Wrong speech, pá

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Assim se pronunciou o secretário-geral da ONU quando iniciava o seu discurso durante a COP 27, a conferência promovida pelas Nações Unidas para definir políticas de combate às alterações climáticas em implacável curso. Lá estavam as câmaras a captar o caricato momento de hesitação perante as palavras que algum serviço de assessoria mais distraído entregou erradamente para aquela delicada circunstância, com a situação resolvida com um espontâneo e gracioso “I think that I was given the wrong speech, pá”.

O momento que parece ter sido de graça, tendo em conta o agrado abertamente manifestado por convivas presentes, que riram com gosto neste grotesco espectáculo que também inclui arriscados números de ilusionismo estatístico e contorcionismo retórico.

Foi a 27.ª vez que se organizou esta “Conference of Parties”, ou COP, o que talvez se possa traduzir para português como “Conferência das Partes”, o que não soaria grande coisa se se tratasse de algo que se pudesse levar a sério, mas que talvez se adeque (porque não, pá?) a esta comédia com que as partes se entretêm e divertem.

Afinal, mais um discurso errado faz pouca diferença: com ou sem Guterres na liderança, já são quase três décadas de discursos errados, feitos de palavras tão eloquentes como ocas e inconsequentes, desde que as ditas partes se começaram a reunir, sob a égide da ONU, em Berlim, em 1995.

Ficaram famosas algumas destas reuniões, ou os documentos que se fizeram aprovar para alimentar a fé da humanidade num mundo melhor, ou pelo menos mais viável. Desde logo o famoso Protocolo de Kyoto, acordado na Conferência de 1997 e em vigor desde 1998, que havia de tornar a antiga capital japonesa numa das maiores atracções turísticas do país e hoje a única urbe do Japão onde se observam com clareza os problemas do excesso de turismo e a sua decorrente insustentabilidade. Foi a primeira vez que as Partes – os países envolvidos, entre os quais Portugal – se comprometeram a implementar limitações e atingir reduções concretas nas emissões de gases tóxicos, devidamente quantificadas.

Valerá pouco a pena contar esta triste história de empolgados discursos e generosas intenções ditadas pela pompa e circunstância dos magníficos salões onde decorrem estas celebrações anuais de animado convívio entre as Partes. A esta pompa corresponde sempre e implacavelmente uma realidade que não há como distorcer no dia a dia do planeta a seguir a cada um destes momentos: mesmo quando finalmente se acordou, em Paris, 2015, definir um conjunto quantificado de metas para se atingirem objectivos específicos no controle do aquecimento global, o certo é que se continuou a falhar contínua e rotundamente até hoje. Na realidade, com a breve excepção registada em 2020, com uma ligeira quebra motivada pela inevitável reclusão imposta pelo Covid-19, as emissões de gases tóxicos continuaram sempre a aumentar.

É por isso que há quem não se ria desta farsa sistemática e permanente, por mui graciosas que se achem as Partes. É a juventude do mundo, essas pessoas que pressentem um futuro curto, que temem pelo desaparecimento do habitat onde era suposto alimentarem sonhos de futuros felizes, e onde afinal vão descobrindo preocupações crescentes, antecipando problemas cada vez mais graves, enquanto observam como se sucedem políticas vazias de resultados envoltas em discursos de reiterada demagogia, que vão afinal alimentando as mesmas relações de poder e a mesma predação sistemática e implacável de recursos que um sistema económico profundamente injusto, desigual e irracional vai impondo dia após dia, após ano, garantindo a riqueza exorbitante de uma pequeníssima minoria e a decorrente miséria de grande parte das 8 mil milhões de pessoas que habitam este cada vez mais precário planeta.

Por isso protestam, com formas determinadas mas pacíficas, pelo menos até ver. São adolescentes e estudantes, na sua larga maioria, com informação, esclarecimento, organização, pacifismo, determinação. Estão em muitos sítios do planeta, sobretudo nos países mais desenvolvidos, os que mais beneficiam do gigantesco problema que têm vindo a criar década atrás de década, num processo contínuo de crescimento de consumo e produção que despreza os limites dos recursos e do planeta. Estão quase sós estas pessoas, no entanto: pelos vistos o futuro conta pouco para quem já só olha para curtos prazos de vida e reformas antecipadas.

Além de um planeta em acelerada destruição, o que esta sociedade tem para oferecer a esta juventude em desespero de causa é a pancadaria que for necessária para a manter na quietude do seu silêncio. Com a brutalidade que for precisa e os tribunais que forem necessários, quem participar nestas ocupações pacíficas de espaços públicos já sabe que vai ter dos poderes dominantes a mesma resposta repressiva, em Lisboa como noutros lugares. Até à cadeia, se for preciso.

Na realidade, a repressão que se abateu rapidamente e em força sobre quem se manifestou em Lisboa durante estes dias em que o secretário-geral da ONU cumpria o ritual de ler discursos errados, pá, já era conhecida de outros momentos e lugares, até relativamente próximos. Também eram adolescentes as pessoas que a polícia retirou com brutalidade de manifestações pelo clima em praças de Londres, poucas horas depois de se sentarem pacificamente.

Não gerou esta violência nenhuma onda crítica ou solidariedade massiva, mas, nos mesmos dias, criticava-se internacionalmente, na ex-colónia britânica de Hong Kong, a utilização da força pela polícia chinesa para dispersar manifestações que duravam há um mês, bloqueando diariamente o trânsito de dois milhões de pessoas e envolvendo a destruição violenta de várias estações de metropolitano.

Nas alegadas democracias ocidentais, conhecem-se afinal muito facilmente os limites da liberdade de expressão e manifestação quando se confrontam os poderes com o vazio das suas propostas e a inevitabilidade do seu fracasso.

Não é necessária violência nem destruição: basta ocupar pacificamente espaços públicos e perturbar vagamente a ordem quotidiana. É certo que esta juventude vai continuar a fazê-lo, até porque não tem alternativa: quem se manifesta nestes dias contra a inacção das instituições perante o colapso do planeta tem a determinação infinita que lhe vem da tristeza de saber que tem razão.

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