Depois da realização do 20.º Congresso Nacional do Partido Comunista da China

O 20.º Congresso Nacional do Partido Comunista da China terminou a 22 de Outubro, tendo sido colocadas “Duas Salvaguardas” na Constituição do Partido. Do encontro saíram também “Dois Estabelecimentos” que implicam o “estabelecimento da condição do camarada Xi Jinping como núcleo do Comité Central do Partido e de todo o Partido” e “o Estabelecimento do papel orientador do Pensamento Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para a nova era”. Depois de Xi Jinping ter resolvido os assuntos e as questões do Partido, e os respectivos entendimentos pessoais, os problemas remanescentes vão implicar grandes desafios para o Presidente da República Popular da China.

Apesar do impacto da pandemia, a economia chinesa continua a crescer, embora este crescimento não tenha conseguido atingir a meta essencial dos 6 por cento anuais. Uma série de problemas irão naturalmente surgir devido ao desaceleramento do crescimento económico. Além disso, os Estados Unidos impuseram restrições abrangentes na exportação de semicondutores avançados para a China bem como à contratação de pessoal tecnológico. Por isso, a manutenção da reputação da China como a “fábrica mundial” vai representar um sério desafio para o país. Para além de salvaguardar o estilo de vida da população, que é a questão fundamental, o maior flagelo que ameaça a governação da China é a corrupção.
Xi Jinping disse uma vez que a corrupção pode destruir o Partido e o país. No entanto, a “matança dos tigres e o afugentamento das moscas” que tem sido levada a cabo ao longo dos últimos anos, nunca mais chega ao fim. Resta saber como levar os funcionários e os quadros a “não terem a oportunidade, nem o desejo, ou a audácia para se envolverem em esquemas corruptos” e criar um mecanismo de supervisão sólido e perfeito para este fim. Uma das formas de viabilizar este objectivo é “pôr o poder no espartilho do sistema”. Desde a implementação do “Regime Jurídico da Declaração de Bens Patrimoniais e Interesses” na RAE de Macau, que traz à luz do dia os bens patrimoniais e os interesses de titulares de cargos públicos, o nível de corrupção na cidade baixou significativamente. A partir da experiência de Macau, a aplicação do Regime de Declaração de Bens Patrimoniais e Interesses aos funcionários-chave da China seria uma tarefa difícil, que exigiria perseverança.
Outra questão que o Partido Comunista chinês tem de abordar, é a unificação do país. A 25 de Outubro de 1971, a República Popular da China (RPC) foi reconhecida pela Nações Unidas como “a única representante legítima da China”. Taiwan só pode participar em eventos internacionais sob a designação de “Taipé Chinesa”.
Sun Yat-sen, conhecido como o “Precursor da Revolução, disse, “o caminho da unificação nacional pode ser obtido pela força ou pela conquista do coração das pessoas…o uso da força daria lugar ao aumento das más práticas e resultaria inevitavelmente em autocracia…e o fracasso na união do espírito do povo iria conduzir aos caos”. A guerra russo-ucraniana, que ainda está em curso, serve para mostrar ao mundo que as questões políticas devem ser resolvidas por meios políticos. Em 2019, Xi Jinping apresentou a política dos “Cinco Pontos” a fim de lidar com a questão de Taiwan, na qual o Segundo Ponto se referia a “adaptar o princípio “Um País, Dois Sistemas” a Taiwan para facilitar a reunificação pacífica da China. No entanto, como será possível obter a reunificação pacífica no meio de um cenário internacional complicado? Acredito que será uma missão difícil.
Depois da conclusão do 20.º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, o futuro do país será condicionado pelas doutrinas estabelecidas. Mas Hong Kong e Macau não parecem ter beneficiado do “sucesso de conclusão do 20.º Congresso”. O Index Hang Seng de Hong Kong atingiu os níveis mais baixos nos dois dias que seguiram à conclusão do 20.º Congresso. Embora Macau não tenha sentido grandes oscilações, a sua receita bruta proveniente dos jogos de fortuna ou azar apenas totalizou cerca de 31,8 mil milhões de patacas, nos primeiros nove meses de 2022. A receita bruta anual dos jogos de fortuna e azar está estimada para um valor inferior a 60 mil milhões de patacas, números que divergem das correspondentes receitas anuais inicialmente estimadas em 130 mil milhões de patacas, o que são dados muito preocupantes. Após a conclusão do 20.º Congresso, terá Macau oportunidade de recuperar a sua vitalidade?

Em Novembro, o Chefe do Executivo, Ho Iat Seng, irá apresentar as “Linhas de Acção Governativa para o Ano Financeiro de 2023”. Se virmos as prioridades da acção governativa do Governo da RAEM em 2022, a saber “prevenir a epidemia, estabilizar a recuperação, manter o bem-estar da população, promover a diversificação, reforçar a cooperação e procurar o desenvolvimento”, parece que muitas destas prioridades ficaram aquém dos seus objectivos. Após a conclusão do 20.º Congresso, além de aplaudir os resultados do Congresso, será o Governo da RAE de Macau capaz de definir um atalho para completar o “último quilómetro” destas prioridades nas próximas “Linhas de Acção Governativa para o Ano Financeiro de 2023”?

28 Out 2022

Como chegou a China à “nova era”

O 20º Congresso do Partido Comunista da China (PCC), que terminou no passado domingo, constitui-se como um marco no desenrolar do recente processo histórico chinês. No Ocidente, dificilmente se encontra uma compreensão justa e efectiva do que se passou e, sobretudo, dos acontecimentos e ideias que desembocaram no relatório apresentado pelo Comité Central e à manutenção de Xi Jinping como secretário-geral do Partido, quebrando um hábito que vinha do tempo de Deng Xiaoping, que estipulara o prazo máximo de dez anos para o exercício continuado do poder ao nível mais alto do Estado.
Para lermos de forma eficaz o que se passou e descortinar as razões que enformam as principais decisões teremos de adoptar dois caminhos: por um lado, utilizar conceitos do pensamento chinês e aplicá-los à realidade chinesa, ao invés de pretendermos utilizar unicamente conceitos importados de ideologias ocidentais; por outro lado, fazer um breve resumo histórico, desde a abertura iniciada em 1978, com o intuito de melhor nos situarmos no actual momento, que o PCC chama de “nova era”.
Assim, começaremos por tentar compreender o que se chama de “socialismo de características chinesas”, cujas origens detectamos no pensamento de Mao Zedong, nomeadamente num texto de 1937 intitulado “Sobre a Contradição”. Nesse documento, Mao reformula a aplicação do marxismo à realidade chinesa, recusando para a situação chinesa a noção dialéctica hegeliana de “tese, antítese, síntese”, adoptada por Marx e com traços do evolucionismo oitocentista, que nos fecharia numa escatologia finalista, em que a História permanentemente se resolveria, como queriam Hegel, ao propor um fim da História resolvido no modelo do Estado prussiano, e Marx, ao prescrever um modelo que se finalizaria no socialismo e no comunismo, depois da fase capitalista. Mao Zedong prefere, em termos práticos, pensar e agir, inspirado na cultura chinesa, uma dialéctica da impermanência em que constantemente no socius se vão criando oposições contraditórias, mas não rígidas e exclusivistas, que garantem um movimento perpétuo de ajustamento político, económico e social, como acontece entre o Yin e o Yang. Restará então aos líderes políticos identificarem, em cada momento, quais as contradições predominantes na sociedade de modo a equilibrarem o sistema e garantirem outro dos valores fundamentais do pensamento político chinês: a harmonia.
O que também foi entendido pelo chamado “marxismo de características chinesas” é que, desta vez de acordo com Marx, dificilmente uma sociedade transitará de um momento feudal, ruralista ou mesmo industrial primitivo, para um modelo de existência socialista. Na verdade, ainda em termos marxistas, só com um desenvolvimento brutal das forças produtivas, sob a égide do mercado capitalista, se conseguirá alcançar a produção suficiente de bens e serviços que sejam suficientes para pensar numa distribuição socialista. Esta também não será possível sem a existência de um radical avanço tecnológico que liberte a mão-de-obra e instaure um novo paradigma de trabalho e de trabalhador. Foi este caminho que Deng Xiaoping inaugurou na década de 1980, procedendo em dois movimentos: o primeiro consistiu na permissão para o aparecimento da iniciativa individual, que se traduziu no florescimento de milhões de pequenas empresas privadas; e o segundo que passou pela privatização em grande escala de empresas estatais. Se o primeiro teve resultados extremamente positivos e é de algum modo responsável pela extraordinária criação de riqueza a que assistimos nas últimas três décadas, bem como pela superação das crises cíclicas inerentes à produção capitalista; já os resultados do segundo fez o país arcar com consequências que nem sempre foram entendidas pela população como positivas, nomeadamente a abertura de um gigantesco fosso entre ricos e pobres, entre regiões desenvolvidas e regiões esquecidas e, sobretudo, o advento de corrupção em larga escala.
Teremos de lembrar que as manifestações de final da década de 1980 na Praça Tiananmen começaram como protestos contra a corrupção, nos quais predominavam jovens indignados pelas injustiças sociais decorrentes dessas privatizações (desemprego, inflação, corrupção galopante, enriquecimento indevido), o que explica a paciência das forças governamentais, e só mais tarde foram introduzidas ideias anti-regime.
Quando em Outubro de 1992, me encontrava em Pequim para cobrir como jornalista o 14ºCongresso do PCC, sob a liderança de Jiang Zemin, era convicção generalizada dos jornalistas estrangeiros que, na sequência dos incidentes de Tiananmen e da desintegração da URSS, a China iria fazer marcha-atrás na sua reforma económica e abertura ao exterior, partindo do princípio marxista segundo o qual uma mudança na infraestrutura levaria fatalmente a uma mudança superestrutural e em causa ficaria o regime. Contudo, para surpresa geral, Jiang Zemin proclamou a ampliação das reformas e da abertura ao exterior, criando as possibilidades do mega-crescimento da economia chinesa, a que o mundo assistiria com espanto nas duas décadas seguintes. A China não apenas se reformava internamente, expandindo as privatizações de bens estatais e admitindo a generalização da iniciativa privada, como ajustou o seu sistema legal de modo a participar na globalização em curso, culminando com a sua entrada na Organização Mundial de Comércio. Jiang Zemin avançou com a “Teoria dos Três Representantes”, a saber, “o Partido deve sempre representar as necessidades ligadas ao desenvolvimento das forças produtivas da China, a orientação da cultura superior da China, e os interesses da larga maioria do povo chinês”. Em menos de vinte anos, o País do Meio transformava-se na segunda maior economia do mundo, precisamente porque libertou, de forma radical, o desenvolvimento das forças produtivas. No entanto, nesse movimento, foram preteridos, esquecidos ou abafados os outros dois componentes da teoria. Os problemas sociais transformaram-se em problemas do mercado e o PCC, enquanto partido-Estado, agora mais administrador do que líder ideológico, deixou fazer, deixou passar, agindo de forma quase despolitizada, ainda que mantendo uma linguagem ideológica, quantas vezes desajustada das suas acções administrativas.
A liderança seguinte, de Hu Jintao e Wen Jiabao, em pouco ou nada alteraria este estado de coisas. Pelo contrário, mostrou-se capaz, por um lado, de manter a economia a crescer continuamente, muito graças à iniciativa privada baseada nas relações locais e na mercantilização social, mas foi incapaz, por outro, de travar a crise moral que ao mesmo tempo se instalava em todos os recantos da sociedade chinesa, resultante do esboroamento de todos os valores que a mercantilização da vida provoca. Hu e Wen adoptaram um estilo receptivo (Yin) de governação, mais inclinados para deixar fazer do que para tomar a iniciativa enquanto liderança nacional. O próprio Partido parecia transformar-se num gestor de problemas de mercado e não num líder capaz de mostrar um caminho convincente e seguro, gerador de valores capazes de agregar o povo à sua volta.
Ganhar dinheiro, enriquecer a qualquer custo (não colectivamente como queria Deng Xiaoping), consumismo frenético e ostentatório, o desperdício, a frivolidade, tornaram-se nas palavras de ordem dessa nova China de tendências neoliberais. As forças produtivas de tal modo se libertaram e agiram a seu bel-prazer que se cavou um fosso ainda maior entre as gentes e entre as regiões, como se colocou em grave risco o equilíbrio ecológico, na medida em que as fábricas cometiam crimes ambientais, com o intuito único de maximizar os lucros. A economia chinesa, graças ao trabalho árduo do seu povo e à sua lendária mestria para os negócios, cresceu desmesuradamente, mas esse crescimento não era acompanhado ideologicamente por valores que permitissem a criação de uma sociedade minimamente saudável, com perspectiva de futuro e muito menos estribada nos conceitos socialistas de justiça social, distribuição de riqueza, igualdade e benefício comum. Tal como aconteceu no Ocidente, mas de forma mais radical, os valores simplistas do mercado, baseados unicamente no lucro, penetraram em praticamente todas as áreas das actividades humanas, destruindo quer valores tradicionais, quer valores socialistas. Não admira por isso que tenhamos assistido, já na primeira década deste século, à tentativa ainda tímida do ressurgimento de Confúcio, resgatado como “tesouro nacional”, na tentativa de dar algum substrato moral à sociedade e ao comportamento dos homens. Como não admira igualmente que se tenham ouvido vozes, da chamada Nova Esquerda, contra o capitalismo e a sociedade mercantil.
Ainda antes da sua chegada ao poder, já Xi Jinping identificava, recorrendo ao pensamento maoista de 1937, quais as oposições fundamentais que urgia reparar na sociedade chinesa, nomeadamente a oposição entre cada vez mais ricos e cada vez mais pobres, que ameaçava fazer estalar o verniz político-cultural. Daí que no seu primeiro mandato, a partir de 2012, tenha elegido como prioridade “a luta contra a corrupção” e a criação de “uma sociedade moderadamente próspera”, o que implicava a eliminação da pobreza extrema que, longe do brilho dos grandes burgos, ainda grassava, enraizada e endémica, nas zonas rurais da China.
Contudo, Xi Jinping não se ficava por aqui. Seria necessário, no seu entender e certamente de uma grande maioria de quadros comunistas, “renovar o povo” (como diz Confúcio), isto é, recuperar conceitos como a existência de um poder exemplar e virtuoso que sirva de referência à população e não elementos corrompidos pelos valores do mercado. Só assim o povo poderia de novo acreditar no seu governo e emulá-lo nos seus quotidianos. A ideologia teria de passar novamente pelos valores morais e não assistir distante ao seu desaparecimento. O Partido voltaria novamente a liderar, indicar claramente o caminho e não apenas gerir os problemas que o mercado ciclicamente levanta.
Assim, teriam de ser pensados os valores que regem as relações entre os indivíduos, entre o indivíduo e a comunidade, entre a comunidade e o governo, entre o ser humano e a natureza, entre as pessoas e a nação e, finalmente, entre a nação e mundo. E a verdade é que no limiar de 2010, todos eles se encontravam em crise, desconjuntados pela mercantilização generalizada de todas estas relações.
Foi isso que Xi Jinping fez, lançando mão do marxismo renovado e da preciosa cultura chinesa, dos clássicos à modernidade. Não é por acaso que, logo em 2013, visitou Qufu, a cidade de Confúcio, prestando homenagem ao Mestre e recuperando-o definitivamente para a ribalta do actual pensamento chinês, agora vestido de roupagens condicentes com o século. Como também não é por acaso que os seus discursos são pontilhados de milhares de citações de outros autores clássicos, na tentativa de mostrar a ancestral riqueza cultural da China ao seu próprio povo, que se deixara em parte seduzir por valores estrangeiros, pretensamente universais, mas que não passam na realidade de novas formas de colonialismo cultural, que escondem um histórico desejo de hegemonia.
Entretanto, depois de uma primeira fase em que, maravilhados pelas oportunidades de negócio, os Estados Unidos assistiam, relativamente impávidos, ao crescimento chinês na esperança de também controlarem o seu gigantesco mercado, rapidamente perceberam que estavam a perder um jogo jogado com as regras que eles próprios impunham ao mundo. Era tempo de as alterar, de não as cumprir, e de tornar a China no “inimigo”, inaugurando uma mentalidade próxima da que existia no tempo da Guerra Fria.
Podemos então considerar que a actual situação chinesa, saída do 20º Congresso do PCC, decorrerá de dois principais factores, entre outros: primeiro, a necessidade de resolver as oposições internas, resultantes das tendências neoliberais, que esboroavam a sociedade, os seus valores, o próprio Partido e o caminho para o socialismo; segundo, a defesa aos ataques externos, cada vez mais frequentes e agressivos. É por tudo isto que no 20º Congresso do PCC se sentiu a necessidade premente da continuação de uma liderança forte (Yang), unida e sem dissensões, criada à volta de Xi Jinping, que projecte a imagem de um Partido capaz de conduzir o país, sem recuos, ao “sonho chinês”; capaz de renovar o povo e rejuvenescer o país, através de valores tradicionais como a virtude, o orgulho/amor à pátria, e de valores socialistas como uma mais justa distribuição da riqueza; capaz de manter o crescimento económico, mas também capaz de limitar os efeitos perniciosos do mercado e das suas principais empresas de tendência expansionista e monopolista, como a Evergrand, a Alibaba e a Tencent, por exemplo; capaz de se globalizar sem pretender hegemonias ou conflitos armados; capaz de colocar o povo no centro dos seus interesses e como destinatário do desenvolvimento do país; capaz de o fazer acreditar que se encontra no caminho para uma sociedade mais justa e igualitária.
O extraordinário crescimento económico da China precisava de ser reequilibrado de diversas maneiras porque ele nem sempre significa desenvolvimento e qualidade de vida. Uma delas é, com certeza, através da modernização e da inovação científico-tecnológica, outra é de um fundamental cuidado ambiental que repare os males feitos nas últimas décadas pela corrupção e o laxismo.
Xi Jinping pugna por um Partido forte e unido, capaz de resistir às forças de um mercado que também não pretende abafar, mas tornar menos selvagem internamente e menos dependente de um exterior cada vez mais agressivo; mais auto-suficiente, mas também capaz de cooperar com aqueles que sejam capazes de entender que devemos caminhar para uma comunidade global de futuro partilhado e não para quem deseja a hegemonia e relações de subserviência entre nações ou civilizações, adeptos de “excepcionalismos” que querem apresentar-se, mitologicamente, como incontornáveis e como sendo o final da História. Esta, na sua imprevisibilidade e impermanência, encontrou sempre meio de nos surpreender, obrigando a que, em cada momento, baseados no saber, na experiência e nos factos, se dêem passos, nem sempre fáceis nem bem compreendidos, para a construção de sociedades mais justas.
O PCC sai deste 20º Congresso como o maior partido marxista do mundo no poder, mas não se apresenta como modelo a seguir. Pelo contrário, em termos internacionais, sugere aos países em desenvolvimento que aprendam com a sua experiência, com as suas façanhas e com os seus erros, e que cada um siga o seu caminho, de acordo com as suas especificidades culturais e civilizacionais, bem como com as realidades sociais concretas em que, neste momento, se encontram. Já a China saiu deste 20º congresso do PCC com um quadro onde estão bem definidos não apenas os traços gerais mas sobretudo os caminhos concretos do que chama sua “nova era”.

