser tratado com seriedade. Depois de pesar factores pessoais e factores de ordem pública, o juiz decidiu-se pela pena de liberdade condicional. O incidente que temos diante de nós é um caso criminal e uma tragédia familiar. A mensagem que é passada à sociedade é que o homicídio é um crime e um acto errado, mas por trás deste acto errado encontra-se o grande amor que uniu o casal. Para que a mulher morresse sem dor, o marido dispôs-se a cometer um crime e a enfrentar uma pena de prisão. Mesmo enfrentando uma pena de prisão perpétua, não hesitou em aliviar a mulher do sofrimento que a afligia. É uma prova de que era totalmente dedicado à esposa. A mulher acenou num consentimento, indicando que compreendia a intenção do marido. Os dois estavam em harmonia, o afecto que os unia era interminável, que é coisa que os casais que se divorciam por qualquer desavença não podem compreender. Como observadores, esperamos que o marido recupere o mais rapidamente possível e se habitue à vida solitária que o espera. Esperamos também que ele compreenda que a sua mulher vive agora noutro mundo. Também esperamos que a mulher possa recomeçar uma vida melhor no outro mundo. Numa entrevista, o marido sublinhou que faz falta em Hong Kong uma lei sobre a eutanásia. Quais são as normais legais do sistema? Iremos analisá-las na coluna da próxima semana e iremos também analisar a situação da eutanásia no mundo, incluindo em Macau. Portanto, até à próxima semana. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesTrês questões a considerar Em 2010, fui a Xangai visitar a Exposição Mundial e, como eu, milhares de pessoas visitaram os locais onde a Exposição estava patente. Enquanto testemunhava a vitalidade da nação chinesa, percebi também a importância da segurança nacional, porque quando a defesa nacional se encontra ameaçada ou destruída, o povo sofre perdas irreparáveis, em termos da sua própria segurança e dos seus bens. A actual tensão entre a China e Taiwan está a crescer e causará danos indeléveis à nação chinesa se for mal gerida. Como apaixonado pela História que sou, e tendo sido deputado da Assembleia Legislativa de Macau, compreendo perfeitamente que a lei é apenas um instrumento para o exercício da governação, enquanto o estado de direito é o núcleo da estabilidade social e as pessoas são a pedra basilar da sociedade. O objectivo e o propósito da promulgação da revisão de qualquer lei deveria ser a obtenção de uma estabilidade social duradoura e a garantia de que as pessoas possam viver e trabalhar em paz e harmonia. Quanto à consulta pública sobre a revisão da Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado, que ainda está em curso, muitas opiniões de vários estratos sociais fizeram-se ouvir recentemente. Acredito que devem ser tomadas em consideração três questões na revisão da Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado. Em primeiro lugar, a revisão da lei pretende reforçar a salvaguarda da segurança nacional, no entanto, deve atender às realidades de Macau e ter em conta os interesses do país e do seu povo. O Partido Comunista da China (PCC) foi fundado há cem anos, e passou por dificuldades e perigos nos primeiros tempos da sua fundação. Desde a fundação da República Popular da China (RPC) em 1949, o país enfrentou igualmente imensos contratempos e dificuldades. O PCC foi capaz de derrubar a governação do Kuomintang (Partido Nacionalista Chinês) porque os seus membros mantiveram os objectivos iniciais e o sentido de missão, permitindo que a RPC tenha prosperado durante mais de sete décadas. O objectivo e a missão iniciais eram a obtenção do bem-estar do povo chinês e o rejuvenescimento da nação chinesa. Existe um ditado chinês que reza o seguinte, “quem derrubar as regras governa o país”. Neste contexto, a escolha do povo é uma determinante histórica. Para este fim, na revisão da Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado, o Governo da RAE deveria ter em mente que o principal objectivo da salvaguarda da segurança nacional é a protecção do bem-estar do povo, o que é fundamental para tornar a revisão pragmática e sintonizada com as realidades de Macau. Em segundo lugar, é necessário evitar possíveis efeitos adversos provocados pela revisão da Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado. A Dinastia Qin foi a primeira dinastia real da China Imperial a defender a unificação dos estados chineses e a conseguir essa unificação pela força das armas. Para fortalecer o seu poder, Li Si, o primeiro- ministro (Chanceler) da Dinastia Qi, propôs que todos os livros que não tratassem de agricultura, medicina, ou profecias fossem queimados. A única excepção a esta regra eram os registos históricos dos Qin e os livros guardados na biblioteca imperial. Além disso, as pessoas que comentavam a queima de livros sem autorização eram condenadas à morte e aqueles que criticaram as decisões imperiais, baseando-se em referências históricas, eram eliminados e os seus clãs dizimados. Os oficiais imperiais que tinham conhecimento de violações da lei, mas não as reportavam eram também sentenciados. Aqueles que não cumpriam a ordem imperial da “queima de livros”, eram tatuados no rosto e enviados para o exílio. O Imperador Qin que então reinava seguiu o conselho do “patriótico” primeiro-ministro, o que teve como consequência que a Dinastia Qin tenha sido a mais curta da história da China. Devemos aprender com as lições da História da China. Logo a seguir à primeira sessão de consulta sobre a revisão da Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado, a manchete de um jornal local era a seguinte “A pena máxima por violação da Lei de Segurança Nacional é de dez anos”. Mas logo depois, o Gabinete do Secretário para a Segurança fez um esclarecimento e declarou “relativamente aos novos crimes que se pretende acrescentar, a moldura penal da maior parte deles é inferior a uma pena de prisão de 10 anos, ou seja, em comparação com a moldura penal da pena de prisão de 10 a 25 anos aplicada aos crimes mais graves contra a segurança do Estado, que se encontram actualmente previstos em Macau, o secretário para a Segurança nunca referiu que a moldura penal máxima de todos os crimes prevista na “Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado” será ajustada, de forma uniforme, para 10 anos”. Entretanto, o jornal mudou logo a manchete para “a maior parte dos crimes previstos pela revisão da Lei de Segurança do Estado serão punidos com uma pena de prisão inferior a dez anos”. Em chinês, “pena máxima de dez anos de prisão” e “punível com pena de prisão inferior a dez anos” representam expressões retóricas que exprimem perspectivas diferentes, mas que podem causar mal-entendidos entre os leitores. Assim, é necessário que o secretário para a Lei de Segurança do Estado preste esclarecimento imediato. Só quando todos compreenderem os efeitos adversos provocados pelo empolamento da moldura penal, a revisão da Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado pode ser finalmente consumada. Por último, no processo de revisão da Lei, o Governo da RAE tem de obter opiniões sinceras e postos de vista de todo o espectro social e abster-se de proibir ou excluir qualquer ponto de vista. O “Reinado de Zhenguan” da Dinastia Tang, quando Li Shimin foi imperador, foi um dos mais prósperos da China. Uma das razões para o sucesso de Li Shimin foi ter nomeado os subordinados do seu irmão mais velhos (que tinha assassinado) como ministros, cuja função era criticarem o seu desempenho como Imperador. À luz do ditado, “três cabeças valem mais do que uma”, o Governo da RAE tem de ouvir genuinamente todas as opiniões e postos de vista para poder concluir a revisão da Lei de forma mais satisfatória. O propósito da revisão da Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado é a salvaguarda da segurança nacional, e este não é um cenário político para desempenhos individuais.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA vergonha, o sexo e o riso Quem já tentou falar com jovens sobre sexo certamente se deparou com os risos tontos ou as bochechas rosadas de vergonha. Gostaria que fosse um fenómeno exclusivo dos jovens de hormonas aos saltos. A verdade é que o riso inusitadamente se infiltra nos temas que julgamos mais vergonhosos. Para os jovens, e para muitos adultos, o sexo continua a ser isso: um tema que envergonha. Para alguns teóricos, como o Goffman ou o Billig, a vergonha é útil para a organização social de uma forma geral. A vergonha que, inevitavelmente se associa ao gozo, serve de barómetro do que é aceitável ou não aceitável em contextos sociais. Tudo o que é corpóreo costuma cair nessa categoria: dar puns ou ter ranho no nariz. Da vergonha existe uma relação íntima com o riso, que não é o mesmo que o riso prazeroso que nos oferece todo um conjunto de boas hormonas e bem-estar. Frequentemente a vergonha é gerida pelo riso unilateral, por pessoas com menos empatia, com um grande à vontade para apontar o ridículo. Aí cria-se uma espiral de culpa que a vergonha alegremente atravessa. A ejaculação depois de 3 segundos de penetração pelo rapazinho de 14 anos durante a sua primeira relação sexual pode ser acompanhada do ridículo – do riso desnecessário do parceiro ou parceira. Um exemplo clássico onde a empatia teria sido muito mais produtiva. Mas não é por isso que desistimos do riso por completo. O riso pode ter outras funções bem mais interessantes, um riso que empodera em vez de castrar. Aquele que se faz em conjunto, de uma dinâmica capaz de carregar as nossas vergonhas por outros meios e caminhos. Transformar o condenável com a leveza de uma gargalhada compreendida é capaz de mover delicadamente a vergonha. Aquela gargalhada que não traumatizaria o rapazinho de 14 anos com pressão para a performance. Dessa forma o sexo pode ser tonto ou cómico. O riso como canal de descarga. As pessoas ficam nuas, as peles baloiçam, as pregas criam-se em locais estranhos, os pêlos que ninguém pediu que nascessem, os ruídos abdominais, puns vaginais e os gritos de orgasmo originais. A vergonha é inevitável. Aprendemos com os outros que há limites para aquilo que podemos mostrar. Mas também é com os outros que podemos re-alinhar esses limites, principalmente quando a ligação é feita com sinceridade. Um sexo cheio de tabus e de ensinamentos judaico-cristãos só vê transformação quando há à-vontade para nos rirmos à gargalhada com o que nos limitou no passado. Confiem no vosso acesso de riso porque caíram da cama ao tentar aquela posição difícil. Podem rir-se quando o sexo não é perfeito. Rir do desconforto é o antídoto – mas só e quando existe uma ligação. Atirar com o cliché da “ligação” é vago, reconheço. É demasiado inespecífico para descrever o que acontece entre duas pessoas. Mas nada tem que ver com um estado enamorado, porque o sexo nem sempre precisa de amor. Precisa, sim, da consciência da presença de dois (ou mais) seres, e da sua humanidade. Só com essa conjuntura relacional é que o sexo e o riso podem fazer algum sentido.