A maioria das estruturas externas construídas em edifícios e habitações são ilegais, mas não há prazo que obrigue a demolir

DR


Por Mário Duarte Duque, arquitecto

(continuação de ontem)

A voracidade dessas construções era tal que os arquitectos corriam ao local da obra na véspera da vistoria, para poderem fotografar a sua obra acabada de construir. Sabiam que logo que a licença de habitação fosse concedida, as obras ilegais prosseguiriam de imediato e o edifício não mais seria reconhecível.

Os mesmos anos 80 estão extensivamente representados na RAEM pelo eclectismo da arquitectura Pós-Moderna. Todavia, algo que só é possível documentar em desenhos de projecto, em fotografias que se encontram apenas na posse dos autores desses projectos, ou no dia em que esses edifícios forem libertados de todas as estruturas ilegais.

Algumas dessas estruturas ilegais eram já mesmo negociadas na conclusão dos edifícios entre os construtores e os compradores, com a confiança de que os funcionários da Divisão de Fiscalização da DSSOPT se manteriam desatentos.

O curso destes acontecimentos corresponde à passagem do Eng. Carion pelas chefias da mesma Divisão de Fiscalização, pelo Departamento de Urbanização, pela Subdirecção para a área do Licenciamento da Construção e Planeamento Urbanístico, e finalmente pela Direcção da extinta DSSOPT.

Do que aconteceu antes deste estado de coisas é mais difícil obter relato. Mas é possível obter testemunho nas paredes dos edifícios pintados que retêm várias camadas de tinta de cores diferentes, onde cada camada representa um intervalo de tempo de pelo menos 5 anos.

O formato do curso destes acontecimentos é o formato das rotinas que foram descontinuadas, todavia disposições que se mantêm em vigor e são necessárias, mas ainda ninguém soube como as retomar. O resultado é assim uma realidade formada à-toa, face àquilo que persiste e é ao arrepio tanto da legalidade como da razão, e que se processa com incerteza, mesma na vigência de um Plano Director.

Nessa disfuncionalidade, continuou a assistir aos Residentes da RAEM o direito de prosseguirem obra no silêncio da Administração, sendo apenas sua responsabilidade a confiança de que a mesma é passível de legalização.
A mesma Divisão de Fiscalização, entretanto integrada na nova DSSCU, passou a ser a unidade funcional mais difícil de ser abordada pelos particulares, o atendimento com apenas um funcionário deixou de ser possível. Todavia, a actividade de fiscalização sobre construções existentes ainda só prossegue por queixa.

As intimações são efectivamente feitas, e já com a advertência de que, se os particulares não prosseguirem os trabalhos de rectificação necessários nos prazos da intimação, a Administração prosseguirá trabalhos para a reposição da legalidade, em substituição desses particulares, de quem cobrará os encargos, coercivamente se necessário. Todavia os casos em que a DSSOPT prosseguiu nesse modo são apenas os que anunciou e que fez disso exemplo.

A DSSOPT também não seguia o desenvolvimento das intimações que produziu, nomeadamente a respeito de demolições, que por sua vez também correram à margem de licença, nomeadamente de licença para trabalhos de demolição.

Digamos que demolir pisos inteiros e reconstruir terraços de cobertura, para reposição dos moldes aprovados ou homologados da construção, é mais complexo, e processa-se de modo diferente, que simplesmente remover grades ou palas de janelas.

Efectivamente, a actuação dos agentes da fiscalização não mais se caracteriza pela mesma passividade do passado, mas a desarticulação que disso resultou persiste.

Do mesmo modo que pinturas não mais foram realizadas nos exteriores dos edifícios, também não mais foram realizadas nas escadas comuns interiores desses edifícios.

E, onde foram entretanto produzidas ordenações para remover portões e grades que bloqueavam escadas comuns, e reunidas assim condições para que essas escadas interiores fossem reparadas e pintadas, para a Sr.ª Eng.ª Chan Pou Ha, enquanto Subdirectora da DSSOPT, a esse prosseguimento não bastava uma acta de reunião de condóminos que decidisse obras de conservação. Importava que a mesma especificasse “reparação de escadas comuns”, mesmo constando em auto dos Serviços que isso era necessário, fundamentando assim indeferimento de pedidos de licença para obras de conservação.

