Beat: mais do que um dizer

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Há uma passagem em “Pela Estrada Fora”, do Kerouac, em que os dois compinchas que estão à boleia, O Dean e o Sal, decidem que a partir desse troço mudarão não só de tópico como de estilo de conversa de cada vez que cruzarem um candeeiro, deixando «a mente saltar ao acaso do galho ao pássaro» (Kerouac).

Este método de exercitar a imaginação sempre me fascinou e vim reencontrá-lo aqui, nestes escritos poéticos cheios de surpresas e de curto-circuitos; este testemunho/testamento em forma de cântico devolve-nos essa “indeterminação quântica”, que julgávamos dissipada no horizonte da poesia. Aliás, espanta no livro a energia que sustenta um fôlego pouco habitual e se aguenta na maior parte destas trezentas e sessenta páginas.

Entretanto, uma das razões porque sempre nos demos bem, às tantas o Luís Filipe Sarmento, motivado pela alegria que lhe é inerente, vaticina: «Deixo os Apocalipses para os apóstolos da Derrota», o que é corroborado na página 251, onde se grafa: «A alegria é um repelente contra as ditaduras».

Para quem julgue que isto não passa de uma boutade, de um slogan poético, refira-se, está documentado pela neuro-ciência como o sentimento da alegria abre o espaço. Falamos de uma mutação da percepção, evidentemente. E quando se abre o espaço as coisas que nele estão contidas não se organizam de uma maneira diferente, REORGANIMAM-SE, para usar um dito do pintor Roberto Matta, significando que a alteração que se introduziu aí na relação entre o espaço e as figuras não é apenas de nível sintáctico e antes supõe uma translacção simbiótica ou uma plasticidade metamórfica: «E ao espelho vi Kafka no berço de Dante».

Daí que poucas páginas depois de nos ter falado da alegria, defenda o Sarmento: «O caos é a fonte poética da sublevação». Sim, o caos REORGANIMADO pela alegria que lhe dá a chave, uma pauta.

Este livro, escrito aos 64, 65 anos, na leitura mais linear que dele se tenha, tece uma homenagem aos ícones literários de uma geração – o Ginsberg, o Kerouac, o Ferlinghetti, a Diana de Prima, o Gregory Corso, o William Carlos Williams e o Jack Hirschman (com quem o Luís Filipe privou), sendo cada um deles o motor dos diferentes capítulos – , os quais, mais do que remeterem para as descobertas da sua juvenília aparecem como expoentes de uma linhagem que, muito para além do seu modismo epocal, imprimiram certas práticas de escrita e de vida que continuam a ser pregnantes para tantos.

Contudo, a densidade de “Beat”, com os vários estratos discursivos que se alternam e dialogam, polifonicamente, permite dilucidar outra leitura que é a do livro ser igualmente, como quem não quer a coisa, um ensaio sobre o tempo e a tensão que nasce das suas polarizações: «Tudo o que nos separa do dia seguinte é composto de ilusão e de desconfiança, de crença e luta infinita. Recuso as leis do manicómio. E o dia seguinte chega com diferentes repetições de expectativa» (pág.151)

Neste livro celebra-se a escrita, precisamente como um acto de luta contra a matéria temporal, colocando-a em contramão e obrigando o Tempo a situar-se fora de si, em novas transparências que originam poros no seu tecido; a pulsão poética instaura no Tempo esse gesto detonador que traz «a surpresa do minuto seguinte».

Levar o Tempo a surpreender-se a si mesmo é, em LFS, a luta contra o destino, o que gera inclusive o fantástico paradoxo descrito na pág. 198: «Escrever é ter o instinto do infinito, do inacabável (…) é o que nunca acaba (…) Quando se acaba continua-se a escrever na imaginação dos outros».
Bela vingança ontológica que subtrai ao Tempo os seus trunfos.

Creio surpreender outro motivo para que este “Beat” nos gratifique: tudo o que a geração beat nos ensinou – a imaginação que se gemina com a responsabilidade (numa perspectiva salvífica), os valores da dignidade do inaparente; a consonância entre a vida e a arte, num acordo entre a ética e a estética – isso que hoje se ensombra, em risco de dissipar-se, realça-se neste “Beat” com um inescapável furor político, o que o torna, além de contingente, necessário.

É um livro híbrido, como diz o autor, e de tal modo que a sua prefaciadora, Graça Capinha, o lê como “uma autobiografia-poema-ensaio-testemunho-panfleto” e contém, nos seus cerca de 500 fragmentos de prosa poética, o pulsar de uma geração; a que apanhou de chofre o 25 de Abril à saída da adolescência ou nas primícias de ser adulto, e que mergulhou nessa latejante simbiose (a que conjugava os surrealistas, os poetas beats, a pop arte e o pensamento libertário).

Uma geração de excessos, embora, uma das coisas que me agrada no livro, Sarmento não faça disso heroicidade, navegando pelo contrário numa margem ambivalente, que tanto sagra as euforias conquistadas (ao amorfo país que saía do fascismo) como critica algumas toxidades.

Este livro alegra-nos, além disso, por motivos pessoais. Diz o Luís Filipe: «A chegar aos sessenta e cinco anos de idade e ainda estou convencido de que só agora percorri metade do meu caminho», o que é muito animador.

Refira-se ainda um último aspecto do livro, as golfadas de humor que às vezes surpreendem o leitor e que o agarram. Demos dois exemplos: «Quando estou vestido questiono o espírito. Quando estou nu não há uma única oração que me eleve»; «O que resta é esse sentido abissal e cortante do humor, ferindo a paisagem repleta de homens de joelhos, em busca de uma eternidade ajardinada».

O resto é o amor que também ganha cidadania no livro: «Ganhámos a pele e friccionámo-la até o labor do fogo».

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Maria José de Vasconcelos
Maria José de Vasconcelos
18 Nov 2022 06:19

Brilhante 👏