António Graça de Abreu Via do MeioDo Silêncio e do Vazio na poesia de Su Dongpo O grande 蘇東坡Su Dongpo (1037-1101) não pára de nos surpreender. A sua vasta poesia, multifacetada nos temas, na abordagem ao real e ao fantástico, desdobra-se diante dos nossos olhos e sensibilidades, num painel distante e próximo de encantamentos e maravilhas. O vazio e o silêncio são temas caros à grande poesia chinesa. Eis quarenta caracteres de poemas de Su Dongbo, recriando o tema: Vazio e silêncio (dois excertos) 欲令诗语妙 无厌空且静 静故了群动 空故纳万境 Para a maravilha do poema, o melhor é o vazio e o silêncio. Em silêncio, floresce tudo o que se move, o vazio alberga dez mil imagens. 我心空无物 斯文定何间 君看古井水 万象自往还 O meu coração vazio, suportando coisa nenhuma, não importam as comezinhas coisas do mundo. Olhem a água de um velho poço, dez mil imagens aparecem, desaparecem. A propósito destes versos, do silêncio e da água no velho poço, escreveu He Qing, letrado chinês nosso contemporâneo: “O vazio e o silêncio são considerados como o princípio primevo da poesia. Quanto mais vazio e silencioso um poema soa, mais valor estético ele ganha. “(…) Pode-se imaginar esse silêncio, essa imobilidade, essa limpidez, essa frescura, essa profundidade temporal da água de um antigo poço, e imaginar que esta água silenciosa reflecte, serenamente, os vôos das aves, as viagens das nuvens, as vibrações da luz do sol, as oscilações das relvas e dos ramos das árvores, as mil cores da natureza. Nesta imagem poética reside não só a maior sabedoria chinesa, mas também o estado ideal da estética chinesa: permanecer ancorado no silêncio mais profundo e contemplar os movimentos mais íntimos do universo…” (He Ding, Images du Silence, Pensée et Art Chinois, Paris, L’Harmattan, 1999, pag. 79/80.)
Hoje Macau Via do MeioSentido de Justiça, por Ana Cristina Alves por Ana Cristina Alves* Heraclito ou Heráclito, o Obscuro, nasceu em Éfeso, antiga colónia grega da Ásia Menor (Turquia), em meados do século VI a.C. Pensa-se que fosse filho do Rei-Sacerdote de Éfeso. Segundo Diógenes Laércio, abdicou do trono, heranças e mordomias cedendo os direitos ao seu irmão. Tornou-se misantropo e era muito admirado pela sua sabedoria, embora fosse considerado um pensador obscuro e ele mesmo tivesse como meta a sabedoria, acreditando à semelhança de um dos seus sucessores na filosofia, Sócrates, que esta se encontrava além, pois quanto mais fundo se ia no conhecimento, tanto mais vasta era a consciência do horizonte desconhecido. Abrigou-se por um tempo no templo de Ártemis, a deusa grega da caça, filha de Zeus e de Leto, irmã gémea de Apolo, personificava o espírito feminino independente. Depois tornou-se eremita nas montanhas, seguindo o mais estrito regime vegan, pois para a sua alimentação não contava com mais do que raízes e plantas. Segundo Heraclito, na physis, ou natureza, o princípio gerador e regulador do cosmos expressa-se no fogo, imagem viva da justa transformação, numa realidade em devir, cujas mutações seguiam uma racionalidade dialética própria, um logos, razão do universo, viabilizador do todo organizado, ou seja, o cosmos, iluminado por esta razão à semelhança do fogo solar, dando visibilidade a todos os seres da terra. É dele o famoso aforismo: ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, porque tanto a água como o homem mudam incessantemente, estando e não estando; sendo e não sendo. Considerava, portanto, que o pensamento tudo governava, incluindo a mudança, que geria de um modo tensional, donde resultava a harmonia, da oposição e da discórdia. Um outro aforismo célebre é: A guerra é a mãe e rainha de todas as coisas, alguns transforma em deuses, outros em homens; de