A pintura de Yuen e a cidade metamórfica

Leo Yuen Wai Ip é um pintor de Macau e a sua obra desvela a cidade, nos traços executados a óleo e no plano íntimo da sua sensibilidade. Nesta pintura, que a crítica classificaria de “narrativa”, não se conta apenas uma cidade, mas o modo como esse lugar, esse espaço que oscila entre um real mutante e um imaginário excessivo, se apresenta e inscreve ao longo do tempo, como paixão e como doença, num processo artístico, ao mesmo tempo que o canibaliza e consome.
Retratos de um coração, de uma alma e do corpo de uma cidade em constante e bizarra mutação, em que as personagens, incluindo o próprio pintor, surgem como coalho numa superfície fascinante e arisca, cada quadro procura responder a uma questão cujos contornos se pressentem, mas que a razão tem dificuldade em formular rectilineamente e em que a única certeza é a presença da morte feita pássaro (como em Bruegel), presença nómada mas constante, grasnar formidável ou discreto, fim exposto ou disfarçado, sempre horizonte de um novo dia e fantasma celebrado ao cair de cada noite.
“5 a.m.” foi o título escolhido para esta exposição, que abrange mais de duas décadas de trabalho. Cinco horas da manhã ainda por haver, “a hora fria”, de que nos fala o poeta francês Charles Cros (1842-1888), quando o calor que, ao longo noite, a terra ainda irradia finalmente se esgota e mentes insones se contorcem no sobressalto da iminência de uma outra madrugada. Em breve, vindas de leste, as mãos claras da aurora rasgarão o manto protector da noite e a alma pergunta-se se terá ainda ânimo para enfrentar aquele dia, que se adivinha desfeito de sentidos.
E aqui, quadro após quadro, assistimos às metamorfoses que, nos últimos vinte anos, assombraram a cidade e aos efeitos produzidos na arte de Yuen, como se as respostas que a criatividade encontra para o indefinível absurdo de “ganhar algo e algo perder” fosse o único caminho para a possibilidade de enfrentar cada despertar para um novo dia. Da cidade distante dos anos 90, de vibrações semi-adormecidas, quase sonho de ópio, à expectativa gerada nos primeiros anos deste século, até ao irromper desmesurado do progresso, da invasão das cópias desalmadas, fora de outro lugar que não seja a ironia, ao estabelecer excessivo das luzes, das marcas, dos templos modernos a que chamamos casinos, gigantescas feiras e mercados, da invasão de tudo e do seu excesso, das multidões vazias de outra fé além do lucro fácil e na busca de deslumbramentos sazonais, Yuen retrata sobretudo como tudo isto transforma, retorce, anula, vivifica e reconstrói modos de ser e de sentir, tudo recriando sob a égide do esboroamento contínuo de valores. Se a isto juntarmos a digitalização da vida, das trocas, das relações interpessoais, da sexualidade, pouco encontraremos do “humano”, além da dor de uma sensibilidade insatisfeita, onde a culpa emerge irremediável, como no auto-retrato, que leva o revelador título de “Inimigo”. Esse “humano”, cercado e mergulhado em várias excessividades até lhe ser escassa a respiração, encontra esporadicamente um “paraíso”, já quase só longínqua memória, nos gestos proibidos e malditos, ilhas onde talvez ainda seja possível o reencontro consigo e com o outro.
Talvez um dia se escreva a história destes nossos tempos e desta cidade metamórfica, a partir da arte enquanto exorcismo e magia, ou seja, enquanto capacidade de leitura e intervenção no real. Talvez. Mas enquanto a humanidade não for capaz de adquirir a coragem de se olhar nos espelhos que pintores como Yuen nos proporcionam e assumir as questões que perpassam nas suas obras, dificilmente teremos uma imagem aproximada do que somos e naquilo em que lentamente nos tornamos. Tal como a “salvação” de Yuen reside na sua arte, no seu esplendor redentor e criativo, na ironia que enforma também muitas das suas obras (pois não é o riso um privilégio dos deuses?), também cada um de nós deveria exigir essa difícil escalada que é a compreensão do mundo, sem mediações fúteis nem barreiras mercantis.
Além do seu conteúdo, da sensibilidade lúcida demonstrada, a pintura de Yuen assenta, antes de mais, na qualidade da sua técnica, na lenta sobreposição de traços a óleo sobre um desenho particular, onde a mão adquiriu uma personalidade própria e inimitável, algo que vai sendo cada vez mais raro nos tempos imediatistas em que vivemos.

“5 a.m.” por Leo Yuen Wai Ip
Galaxy Art, por cima do Jade Lobby

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