A mesma dirigente também produziu embargos a trabalhos aprovados pela DSSOPT, que manteve sem prazo para resolução, estando ao seu alcance representar que assiste o direito dos particulares em prosseguir trabalhos já aprovados, nomeadamente no silêncio da Administração na emissão de licença de obra.

Assim como permitiu que se aprovassem modificações de fachadas de edifícios, sem a autorização dos demais condóminos, em fracções que não eram no rés-do-chão, nem tinham entrada directa pela via pública.

Mais excentricamente, a própria, enquanto Directora da DSSOPT, permitiu e encomendou trabalhos, exactamente de colocação de grades no edifício da Assembleia Legislativa, em vãos que servem caminhos de evacuação.

Ou seja,

A expressão do Chefe do Departamento de Urbanização da DSSCU, que herdou a chefia do actual Director da DSSCU, sobre a inexistência de prazo que obrigue à demolição de obras ilegais, é expressão de que não se sabe como lidar com modificações perpetradas aos edifícios, ainda está por reatar uma lógica funcional a respeito de conservação dos mesmos edifícios, mesmo depois de não mais se verificarem muitas das circunstâncias perniciosas do passado.

Pertinente é também o conhecimento de que, no mesmo Departamento de Urbanização, é onde os projectos particulares são escrutinados, onde se averigua da coordenação do conjunto de participações de especialidades em projecto, e onde a falta dessa coordenação determina instruções aos particulares para rectificação ou aperfeiçoamento desses projectos.

De igual modo, as posições do mesmo departamento esperam-se coordenadas com os diplomas que são especialidade daquele departamento aplicar, com as regras por que se pauta a actividade administrativa no seu conjunto e, necessariamente, com princípios fundamentais definidos na Lei Básica.

Nomeadamente no que assiste aos residentes da RAEM a respeito de protecção do ambiente, que na RAEM é predominantemente construído.

Assim como direitos e legítimos interesses dos residentes autores de obras de arquitectura, a quem assistem as contrapartidas daquilo que produzem, sobre quem recai espectativas de intervenção profissional qualificada e zelosa, para que o seu brio pela obra não seja mercê de desfiguração ilícita, ao arrepio de uma salvaguarda que é transversal a todos os domínios de produção intelectual.

Muito menos por beneplácito administrativo, avesso às providências do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (o PIDESC) a que a RAEM está vinculada nos termos da Lei Básica, e ao abrigo do qual o Governo da RAEM produz relatórios regularmente sobre a aplicação na RAEM, para discussão junto da ONU.
Chegados aqui, no mesmo alcance de interpretação, afigura-se útil uma analogia à Teoria dos Contrastes, no modo como serve a compreensão da realidade.

Na arte, os contrastes são um artifício expressivo de representação da realidade, em que se recorre à confrontação com a diferença, ou à deslocação do contexto.

É assim que uma realidade dormente ressalta em acréscimo de expressão ou em acentuação de valor, uma vez representada assim excêntrica ou dramaticamente.

Na teoria da cor, as cores são mais brilhantes confrontadas com outras mais pálidas, como são mais quentes confrontadas com outras mais frias, e melhor se identificam uma vez confrontadas com as cores que lhes são complementares ou opostas no espectro cromático.

Igualmente:

Numa sociedade, onde os humanos habitualmente se cruzam olhando para o infinito, não podemos deixar de reparar em quem nos fixa nos olhos;

Perante o que se organiza logicamente, necessariamente ressalta o que é desarticulado do discurso da razão;
Quando a interacção entre os humanos se pauta apenas por contrapartidas reais e premeditadas, sobressaem os actos de bondade que são aleatórios;

Onde proliferam edifícios com falta de manutenção, pejados de estruturas ilegais, só podem sobressair os que se resguardam na classificação de património cultural, que se encontram impecavelmente tratados, por vezes até para além do que é inevitável e intrínseco à precaridade da matéria.

Se queremos ser mais felizes, fixamo-nos no que nos alegra, e viramos a cara ao que se revela ser diferente disso e nos incomoda.

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