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesSubornos e benefícios A semana passada, foram julgados no Hong Kong District Court (Tribunal de Primeira Instância), dois réus, ambos membros seniores de uma Universidade. Os réus foram acusados de terem conspirado de forma a que uma empresa de cosméticos conseguisse ministrar um curso de formação profissional na Universidade, em troca de vir a contratar um deles para os seus quadros. Este acordo foi feito porque o contrato do réu com a Universidade não ia ser renovado. O tribunal considerou os réus culpados de “conspiração perpetrada por funcionários públicos em benefício próprio”. Em Hong Kong, o “crime de obtenção de benefícios” refere-se à corrupção passiva. É crime, mas não é o mesmo que suborno. No caso de corrupção passiva, o infractor não toma a iniciativa do suborno, embora o aceite, a iniciativa é tomada por terceiros. À semelhança do “crime de solicitação de benefícios”, a pessoa subornada utiliza os poderes de que dispõe no seu local de trabalho para beneficiar terceiros. Hong Kong muitas vezes considera “os crimes de solicitação de benefícios” e os “crimes de aceitação de suborno” como “crimes de corrupção”, na medida em que os benefícios pretendidos são equivalentes. Neste caso, o benefício pretendido pelos réus não era dinheiro, mas um emprego com um salário mensal de 190.000 dólares de Hong Kong. A Hong Kong Independent Commission Against Corruption (Comissão Independente Contra a Corrupção de Hong Kong) assinalou que, ao abrigo da “Lei de Prevenção de Subornos”, a oferta de emprego é considerada um benefício e é ilegal ser beneficiado sem uma razão legítima. Actualmente, nos “crimes de obtenção de benefícios”, nos “crimes de solicitação de subornos” e nos “crimes de aceitação de subornos”, na maior parte das vezes os infractores não procuram compensações monetárias. Numa sociedade bem informada, as pessoas têm consciência de que aceitar dinheiro, quando se exercem cargos de poder, com vista a beneficiar terceiros é ilegal. Por conseguinte, algumas pessoas pensam erradamente que, desde que não aceitem dinheiro, contornam a lei. Esta é, sem dúvida, uma noção errada. Recorde-se que no início dos anos 2000, altos funcionários da polícia de Hong Kong receberam serviços gratuitos de prostitutas em troca de informações privilegiadas fornecidas aos donos de casas de prostituição, que assim conseguiam escapar à investigação policial. Estes funcionários foram considerados culpados pelo tribunal de “má conduta de funcionários público”. Neste caso, o benefício era o serviço sexual gratuito. Desde essa altura, o serviço sexual gratuito passou a ser listado na lei como um dos benefícios de que pode usufruir quem aceita subornos. Em Macau, o artigo 337 do Código do Direito Penal estipula que um funcionário público que aceite benefícios materiais ou não materiais, que não lhe sejam devidos, em troca de um acto de omissão ou de violação dos seus deveres, comete crime de aceitação de suborno e pratica um acto ilegal. O crime é punido com uma pena de um a oito anos de prisão. O artigo 338.º do Código do Direito Penal tem disposições semelhantes, mas a acção regulada é diferente. Neste artigo, a conduta regulada não implica violação ou omissão dos deveres do funcionário público. A violação das disposições deste artigo está sujeita a uma pena máxima de dois anos de prisão ou a uma multa de duzentos e quarenta dias. Os artigos 337.º e 338.º regulam infracções cometidas por funcionários públicos e ambos contemplam crimes de aceitação de subornos, mas referem-se a condutas diferentes. O primeiro incide sobre casos de omissão e violação de deveres e o segundo incide sobre casos de omissão que não implicam violação de deveres. Veja-se o caso dos funcionários da Universidade acima referido como um exemplo de violação. Se este caso tivesse ocorrido em Macau, os dois réus teriam violado o artigo 338, porque a preparação de documentos e a organização de cursos faziam parte das suas funções, pelo que não houve aqui violação da lei. O acto de aceitação de benefícios é que é ilegal. O Artigo 3.º da Lei de Macau n.º 19/2009 “Prevenção e supressão de subornos no sector privado” regula os crimes de aceitação de subornos neste sector. O primeiro parágrafo estipula que em qualquer organização privada cujos trabalhadores exijam ou prometam aceitar benefícios patrimoniais ou não patrimoniais que não lhes sejam devidos, em troca de actos ou omissões contrárias aos seus deveres, sejam punidos com pena de prisão até um ano ou multa. No caso inicialmente citado, o benefício recebido pelo réu era um emprego bem pago na empresa de cosméticos. Numa interpretação literal, este é um benefício não patrimonial e cai sob a alçada dos artigos 337, 338 e 3. Uma vez que a lei estabelece os princípios básicos do comportamento social, a definição de acção ilegal tem de ser claramente explicitada, para que os requisitos da lei possam ser claramente entendidos e os litígios evitados. Por conseguinte, devemos considerar a adição de uma definição de interesse não patrimonial para tornar as leis relevantes mais claras? Embora um novo emprego seja considerado um benefício ao abrigo da Lei de Prevenção de Subornos de Hong Kong, e o réu tenha sido considerado culpado desse crime, no fundo, apenas esperava encontrar um novo emprego e manter a sua vida normal. Em geral, em casos de suborno, os criminosos são motivados pela ganância e pela sede de dinheiro. Em comparação com outros casos de corrupção, o caso citado parece ser um dos menos graves. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
André Namora Ai Portugal VozesNão há pachorra p’ra isto! O nosso Portugal está moribundo. O povo sabe que tem um Governo de maioria absoluta conquistada há poucos meses e o que vê? O nível de vida está insuportável. Os preços no mercado ou no supermercado sobem todas as semanas. Há famílias que já não conseguem pagar a renda da casa. O que vale aos moradores de Lisboa é que a Câmara Municipal abriu um concurso para a concessão de um Subsídio de Arrendamento Mensal, o que poderá salvar as finanças de muita gente cujas candidaturas sejam aprovadas no referido concurso. Uma maioria governamental que há pouco tempo mostrava uma harmonia e uma escolha de um leque ministerial que indicava que tudo iria correr bem. Debalde. Uma das ministras mais badaladas porque se fartou de trabalhar durante a pandemia e com competência, a ministra da Saúde demitiu-se. As televisões não pararam de falar no assunto e os “comentadores” do costume, que normalmente apenas dizem baboseiras, lá vieram mais uma vez com as teses mais absurdas sobre a saída de Marta Temido do Governo. Indicaram, conforme a cor política que defendem, que a demissão se devia ao problema da falta de médicos nos hospitais, outros defenderam a ideia que a ministra foi-se embora porque já não aguentava tantas grávidas de um lado para o outro devido ao encerramento de urgências e serviços de obstetrícia, que estava cansada. Qual cansada, uma mulher de armas que aguentou dois anos uma pandemia quase sem dormir e comer. Uma governante que possui três cursos superiores e que sempre foi à luta contra alguns médicos e enfermeiros injustos e sem razão em alguns casos. E por que razão? Porque os médicos e enfermeiros obtém os seus cursos e especialidades pagos com o nosso dinheiro e não têm nenhum compromisso com o Estado de que findo os cursos deveriam ficar no serviço público pelo menos uns cinco anos. Vemo-los a debandar para o estrangeiro ou para os hospitais privados que cada vez mais pululam pelo país como cogumelos. A demissão de Marta Temido tem outras implicações, a senhora não estava nada cansada, estava farta, fartíssima das colegas invejosas, talvez por ser bonita, e da facção do Partido Socialista que começou logo a fazer-lhe a vida negra assim que foi anunciado que Marta Temido poderia vir mais tarde a substituir António Costa como líder do partido. A partir dessa data nunca mais houve apoios para as reformas na Saúde, a ministra começou a perder o apoio do próprio primeiro-ministro, que tem duas ambiciosas a seu lado. Fartou-se de sentir sabotagem por todo o lado. Até o Presidente da República se meteu onde não era chamado e tomou posição contra a tutela da ministra. Marcelo Rebelo de Sousa fala demais, todos sabemos, mas há momentos em que deve mesmo estar caladinho. E é com o país cheio de problemas, com uma ministra de uma das áreas mais importantes demitida, que vimos o primeiro-ministro acabado de sair da praia onde gozou umas boas férias e meter-se no avião para Moçambique. Os problemas são para mais tarde. Ouviu-se António Costa dizer que esta semana iria anunciar medidas que favoreçam o povinho. E o Presidente Marcelo, deve querer bater o recorde de viagens efectuadas por Mário Soares e aí foi ele, mais uma vez, para o Brasil. Por coincidência, onde tem familiares, especialmente os netinhos queridos. Já não há pachorra p’ra isto! O país está com uma inflação galopante. Os preços dos combustíveis não descem e os camionistas já reuniram para decidir se realizam uma greve nacional, ou não. É anunciado que o preço das rendas de casas, a electricidade e o gás, pedras basilares para a vida de qualquer cidadão, especialmente os mais pobres, vão aumentar assustadoramente em Outubro. Há pessoas que já não comem peixe nem carne. Isto é inadmissível quando um Governo opta para adquirir uma frota de veículos eléctricos estando provado que ficam muito mais dispendiosos que os carros a combustão. O que vale ao mundo e a Portugal é que ao fim de 60 anos as petrolíferas foram derrotadas e os grandes fabricantes de automóveis, comboios, navios e aviões já se decidiram pelo hidrogénio, a única energia do futuro. O que é certo é que uma ministra de quem o povo gostava vai-se embora, com os médicos e enfermeiros sempre a protestar por mais dinheiro, os bombeiros queixam-se, os agentes policiais dizem não aguentar mais a falta de condições de trabalho, os pescadores dizem que o trabalho já não compensa, os hoteleiros choram por falta de pessoal que queira servir à mesa ou limpar um quarto de hotel. Mas, o que vale é que o Algarve esteve a abarrotar em Agosto e os hotéis esgotados. Foi ainda na semana passada que ficámos perplexos ao ouvir um governante espanhol a anunciar que o comboio entre Madrid e Lisboa estará pronto no próximo ano. Falava de TGV? Mas o ministro português das Infraestruturas, depois daquela gafe dos dois aeroportos só de uma vez sem dar cavaco ao chefe do Executivo nem aos colegas, já tem medo de anunciar seja o que for? Pelo anúncio do governo espanhol, Portugal vai ter TGV e nós não sabemos de nada e tem de ser uma linha ferroviária completamente diferente porque a bitola espanhola é de uma medida desigual à portuguesa. Enfim, ficamos tristes por assistir a este “circo” onde só existem palhaços tristes, quando a função do palhaço é deixar todos alegres…
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesCortes salariais Uma empresa envolvida num conflito laboral apresentou recurso no Tribunal de Segunda Instância de Macau e o caso foi ouvido a semana passada. Estavam em análise as alterações das condições de trabalho de três trabalhadores, cortes e atrasos no pagamento de salários e de horas extraordinárias entre Fevereiro e Julho de 2020, situação que se ficou a dever ao impacto da pandemia na empresa. A empresa recorreu ao Tribunal de Segunda Instância depois de ter perdido a causa no Tribunal Judicial de Base. A empresa alega que a os problemas ocorridos se devem a motivos de força maior. Depois de rever os argumentos jurídicos e as informações relevantes de ambas as partes, o Tribunal de Segunda Instância manteve a decisão original e a empresa perdeu o caso. As razões legais do Tribunal de Segunda Instância são muito claras. Neste caso, a questão principal é a redução salarial. De acordo com o Artigo 59, parágrafo 5, da Lei das Relações de Trabalho de Macau, o salário de um trabalhador só pode ser reduzido mediante um acordo escrito entre o empregador e o empregado. Ao mesmo tempo, o empregador tem de notificar a Direcção de Serviços para os Assuntos Laborais no prazo máximo de dez dias após assinatura do documento e, só nessa altura, a redução de salário pode entrar em vigor. O Artigo 92.