alguns faz escravos, de outros homens livres. Ainda que Heraclito reconhecesse a importância da guerra na lógica da organização do mundo, ele não era um guerreiro stricto sensu. O muito pouco que se conhece da sua biografia, leva a concluir precisamente o contrário. Sabemo-lo vegetariano e eremita. Mas não é menos verdade que terá depositado os seus escritos à guarda da Deusa da Caça, no tempo que lhe era dedicado. Assim, seria um guerreiro sábio lato sensu, já que destacava a luta e a discórdia para a organização de um cosmos sempre em transformação dialética e racional, personificada pelo fogo terreno e astral, que com os seus ritmos e regularidades iluminavam o mundo. Os escassos aforismos que nos chegaram de Heraclito aproximam-no, com alguma margem hermenêutica, do pensamento de Sunzi (孙子), que também terá vivido entre os séculos VI e V a.C., sendo o maior estratega da antiguidade chinesa, igualmente filósofo, a quem é, por tradição, atribuído o tratado de estratégia, a Arte da Guerra 《孙子兵法 Sūnzi bīngfǎ》. Este, talvez registado pelos seus discípulos, inaugura com o capítulo “Planear da seguinte forma” (Sunzi, 2001:2): “Disse Sunzi: a guerra é uma questão de importância vital para o estado, uma questão de vida ou morte, uma estrada para a sobrevivência ou ruína. Assim é, um assunto que exige um estudo cuidadoso.” (孙子曰:兵者,国之大事,死生之地,存亡之道,不可不察也) Ora, o estudo cuidadoso traduz-se numa exposição minuciosa da estratégia da guerra, cuja racionalidade deve ser analisada em profundidade, como sucede neste tratado de treze capítulos, que inicia com o Planear da Guerra, passando para Fazer Guerra, Ofensiva Estratégica, Formas e Disposições, Potencial; Pontos Fracos e Fortes; O Conflito; As Nove Variáveis; O Exército em Marcha; O Terreno; Os Nove Tipos de Terreno; O Ataque pelo Fogo, terminando em Utilização de Espiões. Nada é deixado ao acaso, neste jogo de vida ou de morte. Os planos devem ser estudados em pormenor, as ações medidas, porque se está perante um assunto da maior gravidade, definindo-se o grande estratega como aquele que consegue evitar o conflito no terreno, a menos que seja realmente forçado a partir para ele. Os cinco fatores fundamentais para perceber a conclusão de uma guerra são (Sunzi, 2001:2): o dao (道 dào), “caminho”; o céu (天 tiān ); a terra (地dì); o comando (将 jiàng)e os regulamentos(法 fǎ ), sendo fundamental o primeiro, “o caminho”, definido em termos de “influência moral”. Oiça-se o estratega (Ibidem): “Pelo “caminho”, entendo a influência moral, ou o que leva a população a pensar da mesma forma que o soberano, seguindo-o em cada vicissitude, seja para viver ou para morrer, sem receio do perigo mortal” (道者,令民与上同意也。故可以与之死,可以与之生,而不畏危). Há, assim, uma justiça inerente ao próprio processo de desencadear e conduzir o conflito que muito influencia a derrota ou a vitória numa guerra. Um soberano, que não obtenha a confiança do seu povo, ou um general, que não se imponha moralmente aos seus militares, estarão condenados ao fracasso. Não se espere, pois, que chefes injustos na distribuição de recompensas e castigos possam conduzir as suas tropas à vitória (Sunzi, 2001:7): “Para que eu possa prever qual dos lados sairá vitorioso, é preciso descobrir qual o soberano que possui mais influência moral, qual o general mais capaz, qual dos lados beneficia de mais vantagens do céu e da terra, quais as tropas mais bem armadas e treinadas, qual o comando mais justo na distribuição de recompensas e castigos” (曰:主孰有道?将孰有能?天地孰得?法令孰行?兵众孰强?士卒孰练赏罚明?