Falando sobre as raízes da sabedoria – Cai Gen Tan 菜根譚

Tradução de André Bueno
(continuação)

61.
Aquele que estuda deve pensar de modo consciente e cuidadoso, deve ter gostos e modos apropriados.
Se ele se apega a alegrias e tristezas mundanas, ele decairá como o outono, e não será forte como uma primavera.
Dessa forma, como pode fazer florescer as dez mil coisas?

62.
Uma pessoa verdadeiramente honesta não tem fama de honesta; os gananciosos é que querem essa reputação.
Uma pessoa realmente talentosa não alardeia suas habilidades; os inaptos é que fazem tal alarde.

63.
O cântaro Qi* se derrama quando está cheio; o cofre Puman* continua intacto mesmo quando está vazio.
Assim, o sábio prefere morar num lugar em que não haja ambições constantes; e deseja viver num lugar que ainda esteja incompleto, sem terminar.
*o cântaro Qi era um antigo vaso de bronze que só se equilibrava quando estava pela metade: quando vazio, ele caía; cheio, ele derramava. O vaso era usado perto dos governantes, para advertir contra os excessos e ausências. O cofre Puman era feito de barro, e era quebrado quando estava cheio de moedas.

64.
Aquele que não se livrou da ânsia de reconhecimento, pode desdenhar mil riquezas e se comprazer em viver livremente, mas ao final se perderá na vulgaridade do mundo.
Aquele que é cerimonioso, mas não compreendeu o significado dos costumes [ritos], por mais que sua influência se estenda pelos quatro mares, e dure por dez mil gerações, ao final, seus gestos serão vazios.

65.
Se os pensamentos de uma pessoa forem claros, ela terá o Céu azul, mesmo no meio de um quarto escuro.
Se seus pensamentos ocultam intenções obscuras, mesmo em um dia brilhante, haverá demônios [em sua mente].

66.
As pessoas sabem que um cargo e a fama fazem alguém feliz; mas não sabem que aquele que é mais feliz, é o que não tem nem cargos, nem fama.
As pessoas sabem que a fome e o frio preocupam; mas não sabem que se preocupar sempre é pior do que a fome e o frio.

67.
Se uma pessoa faz algo errado e tem medo que os outros saibam, ainda assim ela tem consciência em meio ao mal.
Se uma pessoa faz algo correto e quer que todos saibam, ainda assim sua bondade está contaminada pelas raízes do mal.

68.
O poder do Céu e a força das coisas não têm medida; às vezes restringem, às vezes expandem, movem e dirigem os heróis, derrubam tiranos.
Quando um sábio encontra a adversidade, exercita sua paciência; quando vive na tranqüilidade, ele pensa no perigo.
Mesmo o Céu não pode influenciar sua natureza.

69.
Uma pessoa irascível é como um fogo devorador; tudo que ela encontra, ela consome.
Uma pessoa malvada é fria como gelo; tudo que ela encontra, ela dana.
Uma pessoa obstinada e inflexível é como água estacada ou madeira podre; sua vitalidade está extinta.
Essas pessoas vivem se preocupando em conseguir as coisas, mas a felicidade continua escapando delas.

70.
A felicidade não pode ser conseguida; manter o espírito feliz é a essência da felicidade. Isso é tudo.
A desventura não pode ser evitada; expulsar os pensamentos daninhos mantém a desventura longe. Isso é tudo.

71.
Se de dez frases ditas, nove forem corretas, não se receberá crédito; mas se uma frase for falsa, se carrega toda a culpa.
Se de dez planos traçados, nove se realizam, não se receberá felicitações pelo talento demonstrado; mas um plano que fracassa atrai todas as críticas.
Uma pessoa realizada prefere o silêncio à ação impetuosa, e prefere parecer um bobo a talentoso.

72.
Há um espírito do Céu e da Terra*; quando ele é cálido, faz com que as coisas cresçam; quando ele é frio, faz com que as coisas morram.
Assim, quando o espírito humano é frio, ele é triste; mas quando um coração é cheio de calor, ele é feliz e benévolo.
*Vento

73.
O Caminho do Céu é muito amplo; se o coração se inclina em sua direção, ele se expandirá e brilhará em seu peito.
O Caminho do desejo humano é muito pequeno; quem caminhar por ele, encontrará espinhos e lamaçais.