º estipula que a Direcção de Serviços para os Assuntos Laborais tem o poder de monitorizar a implementação da Lei das Relações de Trabalho. A activação de um novo contrato de trabalho está sujeita à supervisão da Direcção de Serviços para os Assuntos Laborais. Os noticiários não explicavam porque o tribunal não aceitou a rescisão do contrato com base em motivos de força maior, mas não é difícil de perceber. Força maior é um evento natural ou humano que, embora possa ser previsível, é totalmente inevitável. Trata-se de uma possível causa excludente da responsabilidade civil. Exemplos típicos são desastres naturais e desastres causados pelo homem. No referido caso, se a força maior tivesse sido considerada, o contrato de trabalho entre o empregador e o trabalhador teria sido rescindido. No entanto, agora que o contrato de trabalho se mantem activo, os trabalhadores reclamam o salário e o pagamento de horas extraordinárias entre Fevereiro e Julho de 2020. A epidemia afecta o negócio das empresas, não os contratos de trabalho. Não se trata, portanto, de um caso de força maior. A celebração de um contrato de trabalho em Macau deve estar em conformidade com as disposições da Lei das Relações de Trabalho. Um contrato de trabalho com prazo limite deve ser celebrado por escrito e deve conter as identidades tanto do empregador como do trabalhador, endereços, termos, posição do trabalhador, salário, horas de trabalho, assinaturas de ambas as partes, etc. Cada parte deve ter uma cópia comprovativa. Além disso, o Artigo 63 estipula ainda que o salário deve ser pago na moeda de Macau. Salvo acordo em contrário, o local de pagamento do salário terá de ser Macau. As condições previstas no contrato de trabalho resultam da negociação entre o empregador e o empregado. Todos os contratos de trabalho têm de obedecer às disposições do Artigo 14. As regalias do trabalhador não podem ser inferiores às que estão estipuladas na Lei das Relações de Trabalho, caso contrário, as condições serão consideradas inexistentes e substituídas pelas disposições pertinentes da Lei das Relações de Trabalho. Por exemplo, esta lei estipula que todas as trabalhadoras têm direito a 70 dias de licença de maternidade. Se, por exemplo, num contrato de trabalho constar que a trabalhadora só tem direito a 60 dias de licença de maternidade, à luz das disposições do artigo 14, como esta regalia é inferior à estipulada pela Lei do Trabalho, será anulada e substituída pela licença legal de 70 dias. Pelo contrário, se o contrato de trabalho estipular 90 dias de licença de maternidade, como a regalia dada pelo acordo é superior aos requisitos da Lei das Relações de Trabalho, e que resulta da negociação entre o empregador e o trabalhador, esta disposição é válida e ambas as partes devem respeitá-la. O recurso apresentado no Tribunal de Segunda Instância não é novidade em Macau. No passado mês de Junho, os trabalhadores dos casinos sofreram reduções salariais. Nessa altura, foi salientado que a redução salarial exigia um acordo escrito entre o empregador e o trabalhador. Mais tarde, soube-se que os casinos tinham substituído a diferença salarial por acções. Como acima mencionado, os salários dos trabalhadores devem ser pagos na moeda de Macau, ou seja, não devem receber em acções, mas sim em patacas. Claro que, no mundo empresarial, acontece vermos trabalhadores receberem acções, especialmente os trabalhadores mais antigos. E porque é que isto acontece? Os empregados mais antigos têm salários elevados. ganham muito mais do que os mais novos, o que é inevitável. Os salários no seu conjunto representam uma grande fatia das despesas da empresa. Se as despesas forem muito elevadas, os lucros baixam, e os dividendos que os accionistas recebem também baixam. Portanto, os salários elevados dos trabalhadores mais antigos entram em conflito com os dividendos que os accionistas recebem. Para equilibrar os vários interesses, muitas empresas fazem dos trabalhadores mais antigos accionistas, de modo que quando tomam decisões, tenham em consideração não só os interesses da empresa, mas também os interesses dos accionistas. Esta estratégia beneficia a empresa, os empregados e os accionistas. Temos de compreender que a oferta de acções aos colaboradores mais velhos é um método de gestão. as acções não são substitutos dos salários. Para maximizar os interesses dos acionistas, os colaboradores mais antigos têm de receber salários mais baixos. Em algumas empresas de Hong Kong, os directores recebem 5.000 dólares de Hong Kong por ano, mas possuem uma grande quantidade de acções das empresas. Os directores nunca cortam salários quando há recessão económica. Quem dita a lei são os accionistas. Em tempo de recessão económica, estejamos onde estivermos, haverá sempre conflitos laborais. A lei das Relações de Trabalho só pode regular as situações de cortes salariais, mas não as pode reduzir. Esta situação só pode melhorar aos poucos depois da economia recuperar. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Hoje Macau VozesVI – Planeamento Geral do Trânsito e Transportes Terrestres de Macau Da Grande Baía hídrica (continuação de dia 29 de Agosto) Por Mário Duarte Duque, arquitecto Comummente identificamos uma baía por uma configuração geográfica de uma frente hídrica em forma de crescente, tal como a lua quando tem essa configuração. São isso a Baía da Praia Grande em Macau, Wan Chai em Hong Kong, Copacabana e Leblom no Rio de Janeiro. Mas, mais rigorosamente, “baía” significa um golfo cuja entrada é mais estreita que o interior. Tanto que assim é que, em linguagem informática, baía é um interface físico que permite ligar discos rígidos ou outro tipo de suporte de armazenamento de dados. Efectivamente, por detrás da frente do Rio das Pérolas existe um grande repositório de recursos mais interiores, que é muito maior do que a sua exposição ou ligação para o exterior. Isso faz efectivamente faz deste delta uma “Grande Baía”, justifica uma estratégia de marketing geopolítico exactamente com essa designação, e que também tem uma morfologia hídrica, mas numa configuração a que chamamos delta. A identificação de um delta pressupõe um conjunto de dados que se prendem com a ecologia das águas salobras (as águas que são mais salgadas que os rios, mas menos salgadas que o mar), o transporte de sedimentos e a fixação de nutrientes (que se fixaram ao longo dos tempos nos terrenos de inundação), os modos da hidrologia (que conjuga a invasão das marés e as descargas dos degelos das montanhas), assim como as actividades económicas que disso resultaram, e que só aí se fixaram no tempo em que a hidrologia estacionou (há 6 mil anos atrás), i.e. quando o planeta atingiu último máximo térmico, pois até essa ocasião não era possível habitar o litoral. É este o “meio”, i.e. o que envolve, e que compreende o conjunto das condições biológicas, físicas e químicas, nas quais os serem vivos se desenvolvem, mas também o conjunto das circunstâncias culturais, económicas, morais e sociais que os humanos desenvolveram e nas quais interagem, enquanto seres sociais. A questão geográfica mais característica é pois que esta é efectivamente uma baía hídrica, configurada num delta, onde as suas artérias são efectivamente água, e onde a sua abertura para o exterior são necessariamente as cidades costeiras. Historicamente foi essa a função primeiro de Macau, depois de Hong Kong, tendo como mais directo interior toda a província de Guangdong. O potencial de Macau de interface marítimo com o exterior foi há muito ultrapassado por Hong Kong por via da capacidade no transporte de carga e na navegabilidade de navios, com calados cada vez maiores, em águas que em Macau são pouco profundas. Mas manteve-se algum transporte regional fluvial que se processa principalmente por barcaças. Importa também lembrar que na história das acessibilidade, onde as rotas hídricas eram possíveis e de interesse, essas sempre foram ligações mais precoces que as ligações terrestres, pelo simples motivo que precisavam de um veículo, mas não precisavam da construção de vias. Mas também rotas que foram abandonadas logo que as vias terrestres passaram a existir, e o transporte passou a ser motorizado e mais veloz ao longo das vias terrestres. A esse modelo Macau não é excepção, pois as ligações de passageiros entre a península e as ilhas sempre se processaram por via fluvial, até à construção da Ponte Nobre de Carvalho. A ponte tornou as ilhas permanentemente acessíveis, enquanto as ligações fluviais dependiam de horários que se tinham de ajustar à hora da maré, exactamente por as águas serem pouco profundas. Presentemente as condições são diferentes. Os canais estão mais estreitos por causa da urbanização em aterros e, se temos a consequência de já não existirem terrenos para acomodar a inundação da maré, que passou a fustigar as orlas urbanas mais baixas, também temos a vantagem de que o caudal da maré é mais veloz, os fundos são mais bem lavados, menos sujeitos à acumulação de sedimentos, menos dependentes de dragagens para navegação fluvial, logo, mais navegáveis. Em verdade as alterações ambientais não são desejáveis, pois nem todas as implicações são conhecidas ou previsíveis. Todavia, quando acontecem, recorrentemente algumas situações são afectadas, mas outras surgem em sentido de oportunidade. Ou seja, perante o argumento de novas ligações de serviços públicos de transportes não poderem ser criadas por saturação, aquelas ligações que poderiam ser feitas, ou acrescentadas por via fluvial, aliviaria certamente essa saturação. Escrutinada a consulta para o Planeamento Geral do Trânsito e Transportes Terrestres de Macau, a possibilidade de haver ligações de transportes públicos fluviais não foi considerada. Apenas foi considerado que isso venha a acontecer em capítulo de integração no transito regional, mas com especificação apenas para Hengqin, exactamente e apenas em sentido de aliviar a pressão do trânsito da via terrestre. Todavia, em capítulo de integração de transito regional fluvial afigura-se poder ser muito mais que apenas a ligação a Hengqin, e sequer apenas para alívio do transporte terrestre. A nível de transito regional há toda uma Grande Baía infra-estruturada por artérias fluviais que podem servir para utilidades de natureza própria, e que sequer são possíveis em terra. Se em capítulo que integração e cooperação regional as cidades do delta passassem a ser equipadas com ancoradouros standard, que servem para atracar barcaças igualmente standard e com propulsão própria, seria plataforma para veículos de diversos tipos de intercâmbio regional, a que se poderiam chamar Urban Apps. Algo que a RAEM poderia iniciar e fazer disso sua vocação e contribuição para cooperação e intercâmbio regional. Só a título de exemplo, os Serviços de Turismo da RAEM, em vez construírem recorrentemente e propositadamente um stand, cada vez que levam as suas promoções a essas cidades, poderia ter o mesmo stand transportado a qualquer dessas cidades pelas artérias do delta. O mesmo poderiam trazer as outras cidades a Macau, fossem promoções culturais ou comerciais, pequenas feiras de produtos, senão mesmo acções de formação, em barcaças que atracariam em ancoradouros numa zona de fácil acesso ao público, equipados com ligações para serviços de saneamento e de abastecimento de água e energia, a que se ligariam de modo igual quando ancorassem nas outras cidades. O local em Macau mais vocacionado para esse tipo de ancoradouro é a Ponte-Cais 16 (por razões e características que recorrentemente venho lembrando), mesmo que aí o ancoradouro tivesse que existir mais ao largo e acessível por nova ponte entre as construções que aí entretanto já existem. Como se fosse o prolongamento de mar que o empreendimento que aí foi construído retirou. O desenho urbano da RAEM vem se pautando por periferias rodoviárias em detrimento da continuidade do meio urbano à frente marítima. A mesma aptidão urbana que se reconhece ao Porto Interior e que se revela hoje obsoleta e degradada, nunca foi aí aperfeiçoada ou actualizada, nem foi replicada em outros locais por iniciativa e comando públicos, apenas em estratégia privada, a Doca dos Pescadores. São modalidades de ocupação urbana que resultam de uma génese localmente característica e com significado, com atributos que resultam de uma configuração geográfica, e que não são apenas do interesse das actividades que motivaram essa génese urbana no passado.