28 Out 2022

Outros Albergues

Quem ainda persiste nessa Cidade do Nome de Deus foi talvez em busca de um Oriente metafísico ou, mais prosaicamente, dessa outra luz que é o ouro das patacas. A cada qual seu oriente, e talvez não haja melhor oriente do que esse “Oriente ao oriente do Oriente” de que falava Álvaro de Campos, e que não é mais do que o próprio Ocidente. Afinal, o único oriente que fica depois do Oriente, feita a volta, só pode ser o Ocidente, enfim reencontrado.

Vem isto a propósito de um recente livro de poesia (Tomás Sottomayor, Auberge Ravoux. Lisboa: Língua Morta, 2021) publicado em Portugal, que merece ser saudado por apontar para um mundo e para matrizes radicalmente diferentes dos que hoje se acham na jovem poesia portuguesa.

Não se aproxima dos temas luso-orientais que nos têm ocupado, mas o seu autor lembra-nos aqueles que como Pessoa, começaram por um orientalismo esoterizante (ou um esoterismo orientalista) e que se foram transferindo para as tradições do esoterismo e do hermetismo europeu (Hermetismo, Cabala, Alquimia, Rosacrucianismo), o que de alguma forma este livro também dá conta (não dessa passagem, mas apenas da segunda parte). Haverá sempre aqueles que preferem o Oriente ele mesmo, mas talvez os mais interessantes de todos sejam aqueles que desde logo encontram no Ocidente o seu Oriente.

Nos seus melhores momentos, como nos poemas em prosa dispersos pelo livro, Sottomayor consegue um tom próprio, com uma forte coesão de imagens: “Lentamente aflora um girassol no ventre./ Bebe a chama das raízes e consuma/ a alquimia com o rosto de criança./ Respira, e assim o laço está feito./ O nó foi consagrado sem olhos./

Já não pode evolar” (p. 10). O veio aqui ferido é a lírica “espiritual” europeia, partindo de exemplos de Camões e mesmo da tradição trovadoresca em seus enlaces com a poesia tradicional, com vista às exemplaridades simbólicas e religiosas do amor heterossexual.

No livro, isto depende diretamente de um vocabulário em caixa alta, como em Ângelo de Lima e nos modernistas portugueses, que serve não só para explorar o simbolismo metafísico-religioso de linhagem rilkeana (Criança, Anjo, Fonte, Sopro, Céu), mas também visando uma linguagem conceptual ou para-filosófica que redunda num excesso de substantivos abstratos (Perenidade, Corporalidade, Virtualidade, Infinito).

É contudo este último um registo demasiado pesado para o seu próprio discurso lírico, e que o livro suporta mal. Por outro lado, o espiritual decai uma ou outra vez em moral, ou moralista, quando fala da suposta decadência espiritual do mundo contemporâneo: a escravidão do homem de hoje às coisas (p. 50-51), quando não há, nem nunca houve, homens sem coisas nem coisas sem homens. Onde está a decadência num mundo que sempre assim se nos apresentou? Entre um escaninho dum mestre flamengo e um iPhone que diferença real existirá?

É assim uma voz em construção, ainda não inteiramente solta das suas referências. São algumas vezes visíveis as costuras dos seus nós, como por exemplo no poema da p. 20, verdadeira reescrita de temas e material verbal de Hoelderlin.

Mas o livro vai se adensando ao passar a leitura, movido por uma visão (e é da tradição da Poesia como Visão superior que se trata, p. 41) cósmica e amorosa, até mesmo órfica (p. 40), com momentos já plenamente conseguidos: “Do seio da noite arqueada/Taciturno sorvo o leite negro/ De tudo o que se perdeu./Ajoelho-me sob o peso da tua mão/E aguardo o sinal para que a minha/Se mova sem hesitação/Para arquear um novo céu./Tenho um desejo insular/Por mundos invisíveis” (p. 39).

Um poema como este cifra uma situação que vem das cantigas de amor provençais: a submissão encenada do homem-vate a uma mulher que é, sem deixar de ser carnal, uma instância essencialmente espiritual, que dá o signo ou o sinal ao seu amante para que perfaça a operação mental da poesia. É certamente fora do vulgar nos dias de hoje e coloca Tomás Sottomayor na esteira de uma tradição de que saberá colher frutos imprevistos, e de que é já fruto.

26 Out 2022

O 20.º Congresso PCCh reforça a abertura da China ao exterior

Por Rui Lourido – Historiador;  Presidente do Observatório da China; Presidente da União de associações de Cooperação e Amizade Portugal-China

Na cosmopolita cidade de Beijing decorreu, entre 16 e 22 de outubro de 2022, o 20.º Congresso do Partido Comunista da China (PCCh). Não surpreende que, durante esta semana, o congresso do PCCh seja reconhecido como o acontecimento político mais importante a nível mundial. Para além de ser o país mais populoso da face da terra, com 1 bilião e 400 mil milhões de habitantes, revelou-se como o que melhor se desenvolveu social e economicamente, nas últimas décadas, de forma sustentável e sempre pacífica.

Nas palavras do partido comunista, esse sucesso permitiu à China atingir a meta de uma “Sociedade Moderna e Moderadamente Próspera” e preparar-se cuidadosamente, através deste 20.º congresso, para definir as ações estratégicas dos próximos 5 anos, que permitam à China evoluir para uma nova e mais ambiciosa fase da sua evolução histórica, a de construir um país “Socialista e Moderno em todos os aspetos”, utilizando todos os seus recursos e capacidades de inovação.

A resolução final do congresso, aprovada no dia 22 de Outubro, reafirma que “a modernização chinesa … visa promover a prosperidade comum de todo o povo, coordenar o progresso material, cultural e ético, procurar a convivência harmoniosa entre o ser humano e a natureza e segue o caminho do desenvolvimento pacífico”.

O congresso atualizou os Estatutos do PCCh e elegeu uma nova Comissão para a Disciplina, bem como elegeu um renovado Comité Central e reelegeu, por unanimidade, Xi Jinping e o seu pensamento para guiar o partido e a China nesta nova etapa de “desenvolvimento de alta qualidade”.

O PCCh é o maior do mundo, com mais de 96 milhões de membros, dos quais 99.5 % participaram no processo democrático de base que elegeu 2.296 delegados ao 20.º Congresso, representando a diversidade de estratos sociais e as 56 diferentes minorias étnicas, bem como todas as províncias, as 5 regiões autónomas e as 2 Regiões Administrativas Especiais (Macau e Hong Kong) que integram a China.

A resolução final do Congresso defende o reforço, e mesmo o prolongamento no tempo, do princípio de “um país e dois sistemas”, afirmando que «é o melhor entendimento institucional para fortalecer a prosperidade e a estabilidade duradouras em Hong Kong e em Macau, após o seu retorno à pátria, e que por isso devemos persistir nesse princípio por longo tempo. Devemos implementar plena, correta e inabalavelmente os princípios de “um país, dois sistemas”, com “Hong Kong administrado pela gente de Hong Kong”, com “Macau administrado pela gente de Macau” e com alto grau de autonomia, no respeito pela lei».

Quanto à questão de Taiwan, o Congresso reafirmou o princípio de “Uma só China”, o “Consenso de 1992” e a necessidade da reunificação da pátria por meios pacíficos, privilegiando a intensificação das relações socioeconómicas entre os dois lados do estreito. O Congresso foi, no entanto, muito claro na oposição firme à interferência de países estrangeiros, afirmando que se vier a ocorrer a tentativa de declarar a independência em Taiwan, a China não deixará de usar a força para fazer regressar a sua província rebelde à Pátria.

No que se refere às relações internacionais, Xi Jinping apelou à comunidade internacional para colaborar nos diversos desafios globais, promovendo o conhecimento e o entendimento entre os povos e fomentando os valores comuns da humanidade, como a paz, o desenvolvimento, a equidade, a justiça, a democracia e a liberdade.

O Mundo têm testemunhado que o governo do PCCh tem vindo a reforçar a participação da China na construção do novo modelo de desenvolvimento global, que permita enfrentar e solucionar os principais desafios globais da humanidade na atualidade: na resposta urgente e global à COVID-19, e na difusão de vacinas aos países mais necessitados ; na prioridade à cooperação global com vista à redução da pobreza (o aumento do fosso entre pobres e ricos impulsiona movimentos migratórios) ; no reforço da segurança alimentar; no financiamento do desenvolvimento sustentável e verde; na luta global contra as alterações climáticas ; e finalmente na pacificação das relações internacionais.

O 20.º congresso do PCCh aprovou o reforço da abertura da China ao Mundo, aumentando, continuamente, a sua participação no concerto das Nações e reafirmando a Iniciativa de Segurança Global, proposta pelo presidente chinês Xi Jinping, como uma ordem mundial baseada no multilateralismo para fortalecer a Organização das Nações Unidas.

Tal ordem permitirá a coexistência sustentável e pacífica de todas as civilizações com base em regras inclusivas e transparentes: segurança comum, abrangente e sustentável; esforços conjuntos para manter a paz e a segurança mundial; respeito pela soberania e a integridade territorial de todos os países; defesa da não ingerência nos assuntos internos; respeito pelas escolhas das diferentes vias de desenvolvimento e dos sistemas sociais de cada país; respeito pelos princípios da Carta da ONU; rejeição da mentalidade da Guerra Fria, opondo-se ao confronto entre blocos geopolíticos.

O congresso do PCCh defendeu o diálogo e o desenvolvimento sustentável que permitam a inclusão de todos os países, através de negociações e cooperação de ganho mútuo . Segundo Xi Jinping, a modernização da China desenvolver-se-á segundo as características chinesas, “Devemos persistir na direção de reforma da economia de mercado socialista e na abertura ao exterior de alto nível, acelerando a estruturação de um novo paradigma de desenvolvimento de “dupla circulação”, sob o qual os mercados nacional e estrangeiro se reforçam entre si, tendo o mercado doméstico como pilar” .

Com o objetivo de impulsionar a inovação científica e tecnológica para a partilha do crescimento económico e o desenvolvimento sustentável de alta qualidade, para estabelecer as bases de uma Eco civilização, num processo pacífico de construção de uma comunidade mundial próspera e de um futuro partilhado para a Humanidade.

25 Out 2022

Políticas de HK para 2022 – Na perspectiva da administração pública (I)

A semana passada, Li Jiachao, Chefe do Executivo de Hong Kong, apresentou o primeiro plano de políticas públicas, desde que tomou posse. Em geral, os conteúdos apresentados são abrangentes, substanciais e exequíveis.

O plano menciona que Hong Kong deve apostar seriamente no desenvolvimento do distrito norte. Futuramente, um terço da população da cidade vai viver nessa zona e os benefícios económicos serão enormes.

O plano de políticas públicas tem uma grande variedade de conteúdos, a maior parte dos quais se baseia na actual situação de Hong Kong, mas os que se centram nas finanças, na tomada de decisões e na administração do funcionalismo público merecem algumas considerações.

Em relação às finanças, o plano assinala que Hong Kong vai criar a “Hong Kong Investment Management Co., Ltd.” para gerir as reservas fiscais a bem do desenvolvimento da economia. O capital inicial da Hong Kong Investment Management Co., Ltd. provem do “Hong Kong Growth Portfolio”, do “Hong Kong Future Fund”, do “Greater Bay Area Investment Fund”, do “Strategic Innovation and Technology Fund”, e do “Co-investment Fund”.

Depois do Governo de Hong Kong reunir estes fundos, passará a investi-los.
O plano não refere o montante do capital inicial da Hong Kong Investment Management Co., Ltd. Mas uma coisa é certa, após a consolidação destes fundos, ao investi-los, bem como às receitas que vão gerar, o Governo de Hong Kong irá obter mais uma fonte de receitas para lá dos impostos.

Embora alguns profissionais tenham assinalado que é provável que a pandemia termine em 2024, tal não acontecerá de um dia para o outro, e todos vivemos ainda tempos de recessão económica. Durante este período, as receitas do Governo provenientes dos impostos são bastante menores e se o Executivo quiser prestar assistência económica aos residentes vai inevitavelmente ter problemas financeiros.

Com a criação da Hong Kong Investment Management Co., Ltd. os investimentos com as verbas dos fundos acima mencionados serão feitos de forma unificada, o que poderá trazer uma fonte de receitas adicional ao Governo da cidade, reduzindo assim a sua pressão financeira.

Agora será importante perguntar qual vai ser o retorno destes investimentos. No entanto, é uma pergunta difícil de responder. De uma forma geral, os investidores esperam um retorno não inferior a 4 por cento. Baseando-nos nestes cálculos, com um investimento de 10 mil milhões, pode obter-se um retorno de 400 milhões ao fim de um ano.

A despesa média anual do Governo de Hong Kong é de cerca de 500 mil milhões. Comparados com este valor, 400 milhões não terão certamente um impacto significativo nas finanças do Governo. Em todo o caso, num período de recessão económica e de redução das receitas provenientes dos impostos, sempre é melhor obter receitas alternativas que não dependam de um agravamento do estilo de vida da população.

Quando temos de lidar com finanças públicas temos de ser muito prudentes. O retorno obtido com investimentos é variável. Porque este ano obtivemos um retorno de 4 por cento não significa que o mesmo se vá verificar no próximo ano e por isso devemos ter sempre muita atenção nestas matérias.

Para além disso, os investimentos envolvem riscos, quanto maior for a recompensa, maior será o risco. Portanto, mesmo usufruindo do retorno do investimento, o Governo de Hong Kong deve também ter um plano de reserva. Se houver uma perda do capital investido, o que é que se deve fazer? Se não houver um plano de reserva, o risco será maior.

Em relação às tomadas de decisões públicas, o plano propõe a criação de uma “equipa vermelha”, responsável por criticar e opor-se às políticas públicas. Nos exercícios militares, a equipa vermelha desempenha o papel do inimigo e a nossa equipa recebe o nome de equipa azul. A equipa vermelha irá desafiar o plano operacional usando táticas, técnicas e equipamentos apropriados. A grande vantagem deste método é podermos ficar a “conhecermo-nos e também ao nosso inimigo”. Desde que consigamos antecipar qualquer problema com a nossa tática, podemos precaver-nos com antecedência; portanto, esta abordagem também pode ser chamada ” análise de substituição “.

O maior benefício da aplicação do conceito de equipa vermelha à formulação e implementação de políticas é, naturalmente, a identificação das lacunas políticas com antecedência e a possibilidade de as poder optimizar, reduzindo assim os problemas que surgem após a implementação dessas políticas. A discussão do Plano de Políticas Públicas de Hong Kong para 2022 continua na próxima semana.

 

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

25 Out 2022

A sociedade está podre

Todos nós, uns mais que outros, pensamos na velhice. Como vai ser, quem trata de nós, em que condições estaremos, o dinheiro será suficiente para pagar um lar decente, os familiares alegram-nos, são perguntas que fazemos porque estão incluídas na lei da vida.

Na velhice há casos de bradar aos céus. No Japão, por exemplo, descobriram que o número de idosos com 100, 110 e 120 anos era uma realidade que aumentava anualmente. Criaram brigadas de inspecção e descobriram no interior das casas muitos cadáveres. Os familiares mantiveram durante anos as pessoas mortas para receberem durante todo esse tempo a reforma correspondente de quem já tinha falecido.