吾以此知胜负矣。) E se é verdade que a guerra implica logro e dissimulação, fingimento, até espionagem, estes estratagemas não devem servir causas menores. Digamos que um bom chefe age corretamente em todas as situações, sendo justo para quem o é, mas também deverá estar à altura do adversário, ou, em linguagem bélica, do inimigo, porque a sua responsabilidade maior é para com a população que deverá proteger. Para tal, será necessário recorrer à inteligência em profundidade, espera-se que seja um guerreiro sábio, como somos informados em Ofensiva Estratégica, porque melhor do que travar batalhas é não o fazer (Sunzi, 2001: 21) : “Travar cem batalhas, ganhando cada uma delas, não é a atitude mais sábia. Quebrar a resistência do inimigo sem lutar, é.” (是故百战百胜,非善之善者也;不战而屈人之兵,善之善者也。). Mas nem sempre é possível evitar o conflito, porque há atos agressores que não podem ficar sem resposta. Nesse caso, aconselha-se um conhecimento profundo das suas próprias forças e das do adversário, porque se parte do mesmo princípio a animar o pensamento de Heraclito, há medida e racionalidade em toda a natureza e nos comportamentos humanos, logo aquele que domina a sua própria razão e entende a dos outros, está votado ao sucesso. Assim somos aconselhados no capítulo O Terreno (Sunzi, 2001: 95): “Por isso se diz: Conhece o inimigo e conhece-te a ti mesmo para que a vitória não esteja em causa; conhece o céu e a terra para que a vitória seja completa.” (故曰:知彼知已,胜乃不殆;知天知地,胜乃不穷。) O melhor chefe, nesta China dos tempos antigos, era quem possuía visíveis virtudes morais, ainda que tivesse de ostentar uma atitude silenciosa e imperscrutável perante as suas tropas, deveria ser capaz de manter a disciplina, quase espontaneamente, porque era imparcial e/ou justo, se o critério da justiça se aferir por um comportamento correto e equitativo, como nos é dito no capítulo Os Nove Tipos de Terreno (Sunzi, 2001: 107). Já no penúltimo capítulo, O Ataque pelo Fogo, não restam quaisquer dúvidas sobre os verdadeiros princípios defendidos neste primeiro tratado de estratégia chinês e o mais lido ao longo de toda a sua história. Se a guerra acompanha as transformações do mundo, sendo inevitável e de importância decisiva, tornando uns senhores e outros escravos, uns vencedores e de outros vencidos, é um assunto nesta tradição estratégica de uma gravidade tal, que nenhum conflito deve ser travado de ânimo leve, implicando cuidadosas deliberações; é sempre preferível em última análise, não a travar, porque (Sunzi, 2001:121 ) “Um estado que pereceu não pode ser restaurado, nem os mortos trazidos de regresso à vida. Por isso, o soberano iluminado aborda a questão da guerra com a maior precaução, evitando um bom comandante qualquer atitude precipitada. Porque este é o caminho para manter o estado seguro e o exército a salvo. ”(亡国就不可以复存,死者不可以复生。故明君要慎之,良将警之,此安国全,军之道也。) Pergunte-se se a mentalidade chinesa mudou ao longo dos séculos, sobretudo depois de verificar a consistência com que a China de Xi Jinping tem defendido a neutralidade no conflito russo-ucraniano e, talvez agora, se perceba melhor a razão por que o faz. O primeiro interesse do país é o de assegurar o bem-estar da sua própria população, sobretudo quando tem estabelecidas relações culturais e comerciais com o vizinho russo, que vêm de longa data, mais constantes desde os tempos da fundação da República Popular Chinesa, para a qual ao tempo a União Soviética contribuiu ideologicamente, e não só. Já que à época estes apoiaram o desenvolvimento económico chinês, nomeadamente no setor industrial. Recorda-nos José Milhazes em Rússia e Europa: uma parte do todo que nos anos 40 e 50 do século XX, Estaline e Mao juraram amizade eterna, “russos e chineses – irmãos para sempre” (Milhazes, 2016: 83), mas com a morte de Estaline reacenderam-se os combates fronteiriços entre os dois