Carlos Morais José Editorial Manchete Vozes21 anos é demasiado tempo 21 anos é a idade em que a nossa sociedade atribui total maioridade. Os 18 anos são uma espécie de ensaio, um primeiro ritual de independência, uma festa que celebra um tiro de partida cuja meta se encontra ali três anos à frente, um período que deveria ser de intensa preparação cognitivo-emocional. Porque é aos 21 que a sociedade espera realmente de todos outra postura e, sobretudo, a capacidade de olhar para a frente e enfrentar o destino, deixando-se espezinhar ou pegando-o pelos cornos. Os 21 anos são excitantes porque cada sujeito se aventura como se o mundo fosse novo, quando na realidade é ele que se vê na contingência de mudar, para ao mundo se ajustar ou o enfrentar, com plena responsabilidade pela sua sobrevivência e pelas suas acções. Os 21 anos são, para muitos, tempo de embarcar, de erguer as velas sem esperar por vento, de operar uma desterritorialização fundamental. Assim não é com os jornais, que têm uma vida muito mais acelerada, cujo coração bate a uma velocidade infinitamente superior ao de um ser humano, cujos rins filtram muito mais dejectos e gorduras, cujo fígado se vê obrigado a inúmeras horas extras e cujo estômago rapidamente se danifica. Um jornal envelhece quase à velocidade da luz. Se remexesse no baú da memória poder-vos-ia contar dezenas de episódios que confirmariam a desmesurada intensidade dessa vida de um jornal, que ilustrariam como os primeiros cinco anos pesam como 20; e como aos 10 surgem já as primeiras brancas; e aos 15 a primeira falta de fôlego para uma subida agora demasiado íngreme. O que dizer dos 21, que hoje comemoramos? Não sei se sobre o nosso cabeçalho, o cabelo rareia ou encaneceu, mas dou pelo cuidado e pelas maneiras de um ancião. Que se precavê de escorregar no banho, caminha lento pela rua e hesita antes de atravessar, mesmo que no horizonte não vislumbre um único automóvel, carrinha ou camião. Por outro lado, além de manter a espinha relativamente direita, também organizou melhor o seu tempo (agora, por vezes, tem tempo de olhar demoradamente o poente ou uma flor), diversificou as suas preocupações e alcançou altíssimas classificações no curso de nadador-salvador. Também adquiriu uma extensa paciência e uma sincera benevolência perante as idiossincrasias do género humano. Numa palavra, envelheceu. Talvez precocemente, como acontece à maioria dos jornais. Um dos sintomas da nossa provecta idade é a dificuldade que temos em lidar com as novas tecnologias. A esta hora, deviam estar a ver as minhas fuças num vídeo, a recitar-vos este texto, com um cenário de capas sucessivas deste jornal ao longo dos 21 anos que hoje faz. Devíamos tanta coisa: como ter uma presença mais contemporânea nas redes sociais, acordos com jornais lusófonos, entrevistas em vídeo, concursos vários, etc. E também mais jornalistas, mais funcionários, sobretudo bilingues, e devíamos também ter um acordo com Timor-Leste para formar jornalistas através de estágios e…; no entanto, devido a esta interminável crise pandémica (cujo fim não se vislumbra, o que nos deixa a todos angustiados, e pela qual ninguém é responsável), estamos preocupados em saber se sobreviveremos até ao fim do ano ou se definharemos até o Hoje Macau se apresentar aos seus leitores esquálido, ossos à mostra, os dentes estragados. Ainda assim vivo. * Durante estes 21 anos procurámos informar mas fomos também um espaço de criatividade, em que alguns relevantes escritores contemporâneos da lusofonia usaram as páginas do Hoje Macau para expressar as suas ideias, o seu estilo, a sua sensibilidade, através da escrita. Sem baias, sem freios, nem restrições. Estamos-lhes sinceramente agradecidos. Foi uma bonita festa, inopinada, é certo, mas por isso mesmo mais interessante. Celebrámos poetas e pensadores, motivámos artistas e, sobretudo, foram desenhadas pontes entre pessoas afastadas, várias epistolografias (hoje através de emails), amizades, famílias até, tudo isto tendo Macau como inesperado pólo agregador da lusofonia. Chamámos a essas páginas “h”, a mais diacrítica das letras, quase observadora, de limitada interferência na palavra. Nelas também divulgámos, a par com as crónicas, poemas ou outros textos dos nossos colaboradores, muitos aspectos da cultura chinesa, cuja representação em língua portuguesa continua a ser confrangedoramente pobre. Aos poucos, fomos promovendo e publicando as traduções de algumas das mais importantes obras do pensamento chinês, bem como alguma da melhor poesia que ressoou pelo País do Meio, bem como artigos sobre mitologia, história, pintura, antropologia, etc. Humildemente, sem meios nem rasgos, o Hoje Macau procurou sempre transmitir, na medida das suas possibilidades, conhecimento e informação sobre cultura chinesa em língua portuguesa, no sentido de proporcionar um melhor entendimento à comunidade portuguesa de Macau da civilização onde está inserida e contribuir, modestamente, para ir colocando uns tijolos no incongruente e rarefeito muro da sinologia portuguesa. Ao longo destes 21 anos, granjeámos assim um importante espólio de traduções que temos vindo a publicar em livros, através da editora Livros do Meio. O mesmo espólio tem-nos permitido organizar a Semana da Cultura Chinesa do Hoje Macau, que vai na sua segunda edição, e que tem obtido uma resposta positiva junto do público lusófono, não apenas em Macau, e que tem contado com a presença de personalidades locais, capazes e eficazes na construção de pontes entre civilizações e culturas. Agora pretendemos aprofundar esta nossa via de aproximação à cultura chinesa e, em breve, apresentaremos novas abordagens e novos projectos. * Como acima foi dito, 21 anos para um jornal é muito tempo. Por isso, numa sociedade acelerada como a nossa, vimos muito mudar, demos por muito acontecer, assistimos a crises, à luz no fundo do túnel, e também à saída para uma outra e melhor realidade. É também por isso que neste momento de indisfarçável crise, deveria ser altura para manter a calma, respirar fundo, não bater com a cabeça na parede e não tomar decisões precipitadas. E ter a consciência de que se sai de uma crise mais forte e não mais fraco, mais experimentado e não mais ignorante, mais apto e não mais frágil. Pelo menos, os que a ela sobreviverem, em termos físicos e mentais. A actual situação, a sua excessiva duração, empurrou Macau para um dos seus piores momentos dos últimos 50 anos, não se comparando com outros períodos de crise que afectaram a região, pois nunca como agora se viram tantos negócios fechados, tantos desempregados, tantas famílias em debandada e, sobretudo, tanta falta de esperança. É precisamente esperança que o Governo de Macau não tem dado em doses suficientes à população. A esperança de ver terminada esta crise, a preparação e descrição do momento seguinte, faltam na mente colectiva de Macau, independentemente da etnia que se considerar. Isto talvez seja tão ou mais importante do que dar dinheiro ou fazer conferências de imprensa assustadoras. Porque a verdade é que subiram em flecha o número de suicídios, violência doméstica e abuso infantil. O que significa isto senão que nos estamos a tornar numa sociedade verdadeiramente doente? Quando a esperança se dilui, emergem os instintos mais básicos e o mal campeia pela cidade. Ou seja, esta situação tem de encontrar brevemente uma saída, sob pena de quando sairmos deste buraco será para uma cidade irreconhecível. Em momentos como este, é preciso liderança, ideias para o futuro, capacidade as comunicar, para que a esperança não seja a primeira morrer. E foi assim, aos 21 anos, que esta crise nos colheu, que esta besta nos despojou, que este vírus arruinou muitos indivíduos, muita família. Nós, para o ano, cá estaremos, celebrando os 22 (que simpático número!). E esperamos que os nossos leitores nos acompanhem, estejam onde estiverem, para sempre ficarem a par das notícias de Macau e connosco mergulharem, nadarem e se deixarem levar pelas correntes dos mares, antigos e contemporâneos, da cultura chinesa. Nós somos um parafuso num pilar dessa ponte que começou a ser construída há cinco séculos e que vai permitindo a comunicação entre a China e a Lusofonia. Sabemos ser este o nosso lugar de excelência e, como diria Mestre Confúcio, é nele que pretendemos permanecer.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesSegurança Nacional Se um país for seguro, as pessoas estão a salvo do perigo. Pela mesma lógica, se as pessoas estiver a salvo do perigo, o país em que vivem é seguro. A RAE de Macau iniciou recentemente uma consulta pública, com a duração de 45 dias, sobre a revisão da Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado. Na Introdução dos documentos de consulta da revisão da Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado, pode ler-se “O mundo de hoje enfrenta uma grande mudança, sem paralelo nos últimos cem anos…. Assim, o alcance e a extensão da segurança do Estado tornam-se mais complexos do que nunca e a tarefa da defesa do Estado mais exigente e difícil (…), o Estado, a 1 de Julho de 2015, pôs em prática a nova Lei de Segurança do Estado da República Popular da China, concretizando o “conceito geral de segurança nacional” proposto pelo Presidente Xi Jinping. A 30 de Junho de 2020, a publicação e entrada em vigor da Lei relativa à defesa da segurança do Estado para a Região Administrativa Especial de Hong Kong da RPC… não só aperfeiçoou e desenvolveu o sistema do regime de “Um país, dois sistemas” e complementou e fortificou o sistema dos 42 regimes de segurança do Estado, como também trouxe uma orientação importante para o aperfeiçoamento da legislação relativa à segurança do Estado na RAEM”. A necessidade de legislar para defender a segurança nacional é indiscutível. O que está em causa são os conteúdos da lei. Por exemplo, na Província chinesa de Guangdong existe uma região chamada Taishan (Toi San em cantonês), e em Macau temos a zona de Tamagnini Barbosa (Toi San em cantonês). No Distrito de Xiangzhou, pertencente à cidade de Zhuhai, situado na Província de Guangdong encontra-se a Rua Wanzai (Wanchai em cantonês), e em Hong Kong existe o Distrito de Wanchai. Diferentes zonas/distritos têm o mesmo nome, mas, apesar disso, têm as suas características únicas e, naturalmente, as suas próprias leis e regulamentos, necessariamente diferentes entre si. Assim, para garantir a segurança de Macau, não há necessidade de colocar uma esquadra de porta-aviões às portas da cidade. Após o início da consulta pública sobre a revisão da Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado, todos os órgãos de comunicação social e convidados presentes na sessão de consulta pública para sectores específicos expressaram o seu apoio e acordo com a revisão da Lei. No actual cenário da Assembleia Legislativa, será apenas uma questão de tempo até que os artigos da Lei revistos venham a ser aprovados. As associações que em tempos existiram, e que tinham pontos de vistas diferentes do Governo da RAEM, desapareceram todas após a “Desqualificação” dos candidatos à Assembleia Legislativa, nas eleições de Julho 2021. Os que quiseram criar uma nova associação, viram os seus esforços gorados por uma série de razões. Confio no papel que Macau tem tido na defesa da segurança nacional, com base no desempenho do seu Governo, após a Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado ter entrado em vigor em 2009. Mas actualmente o que é mais preocupante é o aumento da taxa de desemprego dos residentes, calculada nos 5.4 %. Além disso, no 2º trimestre de 2022, o Produto Interno Bruto (PIB) registou uma descida anual de 39,3 %, em termos reais, devido principalmente ao novo surto pandémico. Nas “Opiniões sobre a avaliação do impacto da situação actual do sector do jogo na segurança de Macau na primeira metade do ano 2022”, recentemente publicadas, pode ler-se “Actualmente, em Macau e nas regiões vizinhas, ainda não se verificou a recuperação das condições económicas anteriores ao impacto da epidemia do novo tipo de coronavírus, trazendo grande pressão a todos os sectores da sociedade, incluindo a indústria do jogo e o turismo em Macau, prevendo-se que será difícil ocorrer uma diminuição acentuada da taxa geral de desemprego, no curto prazo. Embora não haja grave perigo oculto para a segurança da sociedade, não se pode descartar que a situação económica possa gerar mais factores de instabilidade. O Governo e a sociedade precisam manter um alto grau de vigilância”. A Revisão da Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado é necessária e constitui um projecto legislativo, no entanto, a manutenção da estabilidade económica de Macau e do estilo de vida dos seus habitantes é crucial e requer um importante esforço político, porque os revezes económicos e as dificuldades por que as pessoas têm de passar são das principais ameaças à segurança nacional. O mundo em que vivemos está a passar por mudanças sem precedentes. Seis meses após o início da guerra Russo-Ucraniana, toda a Europa está a ser afectada, enquanto a China e os Estados Unidos estão em tensão por causa de Taiwan, o que agravou a crise na região. Os factores que põem em perigo a segurança nacional não passam de problemas internos e de conflitos externos. Desde a fundação da República Popular da China, o país passou por muitas crises. Segundo o livro “Uma História Concisa da República Popular da China (1949-2019)”, internamente “o conflito civil, que durou dez anos, provocado pela Revolução Cultural foi o maior grande revés para o Partido Comunista, para o país e para o povo desde a fundação da República Popular da China.” No âmbito internacional, a China esteve envolvida na Guerra da Coreia (1950-1953), no conflito fronteiriço Sino-Indiano em 1962, no conflito fronteiriço Sino-Soviético (Ilha de Damansky 1969), na Guerra Sino-Vietnamita (1979), e nos recentes conflitos fronteiriços Sino-Indianos, bem como na Confrontação Militar Sino-Americana no Mar do Sul da China. A defesa da segurança nacional é da responsabilidade de todos, e compreender o cerne de um problema é a chave para a que a sua manutenção possa ser bem-sucedida.