74.
Vivendo a constante alternância entre tristeza e alegria, chega-se à verdadeira felicidade; provando por si mesmo a dúvida e a certeza, alcança-se o verdadeiro conhecimento.

75.
O coração não deve estar cheio de desejos; apenas vazio, ele recebe a presença da razão.
O coração não deve estar sem substância; somente assim ele impede a entrada das tentações.

76.
Em lugares sujos, muitas coisas florescem; às vezes, nas águas cristalinas, não há peixes.
O sábio deve preservar a paciência em seu coração, pois ele não estará sozinho, o tempo todo, desfrutando de suas virtudes.

77.
Um cavalo impetuoso pode ser domado e cavalgado; as gotas de ouro que caem de um forno podem voltar ao molde; mas uma pessoa capaz, que tenha perdido seu entusiasmo, e está parado, não poderá progredir.
Baisha* disse: ‘as pessoas cometem erros, e isso não é causa de vergonha; mas uma vida toda sem erros, isso sim me preocuparia!’.
Sábias palavras!
*Sábio Confucionista do período Ming.

78.
Se apenas um pensamento errado entra na mente, a força se converte em fraqueza, a inteligência se confunde, o Humanismo se desvia, o espírito puro se corrompe, e a virtude acumulada por toda uma vida se perde.
Assim diziam os antigos: ‘não corrompa seus tesouros’; e puderam vencer a ambição durante todas as suas vidas.

79.
O olho e ouvido vêem e enxergam as coisas que lhe atraem, externas e enganadoras.
A mente tem seus desejos e paixões, íntimas e enganadoras.
A pessoa de mente clara não se confunde; ela se coloca no centro de sua casa, e converte os inimigos em hóspedes.

80.
Planejar, para alcançar aquilo que não se tem, não é melhor do que progredir, e se expandir, com o que se tem.
Arrepender-se dos erros passados não é tão bom quanto prevenir-se de enganos futuros.

81.
O espírito humano deve ser elevado e amplo, mas não disperso ou fechado; deve ser meticuloso e detalhado, e não insosso ou trivial; o temperamento deve ser tranqüilo e sensível, mas sem ser insípido ou monótono; suas ações devem ser ordenadas e imparciais, mas não extremas e inflexíveis.

82.
O vento agita um bosque de bambus, sopra, e não deixa nem um silvo atrás de si; um pato voa sobre o lago no inverno, passa, e ao ir embora, sua imagem não permanece na água.
Assim, o sábio vai até o problema e se concentra nele; depois que termina, seu coração volta a repousar.

83.
Ser puro, mas tolerante com os demais;
Ser humanista, e tomar decisões justas;
Ser claro, mas criticar sem ferir;
Ser reto, mas sem se exceder;
Assim como as frutas em conserva não devem ser muito doces, nem a comida do mar muito salgada, tudo isso* forma a virtude perfeita.
*O equilíbrio, a justa medida das coisas.

84.
Um homem pobre capina o baldio até ele estar pronto; a mulher pobre lava a pele até deixá-la limpa. Essas cenas não parecem bonitas, mas sua grandeza as reveste de elegância.
Assim, quando um Educado encontra pobreza e austeridade, porque razão ele desistiria de seus ideais?

85.
No ócio, não desperdice seu tempo; há sempre algo com que ocupar-se.
Na tranqüilidade, não deixe de fazer as coisas; há sempre um bem que se possa fazer.
Na obscuridade, não deixe que sua mente trame ou se engane: é benéfico manter o pensamento claro.

86.
Se seu pensamento busca o Caminho dos desejos, então o traga de volta; ao notar uma idéia impura, pegue-a e a jogue-a fora.
Assim, se transforma a desventura em felicidade, e se afasta a morte.
É um momento crucial, em que não deve haver pressa.

87.
Na tranqüilidade, os pensamentos são claros como a água, e se pode ver a verdadeira essência do coração;
Nos momentos de ócio, o espírito não está perturbado, e se podem ver as verdadeiras intenções do coração;
Em uma vida simples, a atitude é modesta e moderada, e assim se pode sentir a verdadeira essência do coração;
Para examinar um coração, essas são as três melhores coisas.