vizinhos. Ora é precisamente este tipo de situação que os chineses tentam evitar, para não mencionar os interesses nacionais entre a Gazprom e a China National Petroleum Corporation, com o consequente contrato de fornecimento de gás russo à China por 30 anos, a construção de gasodutos, etc. Embora haja grandes interesses económicos em jogo, nota-se que o presidente russo Vladimir Putin não consegue quebrar a tradição de neutralidade chinesa, que tem vindo a ser consolidada pela China nas questões de política internacional desde meados do século XX até ao presente, sendo os conselhos mais recentes de Xi Jinping ao homólogo russo de procurar restabelecer a paz perdida, com ênfase para o enaltecimento apenas via das conversações e do diálogo sem outros compromissos, como sucedeu recentemente no discurso que o presidente realizou na reunião do Conselho de Chefes de Estados Membros da Organização de Cooperação de Xangai (SCO) a 16 de setembro de 2022, onde apelou aos valores éticos tradicionais que conduzem a política chinesa, aqueles que já conhecemos desde o clássico A Arte da Guerra: a preocupação com a segurança interna e externa, a confiança mútua, tolerância, justiça, cooperação e diálogo. Ontem e hoje os valores defendidos são os mesmos na China, é a ética que conduz a política e a meta a paz. Mas há quem veja intenções escondidas neste discurso neutro proferido pelas autoridades chinesas. Recordemos o que nos diz José Milhazes na obra já referida: “Pequim é conhecido pelo seu pragmatismo nas relações internacionais, que não deixa qualquer espaço a sentimentos. Por isso, a Rússia é, para a China, um dos muitos instrumentos que poderão ser aproveitados na disputa com os Estados Unidos” (Milhazes, 2016: 90). Não é esta a minha posição, acredito sinceramente na via da moralidade e segurança defendida pelos chineses, e se o fazem não é por razões sentimentais, no que partilho o parecer de Milhazes, mas sim por uma tradição racional, que encontra a sua justiça num sábio equilíbrio de opostos, onde a bela harmonia nasce, recordando as palavras de Heraclito da ponderação e afinação da discórdia. Referências Bibliográficas Frazão, Dilva. 2019. “Heráclito”. Ebiografia. Disponível em: https://www.ebiografia.com/heraclito/, acedido a 22 de setembro de 2022. Kirk , G.S, J.E. Raven, M. Schofield. 1983 The Presocratic Philosophers: A Critical History with a Selection of Texts. Cambridge: Cambridge University Press. Milhazes, José. 2016. Rússia e Europa: uma parte do todo. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos. 《孙子兵法》Sunzi: The Art of War. 2001. Tradução de 林戊荪.北京:外文出版社. Sun Tzu. A Arte da Guerra. 2008. Tradução de Ricardo Silva. Versão resumida. Vila Nova de Famalicão: Quasi. * Coordenadora do Serviço Educativo do Centro Científico e Cultural de Macau Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores.
Andreia Sofia Silva Entrevista Manchete Via do MeioTereza Sena, historiadora: “Houve confiança do Imperador em Tomás Pereira” Acaba de ser lançado, em Portugal, o livro “Tomás Pereira e o Imperador Kangxi – Um Diálogo entre a China e o Ocidente”, editado pela Guerra e Paz, e da autoria de Tereza Sena, historiadora e ex-residente de Macau. Trata-se de uma narrativa histórica, com elementos ficcionais, do percurso do jesuíta português até à China e da relação especial que estabeleceu com o Imperador Kangxi. O objectivo é mostrar mais detalhes sobre a missão deste português jesuíta ainda pouco conhecido do grande público Quando começou o projecto para a construção desta narrativa histórica? Tudo partiu de um convite da embaixada de Portugal em Pequim, na pessoa de José Augusto Duarte [ex-embaixador] que fez uma