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesAdvogados em greve O aumento da inflação no Reino Unido deu origem a várias greves de trabalhadores ferroviários e de estivadores. Nas universidades a realização da greve também vai ser votada. Os trabalhadores exigem salários mais elevados, menos carga horária e que não venha a haver cortes nas pensões. Os trabalhadores das universidades pedem aumentos salariais para combater a inflação. Com a inflação acima dos 10%, não é de admirar que diferentes sectores do Reino Unido peçam aumentos de salários. Os advogados britânicos não são excepção, e também exigem o aumento de rendimentos. Os advogados criminais de Inglaterra e do País de Gales estão prestes a entrar em greve porque os seus rendimentos tiveram um corte de cerca de 30% desde 2006. A British Criminal Bar Association (Ordem de Advogados Criminais) exige um aumento de 25% na taxa legal dos processos de apoio judiciário, mas o Governo do Reino Unido só está disposto a ir até aos 15%. A diminuição dos rendimentos fez com que muitos advogados abandonassem a profissão. Afectados pela epidemia, os tribunais britânicos têm um atraso de cerca de 6.000 processos. Depois da greve o atraso tornou-se ainda mais grave. À luz do sistema jurídico britânico, os advogados dividem-se em solicitadores e advogados de barra. Hierarquicamente superiores aos advogados de barra, estão os Queen’s Counsel (Conselheiros da Rainha). Ascender à posição de Queen’s Counsel implica que o seu titular teve um desempenho excepcional e também que os seus honorários são superiores aos dos advogados comuns. Há muitas diferenças entre um advogado de barra e um solicitador. A mais importante tem a ver com a forma como ambos se podem associar entre si. Um solicitador pode abrir um escritório de advogados em parceria com outros solicitadores, enquanto que um advogado de barra trabalha de forma independente, actuando apenas em tribunal em representação dos seus clientes. O estatuto de trabalhadores independentes não só impede os advogados de barra de se associarem entre si, mas também, à partida, os impede de se envolverem em qualquer tipo negócio ou de actividade suplementar. Para puderem exercer outro tipo de actividade os advogados de barra têm de apresentar um pedido à Ordem o qual terá de ser deferido. Certa vez, em Hong Kong, um advogado de barra estava a exercer como professor e esqueceu-se de apresentar o pedido à Ordem, pelo que foi punido. A actividade do advogado de barra restringe-se ao tribunal. A independência do advogado de barra é uma garantia de imparcialidade. Pode representar os clientes em tribunal sem medo de comprometimentos e pode ajudar o juiz a estabelecer a verdade dos factos à face da lei. É um exemplo concreto na manutenção do estado de direito no Reino Unido. Na prática, o advogado de barra aceita a taxa de retenção do solicitador, que representa directamente os clientes. A taxa de retenção do solicitador representa um dos rendimentos do advogado de barra. Além disso, o Governo britânico subcontrata alguns processos criminais e permite que solicitadores e advogados de barra possam actuar como procuradores públicos para levar a julgamento os réus em nome do Governo. O estatuto independente do advogado de barra implica que a principal fonte dos rendimentos provem dos procedimentos jurídicos. Como já foi mencionado, o rendimento dos advogados de barra caiu em 30% desde 2006, e com a recente pressão da inflação, não admira que também tenham entrado em greve. A greve dos advogados irá definitivamente afectar os processos criminais e os casos de apoio judiciário subcontratados pelo Governo. Para os réus que estão a responder em casos criminais, o adiamento do julgamento pode vir dar origem a situações de injustiça, sobretudo nos casos em que o réu se encontra em prisão preventiva. Uma vez que o Governo não pode marcar uma data para o julgamento, o réu pode pedir a anulação do julgamento. Se isso acontecer, não será feita justiça às vítimas do crime. Para além do impacto no funcionamento do Governo e no sistema judicial, a diminuição dos rendimentos dos advogados também teve impacto nos próprios. A diminuição dos rendimentos obriga os advogados a renunciarem ao trabalho jurídico e a exercerem outras profissões mais bem pagas. Aqueles que desejam tornar-se advogados estão relutantes em fazê-lo, o que reduzirá o número destes profissionais e afectará a qualidade dos serviços jurídicos, pelo que os cidadãos britânicos também virão a ser prejudicados. A greve atingiu vários sectores e a advocacia foi um deles. Se o Governo britânico só estabelecer compromissos com alguns sectores, ao invés de estabelecer compromissos com todos, a situação vai piorar e a solução será cada vez mais difícil de encontrar. Seja como for, é certo que o Governo britânico não quer uma greve dos advogados que afecte o sistema judicial de que o Reino Unido tanto se orgulhava. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Hoje Macau Ai Portugal VozesCentro cultural é na Feira do Livro Em Lisboa e no Porto regressou a feira. Chamam-lhe a Feira do Livro. O livro é um património universal que merecia mais respeito. Em Lisboa estão patentes na 92ª edição, mais uma vez no Parque Eduardo VII, 340 pavilhões distribuídos por 140 participantes. Nunca fui simpatizante de feiras porque cheiram-me a sobras. No entanto, nestas feiras do livro no Porto e em Lisboa, lá estão algumas obras novas de autores conhecidos e desconhecidos, os editores, os livreiros e algumas palhaçadas para distrair as criancinhas. As pessoas correm para a feira como se fossem comprar churros ou lâmpadas. Na maior parte dos casos os livros que são vendidos ou oferecidos, mesmo com o autógrafo do autor, não são lidos. Há gente que anda com o livro que comprou na mão para o trabalho, para o café, para o barbeiro ou para a pedicura. É gente que pensa ser intelectual tendo um livro. Alguns autores aparecem na feira, autografam as suas obras e até tiram uma selfie com o comprador. Os editores pensam que a feira do livro é a salvação económica do ano. Não creio que assim seja, porque na volta que dei pela feira vi muitas sobras e a propósito permitam que vos saliente o que escreveu António Guerreiro numa das suas crónicas: “Quem visite a actual Feira do Livro e não sinta repulsa pelo populismo editorial dominante, ou tem um enorme poder de atravessar, imune, uma paisagem de destroços, ou perdeu a capacidade de reconhecer a violência que sobre ele é exercida. Aquele é um pasmado e gritante espaço onde os livros são atirados a uma simpática e contente fossa. E, depois de tanta farra, tanto barulho e tanta luz, todo esse espectáculo que parece ter-se tornado necessário para que um livro nos chegue às mãos, a sensação que dá, quando chega a hora de ler, é que se tornou já escuro demais”. Os interessados por livros visitam a feira e a escolha é variada: ficção, romance, poesia, biografia, infantil e uma vasta gama de obras literárias onde, por vezes, os autores não estudaram literatura, mas a vontade de serem famosos fala mais alto. Nas descrições que por estes dias vão aparecendo na imprensa, não parece gerar qualquer desconcerto este regime de enfartamento que a cada ano nos é tão pomposamente servido. E isto talvez se deva à eficácia desse efeito de colonização que a cultura popular gerou, neutralizando todos os antagonismos a essa nova mitologia que, segundo a escritora Dubravka Ugrešić, ajuda os consumidores a digerir a indigesta realidade, e, deste modo, a fazerem as pazes com ela. É isto o que faz de qualquer denúncia do azucrinante ambiente de festa que tomou conta do comércio dos livros algo que é encarado como uma mera afectação de gente snob. Não consigo compreender estas feiras de livros quando me habituei a investigar as mais diferentes matérias onde estão os mais diversos livros que nos fornecem o conhecimento: as bibliotecas. Ou quando posso financeiramente adquirir um livro e me dirijo aos locais onde os livros novos e velhos me dão qualquer preferência de leitura: as livrarias. Na feira de Lisboa vi autores angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos mas, sabendo que Macau tem excelentes autores de literatura como Carlos Morais José ou de poesia como a obra do saudoso António Correia, não consigo compreender por que razão não existe um expositor exclusivamente dedicado aos muitos autores que escreveram a história de 500 anos de Macau e romances apelativos como os de Henrique Senna Fernandes. Já esqueceram Macau? Talvez, porque nem fazem ideia que naquela região hoje administrada por chineses vivem artistas e literatos de alto nível cultural. Resta dizer-vos que nesta edição de 2022 fiz uma escolha. Não procurei os nomes sonantes. Como eu, muita gente deste povo que passa dificuldades vivenciais, levaram para casa algumas obras de cujo preço era o mais barato. Uma feira do livro pode ser considerada por uns dias o nosso centro cultural, já que em Portugal os vários ministros da Cultura nunca souberam edificar um Centro Cultural que não fosse uma feira…
Hoje Macau VozesV – Planeamento Geral do Trânsito e Transportes Terrestres de Macau V – Do reaproveitamento de infra-estruturas de transporte (continuação de dia 22 de Agosto) A palavra infra-estrutura significa algo que é materializado pela sua construção ou organização (uma estrutura), mas que possibilita ou integra funcionalidades essenciais em que uma população se suporta. O reaproveitamento de infra-estruturas poderá ter em vista o prolongamento da sua vida económica no sentido da efectiva utilidade, que poderá ser tanto a original, como outra emergente, todavia diferente, que possa tirar partido da estrutura entretanto tornada obsoleta. As situações mais recorrentes associadas a reaproveitamento de infra-estruturas de transportes são as ferroviárias com exemplos que cobrem todo um leque situações, possibilidades e soluções. No caso de Berlim várias estações desactivadas reentraram em funcionamento com a unificação da cidade. No caso de Viena, a linha de cintura, a parte que não fora reconstruída no pós-Segunda Guerra Mundial, e cujas estações foram desenhadas por Otto Wagner no período da Arte Nova Vienense, tiveram a sua reactivação em 1989, já integradas no actual sistema de metro urbano. Já no caso de Roterdão, os viadutos urbanos que serviam linhas entretanto desactivadas, construídos na mesma tradição industrial de abóbadas de tijolo, passaram a ter esses vãos ocupados por serviços, principalmente de restauração, e os tabuleiros equipados com esplanadas e arranjos paisagísticos, já numa óbvia estratégia de embelezamento, complementados com outras ligações aéreas e dotando a cidade de uma circulação pedonal alternativa e elevada. Ou Roterdão não fosse uma cidade dos Países Baixos, mesmo estando dotada de uma forma urbana resiliente, e equipada com grandes bacias subterrâneas de retenção. Por sua vez uma infra-estrutura integra outras estruturas, a que já chamamos equipamentos. No caso de uma infra-estrutura ferroviária, os mais notórios são sem dúvida as estações a que, desde a génese da construção de estações ferroviárias, sempre se dedicou grande cuidado arquitectónico. Muitos desses edifícios encontram-se classificados, muitos serviram linhas entretanto extintas, e muitos passaram a ser insuficientes para servir exigências actuais de funcionamento. Foram por isso ampliados ou complementados com outras estruturas, ou passaram a albergar outras utilizações quando deixaram de servir para as finalidades iniciais. Sempre se dirá que distanciar ou desarticular um edifício da sua finalidade original, será lançar mão de um recurso necessário, mas constituirá sempre prejuízo para a sua integridade, mesmo tendo em vista a sua preservação, e presentes sólidos elementos de interpretação. Existe ainda uma nova tipologia de reaproveitamento de infra-estruturas associadas a operações imobiliárias de que possivelmente o caso mais exemplificativo seja Cheonggyecheon em Seoul. Trata-se de um arroio ou riacho urbano que atravessava a cidade e que na década de 1940 começou a ficar obstruído por grandes quantidades de lixo e efluentes de esgoto que aí eram despejados. As margens do arroio eram ocupadas por comércio de baixo escalão e as soluções para o local foram primeiro o encanamento do arroio e mais tarde a construção de uma viaduto rodoviário expresso. Nenhuma dessas medidas trouxe qualidade urbana e a mesma zona da cidade manteve-se até ao início do Século XXI expectante de melhor qualificação. A solução surgiu sob a égide do modelo do neoliberalismo económico em que o potencial económico dos terrenos em causa dependia da requalificação de uma infra-estrutura, ou seja, de um bem público, e que o mesmo potencial justificava o encargo dessa qualificação, ao ponto de a mesma poder ser custeada pela iniciativa privada. A iniciativa passou pela remoção do viaduto rodoviário e o arroio voltou a ser descoberto para ser ambientalmente qualificado. O curso do arroio passou a existir num canal, complementado por margens para trajectos pedonais, com grande detalhe paisagístico e numa óbvia estratégia de embelezamento. Da medida resultou um novo bairro próspero e elegante, marcado por um forte efeito de gentrificação. São estes elementos de escrutínio que caracterizam situações diversas de reaproveitamento de infra-estruturas urbanas, nomeadamente de transportes, que no cenário local servem o destino da Ponte Governador Nobre de Carvalho ou Ponte Macau-Taipa (em chinês: 澳氹大橋), para a qual não é descabido uma classificação de património cultural. Qualquer classificação nessa categoria pressupõe uma base de justificação onde se invoque a relevância do objecto de qualificação. Neste caso a Ponte Governador Nobre de Carvalho é atribuída ao Eng.