Em Portugal, têm-se registados casos macabros, tal como um filho que manteve a mãe dentro de uma arca frigorífica durante cinco anos e esteve a receber a reforma choruda da progenitora. Na semana passada, tive conhecimento de um caso muito triste que já dei conhecimento a um jornalista e que já iniciou a investigação para publicar no seu jornal. Imaginem que uma senhora residente em Lisboa, com 101 anos, acamada, deixou de receber a pensão há seis meses.

Sem nenhum familiar, o seu vizinho de cima foi visitá-la e a senhora contou que tinha deixado de receber a pensão da Caixa Geral de Aposentações (CGA). O vizinho estranhou e indignado dirigiu-se à CGA onde lhe disseram que a senhora já tinha morrido, mas mandaram-no esperar um pouco. O funcionário que o atendeu chamou-o passado algum tempo e transmitiu que a pensão tem sido sempre paga a outra pessoa, mas não quis facilitar o nome dessa pessoa.

O senhor disse que iria levar a senhora numa ambulância à CGA para que vissem que a senhora estava viva. Negaram-lhe a pretensão. O vizinho da senhora deixou claro que o caso era grave e que ia comunicá-lo a alguém ligado à comunicação social.

E assim, um jornalista está a investigar e a introduzir todas as questões relacionadas com a gravidade de uma cidadã de 101 anos, acamada, sem família e que não recebe pensão há seis meses. As amigas é que têm sido o seu sustento do pagamento da renda da casa, das contas de energia, água e luz. Contudo, a senhora tem apoio domiciliário de uma instituição que lhe leva a alimentação e que trata da sua higiene.

Meus amigos leitores, mas afinal em que país vivemos em Portugal quando existem factos desta natureza que chocam qualquer cidadão. E como é que é possível que um departamento estatal como a CGA possa estar a pagar a pensão devida à idosa em causa a outra pessoa? É difícil compreender que existam fraudes no seio da administração pública que afectem pessoas que simplesmente aguardam pela morte e que deviam ter os seus dias com o mínimo de amparo e a receberem o que têm direito por lei.

Estamos perante um caso do qual tivemos conhecimento casualmente. Mas existirão mais casos idênticos pelo país fora? Quem pode saber? Quem investiga? Qual a punição que deve ser dada a um filho, familiar ou empregada doméstica que “roube” a pensão que não lhe pertence? Não encontramos resposta.

O que sabemos é que os idosos em Portugal são maltratados em muitos lares, que a sua permanência nos lares tem como contrapartida a entrega de toda a pensão ou reforma que recebem. A comunicação social tem divulgado casos desprezíveis, onde em certos lares os idosos são espancados, não lhes dão a alimentação suficiente nem a medicação recomendada pelo clínico que visita os idosos internados. A este propósito, um médico nosso amigo deixou de dar assistência a determinado lar por ter ficado chocado com a situação que encontrou nesse lar e as condições deploráveis em que se encontravam os idosos.

Não podemos calar esta canalha que não respeita os nossos avós. Temos de procurar saber e divulgar o máximo de casos em que idosos estejam a sofrer. O fim da vida é o tempo das recordações, boas e más, o tempo em que o idoso mais precisa de amparo e de apoio psicológico para que esse final do caminho não seja de sofrimento. As autoridades governamentais tinham a obrigação de criar um departamento a nível nacional que se dedicasse exclusivamente à investigação da situação dos idosos.

No interior do país há casos chocantes e que os próprios militares da GNR que percorrem os campos ficam chocados e dão conhecimento superior. No entanto, nem nos militares da GNR se pode confiar porque acaba de ser divulgada uma notícia que dois militares da GNR burlaram uma idosa de uma aldeia com a promessa de lhe comprar um andar no Porto para que ela estivesse perto do Instituto de Oncologia onde tem de receber tratamento.

Esses dois militares ficaram com 150 mil euros da idosa. E não pode ser a GNR a executar esse trabalho de humanismo. Tem de ser criado o tal departamento que investigue e que apoie quem precisar por se encontrar no final da vida e que não pode sentir que o país lhe dedicou o abandono e o desprezo.

23 Out 2022

O charme discreto da social-democracia contemporânea

São muitas vezes ténues as fronteiras entre o pensamento e as práticas das sociais-democracias contemporâneas e dos neoliberalismos mais ou menos hegemónicos que foram tomando conta do espaço e das decisões políticas desde os anos 1980, num processo sistemático e até agora imparável de degradação da democracia, aprofundamento reiterado das desigualdades sociais, concentração crescente do poder económico e político em grupos cada vez mais restritos da população mundial, e destruição sistemática e ocasionalmente irreversível de recursos naturais.

Restam espaços ocasionais onde essas diferenças se possam manifestar, como sejam as políticas salariais ou de estratégias para o desenvolvimento dos serviços e infraestruturas de transporte nos territórios.
Ambos os casos têm por estes dias suscitado acesa discussão na imprensa, redes sociais e outros espaços de convivência mais ou menos civilizada. E, na política portuguesa, em ambos os casos pouco sobra hoje da vontade social-democrata de promover formas de regulação da vida económica e social que não passem pela promoção e reforço dos mecanismos de mercado que a ideologia liberal apregoa.

É verdade que os nomes podem enganar – a mais proeminente família social-democrata chama-se socialista e a família ainda maioritária no campo liberal chama-se social-democrata – mas já levamos décadas suficientes para nos habituarmos a esta nefasta herança pós-revolucionária que adulterou as designações em nome de ocasionais e oportunistas fervores de Abril, entretanto devidamente arrefecidos.

Um desses assuntos já leva meio século de entretidas discussões mas vai sempre voltando com o entusiasmo inicial: que fazer do inusitado aeroporto estranhamente inserido no tecido urbano da capital do país, necessariamente limitado nas suas possibilidades de expansão e um estorvo inevitável para quem viva nas proximidades da circulação de aviões a baixa altitude, sobrevoando a diversidade de bairros da cidade até aterrar a uma inusual curta distância do centro? O mercado oferece oportunidades abundantes, promessas de uma clientela maior e geralmente endinheirada, pelo menos em comparação com a doméstica, ainda e por muito tempo parente pobre da uma Europa que, aliás, já viveu dias mais prósperos.

Responder a essas supostas exigências do mercado é o que se espera do receituário liberal: há que equilibrar a procura e a oferta e se há quem queira vir, haja também aviões suficientes pistas de aterragem, hotéis e tudo o que for preciso. Estamos cá para isso: com as oportunidades e o equilíbrio dos mercados não se brinca, como apregoam os patos-bravos e agiotas deste mundo. Já com o ambiente é tudo mais tranquilo: não há esgotamento de recursos não-renováveis, como os das energias fósseis, ou alterações climáticas mais ou menos evidentes, que neutralizem a fé inabalável que também as sociais-democracias decadentes com que nos toca conviver vão alimentando estes modelos de negócio que devoram o planeta e pouca riqueza geram para quem realmente precisa. A ideia de não se fazer aeroporto nenhum – nem expansão do que quer que seja – está, naturalmente, fora das agendas e dos espectáculos destas decadentes instituições e suas agências noticiosas.

Também a solução mais moderada que se foi timidamente desenhando – a utilização de um aeroporto já existente, em Beja, que promovesse a utilização de infraestruturas já construídos e sub-utilizadas, com a inerente a criação de oportunidades económicas em zonas economicamente periféricas, esteve longe de chegar às fases finais da discussão, onde se parece estar agora. Uma opção deste tipo seria o reflexo de uma política de transporte mais orientada para a intervenção sobre o equilíbrio do desenvolvimento regional e a justiça social e territorial do que para o aproveitamento das supostas oportunidades de mercado associadas ao tráfego aéreo. Debalde se alvitrou esta hipótese: o que prevalece é a concentração do poder e da actividade onde já existe poder e actividade, em nome de uma suposta – e aliás mais que duvidosa – eficiência económica.

Naturalmente que um aeroporto que servisse Lisboa – ou o Algarve – a partir de Beja pressuponha o desenvolvimento de uma rede de transporte ferroviário de alta velocidade, capaz de levar a freguesia chegada à planície alentejana até aos seus destinos na agitação da capital ou das praias do Algarve, quando não fosse o caso, naturalmente, de se manterem tranquilamente pelos prazeres da vida lenta no Alentejo, no campo, à beira-mar ou à beira-lago, que não são poucas as belezas da zona. Foi uma solução também ela pouco levada a sério, quer no campo social-democrata, quer no liberal: comboio de alta velocidade só se for para ligar os dois grandes mercados do país, Lisboa e o Porto, onde está o poder, o dinheiro e as pessoas: reforçar a centralidade com mais centralidade, juntando comboios mais rápidos aos de velocidade bastante razoável que já circulam, às três auto-estradas e às ligações aéreas.

Promover o comboio e usar o turismo para ajudar a financiar infraestruturas de transporte público eficientes e de qualidade para as zonas mais debilitadas nestes serviços também não é assunto que entusiasme a nossa social-democracia. Aliás, mesmo quando estes assuntos são tutelados no governo por figuras supostamente menos orientadas para as cartilhas do neo-liberalismo vigente, assistimos a um reforço sistemático dos mecanismos de mercado que alimentam o centralismo, ignoram as emergências ambientais e até os princípios básicos do supostamente consensual “desenvolvimento sustentado”.

Partilharam estas discussões parte do espectáculo noticioso quotidiano com outro assunto onde sociais-democratas e liberais podiam, noutros tempos, oferecer árdua e vigorosa batalha de gládio em punho: as políticas salariais para os próximos anos, tempos incertos, de guerra, especulação e exploração massiva de recursos colectivos, num contexto desta vez condicionado por níveis de inflação a que há muito não assistíamos. Conta a imprensa que só a CGTP ficou de fora deste acordo de médio prazo que garante níveis de aumentos salariais com rara precedência histórica.

Mas podia ser outro o espectáculo das notícias: afinal, o tal governo supostamente social-democrata, a suposta oposição liberal, os representantes das empresas e parte dos supostos defensores dos direitos de quem trabalha, assinaram um acordo que determina uma descida continuada e persistente do poder de compra de uma das populações mais pobres da Europa. A organização mais representativa de quem trabalha só podia ficar de fora deste negócio e assim fez. Afinal, com sociais-democratas assim, quem precisa de liberais?

20 Out 2022

Juízes sem toga

A semana passada, um órgão de comunicação social de Macau assinalou que existem na China cerca de 330.000 juízes “sem toga” que participam em julgamentos, de acordo com a lei. Podem emitir opiniões e receber protecção legal.

“Juízes sem toga” são “assessores populares” dos tribunais chineses. A 27 de Abril de 2018, a China implementou a ” Lei da Assessoria Popular da República Popular da China “, a primeira lei sobre esta matéria na história chinesa.

Segundo o “Relatório sobre a Prática do Sistema de Júri do Povo na China ” emitido pelo Supremo Tribunal do Povo da China no passado dia 11, em Abril de 2015, o referido Tribunal e o Ministério da Justiça incrementaram o novo sistema de júri do povo em 50 regiões e em 10 províncias do país. Actualmente, 53.9 por cento dos assessores populares são homens e 46.1 por cento são mulheres. Do total de assessores, 88.3por cento completaram o ensino secundário ou o ensino superior, 41.7 por cento são trabalhadores por conta de outrem e 21.9 por cento são agricultores ou pessoas sem ocupação fixa.

Após a promulgação da Lei da Assessoria Popular, os assessores participaram em cerca de 2,15 milhões de casos criminais, em cerca de 8,79 milhões casos civis e em cerca de 7 milhões de casos administrativos, nos quais se incluem os 23.000 mais importantes.

A comunicação social também salientava que os assessores populares participam em julgamentos e, partindo da sua experiência de vida social, contribuem com os seus valores e senso comum, trazendo para o tribunal vantagens adicionais.

Os assessores populares não trabalham no tribunal, mas podem participar nos julgamentos, trabalhando em conjunto com o juiz para o ajudar a decidir qual a sentença a aplicar ao réu.

Nos tribunais de Macau não existem jurados que possam ser comparados aos assessores populares, mas em Hong Kong existem e já os podemos comparar.

A maior diferença entre os sistemas de júri na China e Em Hong Kong é o papel que desempenham no julgamento. O sistema de jurados em Hong Kong foi trazido do Reino Unido e, através do Artigo 86 da Lei Básica de Hong Kong, continuou a ser aplicado depois da reunificação com a China. Os jurados em Hong Kong apenas estão presentes no Tribunal de Primeira Instância, no Tribunal de Justiça e no Tribunal que julga casos relacionados com obscenidade e indecência.

No Tribunal de Primeira Instância, os jurados estão presentes nos casos criminais e em alguns, embora poucos, casos civis como situações de difamação. Nos Tribunais de Primeira Instância, os jurados têm de decidir se o réu é ou não culpado da acusação pela qual está a ser julgado, mas não decidem a qual a sentença a aplicar; nem se pronunciam durante o julgamento. No Tribunal de Justiça, os jurados têm de decidir se a vítima morreu ou não na sequência de um acidente. No Tribunal que julga casos de obscenidade e de indecência, têm de decidir sobre o grau de obscenidade do caso que está a ser julgado.

Em Hong Kong, os jurados têm as funções acima mencionadas. Não são especialistas em jurisdição e não têm conhecimentos aprofundados da lei. Portanto, só precisam de se basear nas provas para decidir se o réu é ou não culpado da acusação que sobre ele impende, ou se a causa da morte de vítima foi ou não acidental, e ainda sobre o grau de obscenidade de uma publicação. Estas decisões podem reflectir a opinião pública sobre os casos em questão. Ter um juiz a tratar dos processos judiciais relevantes, ou seja, remeter as questões legais para os peritos, pode tornar o julgamento mais profissional.

Quando se trata de sentenciar pessoas que cometeram crimes, o assessor popular pode reflectir mais adequadamente a crença do público de que os criminosos devem ser condenados. Esta atitude também pode reflectir os padrões morais da sociedade.

Os dois tipos de júri são reflexo de duas sociedades diferentes. O julgamento com jurados é um julgamento em que os representantes do povo participam e onde, através deles, a opinião pública está presente.


Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

18 Out 2022

Um Presidente na berlinda

Os abusos sexuais por parte de membros da Igreja Católica a menores, a mulheres e a adolescentes têm décadas. É um crime que envergonha todos os católicos e tem continuado a ser praticado até aos dias de hoje.

O Papa Francisco revoltou-se com o conhecimento que foi tendo no que se passou em França, Espanha, Portugal, Timor-Leste, Austrália, Filipinas, Venezuela, Brasil e em tantos outros países, e resolveu tomar a decisão de ser radical contra a pedofilia ou o abuso sexual no seio dos prelados da sua Igreja e chegou a afirmar que bastava um acto abusivo sexual para que a imagem da Igreja ficasse manchada.

Em Portugal tem sido um escândalo do mais vergonhoso que se possa imaginar tudo o que tem acontecido em sacristias de igrejas, em colégios privados dirigidos por sacerdotes, em seminários e até em escolas onde padres eram professores de Religião e Moral.

Nos últimos tempos o assunto tem vindo à baila de uma forma chocante ao ponto de ter sido criada uma comissão coordenada por Pedro Strecht, um dos mais conceituados pedopsiquiatras, a fim de ouvir as vítimas desses abusos sexuais que decorreram ao longo dos anos praticados por membros da Igreja Católica.

O próprio Cardeal Patriarca, Manuel Clemente, foi chamado ao Vaticano para que o Papa ouvisse de viva voz o que é que se tem passado em Portugal. Esperemos que tenha explicado ao chefe da Igreja que nos seminários os alunos têm sido abusados de todas as formas, que em colégios privados os padres exerciam a pedofilia como se bebessem um copo de água, que após aulas de catequese as crianças passavam aos gabinetes de padres para a prática do sexo oral, que nas sacristias muitos padres mantiveram relações sexuais com mulheres, que muitos padres não quiseram reconhecer os filhos que fizeram ou abandonaram o sacerdócio antes que as suas amantes os denunciassem e a lista dos abusos não tem fim.

Ainda na semana passada, soubemos que o Ministério Público está a investigar o presidente da Conferência Episcopal, o bispo Ornelas, por ter alegadamente encoberto abusos sexuais de padres em Moçambique.

O bispo do Porto teve o desplante de afirmar que o abuso sexual não era um crime público e de negar a acusação de uma mulher que no seu tempo de estudante se lhe dirigiu dizendo que um padre andava a abusar dela e de quem veio a ter um filho e o bispo acrescentou que não se lembrava de um caso ocorrido há poucos anos, quando, por exemplo, eu lembro-me de um amigo que foi abusado sexualmente há mais de 60 anos.

As vítimas têm perdido o receio de represálias e a vergonha do que lhes sucedeu e têm-se dirigido à comissão de Pedro Strecht. Este, concedeu uma conferência de imprensa e anunciou que já tinha registado mais de 400 casos. Pois bem, a estupefação maior veio da parte de quem menos se esperava: do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que afirmou não ficar surpreendido com 400 vítimas. Caiu-lhe em cima o Carmo e a Trindade.