88.
Estar em um lugar silencioso não é o silêncio verdadeiro; o silêncio em meio aos afãs é que está de acordo com a natureza do Céu.
Estar feliz numa situação alegre não é felicidade verdadeira; a felicidade, em meio à adversidade, é a verdadeira realização do coração.

89.
Ao sacrificar seus interesses, não tenha dúvidas; ter dúvidas atrai vergonha sobre o sacrifício.
Ao ser caridoso, não exija recompensa: exigir recompensa arruína um coração generoso.

90.
Se o Céu me concede uma pequena porção de felicidade, eu acumulo virtude para compensar o que falta.
Se o Céu me enche de adversidades, eu alegro meu coração para compensar as circunstâncias.
Se o Céu põe desvios no meu Caminho, aperfeiçôo meu entendimento para suavizar minha andança.
Sendo assim, o que o Céu pode me fazer de mal?

91.
Um Educado não reza por felicidade, e o Céu, sem mostrar, enche seu coração de felicidade.
O ignorante se concentra em evitar acidentes, e o Céu sempre faz com que ele se perca.
Assim vemos que o poder e a sutileza do Céu são as coisas mais profundas que existem; de que adianta a astúcia contra ele?

92.
Se depois de anos uma cortesã se casa, é porque sua vida passada não foi um obstáculo; se uma mulher virtuosa perde a integridade, tudo que ela fez ao longo dos anos se perde.
Um provérbio diz: ‘ao julgar uma pessoa, olhe seus últimos anos’.
Palavras acertadas!

93.
Se uma pessoa comum está disposta a cultivar a virtude em segredo, ela é como um alto oficial sem fama.
Se um nobre fica apenas tramando meios de aumentar seu poder e fortuna, ele não é mais do que um miserável com um alto posto.

94.
Ao lembrar os méritos de nossos antepassados, graças aos quais podemos desfrutar de nossas vidas, devemos pensar também nas dificuldades pelos quais passaram.
Ao pensar na felicidade de nossa descendência, que aproveitará a herança que a deixarmos, devemos lembrar também o quanto é fácil que eles a dilapidem.

95.
Uma pessoa supostamente justa, que só pretende fazer o bem, não é diferente de um egoísta.
Uma pessoa supostamente justa, que mascara sua conduta, está abaixo de um comum que apenas começou a mudar de vida.

96.
Quando membros de uma família têm suas desavenças, não é apropriado ter ataques de fúria, nem descartar os problemas como se fossem triviais.
A situação pode ser difícil de discutir; assim, é melhor usar de analogias para mostrar o problema. Se isso não funcionar no momento, espere o outro dia para corrigir o culpado.
Como o vento da primavera que descongela, como o calor que derrete o gelo lentamente; esse é o modelo para cuidar de assuntos domésticos.

97.
Se o coração olhasse paras as coisas e achasse tudo bom, todas as coisas abaixo do Céu seriam perfeitas.
Se o coração for habitualmente generoso e sereno, desaparecerão todos os vícios e a malícia deste mundo.

98.
Aquele que não busca fama nem riqueza certamente desperta a inveja do ambicioso; aquele que é moderado em sua conduta certamente desperta o incômodo no falador.
Nessas circunstâncias, o sábio não deve comprometer de modo algum sua conduta, nem mesmo ser condescendente com tais atitudes.

99.
Em meio à adversidade, tudo o que encontramos tem o efeito de agulhas de acupuntura e da medicina dos remédios amargos; essas coisas reforçam nosso caráter, sem que notemos.
Em meio a circunstâncias favoráveis, é como se estivéssemos entre soldados, facas, machados e lanças*, ou como uma lâmpada que vai se consumindo: essas coisas enfraquecem nosso espírito, sem que notemos.
*Desgaste de um combate; Tensão gradual.

100.
Em meio aos luxos e comodidades, uma pessoa é como um fogo abrasador, e sua ânsia de poder é como um incêndio violento.
Se esses desejos não foram moderados com aspirações sensíveis e honestas, esse fogo não consumirá aos outros, mas a si próprio.

(continua)

* O Cai Gen Tan菜根譚foi escrito no século XVI pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). (…) Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas

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