º Edgar Cardoso, conhecido por estruturas notáveis que se pautaram por modelos de cálculo que não eram nem correntes, nem consentâneos. Foi planeada como uma ponte rodoviária que liga a Península de Macau à Ilha da Taipa, e função que ainda exerce, entretanto complementada pela Ponte da Amizade e a mais recente Ponte de Sai Van. O comprimento total da ponte é de cerca de 2 570 metros, teve o início da construção em Junho de 1970 e aberta à circulação em Outubro de 1974, sendo à época considerada a ponte contínua mais longa do mundo. O ponto mais elevado do tabuleiro atinge 35 m acima do nível do mar, permitindo a passagem de navios, mas não da Sagres que sempre acostou no Porto Exterior. Tem uma particularidade na sua utilização. Os passageiros num carro que se desloque a uma velocidade aproximada de 50Km/h consegue ver a paisagem através das guardas laterais que ficam transparentes, onde as barras verticais desaparecem por efeito estroboscópico. A interpretação do partido plástico da ponte está também associada à evocação de um dragão com a cabeça no Hotel Lisboa Macau, que já existia à data em que a ponte foi construída, e com a cauda na Ilha de Taipa Pequena onde mais tarde, em 1981, teve uma intervenção escultórica atribuída a Dorita de Castel-Branco, figurando pela encosta essa interpretação. A concepção de uma ponte pauta-se por elementos essenciais e precisos e assim deve permanecer depois de construída. Nisso, uma ponte é muito diferente dos edifícios que habitamos, onde nem tudo é absolutamente essencial, quer para a sua construção, quer após a sua construção, nem muitos dos elementos se obrigam a uma posição e fixação precisas. Na concepção de uma ponte importa a finalidade a que se destina, onde outras não previstas foram necessariamente excluídas do modelo de cálculo e do seu apetrechamento. Assim, sobre a ponte Governador Nobre de Carvalho, dúvidas não se colocam sobre o potencial para a sua classificação. Apenas não se vislumbra onde recai a necessidade do seu reaproveitamento. A ponte é uma ponte rodoviária, foi assim concebida, é assim que é utilizada, e que poderá continuar a ser utilizada do mesmo modo, enquanto existirem veículos motorizados com rodas de borracha. Teve a sua pressão aliviada com a construção das outras pontes, com que presentemente partilha o tráfego entre Macau e a Taipa, e sobreviveu à agressão do período que mediou a entrada em operação do Porto de Ka-Ho e a construção da ponte da Amizade, quando não existia alternativa para o transporte de cargas pesadas para Macau. Não ocorre outras necessidades prementes que a ponte possa melhor servir, prescindindo do seu contributo para a circulação rodoviária que está longe de ser obsoleto . Sendo certo que, se sobre o mesmo objecto deve recair uma classificação de património cultural, não será certamente em conjugação da modificação da sua utilização. Sequer o reaproveitamento pedonal de um trajecto obrigatório ao longo de 2 570 metros, sem possibilidade de dele desistir a meio, se afigura uma finalidade premente. Ou mesmo uma estratégia integrada, com utilização de lazer ou de embelezamento paisagístico se afigura pacífico numa ponte cuja concepção se pautou por elementos essenciais e precisos, onde abastecimentos e saneamentos não foram previstos, as rajadas de vento registam-se aí as mais fortes, e outras fixações que aí se fizessem gerariam impulsos não previstos na estrutura. Também não ocorre que outros aproveitamentos venham aí gerar contrapartidas que motivem a iniciativa privada e a gentrificação urbana. Em verdade, a ponte é a única ponte inclusiva da RAEM, algo de que cada vez temos mais falta em ordenamento urbano. Admite que os afoitos a façam a pé, pois 2 570 metros com um troço de subida íngreme não é pêra doce. Serve também alguns desses afoitos do segredo que têm guardado, de que é no cima da ponte o melhor local publicamente acessível para ver fogo de artifício sobre o estuário. Segredo agora partilhado, para que não se lembrem de o proibir, e para que nesses dias, e nessas horas, apenas se fixe um contingente de acesso e se limite a circulação a uma faixa de emergência. Se algum sentido nostálgico advém da utilização actual da Ponte Governador Nobre de Carvalho, isso é fruto exactamente da experiência que resulta das condicionantes actuais de tráfego, que repuseram fluxos que estão aquém de limites de exaustão, muitos semelhantes aos registos cinematográficos que existem de época. (com continuação)
João Romão VozesRegresso às aulas (internacionais) Como gosto de regressar aos lugares onde fui feliz, é sempre um prazer voltar a Hokkaido, a ilha mais a norte do Japão, e à cidade de Sapporo, lugar de longos invernos com neve abundante e silenciosa onde vivi quase 5 anos. Foi também um regresso fugaz à universidade onde mantive actividade regular durante esse relativamente long período e onde fui leccionando cursos de verão, eventos internacionais abertos a estudantes de todo o mundo. Naturalmente, esses cursos haviam de ser interrompidos em 2020, com a pandemia de covid-19. O meu conhecimento e experiência pessoais estarão longe de ser exaustivas, ou sequer minimamente representativas, mas tenho encontrado muita gente japonesa que nunca foi a Hokkaido – ou que, tendo ido em algum momento da sua vida, revela um bastante razoável desconhecimento da realidade local actual. Na realidade, viajar desde o centro do Japão requer uma deslocação em avião – ou uma muita demorada viagem em comboio, que a alta velocidade só chega à periferia da ilha: chegará à cidade de Sapporo em 2025, quando no eixo Tóquio – Osaca já circularem os comboios ainda mais rápidos, de carris magnéticos que dispensam o contacto físico entre as carruagens e o solo. Ir desde o centro do Japão a Hokkaido é, por isso, quase como viajar ao estrangeiro. Foi com alguma surpresa que me fui apercebendo, pelo contrário, nas minhas esporádicas incursões pela China, da grande simpatia de que Hokkaido beneficia entre muitas pessoas que encontrei – e que rapidamente demonstram saber exactamente do que estão a falar. Na realidade, Hokkaido é (ou era, até à pandemia de covid-19) um destino importante para turistas da China: desde as compras na cidade de Sapporo, a quinta maior do Japão, onde se encontram produtos que não se encontram em terras chinesas e que abrem novas oportunidades para contrabandos vários, até às majestosas montanhas de uma região quase com a área de Portugal continental, seis meses por ano cobertas de neve, para gáudio de esquiadores ocasionais ou profissionais mas também para quem quer apreciar as paisagens brancas, tranquilas e silenciosas de um longo inverno. Era também da China, aliás, que vinha a maior parte das pessoas que frequentavam os cursos de verão que fui leccionando na Faculdade de Economia da Universidade de Hokkaido. A proporção podia variar ligeiramente mas andava sempre pelos dois terços de estudantes com origem na China, tendo as restantes participações diversas origens na Ásia, América ou Europa (e muito ocasionalmente em África). São estudantes que também têm motivações relacionadas com a oportunidade da visita a Hokkaido, eventualmente combinada com um algo mais do Japão, e que ainda beneficiam de um ou dois “créditos” para o progresso no percurso universitário, e da frequência de um curso intensivo numa área (supostamente) interessante. 2022 foi o ano em que os cursos de verão retomaram a quase normalidade da presença em salas de aulas, depois de dois anos online, em que aliás boa parte dos cursos (entre os quais o que eu leccionava) foram cancelados. Foi um regresso parcial às aulas, em todo o caso: ainda se viaja pouco pela Ásia, o grupo de estudantes era bastante menor e, sobretudo, os grupos de estudantes da China ainda não retomaram a normalidade das viagens internacionais, nem para recreio, nem para negócios, nem para estudos diversos. Se a ausência de estudantes da China era notória na sala de aula, ainda mais se nota no centro da cidade, quase totalmente utilizado pela população local, com as devidas máscaras ainda a ser utilizadas por toda a gente durante o dia e quase toda a gente à noite, que os ambientes nocturnos, já se sabe, tendem a convidar a mais alguma descontração. Já tinham sido em pandemia os meus últimos meses a viver nesta cidade e reencontrei-a como a tinha deixado: ainda com a quietude da ausência dos turistas, que aqui estão ainda longe de constitui o distúrbio que constituem noutras cidades, praias ou zonas mais apetecíveis para os lazeres algures neste precário planeta. Faltam os turistas e essa falta revela também a ausência da China, numa cidade que se foi habituando à sua presença e onde o comércio e meios electrónicos de pagamento estão devidamente preparados para as particularidades do mercado turístico chinês. O que nunca deixou de faltar, aqui e noutros lugares, são os produtos chineses, do vestuário à electrónica, passando por mobiliário, electrodomésticos, brinquedos, enfim, tudo o que nos faça falta mas que deixamos de produzir porque deixou de ser interessante para aos diligentes empresários contemporâneos, a quem se oferecem mais fáceis oportunidades de enriquecimento rápido algures nas livres economias de mercados globais especulativos que se foram desenvolvendo à margem de grandes regulações e formas de controle. Na realidade, mesmo quando a população está confinada ao território nacional, a China – com os seus produtos, finanças ou infra-estruturas ou mão de obra pouco ou muito qualificada – está sempre presente nas economias de todo o mundo. Talvez por isso se note tão dedicado esforço por atear novos fogos na ilha de Taiwan, agora que as labaredas na Ucrânia já vão altas e quem ateou esse incêndio tem outras achas para lançar pelo mundo.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesInquérito aos funcionários públicos A semana passada, algumas empresas de Macau realizaram um inquérito junto dos funcionários públicos sobre satisfação laboral e níveis de stress. Os resultados demonstraram que, em comparação com os dados de há cinco anos, o funcionalismo público continua a ser uma ocupação muito stressante que requer elevadas capacidades de comunicação. Assim sendo, estas empresas recomendam que o Governo preste mais atenção à saúde física e mental destes funcionários. Além disso, os funcionários públicos têm de saber lidar com a pressão e de trabalhar as capacidades de comunicação, para puderem manter a sua saúde mental. Apostar no desenvolvimento destas capacidades fará com que a população se sinta mais satisfeita na interacção com o funcionalismo público. O inquérito foi realizado entre Janeiro e Maio de 2022 e os resultados foram obtidos através de 1.244 questionários e entrevistas a 178 funcionários públicos. Os resultados mostram que: 1). As habilitações académicas dos funcionários aumentaram. Existem actualmente mais 11 por cento de doutorados. 2). Os funcionários públicos que auferem salários entre as 500.000 e as 540.000 patacas aumentaram 41 por cento. 