O Presidente estava a ofender as vítimas dos abusos sexuais no seio sacerdotal católico. Os partidos políticos na Assembleia da República condenaram as palavras do Presidente e obrigaram-no a pedir desculpa às vítimas, o que veio a acontecer. Como é possível que Marcelo Rebelo de Sousa, apesar de ser católico praticante, tenha querido defender a sua dama quando a mesma praticou crimes hediondos?

Conhecíamos o pensamento político do Presidente Marcelo, o seu percurso como jornalista e director de várias publicações, a sua carreira política e a sua vasta experiência como constitucionalista e legislador, sabíamos do seu sucesso como professor universitário, a religião que praticava e as suas origens familiares. O que nunca nos passou pela cabeça é que o Presidente Marcelo, que anda a falar demais, viesse a público diminuir a importância de crimes tão horríveis, alegando que existem países mais pequenos que Portugal e com mais casos de abusos sexuais.

Estaria a referir-se a Timor-Leste, onde o prelado Ximenes Belo abusou de menores desde a década de 1980 e que há dois anos foi sancionado pelo Papa e proibido de exercer a missão? O Presidente Marcelo tem andado na berlinda pelas piores razões e penso que manchou o seu mandato presidencial para todo o sempre, apesar das desculpas a que se viu obrigado a dirigir às vítimas de crápulas que se não conseguiram cumprir o celibato e que deviam, acto contínuo, abandonar a religião que propalavam.

17 Out 2022

O Inverno do nosso descontentamento

Não acredito que em Novembro venhamos a ter quaisquer notícias sobre a eminência da paz. Além disso, o Inverno que se aproxima vai ser amargamente frio devido às condições climáticas e às terríveis acções praticadas pela humanidade.

Com a guerra russo-ucraniana a aproximar-se do oitavo mês, a Ucrânia deu início a uma contra-ofensiva nos territórios ocupados a leste e a sul do país. O impasse da guerra deixou inúmeros ucranianos sem-abrigo e muitos soldados russos morreram no conflito. A NATO impôs sanções económicas à Rússia que, por sua vez, cortou o fornecimento de gás natural à Europa. Neste cenário de guerra, nenhum dos beligerantes sai vencedor.

Os europeus estão a preparar-se para um Inverno muito difícil sem o fornecimento do gás russo. Se conseguirem sobreviver a este Inverno rigoroso, acredita-se que o fim da guerra energética marcará o início da guerra convencional.

Vai haver, sem qualquer dúvida, uma quebra no abastecimento de gás na Europa. Embora Hong Kong e Macau estejam localizados numa zona de clima temperado, os seus dias invernosos podem ainda não ter acabado. Nos últimos anos, o clima de Macau tem arrefecido em Novembro, pela altura em que se realiza o Grande Prémio. No entanto, este ano, o tempo arrefeceu significativamente em meados de Outubro.

De qualquer forma, a população de Macau não precisa de se preocupar com os rigores do Inverno, mas talvez o mesmo não se possa dizer em relação ao congelamento económico provocado pela pandemia, associado à implementação da política da China de zero casos de Covid. A taxa de desemprego em Macau atingiu picos por diversas vezes e o declínio do seu PIB foi o mais grave de sempre.

Sem levantar as restrições de entrada aos turistas em Macau, o Governo da RAEM volta a dar mais um subsídio de vida no montante de 8.000 patacas para aliviar a pressão financeira na vida dos residentes causada pela epidemia, com prazo de utilização de 8 meses e limite máximo diário de utilização de 300 patacas. Devido às mutações constantes das estirpes do coronavírus, vai levar muito tempo até que possa desaparecer completamente, ou em alternativa, ser capaz de forma dinâmica de atingir “zero casos” de infecção em Macau.

Assim sendo, acredito que o congelamento da economia de Macau se vá estender muito para lá deste Inverno.
Hong Kong, também ela uma região administrativa especial à semelhança de Macau, alterou as regras de quarentena para quem chega à cidade para três dias de auto-gestão de saúde, com o intuito de revitalizar a sua economia atraindo pessoas de fora. Por enquanto, ainda não há certezas quanto à eficácia deste método, já que foi implementado há muito pouco tempo. Por outro lado, o Hang Seng Index de Hong Kong caiu abaixo do nível psicológico de 17,000 pontos a 11 de Outubro e fechou a 16832.36 pontos no próprio dia, tendo atingido o nível mais baixo em 11 anos.

Emitir opiniões favoráveis tornou-se a nova moda em Macau, como podemos ver no caso da revisão da “Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado”. A maior parte dos pontos de vista relativos à revisão da “Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado” são favoráveis. Apenas uma revista mensal e a Associação dos Jornalistas de Macau estão de alguma forma a manifestar um certo descontentamento com vários aspectos do conteúdo revisto.

Além disso, as intervenções feitas pelos actuais deputados da Assembleia Legislativa de Macau não fazem qualquer menção aos pontos de vista e às preocupações manifestadas pela referida revista mensal e pela Associação dos Jornalistas de Macau. Aparentemente, a frialdade gélida da política de Macau é muito mais severa do que a sua congelada economia. Acredito que a revisão da “Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado” levada a cabo pela Assembleia Legislativa vai ser tão suave como deslizar no gelo.

Os fogos da guerra não conseguem aquecer a Terra e as Nações Unidas desempenham um papel crucial para prevenir que o mundo inteiro enverede por um caminho trágico para todos. O fracasso da Liga das Nações no passado serve-nos de dolorosa lição. Os maiores desafios que se apresentam ao mundo dos nossos dias, de que não havia memória há praticamente cem anos, são de facto instigados por quem está no poder. Embora o poder possa subjugar a verdade, nunca a pode substituir.

Precisamos de ter esperança para produzir a mudança. Com a chegada do Inverno, será que ainda temos de esperar muito tempo pela Primavera?

13 Out 2022

Contrabando de bilhetes da lotaria

A 21 de Setembro, os jornais de Hong Kong noticiaram que os Serviços Alfandegários tinham levado a cabo uma operação marítima anti-contrabando e interceptado uma embarcação, onde foram encontrados bilhetes do Jogo de Lotaria Mark Six, referentes à extracção que seria realizada no dia seguinte, 22 de Setembro.

Na embarcação, estavam cerca de 16.000 bilhetes, que continham apostas no valor de 330.000 dólares de Hong Kong. Os Serviços Alfandegários acreditam que estes bilhetes se destinavam a ser revendidos fora da cidade.

Depois de verificadas as imagens das câmaras de vigilância, percebeu-se que os bilhetes tinham sido comprados por uma mulher no Hong Kong Jockey Club.

Um bilhete de lotaria é só um pedaço de papel e não tem valor por si só. As pessoas que compram bilhetes de lotaria esperam ter a oportunidade de vir a ganhar, ou seja, compram esperança com dinheiro. Jogo é jogo, podemos ganhar ou perder. Se ganharmos, ficamos felizes. Se perdermos, acabámos por contribuir para o valor do prémio do vencedor. Se vale ou não a pena jogar é uma questão pessoal e não pode ser generalizada. O princípio “varia de pessoa para pessoa, e saber quando parar” rege a forma responsável de lidar com o jogo.

As notícias também afirmavam que os Serviços Alfandegários, em colaboração com o Hong Kong Jockey Club, verificaram o lote de bilhetes apreendidos. Do total, 600 tinham sido premiados, num montante de cerca de 70.000 dólares de Hong Kong. Depois da notícia ter sido publicada, os internautas publicaram diversos comentários:

“apostaram tanto, mas mesmo assim perderam”;

“Se comprarmos 500 bilhetes, podemos ganhar apenas 40 dólares.”

“O grande vencedor é o Hong Kong Jockey Club”.

A notícia salientava também que o contrabando terá sido feito devido ao valor muito elevado do prémio da Lotaria Mark Six dessa semana. O primeiro prémio da extracção de 22 de Setembro foi de 24 milhões. Se estes bilhetes fossem levados para ser vendidos noutro local, acredita-se que cada um podia render 4 a 13 dólares de Hong Kong. Em 16.000 bilhetes, o grupo podia vir a obter um lucro de 200.000 dólares.

Os bilhetes não puderam ser vendidos devido à intervenção dos Serviços Alfandegários, mas esta questão acabou por ser levantada. Os bilhetes da lotaria são provas e têm de ser entregues ao tribunal para corroborar a actividade contrabandista. No entanto, como alguns dos bilhetes foram premiados, deverão os Serviços Alfandegários reclamar os prémios?

Na notícia, podia ler-se que os Serviços Alfandegários vão pedir conselho jurídico ao Departamento de Justiça de Hong Kong para ver se podem ou não reclamar os prémios. No momento em que escrevia este artigo, ainda não tinha sido adiantada mais nenhuma informação. Ainda não se sabe se os Serviços Alfandegários vão reclamar os prémios e se isso será ou não legal, pois depende de vários factores.

Em primeiro lugar, em Hong Kong é legal comprar bilhetes de lotaria. Quando a embarcação foi interceptada, os bilhetes estavam a bordo para serem transportados para fora de Hong Kong. É legal expedir bilhetes de lotaria para fora de Hong Kong? Este acto tem de ser ilegal, e daí os Serviços Alfandegários terem apreendidos os bilhetes para serem entregues como prova perante o tribunal.

Em segundo lugar, se é ilegal expedir bilhetes de lotaria para fora de Hong Kong, então, a mulher que os comprou não terá direito a levantar os prémios? Ou perderá os seus direitos por estar envolvida em actividades contrabandistas? Quando é que os seus direitos de propriedade deixaram de existir? Terá sido no momento em que os bilhetes foram colocados no barco?

Em terceiro lugar, os Serviços Alfandegários passaram a ser proprietários dos bilhetes no momento em que a mulher o deixou de ser? Só depois de ter sido decidido quem detém os direitos de propriedade sobre os bilhetes, se pode saber que tem direito a reclamar os prémios, se o Governo de Hong Kong ou a mulher que os comprou.

Idealmente, as respostas a estas três perguntas seriam encontradas na legislação de Hong Kong. Se não houver resposta adequada na lei, a resposta só pode ser encontrada através dos tribunais.

O Departamento de Justiça de Hong Kong é o conselheiro jurídico do Governo de Hong Kong. Vai certamente lidar com o caso correctamente e considerar todas as questões cuidadosamente. Uma coisa é certa, se o grupo de contrabandistas queria trazer os bilhetes para Macau para aqui os vender, estava a cometer uma acto decididamente ilegal. Nos termos do artigo 10 da Lei No. 8/96/M – Lei sobre o Jogo Ilegal, vender bilhetes de lotaria não licenciados é uma transgressão e o transgressor deve ser punido com uma pena até dois anos de prisão ou com uma multa.

Este caso faz-nos pensar sobre os direitos de propriedades e de reclamação de prémios de bilhetes contrabandeados, mas também serve para nos lembrar que bilhetes de lotaria não licenciados não podem ser vendidos em Macau.

 

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
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Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

12 Out 2022

Efeito dominó

Sempre achei de algum modo abismal e, como tal, infinitamente sedutor, o efeito que cada pequeno gesto natural ou premeditado, pode causar, em cadeia, numa quantidade de outras coisas desligadas entre si – ou na aparência – mas, por uma razão qualquer de momento, alinhadas com uma ponta ou um elo qualquer dessa cadeia de que tornam parte.

É uma subtil injecção de adrenalina, o simples pensar, temível, em exemplos de possibilidades que por uma ínfima fracção de segundo não se concretizaram ou por um pequeno gesto não intencional, se tornaram parte dessa cadeia ininterrupta, acontecem e desenham outras consequências e assim sucessivamente. Penso que é o factor de aleatoriedade, o que torna a possibilidade de este acaso particular, se dar, que torna este assunto abismal. E a noção da profunda e inultrapassável diferença, entre algo acontecer ou não acontecer.

O efeito determinante que pode ser a grande fronteira entre o nunca e o para sempre. À partida, o próprio momento gerador de vida humana, envolto em competição de células, esquecendo critérios de competência que tornam mais válidas umas do que outras, ou mais rápidas, ou mesmo que uma possa escolher a outra, como se pensa hoje, mas que visto à posteriori pode ser definido como acto de acaso do destino de alguém, futuro, tornado existente. A diferença, é que a vida e as suas intermináveis cadeias de causa-efeito, não tem somente vinte e oito peças.

É curioso o amor. Eu jogava – muito pequenina – com o avô e estas pedras aqui secretamente fechadas numa caixa de madeira antiga e encerada simplesmente pelas mãos. Uma e outras, feitas por ele. E jogava numa progressão de estruturas, em que simplesmente tentava prolongar igualando o sinal da pedra anterior. Similitudes. Igualar o igualável e prosseguir seguindo.

Ele nunca me ensinou que para ganhar um jogo é precisa a memória das mãos do adversário. Nunca fiz esse exercício e ainda hoje. Não sei se foi o bater de asas de uma libelinha, nessa Tóquio, assim, nos confins da infância.

Curiosamente, já nessa altura e desde sempre até hoje, desconfiava que as regras e os objectivos, não podiam ser tão simples como o simplesmente seguir e igualar. Com o meu pai jogava Damas, e mais animado o seu contrário a que chamávamos Ganha-Perde. Tentar perder a todo o custo, invertendo as regras. “Come, if you say my name”.

Uma canção – era assim quando já não recordo o resto? – talvez assim. Como no amor. Jogar para perder para o outro. Hoje, e porque mais do que conversar e tirar dúvidas de uma vida, sobretudo com quem já cá não está, vamos ao motor de busca e lemos, entendi finalmente o que no fundo sempre soube. As regras existem, ganhar e perder resulta de memória e de um raciocínio estratégico como nas cartas, para as quais sempre tive preguiça e pouca memória para jogar, com um sucesso que fosse mais do que sorte de principiante, como a que me levou a ganhar a minha primeira partida de xadrez, no final da adolescência, a uma amiga fanática do jogo e de uma cadela chamada Toscana, de colorido ruivo, como o dos montes nessa região em Itália.

A perplexidade dela gerou uma revolução bélica na sua mente e obviamente nunca mais lhe ganhei. Algo em mim rejeita a estratégia e sente a preguiça de memorizar o jogo que saiu, adivinhar à transparência o dos parceiros e antever as jogadas seguintes a partir das anteriores. Por isso também sou sempre a espectadora que faz mentalmente tricot, outro desporto de corredor solitário, em jogos de Mahjong de amigas.

Mas o amor tem coisas assim. Com o meu avô, a questão nunca foi a de ganhar ou perder. Passávamos o tempo. E assim, o que me ensinou, colocava em pé de igualdade sem resultados ambos os jogadores que éramos. O final era sempre como se tivessem acabado as pedras. Somente um acabava imediatamente antes do outro como no amor. Mas o que importa é que ambos acabem.

(Querido avô).
Também não me imagino a querer ganhar-lhe uma partida.

11 Out 2022

O sonho de um aeroporto

Os leitores que residem em Macau há muitos anos e que assistiram à construção do aeroporto local no mar em tempo recorde ficam incrédulos quando ouvem dizer que em Portugal se anda há 50 anos a dizer que Lisboa irá ter um novo aeroporto. O caso é pior que uma telenovela mexicana.

Nos últimos dias assistimos ao surrealismo governamental sobre este assunto referente ao novo aeroporto de Lisboa. Só em estudos de impacte ambiental já foram gastos 70 milhões de euros. A localização do aeroporto tem sido uma panóplia de locais que tem deixado o povo indignado e revoltado com tanta incompetência, clãs de interesses económicos e depravação de adquirir terrenos mal se menciona na imprensa um local possível para o novo aeroporto.

Já se falou em 17 locais diferentes e o nome daquele que devia ser mencionado nunca foi escutado, o de Beja. Falou-se na Ota, Alverca, Montijo, Évora, Ponte de Sôr, Alcochete e agora um barraqueiro rico que foi accionista da TAP veio propor Santarém. Os estudos e as comissões já não têm número certo. O que se sabe é que há uns anos, uma comissão com especialistas do melhor que temos em Portugal realizou um estudo e apresentou um relatório salientando que o campo de tiro de Alcochete reunia todas as condições para ser o novo aeroporto de Lisboa. O relatório foi para a gaveta e as obras em Alcochete não se iniciaram. Caso contrário, já existia um novo aeroporto.

O local que ninguém compreende porque é silenciado é Beja. Naquela cidade alentejana funcionou durante muitos anos uma base aérea alemã e se os alemães escolheram aquele local e certamente que não foi por acaso.

Hoje, aterram no aeroporto de Beja os maiores aviões do mundo. Tem espaço e condições para expandir-se e aumentar estruturas de apoio ao movimento aéreo. Fica situado perto de Lisboa e a mobilidade rodo e ferroviária teria o menor custo para os portugueses.

Há semanas, o ministro das Infra-estruturas, Pedro Nuno Santos, morreu politicamente ao anunciar sem dar cavaco ao primeiro-ministro, ou a alguém, que o aeroporto Humberto Delgado iria ter obras de beneficiação, que em Montijo se construiria o aeroporto de apoio à Portela e que se edificava em Alcochete um aeroporto que estaria pronto em 2035…. Bem, ficou tudo doido e António Costa recusou de imediato a decisão absurda do ministro. O homem não se demitiu e apareceu agora com nova proposta. Algo que ultrapassa o limite do absurdo.