proposta à Universidade de Macau em prol de uma maior divulgação da figura de Tomás Pereira. Este não é um trabalho académico, mas sim uma narrativa histórica destinada ao grande público. É uma obra síntese sobre Tomás Pereira, que é ainda desconhecido. Na altura, fiquei em Macau mais algum tempo e fui enquadrada na Universidade de São José com o objectivo principal de escrever esta obra, que poderá ser traduzida para chinês e para inglês. Decidiu então escrever sobre a relação próxima que Tomás Pereira teve com o imperador Kangxi. Esta foi a forma de abordar [o tema] e trazer um pouco para o lado português as relações sino-ocidentais e o papel de Macau, bem como os aspectos da acção dos missionários, com especial destaque para os jesuítas, devido ao papel que tiveram na corte imperial. Há todo um trabalho académico que foi feito sobre Tomás Pereira, sobretudo em 2008, uma série de iniciativas comemorativas dessa personalidade, quando se celebraram os 400 anos do seu falecimento. Nessa altura, do ponto de vista científico, ele era uma figura pouco estudada. Em toda a historiografia, mesmo dos jesuítas, dá-se sempre relevo a outras personalidades na corte de Pequim. Nessa altura surgiu o projecto, no seio do Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM), de reunir, com vários académicos, as diversas obras de Tomás Pereira, que estavam dispersas, nomeadamente as cartas. Que trocou com que personalidades? Dentro da própria Ordem, com os superiores e os companheiros, e temos algumas cartas trocadas com autoridades, algumas com o próprio rei de Portugal, e cartas de viagens que fez. Temos um texto, a pedido de um antigo mestre dele, o João Queirós, sobre o budismo na China. Mas esse foi um trabalho académico, aqui faço uma abordagem diferente, uma tentativa de construção de um quase romance, um guia do que foi a vida de Tomás Pereira, mas contextualizado. Isto porque pouco sabemos dele até à sua chegada a Pequim. Tentei fazer esse ajuste biográfico, construindo uma narrativa em que o Tomás Pereira aparece como protagonista, mas não como herói. Aparecem no livro uma série de conjunturas em que ele está inserido. Fui buscar textos, mesmo que não sejam do tempo do Tomás Pereira, que contextualizam a viagem marítima, a vida em Goa, a formação dos jesuítas, um pouco da história de Macau. Há depois uma segunda parte em que o protagonista entra directamente em cena e já é uma narrativa construída, mas onde fui buscar mais elementos à sua epistolografia [escrita de cartas]. Não só utilizei material que tinha compilado em 2008 como me socorri das Obras Completas de Tomás Pereira, que foram depois publicadas. Porque é que Tomás Pereira foi tão importante? Houve uma grande propaganda, por parte dos jesuítas franceses, com o Tratado de Nerchinsk [assinado em 1689], quando se conseguiu uma certa liberdade religiosa em Pequim, embora não fosse plena. Há que olhar para os conflitos entre as nações que existiam na altura. A Companhia de Jesus [a que pertencia Tomás Pereira] estava cada vez mais nacional e menos internacional, porque tinham membros de todas as nacionalidades. Os jesuítas eram criticados pela exclusividade da missão missionária na China por parte de outras ordens, que também queriam ter as suas missões e, como sabemos, a Companhia de Jesus teve a exclusividade, até certa altura, do trabalho missionário na China e no Japão. Houve a contestação dos direitos do Padroado também. Tomás Pereira foi um acérrimo defensor dos direitos do Padroado e assume um papel extremamente importante nesse aspecto, tendo sido atacado por muitos, acusado de estar ao serviço do Padroado. Sendo um jesuíta português de grande envergadura, e com assento na corte de Pequim, com contactos com o Imperador, ensinando-lhe música, e sendo-lhe confiadas algumas missões importantes, mesmo ao serviço da corte… Tais como? Uma delas foi o papel de mediador na assinatura do tratado sino-russo [de Nerchinsk]. Foi-lhe atribuída a responsabilidade sobre o tribunal das matemáticas, embora em conjunto com outro jesuíta. Houve uma confiança que o Imperador depositou em Tomás Pereira, que é, de facto, uma figura de relevo nas relações sino-ocidentais e é um português. Não é tão conhecido, porque todos falam do Mateus Ricci, por exemplo. Todos tinham o seu papel no seio da Companhia de Jesus, mas de facto Tomás Pereira não é uma figura tão popular como os outros. Esta relação com o Imperador Kangxi foi de facto especial. Creio que sim, embora tenhamos de ter sempre alguma precaução. Nestas narrativas jesuíticas sobre este conflito de interesses, de contestações, de Roma e de outras ordens, sempre com as pressões nacionais por detrás, qualquer gesto do Imperador, relativamente aos jesuítas, à Missão, à própria Companhia ou à Igreja, era exacerbado. Colocavam tudo nas cartas para que o Ocidente soubesse da sua relação privilegiada com o Imperador. Por isso temos sempre de ter alguma precaução. Os pequenos gestos que são descritos, de ofertas do Imperador, por exemplo, têm de ser interpretados como sinais que o Imperador dava de estima daquelas pessoas, e que os considerava seus cortesãos, embora respeitando uma hierarquia na corte imperial. Chegou-se a estabelecer uma espécie de relação de amizade entre os dois? É muito difícil de dizer, embora Tomás Pereira se tenha referido ao “grande amor” que o Imperador sentia por ele. Amor no sentido figurado, de respeito. A minha interpretação é que se tratou mais de uma relação de respeito e de confiança. Ao atribuir-lhe determinadas tarefas e missões o Imperador revela ter confiança em Tomás Pereira. Havia sempre um cerimonial, regras. Era uma relação sempre um pouco à distância, até porque o Imperador era sempre intocável. Não havia uma intimidade entre os dois como a concebemos no Ocidente. Eles poderiam, por exemplo, inquirir mais directamente o Imperador, enquanto os restantes cortesãos tinham de fazer um requerimento. Sente que, com esta obra, dá mais um contributo para o conhecimento da China, também, além da própria figura de Tomás Pereira? Sim. A ideia é também essa, mostrar e despertar a curiosidade do leitor que não está familiarizado com estas temáticas para este tipo de relações e sobre a presença de portugueses na China, neste período, com determinados objectivos. Perceber como se faziam os contactos, como se organizava a corte imperial chinesa e até como era o papel de Macau em tudo isto. Este tipo de livros praticamente não tem uma bibliografia porque é quase ficção, ainda que seja uma narrativa histórica. O livro tem muitos elementos ficcionados? Alguns. A parte da viagem, por exemplo. A infância. Inspirei-me em leituras que já tinha feito e em muitos textos que são aqui utilizados, [existindo elementos] que fazem parte do nosso imaginário sobre a Expansão e que nem são do tempo do Tomás Pereira. Fiz isso para mostrar, por exemplo, como era a vida a bordo. É uma narrativa plausível, e se ele não passou exactamente por aquilo, poderia ter passado. A ideia é dar a conhecer a vida destes homens e por isso não dei a Tomás Pereira o papel de herói, mas sim de protagonista de um movimento que envolveu muitos portugueses. Não se sabe a rota exacta que fez de Macau para Pequim, e aí aproveitei elementos dos escritos do Fernão Mendes Pinto, por exemplo. Foi uma conjugação de múltiplos textos que fazem parte da nossa memória colectiva.
António Graça de Abreu Via do MeioPoemas de Su Dongpo 苏轼 Su Shi, ou 苏东坡 Su Dongpo, é considerado o maior poeta da dinastia Song (960-1279) e um dos maiores de toda a poesia chinesa, ao lado de Li Bai e de Du Fu. Nasceu em Meishan, em 1037, na província de Sichuan. A sua figura corresponde ao ideal do letrado/mandarim da velha China, poeta e prosador, calígrafo e pintor, homem político e criador de jardins. Crítico dos poderosos do império, conheceu mais de uma dezena de despromoções e exílios. A sua poesia, imaginativa, rica de cores e tonalidades, influenciada pelo budismo禅 chan (o zen japonês) desdobra-se por excelentes descrições da natureza e também pelos temas da amizade e do amor. A lua, no meio do Outono Ao entardecer, nuvens dispersas desaparecem, não se vêem mais montanhas, silenciosa, a Via Láctea dá a volta, na abóbada de jade. Se nesta noite, neste nosso existir, não fruirmos prazer, mil alegrias, no próximo mês, no próximo ano, quem sabe por onde se desdobrarão as nossas vidas? 鹧鸪天·林断山明竹隐墙 林断山明竹隐墙。 乱蝉衰草小池塘。 翻空白鸟时时见, 照水红蕖细细香。 村舍外,古城旁。 杖藜徐步转斜阳。 殷勤昨夜三更雨, 又得浮生一日凉。 Fim da floresta, resplandece a montanha Acaba a floresta, resplandece a montanha, os bambus escondem um muro feito pelos homens. O canto das cigarras na erva murcha, junto ao lago, pássaros brancos em círculos no céu aparecem, desaparecem. Lótus vermelhos reflectem-se na água, soltam perfumes, uma muralha antiga rodeia um velho lar. Lentamente, apoiado no bastão, caminho para o sol poente, de súbito, uma chuva cai, ilumina o céu, Sempre a incerteza no avançar do tempo, o final do dia envolto em espasmos de frescura. Ainda, o último poema de Su Dongpo, escrito em 1101, numa das mais fantásticas montanhas da China, Lushan, na província de Jiangxi. 庐山烟雨浙江潮 庐山烟雨浙江潮, 未至千般恨不消。 到得还来别无事, 庐山烟雨浙江潮。 Névoas de Lushan, marés de Zhejiang Névoas de Lushan, marés de Zhejiang. Antes da viagem, nostalgias mil, depois da viagem, o crescer dos dias. Névoas de Lushan, marés de Zhejiang. Tradução e texto de António Graça de Abreu
Paulo Maia e Carmo Via do MeioWang Jun e as Pedras de Sonho Ruan Yuan (1764-1849) cumprindo as suas funções de funcionário imperial iria desde a sua terra natal de Yizheng perto da grande cidade de Yangzhou (Jiangsu) até às mais díspares regiões, algumas tocando as fronteiras do Império Qing, criando no espaço e no tempo uma intrigante figura luzente. Desenhada a partir das suas origens humildes ao Grande Secretariado em Pequim, escorada na convicção confuciana do homem justo e da sua virtude, também vislumbrou o indizível da arte. Governador da Província de Guandong entre 1817 e 1826 tomou acções decisivas no combate ao comércio do ópio tendo estendido a sua acção até Macau onde, em 1821, terá ordenado a prisão de vários traficantes. Mas a sua curiosidade estendeu-se aos conhecimentos dos estrangeiros, ao publicar um estudo biográfico sobre astrónomos e matemáticos da dinastia que incluiu trinta e sete missionários Europeus que viveram no Império e escreveram sobre o assunto. Em 1820 em Cantão, fundou a notória Academia do Oceano da Erudição (Xuehai Tang). O pintor Wang Jun (1816- depois de 1883) interrogou o seu enigma vital nos locais por onde ele caminhou. No álbum Legado dos feitos de Ruan Yuan em dez cenários pintados (tinta e cor sobre papel, 27,9 x 33,7 cm, no Metmuseum) escreveu na última folha: «No meio do Inverno de 1883 o neto do mestre, Jingcen, trouxe-me um álbum para pintar, assim reuni passagens das “Notas do barco de um imortal” (Yingzhou Bitan) que ele compilou e que poderiam ser representadas em pinturas e apresentei-as nas páginas precedentes para sua instrução.» Essas passagens referem lugares como a Torre Wenxuan onde «o mestre não apenas erigiu uma torre a Oeste do templo da sua família, exclusivamente para guardar os seus livros mas também escreveu um ensaio sobre ela.» Wang Jun referia assim o apego de Ruan Yuan aos livros, sendo inéditas as bibliotecas que ele promoveu bem como as reuniões de objectos artísticos que prolongavam a sua colecção pessoal e que foram pioneiras da ideia de um «museu» em templos célebres. Deles faziam parte as «pedras de pintura» (huashi) ou «pedras de sonho» (mengshi) da montanha Cangshan, na área de Dali, que ele coleccionava desde que fora governador de Yunnan (1826-35). Nessas pedras cortadas em fatias, conservando os veios, o observador podia recriar na sua imaginação o aspecto de uma paisagem e escrever na margem uma anotação. Num rolo vertical (tinta sobre papel salpicado de ouro, 164,5 x 40,7 cm, no Smithonian) ele caligrafou um poema evocando Su Shi, que começa: «Pedras de pintura de Taicang assemelham-se a multidões de nuvens,/ O engenho humano não alcançaria a majestade da arte do Céu./ As caravanas de flores e pedras terminaram e o rio Bian congelou,/ O estúdio do Lago de neve foi destruído, as nuvens escureceram, o mestre Su há muito partiu e a sua pedra também.»
Carlos Morais José Antropofobias Via do MeioO Fuxi Ó meus amigos, companheiros destas funestas viagens por países tão antigos quanto as estrelas e a Lua, e tão estranhos quanto o profundíssimo interior de nossas desgraçadas almas, ¿que sobressaltos ainda nos esperam, que magias secretas teremos ainda de superar, que horrores se erguerão perante as nossas pupilas dilatadas de espanto e terror? Cada vez mais perto de nossas precárias existências, uiva o monstro da guerra, que ameaça fundir de vez a humanidade com a terra, incessantemente percorrida pelo espectro esquálido da fome e pela invisível maldade de dez mil pestes. Ó maldito humano, que te crês superior à própria Natureza, mas depois te revelas, uma e outra vez, incapaz de simplesmente ordenar a tua existência e não compreendes que te encontras possuído pela inconstante ira e és escravo da tua própria ambição! Não te contentas com o jade branco ou o refulgente ouro, não há tesouro que sacie tua inextinguível sede de mando sobre os outros homens, os animais e as coisas; pois em ti habita uma eterna angústia; em ti rastejam as serpentes expulsas; por ti cresce, poderosa e impante, a fertilíssima hera do Mal! É talvez por isso que no Monte a que chamam do Veado Branco, onde um dos oito imortais em montada sagrada se evolou pelos céus rumo a Penglai, habita o fuxi, um pássaro cuja forma lembra a do galo, embora encimada por uma cabeça humana. ¿Que estranhas cópulas, que monstruosos amplexos, que terríveis procedimentos terão ocorrido para tornarem possível a existência deste sinistro animal? Não sabemos, mas basta a nossa mente extenuada atrever-se a alvitrar uma resposta, para logo sentirmos a pele percorrida por horrendos arrepios e o coração disparar em desfilada, qual cavalo selvagem fustigado pelo chicote nocturno do medo, alheio a rédeas e contenção. Que os homens se abstenham de percorrer o Monte do Veado, pois apesar de nele existirem riquezas capazes de acalmar as mais desvairadas ambições, se tiverem a desgraçada sorte de vislumbrarem um fuxi, é certo que cedo se desencadeará uma Guerra e por ela perecerão os campos cultivados, por ela serão decapitados os mansos animais, por ela serão sacrificados os melhores mancebos de duas gerações e destruída a soberba dos países. O fuxi emite um som que lembra o seu nome. Se o ouvirdes, sombria noite ou dia claro, arrepiai caminho, pois a senda onde vos encontrais é a mais certa das vias para a desgraça!