3). Os níveis de desempenho e satisfação laboral subiram significativamente e, em geral, os inquiridos estão satisfeitos com o seu desempenho 4). Os níveis de sentimento de pertença e de envolvimento no trabalho foram significativamente mais baixos, indicando que os inquiridos têm dúvidas sobre o compromisso estabelecido com o local de trabalho. A partir destes dados, percebemos que, em comparação com o passado, o número de inquiridos doutorados aumentou 11 por cento, o que reflecte a popularização gradual da educação em Macau e o aperfeiçoamento contínuo do nível académico dos funcionários públicos. No quadro da administração pública, os funcionários com um nível académico superior têm mais probabilidades de serem promovidos e de melhor implementarem as políticas do Governo, o que beneficia os residentes. Os funcionários públicos que auferem salários entre as 500.000 e as 540.000 patacas aumentaram 41 por cento. Segundo a Direcção dos Serviços de Estatística e Censos, entre 2016 e 2020, o rendimento bruto per capita dos residentes in Macau era o seguinte Estes dados demonstram que, antes da pandemia, os salários dos trabalhadores do sector privado e do sector público eram sensivelmente equivalentes. Depois da pandemia, o rendimento per capita dos residentes de Macau baixou acentuadamente. Algumas empresas privadas congelam salários, outras reduzem-nos, outras ainda despedem pessoal, ou ficam em situação de layoff. No entanto, os funcionários públicos não podem ser despedidos nem suspensos e os seus salários nunca são reduzidos, o pior que lhes pode acontecer é verem os salários congelados. Por isso, a sociedade em geral acredita que os funcionários públicos têm uma situação privilegiada. Níveis elevados de desempenho e de satisfação laboral indicam que os inquiridos consideram que desenvolvem um trabalho eficiente, ou seja, os inquiridos têm a capacidade e a confiança para completar e fazer o seu trabalho com competência, que são os pré-requisitos dos trabalhadores qualificados. Do ponto de vista da gestão, a realização eficaz do trabalho por parte dos colaboradores alcançará melhor os objectivos do departamento. Se todos os departamentos conseguirem alcançar os seus objectivos, não será só o Governo a ser beneficiado, mas também toda a sociedade de Macau. Os resultados também demonstraram que os inquiridos têm um baixo sentimento de pertença e de envolvimento, indicando que têm dúvidas sobre o compromisso estabelecido com o local de trabalho. Baixos níveis de envolvimento resultam naturalmente em baixo sentimento de pertença. É preciso ter isto em conta. Na administração pública, muitas das políticas estabelecidas pelo Governo precisam de ser promovidas e implementadas por funcionários públicos que as conhecem. Portanto, a natureza do funcionalismo público requer estabilidade e familiaridade com o serviço desempenhado. Baixos níveis de envolvimento e de sentimento de pertença podem indicar que o trabalhador possa querer despedir-se, o que afectará a promoção e implementação das políticas do Governo. Uma análise global do inquérito mostra que os funcionários públicos têm cada vez mais habilitações académicas, o que, por sua vez, melhora a sua capacidade de trabalho, permitindo-lhes ser mais eficientes. Os resultados indicam também que os funcionários públicos têm um fraco sentimento de pertença e de envolvimento, o que tem impacto na estabilidade dos postos de trabalho e precisa de ser melhorado. Os dados mostram que os salários comparativamente elevados dos funcionários públicos se devem ao impacto da pandemia nos salários dos trabalhadores do sector privado. Por último, temos de constatar que o inquérito apenas entrevistou alguns funcionários públicos, e não todos eles. Os resultados apenas reflectem a situação de parte dos funcionários públicos, o que constitui uma limitação estatística. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
André Namora Ai Portugal VozesMorte e vida nas estradas As notícias na semana passada indicavam que em Portugal se tinham registado mais mortes do que em qualquer dos últimos anos. É o óbvio. Na Saúde encerram-se urgências e serviços de obstetrícia, nos centros de saúde respondem que não há médicos de família, nos hospitais aguarda-se por tratamento nos corredores. Em certos hospitais os cidadãos já aguardaram 20 horas para serem atendidos. Chegámos ao ponto de Portugal ter registado o maior número de mortes de sempre num só dia. Na quarta-feira passada, os registos deram conta de 721 óbitos em todo o país sendo o número mais alto desde que há registos e quase o dobro da média diária habitual. Destes 721 mortos registados, 221 foram atribuídos à pandemia. Porém, as estatísticas mostram que nesse mesmo dia, morreram mais 500 pessoas sem ser por Covid – o que pode resultar de um agravamento geral das condições de saúde em Portugal. Mas, na nossa análise o número de mortes é devido, em grande percentagem, aos acidentes de carro e de moto. Jovens que acabam de comprar um carro desportivo que pode atingir 250 kms/hora, pegam no volante e aceleram sem terem o mínimo de preparação para conduzir a grande velocidade. Quanto a motos é uma desgraça, não havendo uma semana em que não fique uma família de luto. O problema básico é que nas escolas não existe uma disciplina sobre as regras e a sensibilização para quando o estudante tirar a carta de condução. Não existem escolas de condução de carros e de motos onde os condutores sejam confrontados com curvas perigosas e que possam aprender a dominar o veículo que tiverem nas mãos. Para a Guarda Nacional Republicana o número de acidentes com motociclistas é assustador. Os condutores de moto representam um terço das mortes nas estradas. Isto é trágico. Normalmente, rapaziada jovem com idade aproximada dos 20 anos. Da auditoria à sinistralidade rodoviária do ano de 2021 até 30 de Setembro, verifica-se que cerca de 10 por cento dos acidentes envolveram veículos de duas rodas a motor. Uma vez que os condutores de veículos de motos são um grupo de risco porque as consequências dos acidentes com estes veículos são normalmente mais gravosas, e prevendo-se um elevado fluxo de veículos de duas rodas a motor em direcção ao Algarve para acompanhar a corrida de MOTO GP, a GNR irá desenvolver iniciativas de sensibilização em algumas áreas de serviço de norte a sul do país e nas imediações do Autódromo de Portimão. Mas, é preciso salientar algo de muito importante: milhões de motos rolam nas estradas de todo o mundo. Existem grupos organizados que, por exemplo, levam 30 mil amantes das motos anualmente à concentração de Faro. Para milhares não há nada melhor do que conduzir uma moto e desde que se saiba conduzir, que se seja cuidadoso e concentrado, penso que a moto não é o mal do planeta. Vimos os circuitos do campeonato de MOTO GP completamente esgotados e a loucura por motos é universal. O que se pede é que os amantes das motos não façam das estradas autênticas pistas quando não têm experiência para conduzir um “motão”. Em Portugal tem sido uma tragédia também, e é importante referir, o facto de as estradas serem um caminho de cabras ou uma passadeira de buracos, com a agravante de as bermas não estarem tratadas e na maioria das rodovias as bermas tem terra ou areia, o que leva, ao mínimo deslize do condutor, à sua queda e, por vezes, ao acidente fatal. A segurança nas estradas é o factor mais importante para a redução dos acidentes mortais. E essa segurança começa pelos próprios automobilistas que nem sequer olham para os retrovisores e espelhos laterais provocando desse modo que no momento que uma moto se aproxime para ultrapassar, esse automobilista comete o “crime” de efectuar uma ultrapassagem. Obviamente, que num caso destes o motociclista não tem nada a fazer do que despistar-se para fora da estrada. A moto, por representar liberdade, é que não merece que os inconscientes estraguem a imagem de uma actividade que poderia perfeitamente ser de felicidade. Boa viagem.
Hoje Macau VozesIV – Planeamento Geral do Trânsito e Transportes Terrestres de Macau – Do teletransporte (continuação de dia 15 de Agosto) Mário Duarte Duque, Arquitecto A solução mais extravagante do Plano em consulta, prende-se com a proposta de ligação da península de Macau à Zona A dos Novos Aterros Urbanos por teleférico urbano, i.e. uma espécie de eléctrico onde a cabine não circula sobre carris ao nível do solo, mas suspensa por cabos. A modalidade remonta aos primórdios dos transportes mecânicos onde se desenvolveram soluções engenhosamente adaptadas às condições locais, nomeadamente geográficas. No caso dos teleféricos urbanos as soluções tiveram principalmente em vista a ligação de dois pontos altos separados por um vale, onde o tráfego não justificava um fluxo contínuo, ou a construção de uma ponte não era viável. Mas também serviram zonas baixas junto a rios, cujo atravessamento permanente iria colidir com o tráfego fluvial, que também não justificava um fluxo contínuo, ou a construção de uma ponte móvel também não era viável. Mais fácil foi construir uma grua na forma de um pórtico elevado, através do qual passavam os navios, e ao longo do qual se transportava uma cabine suspensa por cabos que circulava entre margens. Uma das principais razões por que este transporte não sobreviveu prende-se exactamente pela pouca ou nenhuma capacidade de acomodar aumentos de tráfego que resultam da contínua e inevitável intensificação urbana. Os teleféricos urbanos que perduram foram complementados por alternativas, a sua persistência deve-se a memórias nostálgicas e, em muitos casos, constituem hoje atracções turísticas. É efectivamente na vertente do lazer ou da atracção turística onde mais se retrata o actual potencial desse meio de transporte. A esse respeito talvez importe ter presente que o conceito de “animações” teve origem no lazer e no divertimento, primeiro privado, depois público, e remonta ao desenho dos Jardins onde proliferaram “animações”, a que se chamaram “folies”. A ideia não é obsoleta nem é estranha aos dias de hoje, nomeadamente nos destinos turísticos, e sequer alheia aos equipamentos da RAEM. Todos os complexos das concessionárias do jogo incluem em pontos dos seus percursos ou em recintos próprios, “animações” com características muito semelhantes às “folies” de um jardim histórico, apenas tendencialmente mais intensas, porque necessitam de competir mais recorrentemente com outras que vão surgindo. Mas também mais efémeras, pois logo que a novidade se extingue, logo são substituídas por outras que reponham a mesma, ou outra maior capacidade de atrair e animar visitantes. Não sendo de todo por estas modalidades de operação que se pautam os bens públicos, serviços e equipamentos, o que é certo é que crescentemente os municípios desta região vêm funcionando nesse mesmo registo, para com isso assegurar mais visibilidade. Atento ao alcance por que se deve pautar uma infra-estrutura pública, só pode ser importante que, uma vez esgotada a sua novidade, a mesma não vire obsoleta, continuando a assegurar o seu propósito infra-estruturante. O anterior período eufórico de turismo desenfreado que a RAEM experimentou não facilitou a distinção do que efectivamente infra-estruturou o território, e onde efectivamente se suporta funcionalmente, mesmo quando se alteram os fluxos do turismo. Os habitantes da RAEM passaram a ter disso melhor percepção aquando da abrupta queda recente dos fluxos do turismo, ou seja, a distinção entre o que é permanentemente essencial, o que é sazonal, ou que constitui mera oportunidade, e que logo que a oportunidade se extingue, pouco permanece de utilidade. Bom exemplo disso foram a maior parte das Exposições Mundiais que se realizaram e de onde nada restou. Bom exemplo do contrário disso foi exactamente a exposição de Lisboa em 1998, onde a cidade ficou equipada, depois de extinta a exposição. De volta à ideia do teleférico urbano, importa que a mesma seja escrutinada no sentido de uma efectiva infra-estrutura, independentemente de a mesma poder vir constituir uma “folie” que chame a atenção dos visitantes. Efectivamente, no local em vista para o teleférico não existem pontos altos a ligar entre si. Todavia, enquanto se mantiver no mesmo local o Terminal Marítimo do Porto Exterior, aí o tráfego fluvial não poderá ser interrompido por outro atravessamento ao mesmo nível. Só por isso, um teleférico afigurar-se-ia pertinente. Mas também isso não é razão, uma vez que, no mesmo local, para o mesmo trajecto, está prevista a construção de uma nova ligação rodoviária, o que retira ao teleférico sentido de infra-estrutura. A questão, mesmo parecendo acessória, coloca-se perante o novo paradigma por que o desenvolvimento urbano da RAEM enveredou. O de um arquipélago densificado, onde o estuário se converteu em canais, mas sem que o Plano Director tenha feito disso lema, gerado em torno disso uma estrutura de interpretação, nem por causa disso tenha definido um conjunto de axiomas que servem, definem e suportam essa nova realidade, nomeadamente a respeito de acessibilidades. Efectivamente o plano em consulta respeita a transportes terrestres da RAEM, onde a referências a transportes fluviais são apenas na vertente inter-regional. Não menciona moldes de navegabilidade para os canais que resultam da nova realidade, sequer para o seu atravessamento, para além do transito geral rodoviário e ferroviário. Não menciona se isso será objecto de detalhe subsequente, ou de um plano próprio, todavia uma viabilidade para novas carreiras, nomeadamente carreiras que não precisam de extinguir as que já existem, como foi constrangimento já invocado. (com continuação)