Já ninguém pode ouvir falar em aeroporto novo para Lisboa. Imaginem que o Governo não apresentou uma decisão para este ano. Inacreditavelmente, o mesmo ministro precisamente no mesmo dia em que a Polícia Judiciária fez buscas no edifício do Conselho de Ministros por suspeitas de corrupção do secretário-geral do Conselho, veio a público anunciar, leiam bem: que ficou decidido criar uma Comissão Técnica, liderada por um coordenador-geral, sob a indicação do presidente do Conselho Superior de Obras Públicas, do presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (não se riam) e do presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento sustentável.

E o périplo ainda não terminou porque estas três personalidades vão sugerir um coordenador-geral que depois vai constituir seis equipas, repito, seis equipas que vão trabalhar em seis dossiers diferentes. Seis dossiers para onde vão ser contratados mais de 20 “amiguinhos” do ministro.

Tudo isto para quê? Para nos dizerem que no final de 2023 a tal Comissão Técnica apresentará o local definido para o novo aeroporto de Lisboa.

Não há vergonha para tamanha façanha. Isto, é brincar com todos nós. Não é sério. Se não querem, tal como nos últimos 50 anos, construir o aeroporto, digam logo. Não andem com estes subterfúgios e “tachos” para amigos com a desculpa da construção de um aeroporto de segunda categoria. O ministro das Infra-estruturas ainda teve a sem vergonha de anunciar com todas as letras que “Criámos uma estrutura que vai ter a participação de muitas personalidades das mais diversas origens, para poderem, durante o resto dos meses deste ano e durante o próximo ano, concretizar e concluir uma avaliação ambiental e estratégica que fundamentará a decisão sobre a futura localização do aeroporto”.

Não satisfeito com as palavras balofas, o ministro divulgou as soluções que a tal Comissão Técnica vai estudar. Única e simplesmente, cinco. Uma em que o aeroporto Humberto Delgado fica como aeroporto principal e Montijo como complementar (não se riam), uma segunda em que o Montijo adquire progressivamente o estatuto de principal e Humberto Delgado de complementar (não se riam, uma terceira em que Alcochete substitui integralmente o aeroporto Humberto Delgado (não se riam), uma quarta em que será este aeroporto o principal e Santarém do barraqueiro o complementar (não se riam) e uma quinta em que Santarém substitui integralmente o aeroporto Humberto Delgado (não chorem)…

10 Out 2022

Europa periférica

São os países menos desenvolvidos da Ásia que vão registar neste e no próximo as maiores taxas de crescimento económico do continente, estima um relatório recentemente publicado pelo Banco Asiático para o Desenvolvimento.

O documento revê com manifesto pessimismo as anteriores previsões para o desempenho da economia chinesa, ainda severamente afectada pelo impacto das restrições relacionadas com a pandemia de covid-19. De qualquer maneira, a China deverá ter um crescimento do PIB próximo dos 3,5 por cento este ano – nada mal, para tempo de crise – ainda assim acima dos menos de 3 por cento que se projectam para o crescimento económico médio na União Europeia.

Diga-se, no entanto, que a incerteza quanto à evolução da economia dos países da Europa justifica inabituais cautelas: são tempos de guerra no Velho Continente e avizinha-se longo e frio Inverno, com escassez energética, preços despropositadamente altos, processos de recomposição acelerada das transações comerciais globais de combustíveis vários, numa inevitável transição pouco preparada dos fornecimentos de energia com origem em território russo para outras origens mais distantes, com as grandes empresas do lado ocidental do Atlântico a marcar nova posição dominante – e com os inerentes lucros monopolistas de empresas dos Estados Unidos em território europeu.

Estão naturalmente por fazer as contas a estas pouco subtis transformações geo-económicas mas parece certo que a Europa continua a perder boa parte da sua centralidade na economia e política globais: não só tem tido fraca autonomia face à liderança dos Estados Unidos em relação aos posicionamentos políticos e militares relacionados com a guerra na Ucrânia, como parece remetida a um papel cada vez mais periférico e dependente (dos EUA) nos mercados globais de distribuição energética. Não será difícil prever que este longo Inverno com inusitadas taxas de inflação também se manifeste numa degradação generalizada da posição cada vez menos dominante das economias europeias no contexto planetário.

É por isso que a notícia de que o crescimento económico no sudoeste asiático superou o chinês é menos problemática para a China do que para a Europa: na realidade, esta quebra ocorre no contexto de um contínuo e intenso processo de crescimento que tem caracterizado a economia da China nas últimas décadas e pouco afectará os benefícios que a sociedade chinesa foi acumulando ao longo do século 21: na realidade, não só a China mantém o seu papel cada vez mais central e preponderante na economia mundial, como vê este ano países vizinhos como a Índia, o Paquistão, as Filipinas, a Indonésia, a Malásia ou o Vietname a assumir maior relevo nas dinâmicas económicas globais. Não são certamente más notícias para a China.

Esta tendência vai marcando gradual mas inexoravelmente uma transição para novos desequilíbrios no desempenho das economias mundiais, em que a Ásia vai assumindo cada vez maior centralidade e onde a Europa se vai posicionando cada vez mais como um espectador interessado mas pouco consequente no seu posicionamento na economia global deste nefasto capitalismo contemporâneo: nem se apresenta como uma alternativa ecologicamente viável, socialmente justa ou politicamente pacifista, nem se posiciona como uma economia competitiva, capaz de aproveitar as oportunidades da super-liberalização vigente nos mercados mundiais.

Está hoje sob ameaça permanente o que sobra na Europa dos Estados Providência que a social-democracia foi construindo ao longo do século 20, sobretudo no centro e no norte do continente: economias dinâmicas, prósperas, com políticas sociais activas que promoveram educação, saúde, habitação ou mobilidade para quase toda a gente, num contexto de paz generalizada. Não faltaram os recursos para as infra-estruturas, nem para os serviços necessários para promover a eficiência dos sistemas económicos ou a equidade das condições sociais – incluindo o acolhimento sistemático de pessoas refugiadas que se foi fazendo até quase final do século 20.

Hoje começa a faltar quase tudo: as cartilhas neo-liberais impõem exíguos orçamentos públicos que comprometem as políticas sociais, enquanto a economia especulativa dos mercados globais vai mobilizando recursos financeiros cada vez menos orientados para o investimento produtivo. É uma economia onde muito se fala de inovação mas em que na realidade pouco se inova na capacidade de criar e distribuir riqueza. O modelo social europeu é cada vez menos exemplar e as pessoas que ficam para trás – ou à margem dos processos de desenvolvimento – são cada vez mais, num processo relativamente acelerado de concentração de rendimentos e poder. O dinamismo e o crescimento movem-se noutras paragens – neste caso na Ásia. Sobram, entretanto, os dejectos desta prolongada crise no continente europeu: os movimentos de inspiração abertamente fascista que vão ganhando protagonismo e até governos, outra vez.

7 Out 2022

42º Artigo – A meteorologia e a guerra da Crimeia

As guerras, através da história da humanidade, têm sido a concretização de ódios fomentados por nacionalismos exacerbados ou grandes interesses, sejam eles económicos, religiosos ou outros. Apesar da desgraça e da morte, estão associados às guerras progressos assinaláveis no que se refere ao desenvolvimento da ciência e de novas tecnologias.

Melhor seria que não houvesse esse progresso tão rápido e que a evolução da ciência fosse mais lenta, tendo como finalidade apenas o bem-estar e a sustentabilidade do nosso planeta. Infelizmente não é assim, e desde que o homo sapiens aprendeu a arremessar pedras e a manipular utensílios, quer para fins defensivos, quer ofensivos, parte desse progresso resulta no aperfeiçoamento e no desenvolvimento de armas cada vez mais sofisticadas e destrutivas.

A evolução tem sido de tal forma rápida que, mais do que uma vez num curto período de algumas dezenas de anos, a humanidade e o nosso planeta estiveram prestes a serem vítimas de um desencadear de acontecimentos que poderia levar à sua destruição. Foi o que aconteceu durante a crise dos mísseis em Cuba em 1962, e mais recentemente no decurso da corrente Guerra da Ucrânia. No caso desta última, ameaças sobre a utilização de armas nucleares têm vindo a ser manifestadas de forma implícita, e por vezes bem explícita, por responsáveis (eu diria irresponsáveis) altamente colocados na hierarquia do país agressor. Em contrapartida, a ciência avançou de tal forma que a esperança de vida aumentou significativamente nas últimas décadas.

Numa área mais restrita, a ciência que trata do estudo das condições meteorológicas e da sua evolução espaciotemporal, a Meteorologia tem prestado incomensuráveis benefícios à humanidade. O caso que pretendo focar constitui um bom exemplo de como um episódio trágico na Guerra da Crimeia de 1853-1856 ilustra bem o aproveitamento de um evento altamente destrutivo para o avanço da Meteorologia. Vejamos então como se processou este evento e quais as suas consequências para o progresso na área da previsão do tempo. Antes, porém, foquemo-nos um pouco na história da Crimeia. Este território, que constitui uma república autónoma pertencente oficialmente à Ucrânia, consiste numa pequena península no sul deste país que separa o Mar Negro do Mar de Azov.

Pela sua localização constitui um território de grande importância sob o ponto de vista estratégico, pois situa-se numa região que sofreu a influência de diferentes domínios, nomeadamente o Império Otomano e o Império Russo. Foi habitada por povos com características muito diversas, entre eles os cimérios, romanos, hunos, otomanos e tártaros.

O Império Russo, com a czarina Catarina, a Grande, à sua frente, anexou a Crimeia em 1774, na sequência de uma guerra entre os Impérios Russo e Otomano. Em pleno século XX, mais precisamente em 1954, os dirigentes da URSS decidiram transferir a Crimeia da República Socialista Soviética da Rússia para a República Socialista Soviética da Ucrânia, o que foi considerado um ato simbólico de homenagem à amizade entre os povos das duas repúblicas.

Nessa altura não era significativo que a Crimeia pertencesse à Rússia ou à Ucrânia, na medida em que ambas as repúblicas estavam sob a alçada do mesmo governo central, o governo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Após o colapso da URSS, em 1991, e da proclamação da independência da Ucrânia no mesmo ano, desencadeou-se uma série de acontecimentos que fizeram com que a Crimeia fosse anexada pela Federação Russa, em 2014.

Esta anexação até parece ter sido lógica, na medida em que a população da península era maioritariamente de origem russa, o que resultou do facto de que grande parte dos seus habitantes, na sua maioria tártaros, terem sido expulsos em 1944, na sequência das medidas tomadas por Estaline no sentido da deslocação de milhões de cidadãos de umas regiões da URSS para outras. Os autóctones passaram a ser uma minoria, uma vez que os tártaros que haviam sido expulsos e os seus descendentes só foram autorizados a regressar depois da Perestroica, razão pela qual a etnia russa passou a maioritária.

A ocupação deu-se através de uma engenhosa invasão em que praticamente não foram disparados tiros, a seguir à qual foi feita uma consulta à população, boicotada pelas minorias ucraniana e tártara e considerada ilegal pela Assembleia-Geral da ONU de 27 de março de 2014. Na sequência do resultado deste plebiscito (95,5% no sentido da integração), a República da Crimeia e a cidade Sebastopol passaram a ser as 84ª e 85ª entidades federais da Federação Russa.

Voltando à razão deste texto, foquemo-nos na Guerra da Crimeia de 1853-1856, que opôs o Império Russo à aliança constituída pelo Reino Unido, França, Império Otomano e o Reino da Sardenha. No decurso desta guerra, em 14 de novembro 1854, cerca de 40 navios da esquadra franco-anglo-turca foram afundados por uma forte tempestade no Mar Negro.

Este acontecimento contribuiu grandemente para reforçar a ideia da necessidade da criação de um serviço meteorológico internacional, que tivesse como objetivo a observação e registo dos vários parâmetros meteorológicos em diferentes países, e a sua transmissão para os diferentes centros meteorológicos nacionais.

Assim, estes poderiam acompanhar a formação, intensificação e percurso de eventuais tempestades, o que permitiria a tomada de medidas no sentido de atenuar as suas consequências. No caso concreto do naufrágio da armada franco-anglo-turca, poder-se-ia ter evitado a destruição de grande parte dos seus navios se essa prática já existisse nessa altura.

Mediante este desaire, o astrónomo Urbain Jean Joseph Le Verrier (1811-1877) foi incumbido pelo Imperador Napoleão III de criar um serviço meteorológico em França (Service Météorologique de l’Observatoire de Paris) em 1854. Uma das primeiras tarefas deste serviço consistiu, em 1855, na recolha de valores de parâmetros meteorológicos (pressão atmosférica, temperatura, direção e velocidade do vento, nebulosidade, precipitação, etc.) registados por outros observatórios então existentes, referentes à data do naufrágio e a alguns dias antes.

Le Verrier, através do traçado das isóbaras (linhas que unem pontos com igual pressão atmosférica) concluiu que se havia formado a noroeste da Europa, dois dias antes (12 de novembro), uma zona de baixas pressões que se deslocou para sueste, acabando por atingir a região do Mar Negro em que navegava a esquadra.

As cartas traçadas por Le Verrier foram das primeiras cartas sinóticas, na sequência do que já havia sido tentado pelo físico alemão, Heinrich Wilhelm Brandes (1777-1834) que, segundo se consta, traçou a primeira carta sinótica no início da década 1820-1830. Cerca de 10 anos após o naufrágio começaram a ser publicados em França boletins com cartas meteorológicas.

Na época em que Brandes viveu, ainda não era possível a transmissão em tempo real dos valores dos parâmetros observados, o que só passou a realizar-se a partir da invenção do telégrafo elétrico, em 1835, por Samuel Morse.

No entanto, a troca de mensagens meteorológicas só passou a ser feita de forma mais expedida a partir de 1896, ano do registo da descoberta da telegrafia sem fios (TSF) que se deve, entre outros, a Guglielmo Marconi.

Alguns dias antes do trágico naufrágio, iniciou-se em Portugal o funcionamento do Observatório Meteorológico do Infante D. Luís (OMIDL), na então Escola Politécnica de Lisboa, em 1 de outubro de 1854. A partir desta data passaram-se a registar observações meteorológicas em Lisboa sem interrupção. O Professor Guilherme Pegado, natural de Macau, foi o grande impulsionador da criação deste observatório, podendo por isso ser considerado o fundador da meteorologia de Estado em Portugal. O Serviço Meteorológico Nacional só foi criado cerca de 92 anos mais tarde, em 1946, o qual resultou da fusão de uma série de serviços departamentais não coordenados entre si. O SMN deu origem mais tarde ao Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica (INMG), Instituto de Meteorologia (IM) e ao atual Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).

Apesar de a Guerra da Crimeia 1853-1856 ter sido uma tragédia que se estima ter custado cerca de 650.000 vidas, um dos episódios que a caracterizou serviu de incentivo à criação do Service Météorologique de l’Observatoire de Paris, em 1854, e mais tarde a uma organização internacional com a missão de coordenar, a nível mundial, as atividades relacionadas com o tempo, o clima e os recursos hídricos. Esta veio a designar-se por Organização Meteorológica Mundial, agência especializada das Nações Unidas.

*Meteorologista

6 Out 2022

A Via do Meio

A partir do século XVI, podemos afirmar que foi através dos portugueses, nomeadamente padres jesuítas, que a China foi sendo cada vez mais conhecida e discutida na Europa. O “Tratado das Cousas da China”, escrito por Frei Gaspar da Cruz (1520-1570) e publicado em Évora por André de Burgos em 1569 “é, tanto quanto hoje se sabe, o primeiro texto impresso integralmente dedicado ao Celeste Império”, lê-se na introdução de uma edição portuguesa de 2019, efectuada pela Universidade do Porto.

Muitos outros textos se seguiram, como os curiosos diálogos que constituem o “Excelente Tratado” (1590), de Duarte Sande e Alessandro Valignano, e também as cartas originárias da própria China, escritas por esses sacerdotes missionários. Lembramos também aqui, a título de exemplo, as importantes “Relação da Grande Monarquia da China” (1637), de Álvaro Semedo, SJ, seguida pela “Nova Relação da China” (1668), de Gabriel de Magalhães, SJ. Se a primeira é, no dizer de António Aresta, “uma das obras magnas do amanhecer da sinologia europeia”; a segunda foi admirada por toda a Europa culta pela sua minúcia e extensão.

Resumindo, foi em grandíssima parte pela mão de portugueses, ainda que grande parte deles escrevesse em latim, que a China foi aos poucos ocupando um lugar importante no imaginário intelectual europeu. Infelizmente, a partir de finais do século XVIII a sinologia em língua portuguesa conheceu um longo período de pousio, cujas razões não vamos aqui dissecar.

Em Macau, durante o século XX, assistimos à republicação das referidas obras, feita graças aos esforços solitários de Luís Gonzaga Gomes e, na década de 90, sob a égide do Instituto Cultural de Macau. Contudo, se estas obras fundamentais foram de novo impressas, algumas delas pela primeira vez em língua portuguesa, pouco ou nada foi feito para estimular os estudos sinológicos. Tem sido, sobretudo, no Brasil que têm surgido estudos sobre a China em língua portuguesa, estando agora, no século XXI, a academia portuguesa a despertar de décadas de apatia e desinteresse por esta área de estudos.

Sem pretensões excessivas, desde o seu aparecimento em 2001, que o Hoje Macau tem divulgado nas suas páginas temas relacionados com a Cultura Chinesa em língua portuguesa. Publicámos traduções de poemas, de textos fundamentais do pensamento chinês, cuja tradução estimulamos e que vamos vertendo em livros através da editora Livros do Meio, estudos de Macau (que consideramos integrantes da sinologia em português), artigos sobre mitologia, antropologia, história, etc..

Porém, entendemos que chegou a altura de intensificar este nosso propósito. Para isso criámos esta nova secção, intitulada “Via do Meio”, que diariamente apresentará aos nossos leitores artigos e traduções pela pena de alguns dos sinólogos que se expressam em língua portuguesa, bem como entrevistas com estes especialistas, a propósito dos seus trabalhos.

Aproveitando estes textos, será publicada bimensalmente uma revista com o mesmo título, “Via do Meio” (em formato digital) que, ao que sabemos, será a primeira do género na língua de Camões.

Esperamos que os nossos leitores sigam estes trabalhos com o interesse que merecem, pois acreditamos que é através do conhecimento mútuo que os povos criam laços mais duradouros e se evitam muitos dos mal-entendidos que, naturalmente, surgem quando diferentes civilizações se encontram, sobretudo hoje, neste espaço, partilhado e cada vez mais exíguo, a que chamamos Terra.

6 Out 2022

A Revolução de Outubro

Quando falamos da “Revolução de Outubro”, estamos a falar do movimento revolucionário liderado pelo Partido Bolchevique que provocou a dissolução do Governo provisório de Kerensky, em Novembro de 1917. Como na altura a Rússia adoptava o calendário Juliano, o mês de Outubro russo correspondia ao mês de Novembro do calendário Gregoriano pelo qual nos regemos.

Desta forma, este movimento revolucionário ficou conhecido pelo nome de “Revolução de Outubro”. Em Macau, nos anos 60, Outubro era um mês maravilhoso, marcado pela celebração de vários acontecimentos revolucionários. A 1 de Outubro celebrava-se a fundação da República Popular da China, logo a seguir, o dia 5 era marcado pelas comemorações da implantação da República Portuguesa e, finalmente, no dia 10 celebrava-se a Revolução Xinhai de 1911, que pôs fim à Dinastia Qing.

Nesse tempo, as ruas e as vielas de Macau transformavam-se num mar de bandeiras e todos participavam com grande entusiasmo nas actividades comemorativas. A revolução no mês de Outubro não aconteceu apenas na União Soviética, mas também noutros países. Mas vejamos, o que é que provoca uma revolução? Bem, para responder é necessário fazer pesquisa histórica e os intervenientes políticos devem ser conhecedores destas matérias.

A salvaguarda da segurança nacional é dever de todos os cidadãos e responsabilidade de quem está no poder. Como a consulta pública sobre a revisão da Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado vai terminar a 5 de Outubro, têm sido publicados muitos artigos nos jornais a manifestar apoio e a fazer sugestões sobre a revisão, e as maiores associações e organizações já começaram a convidar as autoridades competentes para realizar sessões de esclarecimento sobre o tema.

À primeira vista, os pontos de vista dominantes são todos favoráveis à revisão. A este respeito, não me agradou o discurso proferido por um estudante do liceu numa das sessões de esclarecimento da consulta pública sobre a revisão da Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado. Vieram-me à memória os discursos veementes dos estudantes do liceu em 1989, nas Ruínas de São Paulo. Trabalhei em educação durante muitos anos e sempre tive os meus pontos de vista políticos.

No entanto, nunca os impus aos meus alunos, nem nunca os convenci a participar em quaisquer reuniões de carácter político. Sei muito bem que os estudantes têm uma capacidade limitada para analisar os assuntos políticos da actualidade e facilmente adoptam os pontos de vista das pessoas em quem confiam e, portanto, podem ter comportamentos que não correspondem necessariamente aos seus próprios desejos e convicções. Um docente profissional tem a responsabilidade de proteger os seus alunos.

Quanto à revisão da Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado, o Governo da RAEM avançou com “quatro princípios” a que é necessário aderir, a saber, “cumprir o sistema constitucional”, “focar-se nas questões”, “respeitar a tradição” e “garantir os direitos humanos”. Como se trata da revisão de uma lei em vigor, a intenção legislativa da lei tem de ser considerada e não pode ser ignorada.

De acordo com a “Colectânea de Legislação — Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado” elaborada pela Assembleia Legislativa de Macau, a produção da lei relativa à defesa da segurança do Estado foi efectuada com base nos seguintes princípios fundamentais: 1) Implementar de forma integrada o artigo 23.º da “Lei Básica”, com vista à defesa dos interesses do Estado relativos à independência nacional, à unidade e à integridade do Estado e à sua segurança interna e externa; 2) Salvaguardar de forma consistente os direitos e liberdades que os residentes de Macau gozam nos termos da “Lei Básica”; 3) Legislar em conformidade com a realidade de Macau e o seu sistema jurídico; 4) As penas aplicáveis aos crimes contra a segurança do Estado reflectirão a gravidade e o dano que os mesmos possam causar.

Por razões que bem conhecemos, o processo de revisão da Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado vai ser “suave”, e poderá mesmo ter conteúdos semelhantes à “Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado para a Região Administrativa Especial de Hong Kong”. A “Lei relativa à defesa da segurança do Estado para a Região Administrativa Especial de Hong Kong” passou pelo Comité Permanente do Congresso Nacional do Povo e foi implementado em Hong Kong. O Governo de Hong Kong não promulgou a “Lei relativa à defesa da segurança do Estado para a Região Administrativa Especial de Hong Kong” por si próprio, ao abrigo do Artigo 23 da Lei Básica de Hong Kong.

Se o Governo de Hong Kong, sob a liderança do Chefe do Executivo John Lee Ka-chiu, cumprir a sua responsabilidade constitucional de promulgar legislação ao abrigo do Artigo 23, ainda fica por saber se a “Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado para a Região Administrativa Especial de Hong Kong” irá cumprir a sua função histórica. Quanto ao Governo da RAEM, não tem realmente necessidade de extrair inúmeras referências da “Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado para a Região Administrativa Especial de Hong Kong” durante a revisão da Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado, na medida em que a “Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado para a Região Administrativa Especial de Hong Kong” foi decretada durante um período crítico de Hong Kong.

Além disso, no Artigo 23 da Lei Básica de Macau, o termo “Subversão contra o Governo Popular Central” é usado, como título do actual Artigo 3 da “Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado” aplicável a Macau. Se o título de Artigo 3 estiver para ser mudado para “Subversão do Poder do Estado”, é necessário considerar também a mudança do termo “Subversão contra o Governo Popular Central” usado no Artigo 23 da Lei Básica de Macau para “Subversão do Poder do Estado”, de forma a estar em linha com a directiva “cumprir o sistema constitucional” (um dos “quatro princípios” incluídos na revisão da Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado). Será uma demonstração de respeito pela Lei Básica de Macau.

A segurança nacional não é fácil de alcançar e depende dos esforços conjuntos do Governo e da população. A Revolução de Outubro foi um acontecimento do passado e os dias de derramamento de sangue também o deverão ser.

30 Set 2022

Ramos da missão ortodoxa perseguida

(História da Primeira Entrada do Cristianismo na China‧Episódio 2)
Texto de Ritchie Lek Chi, Chan
(*Artigo publicado no Macau Daily Newspaper em 20 de Março de 2022)

 

Chegou à China até ao primeiro século?

Yazdhozid, um missionário persa na Dinastia Tang após a produção da ” A estela de Da Qin Nestoriana espalhada na China “, é reconhecido pelo mundo como a evidência histórica de que o cristianismo entrou em contacto pela primeira vez com a China. No entanto, após verificação, descobriu-se que muitos livros chineses antigos registavam que o Nestorianismo já havia pisado a China antes da Dinastia Tang. A primeira referência indica “Luoyang Jialan Ji” (Mosteiro Budista na cidade de Luoyang, província de Henan) escrito por Yang Xuanzhi, um escritor de prosa da Dinastia Wei do Norte. Descreve a situação quando o autor viu cristãos aparecer no “Templo Yongming”, “os monges de centenas de países, mais de 3.000 pessoas, das regiões do extremo oeste e até do Grande Reino de Qin, todos eles estão ligados ao resto do mundo”.

Além disso, “Zizhitongjian” (Reflexos da Governança) Volume 147 regista no oitavo ano Tianjian (509 a.C.) a descrição do Imperador Liang Wu com a mesma declaração: “Naquela época, o budismo floresceu em Luoyang. Além dos monges chineses, havia mais de 3.000 monges das regiões ocidentais, Lord Wei construiu Yongming Temple mais de mil quartos para esses cristãos”.

Mais tarde, descobriu-se também que alguns estudiosos propuseram nos seus artigos que o cristianismo pode ter chegado à China antes do nestorianismo, como a primeira parte da “Série República da China”, um dos autores, Joseph Siu, escreveu “Um Estudo do Catolicismo na China” no Volume 1 do livro. Menciona-se que o Santo Apóstolo Tomé pode ter estado na China. “Os arqueólogos dizem que São Tomé também veio à China para pregar, mas não se sabe por quanto tempo. Depois de retornar da China para a Índia, ele morreu em Meriyapur. Isso não é sem razão……. Além disso, a descoberta de antigas estelas de cruz nas últimas centenas de anos também prova que a Sagrada Religião realmente se espalhou na China nos séculos depois de Cristo. Embora o Apóstolo São Tomé não tenha visitado a China, seus discípulos seguiram seus filhos…” (Nota 1).

Alguns estudiosos estrangeiros também apresentam o mesmo ponto de vista. Edward Harper Parker, um advogado e sinólogo britânico que escreveu livros sobre a Primeira e a Segunda Guerras do Ópio da China e outros tópicos relacionados com a China, no seu livro “Uma História Chinesa do Cristianismo” escreveu: “Depois dos Han e Qin (início do século III d.C.), o cristianismo entrou pela primeira vez na China, e os escritos dos caldeus (Nota 2) nos dizem (dito pelo Padre Huang) que o Santo Apóstolo Tomé trouxe e pregou o Evangelho primitivo no início do primeiro século para a Índia e a China” (Nota 3). De acordo com o conteúdo do artigo, o início do século I foi durante a Dinastia Han, e o início do século III pertenceu ao período dos Três Reinos.

Se for verdade, como mencionei no primeiro episódio, o cristianismo entrou na China durante a Dinastia Wei do Norte, que pode ter sido anterior a isso.

Independentemente de São Tomé ter vindo ou não para a China, podemos ver nesses documentos que os governantes ou pessoas na China antiga estavam abertos a culturas e religiões estrangeiras, especialmente na Dinastia Tang. “Na antiga capital de Chang’an (Xi’an), Taoísmo, Confucionismo, Budismo, Nestorianismo e depois Islamismo ” (Nota 4).

O status da Virgem provoca divisões

De acordo com registos documentais, a primeira visita dos nestorianos à China foi, na verdade, dividida em duas etapas. A primeira durante a Dinastia Han ou Dinastia Wei do Norte, e a segunda durante a Dinastia Tang. Porquê? A resposta envolve principalmente algumas situações especiais encontradas na criação e desenvolvimento do Nestorianismo, que são descritas em detalhe a seguir.

Em primeiro lugar, a partir do artigo online do k.k.news, “Olhando para a propagação do Nestorianismo na Dinastia Tang de “A estela de Da Qin Nestoriana espalhada na China”, podemos entender a situação do Nestorianismo naquele momento. “Existem duas grandes escolas de cristianismo, uma é a escola nestoriana, e a outra é a escola alexandrina. Entre elas, a escola alexandrina defende a unidade de Jesus, Deus e homem, e acredita que a escola nestoriana divide Jesus em dois ( o homem e o deus) é heresia. Em 428 d.C., o imperador romano oriental Teodósio II nomeou Nestório Arcebispo de Constantinopla. Teodósio II convocou e presidiu a um sínodo de bispos. Este local não é bom para Nestório, porque é a casa da escola de Alexandre (o templo ancestral da Virgem Maria e o local da morte), e a maioria dos crentes locais são partidários da escola de Alexandre. Lilo, o bispado de Alexandria, Egipto, que chegou primeiro, foi recebido pelos padres locais. Antes que os partidários e bispos de Nestório chegassem, os alexandrinos convocaram à pressa uma reunião, declararam Nestório um herege em sua ausência, destituíram-no do seu bispado e excomungaram-no. ”

Nestório era sírio, e assumiu a posição de líder religioso em 42 d.C.. Este movimento deixou a missão de Alexandria muito insatisfeita, e a luta entre as duas seitas tornou-se cada vez mais acirrada. Em 431 d.C., a fim de reprimir a disputa entre as duas facções cristãs, Teodósio serviu como Patriarca de Constantinopla, na Turquia, de 428 a 431 d.C.. Nestório é considerado a figura que iniciou o Nestorianismo. Mencionado no artigo da Wikipedia sobre Nestório e Nestorianos: “Nestorianismo pode se referir a: a missão Oriental, também conhecida como missão Nestoriana, que foi introduzida na China na Dinastia Tang e chamada de ‘ Jinɡ jiào”. O Patriarcado estava localizado na Hagia Sophia em Constantinopla, Turquia, depois de o Império Bizantino ter sidoi conquistado pelos otomanos em 1453, a igreja foi convertida à força em mesquita e assim ficou até agora.

Há alguns anos, fui a Constantinopla, agora conhecida como Istambul, e presenciei este edifício religioso que foi baptizado por guerras implacáveis, conquistado e alterado por diferentes impérios há 1.500 anos, e agora é património cultural mundial. Quando fiquei do lado de fora da mesquita, além de admirar a grandiosidade do edifício, fiquei ainda mais maravilhado com a cena com que me deparei quando entrei na mesquita.

No entanto, é emocional e profundamente sentido que este edifício é um marco da história. Alguns dos frescos caíram, revelando a Virgem Maria com folha de ouro e uma imagem “mosaica” de Jesus Cristo. Devido à idade, a folha de ouro perdeu a cor, mas pode-se imaginar a cena gloriosa no passado. Essas imagens destacam os períodos cristão e ortodoxo. Este tipo de parede decorativa sobreposta, apesar de se poder ver as imagens artísticas de diferentes épocas, não pode deixar de fazer as pessoas prenderem a respiração.

Além disso, Nestório defendia que a Virgem Maria não deveria ser divinizada e só poderia ser chamada de “Mãe de Cristo”, e propôs que “a divindade e a humanidade de Jesus fossem separadas”, o que fez com que ele e sua seita fossem excluídos e atacados. A Wikipedia descreve a história do Nestorianismo, “Em 431 d.C., o imperador romano oriental Teodósio II e 2.000 bispos participaram no Concílio de Éfeso na Turquia (Nota 5), ele foi demitido do bispado e excomungado da missão. Quatro anos depois, Nestório foi expulso do país pelo imperador do Império Romano do Oriente e acabou por morrer no Egipto. No entanto, seus seguidores não desistiram facilmente por causa disso, e foram para a Mesopotâmia, Pérsia, Índia e Extremo Oriente para pregar religião”. (Nota 6)

Nessa época, o Nestorianismo enfrentava dificuldades, os crentes tiveram que usar a missão para começar a desenvolver-se para o Oriente e entrar na China durante a Dinastia Wei do Norte. Foi também a primeira vez que o Cristianismo entrou em contacto com um país desconhecido.

O nestorianismo voltou à China, numa época em que a nação chinesa estava a tornar-se cada vez mais próspera. No nono ano do reinado do imperador Taizong Li Shimin, a Dinastia Tang gradualmente entrou num período próspero após a “Regra Zhenguan” (Nota 7), e muitos bárbaros estrangeiros vieram à China para prestar homenagem. Por outro lado, o Nestorianismo também se desenvolveu na Ásia Central e é extremamente popular. Nesta boa atmosfera política e época pacífica e próspera, o líder nestoriano Aroben foi pessoalmente a Chang’an, a capital da Dinastia Tang, e foi recebido pelo imperador Taizong. Este encontro entre os dois lados tornou-se o registo oficial da primeira visita cristã à China na história.

O que precisa ser mencionado aqui é que os anos de Nestorianismo na China mencionados em “Daily Headlines” e “Wikipedia” são os mesmos mencionados no artigo de Yang Xuanzhi, um escritor da Dinastia Wei do Norte, o que prova que isso é um facto histórico. Ele mostra que havia muitos vestígios de nestorianos na antiga cidade de Luoyang naquela época, e também confirma que os nestorianos chegaram à China antes da “A estela de Da Qin Nestorian espalhada na China” no Museu da Floresta de Estelas em Xi’an.

 

Notas :

1. “Republic of China Series”, publicado e distribuído pela Shanghai Bookstore
em 1989, consiste em cinco volumes, incluindo principalmente livros chineses publicados na China durante a República da China. O autor, Joseph Xiao, é investigador da Universidade de Oxford e membro do Departamento de Filosofia e jesuíta na China, Jesuítas Chineses.

2. Caldeu, uma região antiga no Oriente Médio em 625 a.c., actual sul do Iraque e Kuwait. Os caldeus estabeleceram a dinastia caldeia nesta área.

3. São Tomé foi um dos doze discípulos de Jesus.

4. “A China Antiga Deve Abrir-se ao Mundo Exterior ou Retirar-se ao Mundo”, Pe. Benjamin Videira Pires S.J., “Revista Cultura” Edição Chinesa N° 2, p. 37.

5. Localizada na antiga cidade de Éfeso, na Turquia, as ruínas deixadas pelos antigos gregos eram originalmente uma rica e requintada cidade marinha. Foi uma das quatro maiores cidades do mundo durante o antigo período romano e era conhecida como Pompéia no Oriente.

6. Wikipedia “Nestorismo”, artigo online: “Conflito ou Integração: A Trajectória Histórica da Sinicização do Catolicismo”.

7. “Regra Zhenguan” foi uma situação de clareza política, recuperação económica e prosperidade cultural durante o reinado do imperador Taizong Li Shimin no início da dinastia Tang.

30 Set 2022

Tanto que queremos: um ensaio sobre o desejo

O desejo é um fenómeno complexo, uma lição à nossa paciência. A experiência mostra-nos que a vida toma o seu rumo com vontade própria, sem grande consideração dos nossos desejos imediatos. Queremos ser alguém que não somos, vivemos num mundo onde não nos encaixamos.

Nas sociedades liberais incutem-nos esta sensação de empoderamento. Podemos ser o que bem nos apetece. Só que queremos mais sem grande consciência que os desejos implicam a cuidadosa reflexão sobre o que perdemos: sobre o que nunca será. Não basta querer, é preciso aceitar que não se tem.

Uma jovem do Curdistão iraniano foi brutalmente morta pela polícia da moralidade no Irão, porque o seu hijab estava mal posto. Tanto vos queremos que vos perdemos. Uma coisa simples como o cabelo, que mais sabe a um detalhe ridículo, pouco importante. As agências noticiosas também dão conta da brutalidade policial contra os protestantes e da consternação pública que esta morte suscitou. Deste confronto veio mais morte, não veio a transformação social ou política. Nestes anos complicados, de configurações geopolíticas dolorosas e difíceis, faz-se o luto pelo mundo que não existe e que julgámos existir. Fazer o luto implica acalmar a nossa angústia. Permite respirar antes do confronto, evita uma luta sem fôlego absolutamente nenhum e tenta dar alento à sensação de desespero.

A eleição de uma mulher primeira-ministra em Itália soube a derrota também. Tanto queremos líderes justos e inclusivos que não os temos. Como é que se aceita uma possível perda do direito ao aborto, como é que se discute o retrocesso dos direitos lgbtqi+, como é que se legitima um discurso que não abraça os direitos de todos, mas só de alguns? Quando nos julgámos protegidos de uma ressurreição do fascismo, quando achámos que concordávamos – todos – em não querer acordar os maiores horrores fascistas da história. Afinal não era bem assim.

Quando se deseja o que não se tem, a revolta ou o desconforto deviam ser suficientes. Poucos nos preparam para o sentido de impotência de nunca chegar àquilo que desejamos, nem de encontrar outros que queiram desejar contigo.

No sexo não se chega ao orgasmo porque se deseja, mas porque acontece. Encara-se a configuração completa do acto e acredita-se no conforto percorrendo um caminho, sem expectativas. Quem já teve problemas em adormecer também o sabe. Querer dormir não basta para adormecer, só atrapalha. O desejo é uma dança complexa entre paciência, compaixão, guerrilha e vontade.

Não basta querer, é preciso aceitar este momento particular da história individual e colectiva. Aceitar que não estamos cá para o orgasmo perfeito, nem para o mundo perfeito. Estamos cá para os desencontros constantes, e para as incessantes tentativas de os resolver. Estamos cá também para o encaixe, para o crescente sentido das coisas, e aceitar que pouco ou nada podemos controlar. O desejo pressupõe empoderamento e acção, mas também implica encontrar conforto nos lugares mais inóspitos, e nas situações mais absurdas, como as que se vivem neste momento. Tanto queremos e tanto aprendemos a perder, mas o desejo é mesmo assim.

29 Set 2022

Eutanásia VS Homicídio (II)

A semana passada, falámos sobre um recente caso de homicídio em Hong Hong. Para aliviar a esposa do sofrimento provocado por um cancro em estado terminal, o marido provocou-lhe a morte com o seu consentimento. Depois de se entregar, foi julgado e condenado a uma pena de apenas 12 meses de liberdade condicional. Quando foi interrogado, o réu abordou a questão da eutanásia.

Esta questão é por vezes debatida em Hong Kong. Em 2017, um homem tentou suicidar-se saltando da janela do prédio onde morava, depois de ter morto a mãe de 77 anos com uma faca de cozinha para a aliviar das dores que a atormentavam, mas milagrosamente sobreviveu. O tribunal julgou-o por homicídio e foi condenado a dois anos de liberdade condicional.

Em 2003, um residente de Hong Kong escreveu ao então Chefe do Executivo, Tung Chee-hwa, a pedir para ser eutanasiado. Em 1991, este homem tinha lesionado a coluna vertebral enquanto actuava numa escola. Este pedido atraiu a atenção da comunicação social. Em 2006, o famoso físico britânico Stephen Hawking visitou Hong Kong. Na altura, prestou declarações em apoio do pedido deste homem e disse:

“Quando encontramos dificuldades na vida, se nos esforçarmos bastante, seremos bem-sucedidos.”
Em 2010, o homem mudou-se para uma residência pública do Governo e deixou a ala do Hospital Queen Mary onde tinha vivido durante 19 anos. Veio a morrer em 2012.

Eutanásia significa literalmente “boa morte”. Eutanásia é uma intervenção médica que se destina a pôr termo à vida de um paciente que se encontra em grande sofrimento. Esta intervenção pode dividir-se em duas categorias: “activa” e “passiva”. Na eutanásia activa, a morte é provocada pela administração de drogas ou por outros métodos artificiais.

Na eutanásia passiva, a morte é provocada pela interrupção dos tratamentos que mantêm o paciente vivo.
A eutanásia também pode ser dividida em eutanásia voluntária e eutanásia involuntária, de acordo com os desejos do paciente. Se o paciente expressar o desejo de ser eutanasiado, tem de assinar um “Testamento Vital”. Claro que, se o paciente não estiver no pleno uso das suas faculdades mentais não pode pedir para ser eutanasiado.

A situação da eutanásia involuntária é mais complicada. Os familiares do paciente solicitam a eutanásia, partindo do princípio que o paciente não tem capacidade para o fazer. Se esta situação pode ser considerada equivalente a assassinato depende das leis locais e não pode ser generalizada.

A eutanásia não está legalizada em Hong Kong, mas os médicos podem pôr fim a tratamentos de suporte de vida muito prolongados, quando não há qualquer esperança na recuperação do doente. Neste caso, a morte é provocada pela irreversibilidade da doença, e não porque o médico praticou qualquer acção para ajudar o doente a morrer. Na prática, após obter o consentimento do paciente e da família, o médico desliga o equipamento de suporte de vida, permitindo que o paciente morra naturalmente.

Existe ainda a situação em que o doente recusa continuar com os tratamentos. Desde que esteja na posse das suas faculdades mentais e compreenda claramente todas as consequências, esta decisão é da sua inteira responsabilidade.

Pôr fim a um tratamento que já não pode reverter o curso da doença ou a recusa do paciente em efectuar tratamentos são actos legais em Hong Kong. Os hospitais de Hong Kong também têm “comités de ética” que podem dar apoio aos doentes, aos familiares e aos médicos para obter consensos. No caso do problema não ser solucionado, o tribunal também pode ser chamado a emitir directrizes. Na Holanda a eutanásia está legalizada. O pedido tem de ser submetido pelo paciente.

No Estado do Oregon, nos EUA, na Bélgica e no Luxemburgo também está legalizada a prática da eutanásia, de acordo com as leis locais

Na Suíça, no Canadá e nos Estados americanos de Washington, Vermont e Califórnia os médicos podem assistir doentes terminais a porem termo à própria vida, de acordo com a lei.

Em 2016, o Governo de Hong Kong respondeu a perguntas de um deputado do Conselho Legislativo sobre a eutanásia, salientando que este procedimento envolve terceiros que ajudam e que são cúmplices, aconselhando o doente a cometer suicídio ou praticando homicídio voluntário. Todas estas acções são ilegais. O Código de Conduta Médica em Hong Kong afirma claramente que a eutanásia é um acto ilegal e imoral.

Para além dos factores de ordem legal, de ética médica, dos desejos dos pacientes, e dos desejos dos seus familiares, também têm de ser considerados factores de ordem religiosa. Macau é uma cidade católica, convicção que é incompatível com a eutanásia, mas a recusa de tratamento e o fim de tratamentos que já não revertem o curso da doença são permitidos.

A eutanásia envolve questões médicas, sociais, legais, morais, éticas e outras, que são extremamente complexas e controversas. Do ponto de vista da administração pública, as normas existentes não podem ser arbitrariamente alteradas até que haja um consenso na sociedade de Hong Kong.

 

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

27 Set 2022

Não se pode estudar sem cama

Na semana passada escrevi sobre os problemas dos professores. Desta feita, refiro-me aos estudantes. Desde os mais pequeninos aos universitários, todos eles vivem horas amargas. A crise económica bateu à porta da classe média e os pais têm dificuldade em pagar uma creche privada.

Para uma escola primária pública já é difícil fazer frente às despesas com materiais, roupa e calçado. Não há aluno que não tenha que levar a sua mochila e só como exemplo os pais depararam-se com um aumento no preço de 20 por cento. Tudo está mais caro e há crianças que não conseguem lugar na escola da área da sua residência. Ora, um casal pobre, sem carro, que utiliza os transportes públicos não pode levar os filhos para uma escola que fique longe.

Testemunhei a ida de um casal de São Tomé que vivia em Portugal há mais de seis anos, mas que o homem estava actualmente desempregado e a mulher a ganhar muito pouco, com dois filhos pequenos sem lugar na escola e sem dinheiro, ou qualquer subsídio estatal, a embarcarem para França. Já não são apenas os portugueses a emigrar. Até aqueles que se contentavam com pouco e para quem Portugal era um paraíso já se estão a ir embora.

O novo ministro da Educação foi apresentado como personalidade muito competente na matéria, mas os problemas no ensino agravam-se e quando abordamos o que se passa com os estudantes universitários, a nossa alma fica parva.

Temos, no mínimo, 120 mil estudantes universitários deslocados da sua terra natal. A maioria não sabe o que fazer para conseguir uma cama para dormir. O preço das casas para alugar subiu de uma maneira exploradora. Sabemos de duas irmãs que vivem num quarto com uma amiga, são três a dormir na mesma cama. Isto, num quarto que apenas tem a casa de banho, guarda-fatos, uma mesinha e uma cadeira. Como é que podem estudar três jovens universitárias nestas condições? Sem cama não se pode estudar. A oferta em todo o país é pouco superior a 23 mil camas para os tais 120 mil estudantes universitários deslocados. Há no mínimo 20 mil camas a menos para responder às necessidades da comunidade universitária de Lisboa e Porto, refere um estudo da consultora imobiliária Cushman & Wakefield. De acordo com o mesmo estudo, em Lisboa existem, actualmente, cerca de 5500 unidades, no Porto, perto de 5300, a maioria de privados.

A oferta em todo o país é pouco superior a 23 mil camas, entre residências públicas, privadas e de instituições religiosas. Este número mostra-se absolutamente insuficiente para os 120 mil estudantes deslocados. Para além destes 120 mil deslocados, temos o crescente número de estudantes estrangeiros nas faculdades nacionais. E o número de estudantes estrangeiros tem vindo a aumentar de ano para ano.

A situação em Lisboa é alarmante. A Federação Académica de Lisboa já pediu a intervenção urgente e financiamento para resolver a escassez de alojamento académico no país. De norte a sul sucedem-se as queixas: não há alojamento suficiente para os estudantes que entraram para o ensino superior. Os preços de mercado são insuportáveis. O que era preocupante é agora alarmante. As queixas estão a aumentar porque na primeira fase de acesso foi aprovada a entrada de 50 mil alunos. O caso já chegou à Assembleia da República, onde o Bloco de Esquerda pediu uma audiência com o ministro da Educação sobre o alojamento académico.

É grave e triste a situação gerada no país para os estudantes universitários. Mesmo que um estudante até consiga arranjar um quarto, é uma outra história saber se a família consegue pagar 300, 400, ou 500 euros por mês, para que os estudantes possam dormir decentemente para que os estudos não resultem em descalabro. E o pior disto tudo é que em 2018, imaginem, foi criado um Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior, o tal PNAES, com o objectivo de duplicar o número de camas em cada ano para estudantes universitários e que até aos dias de hoje teve uma execução fraquíssima.

O que andou a fazer? Para que serve o dinheiro que vem da União Europeia e concretamente muitos milhões para benefício do ensino? O referido Plano é até 2026, ainda não começou a dar frutos e esperemos, ao menos, que possa actuar rapidamente na construção de habitação para estudantes. E de imediato, algo podia ser feito, tal como atribuir benefícios fiscais para quem aluga quartos aos estudantes e estabelecer protocolos com o Alojamento Local, à imagem do que se fez durante o tempo da pandemia.

Na abordagem assim apresentada até parece que os nossos governantes devem pensar que no futuro já não são necessários, médicos, engenheiros, advogados, gestores, jornalistas… ai, Portugal, Portugal.

26 Set 2022

Biden contra Biden

O mundo está já habituado ao facto dos Estados Unidos da América (EUA) raramente cumprirem a palavra dada no que toca ao cumprimento das promessas feitas e dos compromissos alcançados em termos de relações internacionais.

Assim se passou quanto à expansão da OTAN para Leste na Europa, quando do desmembramento da União Soviética, e não podemos deixar de pensar ter existido um dedo americano no incumprimento dos tratados de Minsk por parte dos governos da Ucrânia, resultantes do golpe de 2014, claramente apoiado e suportado pelos EUA. O resultado foi o que se sabe: a invasão russa e um conflito armado que pode desembocar num apocalipse.

A OTAN, que ainda hoje se apresenta, descaradamente, como uma aliança unicamente vocacionada para a defesa no caso de ataque inimigo, não se coibiu de bombardear a Sérvia, a Líbia, a Síria, o Iraque, o Afeganistão, entre outros, com os resultados conhecidos. Depois da II Guerra Mundial não consigo encontrar um caso de intervenção militar americana que tenha, de algum modo, melhorado a vida dos cidadãos desses países e muito menos aportado “direitos humanos e democracia”, talvez com excepção da Coreia do Sul, um país onde, contudo, existe um tremendo fosso social, cultural e económico entre ricos e pobres, poderosos e destituídos, como se pode constatar, por exemplo, no filme “Parasitas”, galardoado com um Oscar, ou num tom mais sério e radical na obra do cineasta Kim Ki-duk.

Contudo, as mentiras de um país como os EUA encontram, geralmente, actores diferentes, políticos que renegam o que foi dito pelos seus antecessores, procurando desse modo desculpas esfarrapadas e, mais grave ainda, elevando a níveis preocupantes a desconfiança que a comunidade internacional sente face ao que é um dos países militarmente mais poderosos do mundo e cujo regime tem o dislate de se apresentar como o “fim da História”.

Curiosamente, no domingo passado assistimos a um espectáculo diferente. O presidente Joe Biden, ao proferir que os EUA interviriam militarmente caso a China decidisse invadir a ilha de Taiwan e unificar de vez o país, não apenas contraria o que tem sido afirmado pela diplomacia americana, como renega o que ele próprio afirmou num artigo por si assinado em 2001.

Recordemos os factos e o contexto. Nessa altura, era presidente dos EUA o republicano George W. Bush, o homem que ordenou a invasão ilegal do Iraque com o pretexto de encontrar as armas de destruição massiva que nunca existiram. Bush foi questionado se os EUA teriam a obrigação de defender militarmente Taiwan no caso de um ataque vindo do continente. A sua resposta foi: “Sim, temos. E os chineses têm de perceber isso. Sim, eu teria (essa obrigação)”. E prosseguiu afirmando que faria “o que fosse preciso”, nomeadamente empregar “toda a força do exército americano”, para ajudar Taiwan a defender-se desse eventual ataque.

Ora o então senador Biden criticou fortemente o presidente americano, num artigo intitulado “Not so deft in Taiwan”, publicado no Washington Post, onde começava por afirmar que “as palavras contam (matter), em diplomacia e na lei” e, apesar de reconhecer que “algumas horas mais tarde, o presidente apareceu para se distanciar deste novo e surpreendente compromisso, sublinhando que continuaria a seguir a política de ‘uma só China’ seguida por cada uma das últimas cinco administrações”, Biden remata que “onde outrora os Estados Unidos tinham uma política de ‘ambiguidade estratégica’ – sob a qual nos reservávamos o direito de usar a força para defender Taiwan mas mantínhamo-nos calados sobre as circunstâncias em que podíamos, ou não, intervir numa guerra através do Estreito de Taiwan – agora parece que temos uma política de ‘ambiguidade estratégica ambígua’. Não se trata de uma evolução positiva”.

E continua aquele Biden de 2001:

“Como questão de diplomacia, existe uma enorme diferença entre reservar o direito de usar a força e obrigar-nos, a priori, a vir em defesa de Taiwan. O presidente não deve ceder a Taiwan, muito menos à China, a capacidade de nos atrair automaticamente para uma guerra através do Estreito de Taiwan. Além disso, para cumprir a promessa do presidente, quase de certeza que queremos usar as nossas bases em Okinawa, Japão.

“Mas não há provas de que o presidente tenha consultado o Japão sobre uma expansão explícita e significativa dos termos de referência para a Aliança de Segurança EUA-Japão. Embora a aliança preveja operações conjuntas nas áreas circundantes do Japão, a inclusão de Taiwan nesse âmbito é uma questão da maior sensibilidade em Tóquio. Sucessivos governos japoneses têm evitado ficar presos a esta questão, por medo de fracturar a aliança.

“Por uma questão de lei, as obrigações e políticas são também mundos à parte. O presidente tem ampla autoridade política no domínio da política externa, mas os seus poderes como comandante-em-chefe não são absolutos. Nos termos da Constituição, bem como das disposições da Lei das Relações de Taiwan, o compromisso das forças dos EUA para com a defesa de Taiwan é um assunto que o presidente deve levar ao povo americano e ao Congresso.”

Mais palavras para quê? Afinal, que Biden devemos levar a sério, o de 2001 ou o de 2022? Estará o actual presidente dos EUA a ser de tal modo pressionado pelos falcões ansiosos de guerra (o complexo industrial-militar), que descamba em declarações como as do passado domingo, e não terá a capacidade interior de lhes resistir, ainda que tal agudize a instabilidade que actualmente reina na cena internacional? Será que Joe Biden realmente existe e exerce o poder ou não passa de uma marioneta, cujo papel se resume a recitar o texto que outros lhe escrevem?

As atitudes recentes dos EUA em relação em Taiwan parecem querer provocar a intervenção militar do continente que, legitimamente, aspira à unificação da China e que não poderá admitir mais passos no sentido da independência da ilha. Por enquanto, Pequim tem demonstrado que prefere uma solução pacífica do problema e nem sequer estabeleceu um calendário definitivo para a reunificação. Contudo, se as provocações americanas continuarem e encontrarem eco em Taipé, o caso poderá mudar rapidamente de figura.

Talvez Biden consiga convencer Biden de que a sua actual posição é profundamente errada e perigosa para esta região e para o mundo em geral. E que Biden consiga conter os ímpetos belicistas, hegemónicos e neocolonialistas de Biden. O mundo espera para ver qual dos Biden aparecerá a seguir nos ecrãs de televisão e qual o guião que desta vez escreveu ou lhe deram para ler.

Talvez Biden compreenda que a humanidade deve seguir o caminho da paz e os EUA adoptem uma política de não-interferência nos assuntos internos de outros países ou, pelo contrário, Biden acirre mais os conflitos na cena internacional e nos conduza a todos à desgraça. É que, como diria Jim Morrison, não vale a pena ter ilusões: “Daqui ninguém sai vivo”.

22 Set 2022

Capitalismo insustentável

A ideia de sustentabilidade explicitamente aplicada ao turismo tem cerca de 30 anos: foi no final dos 1990s que se começou a usar esta designação em títulos de conferências, jornais académicos ou documentos de orientação política.

Foi relativamente pouco depois de o termo “desenvolvimento sustentado” ter aparecido e ficado como referência estratégica global, a partir da publicação de “O nosso futuro comum”, pela ONU, em 1987. Antes disso já havia, no entanto, referências implícitas e críticas sistemáticas e contundentes a processos de desenvolvimento turístico que destruíam ecossistemas sensíveis ou implicavam severas perturbações nos modos de vida de populações locais. Os temporários êxodos massivos de populações urbanas para zonas costeiras em tempos de verão, sobretudo a partir dos anos 1960 e 1970, são exemplos bem conhecidos em Portugal.

Pouco tem a ver com esses tempos o desenvolvimento do turismo contemporâneo: hoje os métodos de planeamento regional e urbano estão mais generalizados e são suportados por informação, conhecimentos técnicos e tecnologias que nem sequer existiam na altura. A percepção dos impactos negativos do turismo também é generalizada e são relativamente consensuais conceitos como o de “capacidade de carga”, que define os limites físicos dos lugares para acolher visitantes, mas também os limites psicológicos dos turistas para que considerem que a sua visita valeu a pena – ou que tiveram uma experiência plenamente satisfatória, como agora se vai dizendo.

Também os estabelecimentos hoteleiros passaram a ter outro tipo de preocupação na sua concepção e gestão, procurando melhorar o enquadramento na paisagem e a adequação aos recursos do território, ou passando a integrar mecanismos de poupança de água e energia, que tendem a ultrapassar muito largamente os consumos por pessoa que se praticam normalmente quando se está em casa.

Pouco disto, diga-se, tem grande significado: é com os transportes aéreos e automobilísticos que o turismo impõe os seus maiores impactos ambientais, um contributo crescente para a emissão de gases de estufa e, por isso, para a aceleração dos processos de alterações climáticas a que continuamos a assistir com escassa capacidade – ou mesmo vontade – de intervenção. Essa escassa intervenção contrasta com a quantidade – e até clareza – das orientações políticas de diversas instituições, ligadas à promoção do turismo ou a outras formas de regulação económica, em diferentes escalas territoriais, da local à dos blocos continentais de países, passando naturalmente pela região e pelos territórios nacionais.

Primeiro foram as sugestões sobre como o turismo pode promover a integridade dos ecossistemas valorizando recursos territoriais e garantindo experiências únicas, ao mesmo tempo que pode criar oportunidades de emprego e de iniciativas empresariais para comunidades locais eventualmente falhas de alternativas viáveis, contribuindo então para o crescimento das economias. Hoje é mais detalhada a descrição destes impactos e dos três pilares da sustentabilidade passou-se para os 17 objectivos de desenvolvimento sustentável. Para todos eles o turismo pode, diz-se, oferecer contributos relevantes.

Só que o turismo, como também se sabe, não deixa de estar enquadrado num processo global de concorrência desenfreada e vagamente regulada, tendo sido também objecto de sucessivas vagas de liberalização, desde a utilização dos espaços aéreos, até aos investimentos internacionais em infraestruturas, equipamentos, atrações e serviços globais de hotelaria e restauração, facilitados pela livre circulação internacional de capitais, que aceleram a internacionalização dos movimentos turísticos, a intensificação da concorrência e, frequentemente, os processos de gentrificação associados a projectos de renovação urbanística.

Dizem os manuais da especialidade que há uma fórmula para combinar o sucesso da competitividade nestes mercados globais com a sustentabilidade na utilização dos recursos do território: promover negócios locais, com a mão-de-obra residente, assente em produtos e serviços únicos e irrepetíveis, ligados ao património natural e cultural de cada região e suportados por tecnologias digitais que promovam comunicações rápidas e eficazes. Em vez produtos massificados mais baratos que os dos territórios concorrentes, promovam-se serviços únicos, de alto valor acrescentado, com menor procura mas maior benefício económico para as comunidades.

Na realidade, não tem sido assim: grande parte dos destinos turísticos concorre com o preço mais baixo possível pela maior fatia possível dos mercados globais do turismo contemporâneo. Aliás, mesmo que assim fosse dificilmente se poderia dizer que se tratava de um processo bem enquadrado nos tais princípios da sustentabilidade: na realidade, tratar-se-ia de produtos e serviços caros, dirigidos ao consumo de uma minoria da população – a mais rica. Em última análise, a sustentabilidade económica e ambiental seria paga por quem pode, levando a novas formas de exclusão social numa actividade que até se foi democratizando com a sua massificação.

Essa massificação é, aliás, uma condição necessária para a grande maioria das actividades económicas contemporâneas: não haveria computadores, telemóveis, televisões, câmaras fotográficas, automóveis, aspiradores ou máquinas de lavar se não fosse a massificação das suas produções e a inerente prática de preços relativamente baixos e acessíveis a grande parte da população. Sempre com a utilização máxima de recursos, diga-se: enquanto o benefício atingido superar o custo de se aumentar a produção, produz-se mais, para mais gente. Os limites do planeta continuam a contar pouco para esta equação.

Não é diferente com o turismo: é a massificação planetária que permite haver voos a preços relativamente acessíveis, diferentes formas de alojamento nos mais remotos lugares, formidáveis sistemas integrados de informação que nos permitem escolher roteiros, comprar bilhetes de transporte, reservar quartos em hotéis ou garantir o acesso a lugares e eventos a partir do conforto do nosso telemóvel. É esse mercado de massas que permite que o negócio global funcione e que vão emergindo nichos frequentemente designados como mais sustentáveis. Na realidade, no capitalismo contemporâneo o negócio do turismo pouco difere de outros negócios: é insustentável.

22 Set 2022

A maioria das estruturas externas construídas em edifícios e habitações são ilegais, mas não há prazo que obrigue a demolir


Por Mário Duarte Duque, arquitecto

(continuação de ontem)

A voracidade dessas construções era tal que os arquitectos corriam ao local da obra na véspera da vistoria, para poderem fotografar a sua obra acabada de construir. Sabiam que logo que a licença de habitação fosse concedida, as obras ilegais prosseguiriam de imediato e o edifício não mais seria reconhecível.

Os mesmos anos 80 estão extensivamente representados na RAEM pelo eclectismo da arquitectura Pós-Moderna. Todavia, algo que só é possível documentar em desenhos de projecto, em fotografias que se encontram apenas na posse dos autores desses projectos, ou no dia em que esses edifícios forem libertados de todas as estruturas ilegais.

Algumas dessas estruturas ilegais eram já mesmo negociadas na conclusão dos edifícios entre os construtores e os compradores, com a confiança de que os funcionários da Divisão de Fiscalização da DSSOPT se manteriam desatentos.

O curso destes acontecimentos corresponde à passagem do Eng. Carion pelas chefias da mesma Divisão de Fiscalização, pelo Departamento de Urbanização, pela Subdirecção para a área do Licenciamento da Construção e Planeamento Urbanístico, e finalmente pela Direcção da extinta DSSOPT.

Do que aconteceu antes deste estado de coisas é mais difícil obter relato. Mas é possível obter testemunho nas paredes dos edifícios pintados que retêm várias camadas de tinta de cores diferentes, onde cada camada representa um intervalo de tempo de pelo menos 5 anos.

O formato do curso destes acontecimentos é o formato das rotinas que foram descontinuadas, todavia disposições que se mantêm em vigor e são necessárias, mas ainda ninguém soube como as retomar. O resultado é assim uma realidade formada à-toa, face àquilo que persiste e é ao arrepio tanto da legalidade como da razão, e que se processa com incerteza, mesma na vigência de um Plano Director.

Nessa disfuncionalidade, continuou a assistir aos Residentes da RAEM o direito de prosseguirem obra no silêncio da Administração, sendo apenas sua responsabilidade a confiança de que a mesma é passível de legalização.
A mesma Divisão de Fiscalização, entretanto integrada na nova DSSCU, passou a ser a unidade funcional mais difícil de ser abordada pelos particulares, o atendimento com apenas um funcionário deixou de ser possível. Todavia, a actividade de fiscalização sobre construções existentes ainda só prossegue por queixa.

As intimações são efectivamente feitas, e já com a advertência de que, se os particulares não prosseguirem os trabalhos de rectificação necessários nos prazos da intimação, a Administração prosseguirá trabalhos para a reposição da legalidade, em substituição desses particulares, de quem cobrará os encargos, coercivamente se necessário. Todavia os casos em que a DSSOPT prosseguiu nesse modo são apenas os que anunciou e que fez disso exemplo.

A DSSOPT também não seguia o desenvolvimento das intimações que produziu, nomeadamente a respeito de demolições, que por sua vez também correram à margem de licença, nomeadamente de licença para trabalhos de demolição.

Digamos que demolir pisos inteiros e reconstruir terraços de cobertura, para reposição dos moldes aprovados ou homologados da construção, é mais complexo, e processa-se de modo diferente, que simplesmente remover grades ou palas de janelas.

Efectivamente, a actuação dos agentes da fiscalização não mais se caracteriza pela mesma passividade do passado, mas a desarticulação que disso resultou persiste.

Do mesmo modo que pinturas não mais foram realizadas nos exteriores dos edifícios, também não mais foram realizadas nas escadas comuns interiores desses edifícios.

E, onde foram entretanto produzidas ordenações para remover portões e grades que bloqueavam escadas comuns, e reunidas assim condições para que essas escadas interiores fossem reparadas e pintadas, para a Sr.ª Eng.ª Chan Pou Ha, enquanto Subdirectora da DSSOPT, a esse prosseguimento não bastava uma acta de reunião de condóminos que decidisse obras de conservação. Importava que a mesma especificasse “reparação de escadas comuns”, mesmo constando em auto dos Serviços que isso era necessário, fundamentando assim indeferimento de pedidos de licença para obras de conservação.

A mesma dirigente também produziu embargos a trabalhos aprovados pela DSSOPT, que manteve sem prazo para resolução, estando ao seu alcance representar que assiste o direito dos particulares em prosseguir trabalhos já aprovados, nomeadamente no silêncio da Administração na emissão de licença de obra.

Assim como permitiu que se aprovassem modificações de fachadas de edifícios, sem a autorização dos demais condóminos, em fracções que não eram no rés-do-chão, nem tinham entrada directa pela via pública.

Mais excentricamente, a própria, enquanto Directora da DSSOPT, permitiu e encomendou trabalhos, exactamente de colocação de grades no edifício da Assembleia Legislativa, em vãos que servem caminhos de evacuação.

Ou seja,

A expressão do Chefe do Departamento de Urbanização da DSSCU, que herdou a chefia do actual Director da DSSCU, sobre a inexistência de prazo que obrigue à demolição de obras ilegais, é expressão de que não se sabe como lidar com modificações perpetradas aos edifícios, ainda está por reatar uma lógica funcional a respeito de conservação dos mesmos edifícios, mesmo depois de não mais se verificarem muitas das circunstâncias perniciosas do passado.

Pertinente é também o conhecimento de que, no mesmo Departamento de Urbanização, é onde os projectos particulares são escrutinados, onde se averigua da coordenação do conjunto de participações de especialidades em projecto, e onde a falta dessa coordenação determina instruções aos particulares para rectificação ou aperfeiçoamento desses projectos.

De igual modo, as posições do mesmo departamento esperam-se coordenadas com os diplomas que são especialidade daquele departamento aplicar, com as regras por que se pauta a actividade administrativa no seu conjunto e, necessariamente, com princípios fundamentais definidos na Lei Básica.

Nomeadamente no que assiste aos residentes da RAEM a respeito de protecção do ambiente, que na RAEM é predominantemente construído.

Assim como direitos e legítimos interesses dos residentes autores de obras de arquitectura, a quem assistem as contrapartidas daquilo que produzem, sobre quem recai espectativas de intervenção profissional qualificada e zelosa, para que o seu brio pela obra não seja mercê de desfiguração ilícita, ao arrepio de uma salvaguarda que é transversal a todos os domínios de produção intelectual.

Muito menos por beneplácito administrativo, avesso às providências do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (o PIDESC) a que a RAEM está vinculada nos termos da Lei Básica, e ao abrigo do qual o Governo da RAEM produz relatórios regularmente sobre a aplicação na RAEM, para discussão junto da ONU.
Chegados aqui, no mesmo alcance de interpretação, afigura-se útil uma analogia à Teoria dos Contrastes, no modo como serve a compreensão da realidade.

Na arte, os contrastes são um artifício expressivo de representação da realidade, em que se recorre à confrontação com a diferença, ou à deslocação do contexto.

É assim que uma realidade dormente ressalta em acréscimo de expressão ou em acentuação de valor, uma vez representada assim excêntrica ou dramaticamente.

Na teoria da cor, as cores são mais brilhantes confrontadas com outras mais pálidas, como são mais quentes confrontadas com outras mais frias, e melhor se identificam uma vez confrontadas com as cores que lhes são complementares ou opostas no espectro cromático.

Igualmente:

Numa sociedade, onde os humanos habitualmente se cruzam olhando para o infinito, não podemos deixar de reparar em quem nos fixa nos olhos;

Perante o que se organiza logicamente, necessariamente ressalta o que é desarticulado do discurso da razão;
Quando a interacção entre os humanos se pauta apenas por contrapartidas reais e premeditadas, sobressaem os actos de bondade que são aleatórios;

Onde proliferam edifícios com falta de manutenção, pejados de estruturas ilegais, só podem sobressair os que se resguardam na classificação de património cultural, que se encontram impecavelmente tratados, por vezes até para além do que é inevitável e intrínseco à precaridade da matéria.

Se queremos ser mais felizes, fixamo-nos no que nos alegra, e viramos a cara ao que se revela ser diferente disso e nos incomoda.

22 Set 2022