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesOs quatro maiores negócios Quando não existe esperança, não existe desilusão. Por mais notáveis que os esforços de propaganda tenham sido, a realidade impõe-se mesmo que as vozes dissidentes tenham sido silenciadas. Aqueles que estão a dormir acabarão por acordar um destes dias. Quando o anestésico deixar de fazer efeito, os pacientes que jazem nas camas dos hospitais voltam a ter dores. A primeira atribuição de dez mil milhões de patacas pelo Governo da RAE, no âmbito das medidas de apoio ao combate à epidemia, é capaz de ter trazido alívio a curto prazo a alguns residentes de Macau atingidos pela epidemia. Por enquanto, ainda não se sabe quem vai ser beneficiado com a segunda tranche de dez mil milhões, essa tarefa compete aos funcionários do Governo encarregados da supervisão da atribuição. As qualificações académicas podem ser obtidas através de aprendizagem e educação contínuas, no entanto a posse de um diploma não confere ao seu detentor sabedoria e inteligência. Uma boa conduta política não está necessariamente associada às capacidades de trabalho. Da mesma forma que a cor de um gato não está associada à sua habilidade para caçar ratos. Macau está a começar a recuperar do surto epidémico e, pessoalmente, espero que a recuperação total não aconteça depois de 2029. É sempre melhor viver com esperança do que sem ela. Se olharmos para os indicadores da economia de Macau no website da Direcção dos Serviços de Estatística e Censos ou no website da Autoridade Monetária e Cambial de Macau, vamos perceber que em Macau o Inverno mais rigoroso ainda está para vir. Os motivos para o forte declínio da economia residem nas conjunturas macro-económica e micro-económica, sendo que esta última desempenha um papel crucial. Segundo os dados estatísticos de 2020, o VAB (valor acrescentado bruto) do sector terciário de Macau registou uma descida real de 55,7%, em termos anuais, devido principalmente à queda real de 81,2% do VAB das “lotarias, outros jogos de aposta e actividade de promoção de jogos”. Quando vemos os números do VAB das “lotarias, outros jogos de aposta e actividade de promoção de jogos”, referentes a 2021 e ao primeiro semestre de 2022, reparamos que existe muita margem para crescimento depois deste valor ter sofrido um decréscimo abrupto. Com o declínio do sector do jogo durante a pandemia, as outrora florescentes indústrias do turismo, da restauração, da construção civil e as indústrias transformadoras entraram em estado de inactividade umas após as outras. A taxa de desemprego dos residentes, de Abril a Junho de 2022, atingiu os 4.8%. Com as indústrias e vários sectores locais a entrarem em recessão, os internautas de Macau, em tom de brincadeira, descobriram “as quatro novas grandes indústrias ou sectores” de Macau durante a pandemia. A primeira refere-se aos serviços de entrega de comida em regime de takeaway. Durante o surto pandémico local, especialmente quando Macau estava em “estado relativamente estático”, as pessoas que se via andar na rua, a pé ou de bicicleta, eram os estafetas que entregam comida, ostentando o logotipo das suas empresas. Podem ganhar bastante dinheiro se fizerem horas extraordinárias, porque existe muita procura deste serviço. Muitos destes estafetas são ex-trabalhadores do sector do jogo. O segundo sector em crescimento é o “comércio paralelo entre Macau e Zhuhai, que requer esforço físico e muito tempo disponível. Quando inicialmente a China implementou a “política de reformas e de abertura”, muitas pessoas em Macau compravam pacotes de cigarros (que normalmente tinham 10 maços cada) nas lojas duty-free antes de entrarem na China, onde depois os vendiam com lucro para compensar os custos da viagem. Naquela época, os mercados em torno de Gongbei e de Zhuhai estavam repletos de lojas que compravam às claras estes pacotes de tabaco. Hoje em dia, muitos trabalhadores não residentes em Macau que vivem em Zhuhai, ou residentes que vivem em Zhuhai e cidadãos do continente que visitam familiares em Macau, levam com eles vários artigos comprados nas lojas duty-free, que fazem circular entre Zhuhai e Macau, para depois os revenderem criando assim uma fonte de rendimento alternativa. Estas actividades de “comércio paralelo” cresceram francamente durante a pandemia. Por exemplo, um licor famoso produzido na China continental para exportação, tornou-se o produto mais popular de consumo doméstico, graças às actividades de “comércio paralelo”. Os outros dois sectores em franco desenvolvimento são os “laboratórios de análise ao ácido nucleico” e as “obras rodoviárias”. Acredito que os nossos leitores tenham realizado numerosos “testes do ácido nucleico” e outros tantos testes rápidos de antigénio. O Governo da RAEM investiu muito dinheiro e muita mão de obra para fornecer testes gratuitos de ácido nucleico a toda a população, bem como na distribuição de máscaras KN95 e de kits de testes rápidos. A quantidade de dinheiro gasto nestes testes e materiais conexos criou um novo sector de negócio. No que diz respeito às obras rodoviárias encomendadas pelo Governo, estão em curso actualmente “projectos de reparação/modificação rodoviária” em cada bairro da cidade. Torna-se evidente que os esforços do Grupo de Coordenação de Obras Viárias do Conselho Superior de Viação são obviamente ineficazes. Hoje em dia, o tráfego de Macau entrou na sua “idade das trevas”, tal como certos deputados da Assembleia Legislativa tinham previsto. Se não fosse pelo diligente empenho da polícia de trânsito, este problema tornar-se-ia mais “primitivo” do que nunca. Os prósperos “projectos de reparação/modificação rodoviária” deram origem a um novo sector empresarial. Portanto, a questão que se coloca é a seguinte: haverá a possibilidade de “renascimento” do sector do jogo, como indústria líder de Macau e principal fonte de receitas do Governo da RAEM?
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesCompre agora e pague depois Recentemente, em Hong Kong houve alguns desenvolvimentos sobre o sistema “compre agora e pague depois” (BNPL sigla em inglês). O Hong Kong Consumer Council salientou que, entre Janeiro de 2021 e Julho de 2022, se registaram 22 queixas relacionadas com este modelo de compras, um terço das quais relacionadas com a plataforma de vendas online. Os queixosos eram jovens, donas de casa e pessoas sem rendimentos estáveis. A maior parte tinha comprado aparelhos electrónicos e roupas. Os montantes envolvidos situaram-se entre várias centenas e 2 mil dólares de Hong Kong (HKD). Existe muita informação online que indica que o sistema de pagamento BNPL se tornou muito popular e veio substituir os cartões de crédito durante a pandemia. Este método assenta na filosofia “desfrute agora e pague depois”. Os consumidores não precisam de ter cartão de crédito, só precisam de instalar esta aplicação. De um modo geral, os consumidores usam os telemóveis para abrir contas e fazem as compras na plataforma. Inicialmente, só precisam de pagar uma parte do valor e, depois de receberem os artigos, pagam o resto em três prestações. Algumas plataformas chegam a aceitar pagamento diferido. O pagamento a prestações pode ser facultado pela plataforma ou pelo vendedor. Se a plataforma fornecer crédito e permitir que os consumidores paguem as compras em prestações, passa ela a ser o credor que empresta dinheiro aos consumidores. Passa a existir uma relação de empréstimo entre a plataforma e o consumidor. Neste caso, independentemente de acontecer em Hong Kong ou em Macau, a plataforma, enquanto empresa que fornece empréstimos, deve apresentar um pedido específico aos respectivos Governos e, só depois de obter autorização, poderá dar seguimento ao seu negócio. Se o pagamento a prestações for facultado pelo vendedor, a relação que estabelece com o consumidor traduz-se num contrato de venda de bens e, portanto, não se trata de um empréstimo. Em Hong Kong, esta transacção é regulada pela Sale of Goods Ordinance (Portaria de Venda de Bens). Em Macau, está sujeita ao Código Civil e Comercial de Macau. A maior parte da informação que se encontra na Internet mostra que o pagamento a prestações é facultado pela plataforma, e é a isso que devemos prestar atenção. O BNPL é atractivo para os consumidores por três razões. A primeira é a conveniência. Neste modelo, a transacção é totalmente realizada através do telemóvel. Uma vez que a maioria dos telemóveis tem programas de pagamento específicos incorporados, a plataforma liga-se a esses programas, o que poupa imenso tempo aos consumidores e resulta no axioma “onde há um telemóvel há uma transacção”. Em segundo lugar, a utilização da aplicação é muito simples. Os consumidores só precisam de fornecer os seus dados pessoais e passam a poder comprar a crédito. A principal razão para a aprovação ser tão rápida é a plataforma não ser um banco e não verificar os registos de compras a crédito dos consumidores. Esta facilidade permite que pessoas sem cartão de crédito, como estudantes e freelancers, possam aceder sem problemas a este serviço. Em terceiro lugar, o risco de os dados pessoais serem roubados é mínimo. Se um consumidor usar um cartão de crédito, os seus dados podem ser armazenados na rede, e existe o risco de serem roubados. No modelo pague agora e pague depois, os dados são guardados na plataforma, reduzindo o risco de roubo. Para os retalhistas é vantajoso se o pagamento a prestações for facultado pela plataforma, porque expande a clientela e aumenta as vendas. Neste modelo, a plataforma cobra aos retalhistas uma taxa de cerca de 5por cento. Se o consumidor fizer os pagamentos no prazo, geralmente não tem de pagar qualquer taxa. Se o pagamento estiver em atraso, a plataforma cobra taxas e juros. Segundo o relatório da empresa de crédito americana Lendingtree, quatro em cada 10 americanos já usaram o serviço BNPL. De acordo com o Global Data, o volume de transacções BNPL cresceram de 33 mil milhões de dólares em 2019 para 120 mil milhões em 2021. A Worldpay assinalou no relatório sobre pagamentos globais em 2022, que a proporção das compras online duplicará de 2,9 por cento em 2021 para 5,3 por cento em 2025. Aparentemente o modelo de compras BFPL parece ser benéfico para consumidores, para os retalhistas e para a plataforma. Como os consumidores não precisam de pagar as compras na totalidade inicialmente, sentem-se menos pressionados e têm a ilusão de ter uma capacidade financeira superior à que realmente têm, o que os leva a fazer compras de valor mais elevado. Após repetidas utilizações, os problemas financeiros vão começar a aparecer. Conforme mencionado anteriormente, porque os consumidores que usam este serviço são sobretudo pessoas com rendimentos instáveis, a sua capacidade de honrar os pagamentos é questionável. Por conseguinte, estas pessoas enfrentam problemas mais graves do que aqueles que auferem rendimentos estáveis e requerem mais atenção social. De acordo com o inquérito ao emprego, emitido pela Direcção de Serviços de Estatística e Censos de Macau, relativo ao segundo trimestre de 2022, o salário médio dos residentes de Macau era de 19.400 patacas, menos 600 patacas que no trimestre anterior. A taxa de desemprego local era de 4,8 por cento. Devido à pandemia, a taxa de desemprego subiu, e o salário médio dos residentes de Macau desceu. Estes factores vão reduzir o consumo dos residentes, que passarão a comprar pouco mais do que o indispensável. Além disso, não existem fronteiras na Internet. Registar-se na plataforma com um telemóvel e poder obter um crédito para consumo não é difícil. Mais importante ainda, alguns retalhistas que cooperam com as plataformas também têm lojas em Macau, o que merece a atenção de todos nós. A Autoridade Monetária de Hong Kong afirmou que actualmente não existe legislação para regular as operações destas plataformas. No entanto, serão emitidas orientações relevantes no segundo semestre de 2022 para regular o seu funcionamento. Também é importante saber que as empresas que concedem crédito em Macau têm de cumprir o que está estabelecido no Artigo 17 (1) (b) do Sistema Jurídico Financeiro Decreto-Lei No. 32/93/M. De acordo com esta disposição, só as empresas licenciadas pelo Governo de Macau podem exercer a actividade de instituições financeiras; caso contrário as suas operações são ilegais. Registar-se nas plataformas e obter crédito para consumo é fácil. É também, como é óbvio, difícil de supervisionar. A epidemia afectou a economia e criou situações problemáticas. Temos todos de ter muito cuidado. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Universidade Politécnica de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk