Falando sobre as raízes da sabedoria – Cai Gen Tan 菜根譚

Tradução de André Bueno

(continuação)

330.

Quem não consegue ainda se controlar, deve afastar-se um pouco da confusão cotidiana, de modo que sua mente não veja o que a inquieta, e não se perca; assim, ele acalmará seu corpo e seu coração.

Quem consegue se dominar, deve voltar para a agitação da vida, pois sua mente vê, mas não se sente tentada ou atraída, e isso o ajudará ainda mais a superar as coisas do mundo.

331.

Quem ama silêncio, e detesta barulho, vai acabar buscando tranqüilidade fora do mundo cotidiano. Mas, sem o contato humano, a mente retorna ao seu estado original, e ela pode se inquietar e ficar ansiosa.

A quietude está na raiz do movimento;

Como compreender que eu e os outros somos um só?

Como esquecer a diferença entre quietude e movimento?

332.

Na montanha, a mente respira, e fica cheia de bons pensamentos;

Uma nuvem que passa, o canto das garças, isso incita a mente a voar;

Um riacho que murmura nas pedras, isso banha a mente em água cristalina;

Fazer carinho num zimbro ou numa ameixeira, isso dá um sentimento de segurança e retidão;

Com aves e cervos como companhias, a mente esquece imediatamente seus problemas;

Mas ao voltar ao mundo da agitação, uma pessoa não apenas volta a relacionar-se com as coisas, mas torna-se servo delas.

333.

Feliz, ande tranquilamente pelos pastos, descalço; as aves te acompanharão, e te farão esquecer seus problemas.

Deixe sua mente se fundir com a paisagem; sente sobre as pétalas caídas, observe as nuvens no Céu, e deixe o sentido de ‘eu’ desaparecer.

334.

Na vida, felicidade e tristeza surgem na mente.

Diz o Budismo: ‘a ganância é um fogo devorador, e um abismo de sofrimento’.

Ter desejos insaciáveis é como afundar num mar de amargura;

Mas apenas um pensamento bom é capaz de mudar o fogo para água;

Apenas um pensamento correto é capaz de levá-lo, como um bote, até uma margem segura.

Assim, os pensamentos são levados, de um lado ao outro, chegando aos extremos. Devemos, portanto, ser cuidadosos com a mente.

335.

Uma serra de corda corta a madeira, uma gota d’água fura a rocha; quem estuda o Caminho, deve ser constante.

A água que flui se transforma em canal, a fruta madura cai do pé; quem busca o Caminho, deve procurar a perfeição.

336.

Ao vencer os combates da vida, chega-se a um lugar em que a lua é clara, a brisa é suave, e a vida não é mais um mar de amarguras.

Ao limpar a mente das agitações, não se escuta mais o ruído dos cavalos e carruagens, e não é necessário fugir para a montanha para conseguir sossego.

337.

Quando as árvores e plantas murcham, os brotos nascem de suas raízes;

O inverno é gelado, mas quando o vento sopra e as cinzas voam, é porque o sol está voltando;

Mesmos nas solenidades funerais, pode-se perceber os sinais da vida;

Assim, apreciamos os espíritos do Céu e da Terra.

338.

Olhe a cor da montanha, quando chove; ela ganha uma beleza diferente.

Ouve o som de um sininho no meio da noite; ele fica muito mais claro.

339.

Vá para um lugar alto, e amplie sua mente;

Contempla a água, e deixe que ela leve seus pensamentos;

Leia um livro numa noite fria de inverno, e purifique seu coração;

Suba uma montanha, declame poemas para o Céu, e vá para além desse mundo.

340.

Para um coração aberto, dez mil tigelas são como uma vasilha de barro;

Para um coração mesquinho, um cabelo é tão grande como a roda de uma carruagem.

341.

Sem chuva, vento, flores e salgueiros, não existe a natureza;

Sem sentimentos, anseios, preferências e hábitos, não existe mente.

Somente quem controla as coisas, e não é escravo delas, tem sua vontade inspirada pelo Céu, e seus pensamentos encontram a justa medida.

342.

Somente quando uma pessoa compreende a si mesma, é que pode deixar as dez mil coisas se desenrolarem, conforme suas dez mil naturezas.

Somente quando se governa corretamente pela não-ação, sem reclamar méritos, mas deixando a natureza agir, essa pessoa pode ser dita sábia.

343.

Numa vida ociosa, pensamentos estranhos chegam como ladrões.

Numa vida ocupada, a natureza humana não pode ser percebida.

Não afaste totalmente as preocupações com o corpo e a mente, mas não evite, por completo, as preocupações com a natureza.

344.

A mente se perde em meio ao caos e a confusão;

Mas em silêncio, ela se esvazia por completo;

Ascende ao Céu, voa longe com as nuvens;

Refresca-se com as gotas de chuva;

Alegra-se, e entende o canto dos pássaros;

Acalma-se, e pondera sobre a queda das pétalas das flores;

Esse não é o paraíso?

Como compreender a verdade do mundo?

345.

Quando nasce uma criança, a mãe corre risco; riquezas guardadas atraem ladrões; assim, onde há razão pra comemorar, há que se preocupar também.

A pobreza ensina a simplicidade e a diligência; a doença ensina a cuidar da saúde; assim, onde há razão para se preocupar, há aprendizado também.

O sábio olha sorte e azar como coisas iguais, e esquece a diferença entre alegria e tristeza.

346.

O Ouvido aprende escutando; ouve os ventos sibilarem nos abismos e ravinas, mas depois que passam, tudo fica em silêncio.

Os estados da mente são como a lua refletida no lago; quando o céu está vazio, não se vê nada.

Assim, se esquece a diferença entre “isso” e o “eu”.

347.

Quando o coração está enredado em honras e benefícios, tudo o que se faz ou se diz no mundo termina em tristeza;

Não se conhece as nuvens brancas, o vento puro, o rio que corre, as pedras amontoadas, o rosto das flores, a alegria dos pássaros, ou o canto do lenhador que ecoa no vale.

Mas quem as conhece, se acalma; e a tristeza vai embora, pois foi ele mesmo que sossegou sua mente.

348.

Observe as flores quando estão pra desabrochar; beba vinho somente até ficar um pouco tonto; dessa forma, aproveita-se muito mais as coisas.

Observe as flores em todo o seu esplendor; beba até ficar bêbado; dessa forma, tudo que é bom fica ruim.

Quem tem uma alta posição, deveria refletir um pouco mais sobre essas coisas.

349.

As plantas crescem nas montanhas, sem que alguém lhes dê água ou estrume, e seu sabor é delicioso;

As aves voam pelos campos, sem que alguém as crie ou lhes dê comida, e seu sabor é incomparável;

Dá-se o mesmo com quem convive com o vulgar, mas não é contaminado por ele, mantendo sua pureza original. Tal pessoa não é um exemplo?

350.

Cultivar flores, plantar bambus, brincar com as garças, observar os peixes, tudo isso deve ser feito com atenção.

Quem o faz de forma vazia e displicente, sem perceber a beleza da natureza, é aquele que os confucionistas chamam de ‘superficial’, e os budistas de ‘ pretensioso’.*

O que pode haver de bom nisso?

*no original, ‘pessoa de boca e ouvido’ (=superficial); e ‘pessoa ignorante e arrogante’ (=pretensioso). [O primeiro despreza conhecer; o segundo ‘pretende’ que conhece.]

351.

O Educado que vive nos bosques e montanhas leva uma vida austera, honesta, simples, e está sempre satisfeito;

O camponês dos prados leva uma vida simples e ignorante, mas conserva sua ingenuidade e pureza;

Quem foge do mundo das coisas pra depois voltar a ele, se transforma num mísero negociante; seria melhor ter morrido nos campos, sem contaminar seu corpo e alma.

352.

Tome cuidado quando ganhar fortunas sem razão, ou desfrutar de alegrias não-merecidas; pode ser um teste, uma tentação imposta pelo Céu.

Há gente de visão limitada, que sempre cai nessas armadilhas.

353.

A vida humana é como uma marionete:

Se as cordas estão em suas mãos, livres, desembaralhadas, e você pode movê-las como quiser;

Então, você controla sua vida, e nada pode manipulá-lo;

Só assim livra-se das cordas do mundo.

354.

Vantagens e desvantagens surgem juntas; quem sabe disso, abaixo do Céu, entende que a felicidade é a não-ação.

Um antigo provérbio diz:

‘Aconselha o soberano a deixar de lado suas conquistas, pois apenas uma vitória deixa dez mil crânios apodrecendo no campo’

E também:

‘Deixa em paz todas as dez mil coisas abaixo do Céu, e não se importe se sua espada enferrujar na bainha por mil anos’.

Quem compreende essas palavras, pode amansar um coração impulsivo e violento, como se o refrescasse debaixo do sol.

355.

Uma mulher indócil pode corrigir-se, e virar monja; um homem mesquinho pode controlar-se, e seguir o Caminho num templo.

Por isso, os templos servem para o refúgio e a correção dos perdidos.

356.

Quando as ondas chegam até o Céu, quem está no barco não se assusta, mas quem está de fora, fica amedrontado;

Quando acontece um tumulto numa festa, quem está no salão não se impressiona, mas quem vê de fora, fica apavorado;

Por isso, o sábio, quando está dentro de alguma situação, projeta sua mente para fora dela.

357.

Aja menos, erre menos;

Menos amigos, menos confusão;

Fale menos, menos equívocos;

Preocupe-se menos, menos aporrinhação;

Menos astúcia, mais integridade;

Quem mais trabalha* todo dia, sem cessar, forja grilhões para si mesmo, por toda a vida.

*[Planeja, ambiciona, executa ações em proveito próprio, busca proveito, etc. Outro sentido possível é o de não esgotar-se, mesmo sendo o trabalho digno.]

358.

Calor e frio podem ser evitados em qualquer estação, mas a inconstância das pessoas não;

A inconstância pode ser controlada, mas não cura a irascibilidade;

Quem controla a inconstância, e cura o coração irascível, alcança a paz no coração e a calma do espírito, como se lhe soprasse uma brisa primaveril.

359.

Meu chá não é o melhor, mas eu sempre tenho um bule cheio;

Meu vinho não é o mais fino, mas sempre tenho uma botija cheia;

Meu alaúde é simples, mas toca bem;

Minha flauta é pequena, mas não é desafinada, e me alegra;

Em viver a vida de modo simples, eu não sou tão bom quanto Fuxi, mas me contento em dizer que chego perto de Jikang e Ruanji.*

*Fuxi, primeiro sábio das eras primitivas chinesas; Jikang e Ruanji são integrantes do mítico grupo dos sete sábios do bosque de bambu, ascetas desapegados da vida social, e dedicados a uma vida despojada.

360.

O budismo ensina: ‘siga a natureza’;

O confucionismo ensina: ‘siga o apropriado’;

Esses ensinamentos são a bóia com que atravessamos o Mar da vida.

Os caminhos do mundo são vastos e ilimitados;

Busque o Topo, e você terá mil dificuldades;

Acostume-se com sua vida, sem pretender altas posições, e você viverá em paz de espírito.

* O Cai Gen Tan菜根譚foi escrito no século XVI pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). (…) Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas.

22 Ago 2023

Falando sobre as raízes da sabedoria – Cai Gen Tan 菜根譚

Tradução de André Bueno

(continuação)

261.

Quem vive na margem de um rio se acostuma com o barulho da água, e não o escuta mais; assim, é possível ter tranqüilidade perto da confusão.

As montanhas são altas, mas não impedem a passagem das nuvens; assim, se aprecia o mistério da transformação das coisas.

262.

As montanhas e os bosques são paisagens belíssimas, mas quando as pessoas se encantam com elas, se transformam em feiras.

Livros e pinturas são objetos apreciáveis, mas quando as pessoas os valorizam, se transformam em mercadorias.

Um coração, livre dos desejos de fama e riqueza, transforma a Terra numa residência imortal;

Mas um coração, sempre cheio de desejos, faz com que até um paraíso seja um mar de lágrimas.

263.

No meio do barulho e da confusão, a tranqüilidade da mente se dispersa e se perde;

Em meio à paz e a tranqüilidade, o que se perdeu regressa, e o que foi esquecido é lembrado;

Entre a calma e a agitação há pouca diferença, mas entre a ignorância e a sapiência, há uma diferença enorme.

264.

Deitado na minha cabana nas montanhas, a neve cai, as nuvens voam ao meu redor no ar da noite; apenas com meu copo de vinho na mão, recitarei poemas ao vento, sob a luz da lua, e estarei longe de tudo*.

*[No Original: ‘Estarei a dez mil Zhang (丈= aprox. 3, 3 metros) de toda poeira vermelha’.]

265.

Se entre todos os oficiais paramentados, surge um montanhês rude com seu bastão, a cerimônia adquire importância;

Se pescadores ou lenhadores fossem acompanhados por um oficial vestido de gala, o grupo ficaria muito estranho;

O exagero não é melhor que o simples, o vulgar não é tão bom quanto o refinado.

266.

Só é preciso estudar e experimentar o Caminho para se realizar no mundo; não é necessário afastar-se das pessoas, ou fugir da civilização.

Para que o coração se realize, use suas habilidades ao máximo, não transforme sua mente em cinzas, nem deprecie o mundo.

267.

Se minha vida não está em conflito com o mundo; glória ou desonra, êxito ou fracasso, quem pode me dar ou tirar tais coisas?

Se meu coração permanece em paz e sossego; bem ou mal, ganho ou perda, quem poderá me enganar ou confundir com essas coisas?

268.

Perto da cerca de bambu, ouço o cão ladrar, e a galinha cacarejar, e me sinto como se estivesse num mundo de nuvens;

Da minha sala de estudo, escuto o som dos grilos e dos patos, e me dou conta que, dentro do silêncio, há um outro mundo.

269.

Se não cobiço honras e riquezas, que favores ou ganhos podem tentar-me?

Se não compito por altos cargos, que problemas oficiais podem incomodar-me?

270.

Passeando pelas montanhas e bosques, pelas fontes e rochedos, a agitação do coração gradualmente desaparece.

Há uma calma prazerosa na poesia e na pintura, que faz os pensamentos vulgares desaparecerem.

Assim, o sábio não se apega aos prazeres, nem perde suas aspirações, e sempre encontra formas de cultivar a si mesmo.

271.

Na primavera, a paisagem é toda florida, e as pessoas se enchem de felicidade;

Mas o melhor é o outono, com suas nuvens brancas e seu vento fresco, suas orquídeas cheirosas e ramos frondosos, a água e o Céu com a mesma cor.

Acima e abaixo, tudo brilha, dando leveza e purificando o corpo e o espírito.

272.

Uma pessoa sem conhecimento, mas que fala com um sentimento poético, pode ter compreendido a poesia;

Uma pessoa que não estudou as escrituras budistas, mas que fala sabiamente, pode ter despertado para a sabedoria das coisas.

273.

Uma pessoa inquieta vê sombras de serpentes, e suspeita de todos; vê tigres na espreita, onde há rochas paradas; enfim, tudo lhe parece sinistro e fatal.

Uma pessoa tranqüila vê gaivotas nas pedras em que os outros vêem tigres; ouve canções nos ramos que se mexem, e tudo que vê lhe parece ter um aspecto benéfico.

274.

O corpo é como um bote desamarrado, bóia na corrente até topar numa margem;

O coração é como madeira queimada, não se pode cortá-lo, nem fazer dele incenso.

275.

As pessoas escutam o canto do papa-figo e acham-no agradável, ouvem o coaxar das rãs e acham-no repulsivo.

Ao verem flores, querem cultivá-las, ao verem ervas-daninhas, querem arrancá-las.

Essas são manifestações de personalidade, de aversão ou repulsão por uma coisa ou outra.

Se pudermos reconhecer o princípio do Céu, não haverá som animal incômodo, e todas as plantas nascerão livremente, seguindo naturalmente sua natureza original.

276.

O cabelo e os dentes caem, é o declínio natural do corpo físico;

Mas no canto dos pássaros e na beleza das flores, podemos perceber a vitalidade essencial da natureza.

277.

Um coração cheio de desejos cria ondas num lago gelado, e não encontra paz, nem nas montanhas, nem nos bosques;

Um coração calmo encontra frescor no verão mais quente, e nem nota o alvoroço no mercado.

278.

Quem acumula riqueza, multiplica cuidados; os ricos e poderosos têm, assim, mais preocupações que os pobres.

Quem alçou um alto cargo vacila e cai; e quem se preocupa com isso, nunca descansa como as pessoas comuns.

279.

Ao amanhecer, lendo o Tratado das Mutações debaixo da janela, môo a pedra de pigmento e uso orvalho dos pinheiros para fazer tinta, e sublinhar passagens de sabedoria.

Ao meio dia, comentando as escrituras budistas sobre a mesa, ouço tocar os sinos de jade pelo vento, e deixo que ele leve esses sons para o bosque de bambus.

280.

Uma flor pode crescer num vaso, mas sua força natural logo se esgota;

Um pássaro pode cantar numa gaiola, mas nunca será um canto naturalmente livre;

Não são os pássaros e as flores da montanha que estão misturados na paisagem rica de cores, mas sim, é a liberdade que permite compreender a sua existência, sem grilhões, em meio à natureza.

281.

A pessoa vulgar pensa demais em si mesmo, e por isso também se preocupa demais com tudo.

Os antigos diziam: ‘se você conhece a si mesmo, como pode se preocupar tanto com as coisas?’.

Também disseram: ‘se você sabe que seu corpo não é você mesmo, porque deixa que tantas preocupações entrem em seu coração?’

Essas palavras dizem toda a verdade!

282.

Ao ver um velho triste e solitário, pense que talvez ele possa ter passado sua vida lutando por bens e fortuna;

Ao ver uma pessoa que acabou com sua fortuna, pense no fato de que toda sua riqueza se foi, sem deixar nada atrás de si.

283.

Os Caminhos humanos e das formas naturais mudam, num piscar de olhos, de dez mil maneiras diferentes, mas isso não deve ser levado ao pé da letra.

Disse Yaofu*: ‘o que nos tempos passados se chamava ‘Eu’, no presente se chama ‘Ele’; mas não sei no que se converterá, no futuro, o que hoje se chama ‘Eu’.’

Reflita com cuidado nessa afirmação, e se livrará de toda a angústia e ansiedade.

*Poeta que viveu durante a dinastia Song (960-1127)

284.

Em meio à algazarra, considere as coisas com um olhar sóbrio, eliminando da mente o que lhe incomoda.

Em meio à desolação, conserve a alegria do espírito, e encontrará as causas da felicidade verdadeira.

285.

Onde há alegria, há tristeza; onde há prazer, há desgosto;

Numa vida comum, em sua própria casa, comendo de maneira simples, se pode encontrar as coisas mais belas, tendo o conforto e a segurança de um ninho.

286.

Abra as cortinas, veja as montanhas verdes e as águas azuis envoltas em bruma, e entenderá o quão livres são o Céu e a Terra.

Veja os bambus e as árvores que acolhem os pardais, anunciando a nova estação, e esquecerá a diferença entre você e o mundo.

287.

Sabendo que existe a mutação, e que tudo um dia declina, o desejo de obter sucesso já não é tão forte;

Sabendo que existe vida, e que tudo um dia morre, não desperdice mais tanta energia querendo ser imortal.

288.

Um monge budista de grande virtude disse: ‘A sombra das folhagens do bambu varre os passos, e não larga poeira; o reflexo da lua, na lagoa, não deixa marcas na água’.

Um estudioso confucionista comentou: ‘Ainda que as águas fluam com violência, permanecem tranqüilas; ainda que caiam pétalas de rosa em ti, permaneces o mesmo’

Uma pessoa que cultivar esse tipo de atitude conseguirá obter a liberdade do corpo e da alma.

289.

Escuta o som dos pinheiros no bosque, ou o murmúrio das fontes nas rochas, e poderá admirar os sons do Céu e da Terra;

Observe a névoa por cima dos pastos, e o reflexo das nuvens na água, e poderá contemplar o belíssimo idioma da natureza.

290.

Quando a Dinastia Jin estava prestes a acabar, um par de camelos de bronze reais foi roubado, e largado no meio do mato, cumprindo uma antiga profecia sobre o fim do reino; ainda assim, eles se orgulhavam de seu garboso exército.

Mesmo que seus corpos estivessem prontos para servir de pasto para os cães e as raposas do norte, ainda assim, se preocupavam em acumular ouro.

Um provérbio diz: ‘bestas ferozes podem ser domadas, mas o coração humano é difícil de dominar; vales profundos podem ser preenchidos, mas a ganância humana é insaciável’.

Palavras verdadeiras!

291.

Se dentro de sua mente não houver nem vento nem ondas, então, em todo o lugar, você estará em meio a montanhas e águas azuis.

Se seu espírito alcançou o florescimento da consciência perfeita, então, em todo o lugar você verá peixes saltando, e pássaros cantando.

292.

Quando alguém bem vestido vê a felicidade de um pobre em suas roupas humildes, ele suspira desconcertado, e pensa em suas pesadas responsabilidades;

Quando alguém rico, em meio a um suntuoso banquete, vê a alegria do humilde em seu próprio canto, sente um tanto de inveja;

Porque as pessoas fazem bois correrem com fogo? Porque tentam cruzar touros com cavalos?

Porque as pessoas vivem de aparências, ao invés de simplesmente seguirem suas naturezas?

293.

Quando um peixe nada, não tem consciência da água em que se move;

Quando um pássaro voa, não tem consciência do ar em que se move;

Quem se der conta disso, pode superar as aparências, e adentrar os mistérios da natureza.

294.

As raposas dormem nas ruínas, e os coelhos em terraços desolados; ambos já foram, antes, salões de baile e de festa;

Os campos de lírios molhados de orvalho, e cobertos agora de erva e bruma, foram os lugares onde lutaram os heróis;

A prosperidade e a decadência são eternas; onde estão aqueles que eram fortes, e onde estão os que eram fracos?

Esse pensamento faz com o que o coração se aflija!

295.

Não importam os favores ou os insultos que você receba; em seu posto, nunca mude de conduta.

Na calmaria, observe a Corte como as flores, que se abrem e depois murcham.

Não importa que você permaneça, ou seja retirado de seu posto; que isso não seja nada para você.

Apenas observa o Céu, serenamente, e veja como as nuvens se juntam e se dispersam logo.

296.

No Céu claro iluminado pela lua não há um espaço enorme para voar? E assim mesmo, a mariposa se lança contra a luz da vela.

Entre as fontes puras e os frutos silvestres, não há o que beber e comer? No entanto, a coruja não insiste em seu vício pela carne podre dos ratos?

Ah! Quantas pessoas no mundo não são como as mariposas e as corujas?

297.

Quem tomou uma balsa para atravessar o rio, e depois se esqueceu dela, é alguém que já não está no Caminho das aparências.

Quem está montado num burro, e pensa nos burros que vai montar, não compreendeu nada, ainda, do Caminho Chan.

298.

Quem é rico e poderoso, com porte de dragão voador, herói destemido, que luta com tigres;

Para o Educado, ele é como uma formiga ao redor de carne podre, ou como uma mosca disputando uma gota de sangue.

As perguntas sobre bem e mal, que incomodam como um enxame de abelhas, e as discussões sobre perda e ganho, que espetam como um porco espinho, não devem incomodar um espírito tranqüilo; assim, elas se fundirão como ouro no forno, ou como a neve na água fervente.

299.

Quem leva a vida, acorrentado aos desejos, pensa que ela é ruim.

Quem chega à morada do conhecimento em si mesmo, pensa que a vida é boa.

Reconheça a origem da aflição, elimine-a, e seu espírito se acalmará.

Ao saber a razão das alegrias, se chega à morada dos sábios.

300.

Se no coração não houver mais desejos materiais, ele é como a neve numa estufa, ou o gelo que derrete debaixo do sol.

Se os olhos vêem um pedaço de brilho na vastidão, sabem que é a lua do Céu, refletida nas ondas do lago.

(continua)

* O Cai Gen Tan菜根譚foi escrito no século XVI pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). (…) Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas

1 Jun 2023

Falando sobre as raízes da sabedoria – Cai Gen Tan 菜根譚

Tradução de André Bueno
(continuação)

 

181.
Tramar intrigas, ter hábitos inconvenientes, fazer coisas estranhas, essas são as causas dos problemas do mundo.
Somente por meio da virtude, no cotidiano, se pode preservar a natureza original, e se conseguir a paz harmoniosa.

182.
Diz um provérbio: ‘ao escalar uma montanha, deve-se suportar a subida, ao caminhar pelo gelo deve-se suportar a ponte perigosa’.*
A palavra ‘suportar’ tem um significado muito importante.
Ao ver corações inclinados ao mal, e uma vida cheia de frustrações, pensamos: ‘quantas pessoas, por não terem a habilidade de ‘suportar’, caem em desgraça, e encontram infortúnios?’
*Gelo quebradiço que ocorre na superfície dos lagos congelado.

183.
Aquele que exagera em seus sucessos, e se gaba de suas criações literárias, depende de coisas externas para agradar a si mesmo.
Não se dá conta de que aquele que preserva a pureza original de seu coração, sem ter grandes sucessos, ou escrever grandes coisas, se realiza como uma pessoa magnânima.

184.
Se em meio às ocupações e dificuldades, alguém deseja um momento de descanso, deve ter autoridade para tomá-lo; se em meio ao ruído e a confusão, alguém deseja silêncio e calma, deve dominar a arte da tranqüilidade;
Do contrário, esse alguém estará sempre sujeito a modificar-se, uma constante vítima das circunstâncias.

185.
Não vá contra o que diz seu coração, não leve suas emoções ao extremo, não esgote suas forças e recursos.
Siga esses três conselhos, e alcançará uma virtude apreciada pelo mundo, a continuidade da vida, e a felicidade para os descendentes.

186.
O serviço público tem dois preceitos: ‘A imparcialidade dá o exemplo, a retidão confere autoridade’.
O cuidado de uma casa tem dois preceitos: ‘Tolerância gera harmonia, simplicidade gera a fartura’.

187.
Quando desfrutar da riqueza, esteja consciente das adversidades, e do risco de cair na pobreza.
Quando aproveitar a juventude, esteja consciente das dificuldades da velhice.

188.
Ao se conduzir de modo apropriado no mundo, não seja moralista demais, e prepare-se para ser insultado e caluniado.
Ao tratar com as pessoas no mundo, não seja exigente demais com elas, e compreenda que são uma mescla de virtude e vício.

189.
Não provoque inimizade com pessoas de baixo caráter, elas já têm seus próprios rancores;
Não louve pessoas já realizadas e superiores, elas não concedem favores de forma ordinária.

190.
Os males causados pelos desejos irrefreados podem ser curados, mas os males causados por uma percepção equivocada das coisas são muito difíceis de curar.
As barreiras formadas pelo materialismo podem ser facilmente eliminadas, mas as barreiras do entendimento são muito difíceis de eliminar.

192.
É preferível a perfídia e a zombaria dos néscios, do que suas louvações e elogios.
É preferível a censura dos sábios, ao invés de sua tolerância e perdão.

193.
Quem é materialista, e prejudica a sua conduta moral; o dano é óbvio e superficial.
Quem persegue a reputação moral, disfarçando sua maldade de virtude; o dano é oculto e profundo.

194.
Receber bondade, sem retribuir;
Pensar em vingança, mesmo diante de uma pequena ofensa;
Dar ouvidos e acreditar em mexericos;
Ver a bondade em plena luz do dia, e não acreditar nela;
Essas são as características de uma pessoa de baixo caráter moral; corte-a de suas amizades.

195.
Quando uma pessoa pequena calunia um Educado, é como uma nuvem que obscurece o sol; em pouco tempo, ele volta a brilhar.
Mas aquele que busca benefícios, em troca de favores, é como um vento ruim; ele invade o corpo, e causa uma doença invisível.

196.
Nas ladeiras altas e inclinadas nas montanhas não crescem árvores, mas os vales com rios e lagos estão cheios de vegetação florescente.
Nas cachoeiras não se encontram peixes, mas os tanques tranqüilos e profundos estão cheios de peixes e tartarugas.
Uma conduta muito severa e rígida, uma mente fechada e um coração estreito são coisas com as quais um sábio cuida.

197.
O Educado é sempre modesto e compreensivo; quem fracassa, em geral, é obstinado e inflexível.

198.
Na vida cotidiana, não se envolva demais com gente pequena, para não cair nas suas vulgaridades.
Ao realizar ações meritórias, não se afaste da gente vulgar, mas também não espere sua aprovação.

199.
O sol está se pondo, as nuvens e o Céu são magníficos ao entardecer;
O ano está terminando, e as folhas de laranjeira desprendem um aroma sublime;
Nos últimos anos de seu Caminho, o sábio já refinou seu espírito cem vezes.

200.
A águia, de pé, parece estar dormindo; o tigre, quando avança, parece cansado; por meio desses disfarces, eles apanham suas presas.
Assim, o Educado não revela sua inteligência, nem faz alarde de seus talentos, e desse modo leva a cabo suas difíceis tarefas.

201.
A simplicidade é uma qualidade virtuosa; mas, levada ao extremo, se transforma em sovinice, mesquinharia vulgar, e atrapalha o Caminho.
A modéstia também é uma boa qualidade; mas levada ao extremo, se transforma em leniência, complacência vulgar, e hipocrisia.

202.
Não se angustie quando as coisas não vão como o desejado, nem se regozije com qualquer prazer;
Não espere que a tranqüilidade dure muito tempo, nem tema as dificuldades para começar uma tarefa.

203.
Uma família que gosta muito de festas e bebidas não é uma boa família;
Um mestre que busca os prazeres da carne não é um bom mestre;
Um oficial que pensa demais na sua carreira não é um bom oficial.

204.
As pessoas tomam por prazeroso aquilo que as satisfaz; mas, quando seus corações estão cheios de prazeres, elas ficam amarguradas.
Por isso, o sábio se compraz com aquilo que contraria seus desejos, e no fim, sua amargura se transforma em alegria.

205.
Quem vive satisfeito e na abundância é como água, a ponto de transbordar: não se pode aumentar uma só gota.
Quem vive em crise e perigo constante, é como madeira a ponto de quebrar: não se pode aumentar nem um pouco a pressão.

206.
Com olhos tranqüilos, observa as pessoas;
Com ouvidos sóbrios, escute as palavras;
Com o coração tranqüilo, perceba os problemas;
Com a mente serena, encontre a razão das coisas.

207.
Um Educado é aberto e generoso, goza de bondade e prosperidade, e faz tudo com verdadeira alegria.
Uma pessoa pequena vive miseravelmente, sua visão é estreita, suas ações são estéreis, e tudo o que faz é com o espírito de avareza.

208.
Ao escutar que alguém fez o mal, não se apresse em condená-lo; podem ser apenas calúnias.
Ao escutar que alguém fez o bem, não se apresse em elogiá-lo; pode ser apenas uma artimanha.

209.
Uma pessoa rude e impetuosa não termina nada;
Uma pessoa tranqüila é abençoada em tudo o que faz.

210.
Ao tratar com as pessoas, não seja seletivo ou exigente demais, ou poderá afastar pessoas que poderiam ser úteis.
Ao fazer amizades, não seja seletivo ou exigente de menos, ou atrairá apenas os bajuladores.

211.
Em meio aos ventos cortantes e chuvas violentas, firme seus pés;
Em meio ao mato alto e campos de flores, olhe para cima;
Em meio a um Caminho perigoso e difícil, olhe para a trilha.

212.
Uma pessoa casta e íntegra cultiva sua amabilidade, e assim, não abre portas para o desentendimento.
Uma pessoas que busca honra e posição deve cultivar a virtude da modéstia, e assim, não abrirá portas para a intriga.

213.
Ao ocupar um cargo oficial, não envie cartas sem selo; seja difícil de ver, evitando oportunistas e bajuladores.
Ao visitar sua aldeia, não seja orgulhoso nem mal humorado; seja fácil de ver, fortalecendo as antigas e verdadeiras amizades.

214.
A uma pessoa de posto alto se mostra respeito, e assim, evita-se a baixeza;
A uma pessoa comum se mostra respeito, e assim, evita-se a arrogância.

215.
Quando as coisas vão contra sua vontade, pense naqueles cuja situação não é boa como a sua; seu sofrimento desaparecerá.
Quando seu coração estiver desalentado, pensa naqueles cujos sucessos superam aos seus; você se sentirá renovado.

216.
Não faça promessas impensadas, com a desculpa de que estava feliz;
Não fique encolerizado, com a desculpa de que estava bêbado;
Não discuta por nada, abusando da vontade alheia;
Não abandone uma tarefa, com a desculpa de que está cansado.

217.
Quem compreende perfeitamente um livro, alcança o ponto em que suas mãos e pés bailam juntos, e ele não cai nem na rede nem no anzol.*
Quem observa as coisas com perfeição, chega ao ponto em que seu coração se funde com o espírito das coisas, e ele não deixa pegadas no chão.**
* Não se atrapalha com as palavras ou pensamentos.
**Agir natural e isento.

218.
O Céu torna alguém sábio para ensinar o povo ignorante, mas no mundo, há quem se vanglorie de seus conhecimentos somente para mostrar aos outros seus defeitos.
O Céu torna alguém rico para que alivie o sofrimento das multidões, mas há quem use da riqueza para abusar e maltratar os pobres.
Ah, essas pessoas ofendem a vontade do Céu!

219.
O sábio não tem preocupações, o parvo não tem entendimento; com ambos, se pode estudar e construir.
As pessoas com propensões destacadas, mas sem um guia, desenvolvem apenas um aspecto da percepção e do entendimento; isso as torna introspectivas e desconfiadas, e é difícil ajudá-las.

220.
A boca é a porta da mente; vigie-a com cuidado, ou deixará escapar suas intenções ocultas.
Os pensamentos são os pés da mente; controle-os firmemente, ou será levado para o Caminho da perdição.

(continua)

* O Cai Gen Tan菜根譚foi escrito no século XVI pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). (…) Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas

29 Mar 2023

Falando sobre as raízes da sabedoria – Cai Gen Tan 菜根譚

Tradução de André Bueno
(continuação)

 

141.
Compartilhar com os outros o peso de suas faltas, e não dividir a glória de seus méritos: isso atrairá ciúmes mútuos.
Passar junto com os outros suas atribulações e dificuldades, mas não dividir com eles sua paz e alegria: isso leva a inimizade mútua.

142.
Um Educado que caiu na pobreza não pode ajudar os outros com bens materiais; mas ao encontrar alguém que perdeu o Caminho, pode lhe dizer algumas palavras boas e ajudá-lo; ao encontrar alguém que passa pela adversidade, pode dizer palavras amáveis e resgatá-lo.
Isso se constitui num bem incomensurável.

143.
Famintos, buscamos ajuda de alguém; satisfeitos, vamos embora. Frente ao poderoso, nos apressamos e aproximamos; frente ao pobre, o abandonamos.
A natureza das relações humanas tem seus problemas.

144.
Uma pessoa virtuosa aclara sua visão, de modo a ser sóbrio, e é cuidadoso em não ser apressado com sua conduta reta e justa.

145.
A virtude segue a tolerância, e a tolerância cresce com o conhecimento.
Assim, quem deseja aprofundar a virtude, não pode deixar de lado a tolerância; e se aspira à tolerância, não pode se contentar com pouco conhecimento.

146.
Quando a luz da lâmpada é tênue como um vaga-lume, e as dez mil flautas não produzem nenhum som; esse é o estado de ‘alegria e repouso’* que alguém pode alcançar.
No meio da madrugada, quando não há nenhum barulho; é como emergir no próprio caos original, antes da criação.
Se aproveitarmos esses momentos para refletir sobre nós mesmos, perceberemos que ouvidos, bocas e nariz não são mais que correntes e grilhões, e que nossos desejos e vontades nos desviam do verdadeiro entendimento.
*Serenidade, equilíbrio interno e desprendimento do ambiente advindos da meditação.

147.
Aquele que exercita a introspecção, converte as coisas em remédios e agulhas de pedra; o que critica e culpa os demais, faz com que o pensamento seja como uma adaga ou uma lança.
Uma atitude abre o Caminho para todos os bens; outra, para todos os males. Ambas estão tão separadas como o Céu e a Terra.

148.
As obras e os escritos perecem com seus criadores, mas o espírito delas permanece por dez mil anos.
Um grande nome e a riqueza podem mudar o mundo; mas para a sinceridade moral, mil anos são apenas um dia.
O Educado nunca deve trocar o valioso pelo vão.

149.
Ao jogar uma rede de pesca, às vezes cai nela uma folha; o louva-deus vem comê-la, mas vira presa de um pardal.
Existem engrenagens nas engrenagens, e mudanças nas mudanças; de nada vale a astúcia vã do ser humano.

150.
Uma pessoa sem pensamentos sinceros é como um adorno de vestir, superficial e vazio.
Uma pessoa que trata o mundo sem maleabilidade e atenção é como um boneco de madeira: duro, encontra obstáculos em todos os lugares.

151.
Águas tranqüilas não têm ondas; um espelho limpo não tem pó.
O coração não precisa ser limpo; apenas afaste os pensamentos impuros, e ele ficará puro.
A felicidade não pode ser encontrada; apenas afaste a dor do coração, e ela surge.

152.
Apenas um pensamento pode ir contra as proibições dos deuses e espíritos; apenas uma palavra pode acabar com a comunhão do Céu da Terra; apenas uma única ação pode desgraçar nossos filhos e netos.
Devemos ser cuidadosos e conscientes de nossos atos.

153.
Existem coisas que, quanto mais buscamos, mais nos escapam ao entendimento; do mesmo modo, quando não estamos mais ansiosos por elas, elas aparecem de modo natural a nossa frente.
Existem pessoas que recusam ajuda, mas ao deixá-las por si mesmas, elas abandonam seus interesses.
Não se deve pressionar, nem provocar, aqueles que são muito obstinados.

154.
Ainda que sua moralidade seja alta como as nuvens, e seus escritos puros como neve branca; se essas coisas não foram modeladas pela virtude, ao fim, todas as suas ações se basearam no egoísmo, e toda a sua técnica e capacidade serão Nada.

155.
Retire-se do seu posto de trabalho quando está no auge da prosperidade, e se transfira para um lugar tranqüilo e retirado.

156.
Quanto à virtude, seja atento e cuidadoso com as mínimas coisas;
Quanto à generosidade, exercite-a com quem não pode retribuir.

157.
Ser amigo de um mercador não é tão bom quanto ser amigo de um asceta; ser recebido nas portas vermelhas* não é tão bom quanto freqüentar casas brancas**; escutar as conversas nas ruas não é tão bom quanto ouvir o canto dos pássaros ou as canções dos pastores; e comentar os erros das pessoas de hoje não é tão bom quanto refletir sobre a virtude dos antigos.
*Portas Vermelhas: Casas de pessoas ricas ou importantes.
** Casas brancas: residências humildes ou pobres.

158.
A virtude é a base do sucesso; sem raízes não há frutos, sem alicerce não há casa que dure.

159.
Um bom coração é a raiz da prosperidade das gerações futuras; sem raiz, não há crescimento, folhas e plantas não florescem.

160.
Os antigos diziam: ‘abandone seu lugar sem guardar nada, e passe pelas portas com uma cuia de esmolas, como o filho de um pobre’.
Também diziam: ‘o filho de um pobre não deve dizer que é rico, como um louco sonhador; onde já se viu uma estufa com fogo, mas sem fumaça?’
O primeiro provérbio nos aconselha a conhecer a nós mesmos; o segundo, a nos guardar contra soberba. Ambos devem servir de guia em nossos estudos.

161.
Seguir o Caminho é algo para todos, mas cada um tem o seu próprio.
O estudo [do Caminho] é como cozinhar, ou fazer os trabalhos cotidianos; deve-se estar preparado e atento.

162.
Aquele que age de boa fé atua com sinceridade, mesmo que os outros não sejam sinceros;
Aquele que suspeita de tudo age com falsidade, mesmo que os outros não sejam falsos.

163.
Uma pessoa de pensamento generoso é como o vento da primavera que faz florescer a Terra, e que faz as Dez mil coisas se desenvolverem.
Uma pessoa de pensamento egoísta é como a neve do norte, sombria e gelada, que traz a morte a tudo que toca.

164.
Ao se fazer o bem não se vê os benefícios; é como um melão, que cresce no mato sem ser notado.
Ao se fazer o mal não se vê os danos; é como geada, que cai no pátio no fim da primavera, e quase não se nota o avanço da decadência.

165.
Ao encontrar um velho amigo, o afeto é maior do que antes;
Ao encontrar conhecimento oculto e secreto, a ansiedade deve ser controlada;
Ao tratar dos mais velhos e incapazes, nossa cortesia e respeito devem ser ainda maiores.

166.
Aquele que é realmente diligente se aprimora na virtude e na moral; mas existem aqueles que só são diligentes para escapar da pobreza.
Aquele que realmente é simples é indiferente a comodidades e riquezas; mas existem pessoas que utilizam a simplicidade para disfarçar sua obtusidade.
É uma pena que aquilo que o Educado usa pra se cultivar, as pessoas pequenas usam para suas mesquinharias.

167.
Quem se move, impulsionado pela animação, acaba ficando parado; uma roda não gira pra trás.
Quem se baseia apenas na percepção, acaba ficando confuso e nada compreende.
Guarde: uma lâmpada não ilumina para sempre.

168.
O apropriado é perdoar os erros alheios, e evitar cometê-los.
O apropriado é ter paciência com nossas adversidades, mas não com a que os outros sofrem.

169.
Aquele que evita as convenções é especial; mas aquele que as busca para se diferenciar é um excêntrico.
Aquele que não se contamina com coisas banais é puro; mas aquele que se desliga de tudo que é banal é um radical.

170.
Ao praticar o Humanismo, o apropriado é ir do pouco ao muito; do contrário, as pessoas se esquecerão rápido dos benefícios recebidos.
Ao exercer a autoridade, é apropriado ir da severidade a tolerância; do contrário, as pessoas se ressentirão amargamente.

171.
Sem pensamentos impuros, a verdadeira essência do coração aflora.
Buscar a verdadeira essência, sem um coração tranquilo, é como fazer ondas na água querendo ver o reflexo da lua.
Se os pensamentos são puros, o coração estará sempre limpo. Buscar um coração brilhante, sem pensamentos puros, é como buscar brilho em um espelho empoeirado.

172.
Se tenho fama e poder, as pessoas me saúdam; mas o que elas buscam, mesmo, é meu cinto de oficial e meus distintivos.
Se me acho na pobreza, as pessoas me desprezam; mas o que elas desprezam, mesmo, são minhas roupas gastas e humildes.
Assim, se de fato não meu saúdam, porque me sentir lisonjeado? Se não me desprezam, porque me sentir afrontado?

173.
Diz um provérbio: ‘Deixe um pouco de arroz pros ratos, e apague a lâmpada para os cupins’. Essa atitude compassiva dos antigos é o que faz com que a humildade prospere e floresça. Sem essa atitude, as pessoas não são mais do que uma casca vazia, um templo sem alma.

174.
A essência do coração é como a essência do Céu: um pensamento de felicidade, e aparecem estrelas e nuvens de bom auspício; um pensamento desagradável, e desatam trovões e chuvas violentas. Um pensamento bom traz ventos suaves e orvalho doce; um pensamento incômodo é como o sol ardente, ou o gelo do outono.
Como harmonizar os extremos? Seguindo as mutações do universo: depois que algo floresce, há a continuidade. Assim, de forma livre e sem obstáculos, se unem as essências do Céu e da Terra.

175.
Sem ocupação, a mente facilmente obscurece; então, é necessária a tranqüilidade para aclarar as idéias.
Ocupada demais, a mente facilmente se agita; então, é necessário aclarar a mente para devolver a tranqüilidade ao espírito.

176.
Quem contempla as coisas está fora delas, e compreende os ganhos e as perdas de suas possíveis ações.
Quem realiza as coisas está submerso nelas, e ignora as perdas e os ganhos de suas ações.

177.
Um Educado, com alto cargo, deve ser incorruptível, mas deve ser amável e modesto.
Não deve comprometer sua integridade de modo algum, nem buscar algo em proveito próprio. Não deve ser extremado, nem perder a centralidade, muito menos provocar enxames de insetos venenosos.*
*Literalmente: atrair gente corrupta.

178.
Aquele que alardeia moralidade atrai maledicência; quem se gaba de virtude e saber, receberá censura.
Por isso, o Educado se afasta tanto da má quanto da boa reputação; ele apenas preserva sua integridade e gentileza, e onde mora, sua conduta é tida como exemplo.

179.
Ao encontrar uma pessoa equivocada, use a sinceridade para mudar sua mente; ao encontrar uma pessoa violenta, use a calma e a gentileza para conquistá-la; ao encontrar uma pessoa malvada e egoísta, use seu bom nome e a energia moral para ensiná-la.
Assim, não haverá nada, debaixo do Céu, que você não possa mudar com sua influência.

180.
Um pensamento de bondade pode harmonizar o Céu e a Terra;
Um coração, sem manchas, estende a fragrância de sua pureza por cem gerações.

(continua)

* O Cai Gen Tan菜根譚foi escrito no século XVI pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). (…) Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas

6 Mar 2023

Falando sobre as raízes da sabedoria – Cai Gen Tan 菜根譚

Tradução de André Bueno
(continuação)

61.
Aquele que estuda deve pensar de modo consciente e cuidadoso, deve ter gostos e modos apropriados.
Se ele se apega a alegrias e tristezas mundanas, ele decairá como o outono, e não será forte como uma primavera.
Dessa forma, como pode fazer florescer as dez mil coisas?

62.
Uma pessoa verdadeiramente honesta não tem fama de honesta; os gananciosos é que querem essa reputação.
Uma pessoa realmente talentosa não alardeia suas habilidades; os inaptos é que fazem tal alarde.

63.
O cântaro Qi* se derrama quando está cheio; o cofre Puman* continua intacto mesmo quando está vazio.
Assim, o sábio prefere morar num lugar em que não haja ambições constantes; e deseja viver num lugar que ainda esteja incompleto, sem terminar.
*o cântaro Qi era um antigo vaso de bronze que só se equilibrava quando estava pela metade: quando vazio, ele caía; cheio, ele derramava. O vaso era usado perto dos governantes, para advertir contra os excessos e ausências. O cofre Puman era feito de barro, e era quebrado quando estava cheio de moedas.

64.
Aquele que não se livrou da ânsia de reconhecimento, pode desdenhar mil riquezas e se comprazer em viver livremente, mas ao final se perderá na vulgaridade do mundo.
Aquele que é cerimonioso, mas não compreendeu o significado dos costumes [ritos], por mais que sua influência se estenda pelos quatro mares, e dure por dez mil gerações, ao final, seus gestos serão vazios.

65.
Se os pensamentos de uma pessoa forem claros, ela terá o Céu azul, mesmo no meio de um quarto escuro.
Se seus pensamentos ocultam intenções obscuras, mesmo em um dia brilhante, haverá demônios [em sua mente].

66.
As pessoas sabem que um cargo e a fama fazem alguém feliz; mas não sabem que aquele que é mais feliz, é o que não tem nem cargos, nem fama.
As pessoas sabem que a fome e o frio preocupam; mas não sabem que se preocupar sempre é pior do que a fome e o frio.

67.
Se uma pessoa faz algo errado e tem medo que os outros saibam, ainda assim ela tem consciência em meio ao mal.
Se uma pessoa faz algo correto e quer que todos saibam, ainda assim sua bondade está contaminada pelas raízes do mal.

68.
O poder do Céu e a força das coisas não têm medida; às vezes restringem, às vezes expandem, movem e dirigem os heróis, derrubam tiranos.
Quando um sábio encontra a adversidade, exercita sua paciência; quando vive na tranqüilidade, ele pensa no perigo.
Mesmo o Céu não pode influenciar sua natureza.

69.
Uma pessoa irascível é como um fogo devorador; tudo que ela encontra, ela consome.
Uma pessoa malvada é fria como gelo; tudo que ela encontra, ela dana.
Uma pessoa obstinada e inflexível é como água estacada ou madeira podre; sua vitalidade está extinta.
Essas pessoas vivem se preocupando em conseguir as coisas, mas a felicidade continua escapando delas.

70.
A felicidade não pode ser conseguida; manter o espírito feliz é a essência da felicidade. Isso é tudo.
A desventura não pode ser evitada; expulsar os pensamentos daninhos mantém a desventura longe. Isso é tudo.

71.
Se de dez frases ditas, nove forem corretas, não se receberá crédito; mas se uma frase for falsa, se carrega toda a culpa.
Se de dez planos traçados, nove se realizam, não se receberá felicitações pelo talento demonstrado; mas um plano que fracassa atrai todas as críticas.
Uma pessoa realizada prefere o silêncio à ação impetuosa, e prefere parecer um bobo a talentoso.

72.
Há um espírito do Céu e da Terra*; quando ele é cálido, faz com que as coisas cresçam; quando ele é frio, faz com que as coisas morram.
Assim, quando o espírito humano é frio, ele é triste; mas quando um coração é cheio de calor, ele é feliz e benévolo.
*Vento

73.
O Caminho do Céu é muito amplo; se o coração se inclina em sua direção, ele se expandirá e brilhará em seu peito.
O Caminho do desejo humano é muito pequeno; quem caminhar por ele, encontrará espinhos e lamaçais.

74.
Vivendo a constante alternância entre tristeza e alegria, chega-se à verdadeira felicidade; provando por si mesmo a dúvida e a certeza, alcança-se o verdadeiro conhecimento.

75.
O coração não deve estar cheio de desejos; apenas vazio, ele recebe a presença da razão.
O coração não deve estar sem substância; somente assim ele impede a entrada das tentações.

76.
Em lugares sujos, muitas coisas florescem; às vezes, nas águas cristalinas, não há peixes.
O sábio deve preservar a paciência em seu coração, pois ele não estará sozinho, o tempo todo, desfrutando de suas virtudes.

77.
Um cavalo impetuoso pode ser domado e cavalgado; as gotas de ouro que caem de um forno podem voltar ao molde; mas uma pessoa capaz, que tenha perdido seu entusiasmo, e está parado, não poderá progredir.
Baisha* disse: ‘as pessoas cometem erros, e isso não é causa de vergonha; mas uma vida toda sem erros, isso sim me preocuparia!’.
Sábias palavras!
*Sábio Confucionista do período Ming.

78.
Se apenas um pensamento errado entra na mente, a força se converte em fraqueza, a inteligência se confunde, o Humanismo se desvia, o espírito puro se corrompe, e a virtude acumulada por toda uma vida se perde.
Assim diziam os antigos: ‘não corrompa seus tesouros’; e puderam vencer a ambição durante todas as suas vidas.

79.
O olho e ouvido vêem e enxergam as coisas que lhe atraem, externas e enganadoras.
A mente tem seus desejos e paixões, íntimas e enganadoras.
A pessoa de mente clara não se confunde; ela se coloca no centro de sua casa, e converte os inimigos em hóspedes.

80.
Planejar, para alcançar aquilo que não se tem, não é melhor do que progredir, e se expandir, com o que se tem.
Arrepender-se dos erros passados não é tão bom quanto prevenir-se de enganos futuros.

81.
O espírito humano deve ser elevado e amplo, mas não disperso ou fechado; deve ser meticuloso e detalhado, e não insosso ou trivial; o temperamento deve ser tranqüilo e sensível, mas sem ser insípido ou monótono; suas ações devem ser ordenadas e imparciais, mas não extremas e inflexíveis.

82.
O vento agita um bosque de bambus, sopra, e não deixa nem um silvo atrás de si; um pato voa sobre o lago no inverno, passa, e ao ir embora, sua imagem não permanece na água.
Assim, o sábio vai até o problema e se concentra nele; depois que termina, seu coração volta a repousar.

83.
Ser puro, mas tolerante com os demais;
Ser humanista, e tomar decisões justas;
Ser claro, mas criticar sem ferir;
Ser reto, mas sem se exceder;
Assim como as frutas em conserva não devem ser muito doces, nem a comida do mar muito salgada, tudo isso* forma a virtude perfeita.
*O equilíbrio, a justa medida das coisas.

84.
Um homem pobre capina o baldio até ele estar pronto; a mulher pobre lava a pele até deixá-la limpa. Essas cenas não parecem bonitas, mas sua grandeza as reveste de elegância.
Assim, quando um Educado encontra pobreza e austeridade, porque razão ele desistiria de seus ideais?

85.
No ócio, não desperdice seu tempo; há sempre algo com que ocupar-se.
Na tranqüilidade, não deixe de fazer as coisas; há sempre um bem que se possa fazer.
Na obscuridade, não deixe que sua mente trame ou se engane: é benéfico manter o pensamento claro.

86.
Se seu pensamento busca o Caminho dos desejos, então o traga de volta; ao notar uma idéia impura, pegue-a e a jogue-a fora.
Assim, se transforma a desventura em felicidade, e se afasta a morte.
É um momento crucial, em que não deve haver pressa.

87.
Na tranqüilidade, os pensamentos são claros como a água, e se pode ver a verdadeira essência do coração;
Nos momentos de ócio, o espírito não está perturbado, e se podem ver as verdadeiras intenções do coração;
Em uma vida simples, a atitude é modesta e moderada, e assim se pode sentir a verdadeira essência do coração;
Para examinar um coração, essas são as três melhores coisas.

88.
Estar em um lugar silencioso não é o silêncio verdadeiro; o silêncio em meio aos afãs é que está de acordo com a natureza do Céu.
Estar feliz numa situação alegre não é felicidade verdadeira; a felicidade, em meio à adversidade, é a verdadeira realização do coração.

89.
Ao sacrificar seus interesses, não tenha dúvidas; ter dúvidas atrai vergonha sobre o sacrifício.
Ao ser caridoso, não exija recompensa: exigir recompensa arruína um coração generoso.

90.
Se o Céu me concede uma pequena porção de felicidade, eu acumulo virtude para compensar o que falta.
Se o Céu me enche de adversidades, eu alegro meu coração para compensar as circunstâncias.
Se o Céu põe desvios no meu Caminho, aperfeiçôo meu entendimento para suavizar minha andança.
Sendo assim, o que o Céu pode me fazer de mal?

91.
Um Educado não reza por felicidade, e o Céu, sem mostrar, enche seu coração de felicidade.
O ignorante se concentra em evitar acidentes, e o Céu sempre faz com que ele se perca.
Assim vemos que o poder e a sutileza do Céu são as coisas mais profundas que existem; de que adianta a astúcia contra ele?

92.
Se depois de anos uma cortesã se casa, é porque sua vida passada não foi um obstáculo; se uma mulher virtuosa perde a integridade, tudo que ela fez ao longo dos anos se perde.
Um provérbio diz: ‘ao julgar uma pessoa, olhe seus últimos anos’.
Palavras acertadas!

93.
Se uma pessoa comum está disposta a cultivar a virtude em segredo, ela é como um alto oficial sem fama.
Se um nobre fica apenas tramando meios de aumentar seu poder e fortuna, ele não é mais do que um miserável com um alto posto.

94.
Ao lembrar os méritos de nossos antepassados, graças aos quais podemos desfrutar de nossas vidas, devemos pensar também nas dificuldades pelos quais passaram.
Ao pensar na felicidade de nossa descendência, que aproveitará a herança que a deixarmos, devemos lembrar também o quanto é fácil que eles a dilapidem.

95.
Uma pessoa supostamente justa, que só pretende fazer o bem, não é diferente de um egoísta.
Uma pessoa supostamente justa, que mascara sua conduta, está abaixo de um comum que apenas começou a mudar de vida.

96.
Quando membros de uma família têm suas desavenças, não é apropriado ter ataques de fúria, nem descartar os problemas como se fossem triviais.
A situação pode ser difícil de discutir; assim, é melhor usar de analogias para mostrar o problema. Se isso não funcionar no momento, espere o outro dia para corrigir o culpado.
Como o vento da primavera que descongela, como o calor que derrete o gelo lentamente; esse é o modelo para cuidar de assuntos domésticos.

97.
Se o coração olhasse paras as coisas e achasse tudo bom, todas as coisas abaixo do Céu seriam perfeitas.
Se o coração for habitualmente generoso e sereno, desaparecerão todos os vícios e a malícia deste mundo.

98.
Aquele que não busca fama nem riqueza certamente desperta a inveja do ambicioso; aquele que é moderado em sua conduta certamente desperta o incômodo no falador.
Nessas circunstâncias, o sábio não deve comprometer de modo algum sua conduta, nem mesmo ser condescendente com tais atitudes.

99.
Em meio à adversidade, tudo o que encontramos tem o efeito de agulhas de acupuntura e da medicina dos remédios amargos; essas coisas reforçam nosso caráter, sem que notemos.
Em meio a circunstâncias favoráveis, é como se estivéssemos entre soldados, facas, machados e lanças*, ou como uma lâmpada que vai se consumindo: essas coisas enfraquecem nosso espírito, sem que notemos.
*Desgaste de um combate; Tensão gradual.

100.
Em meio aos luxos e comodidades, uma pessoa é como um fogo abrasador, e sua ânsia de poder é como um incêndio violento.
Se esses desejos não foram moderados com aspirações sensíveis e honestas, esse fogo não consumirá aos outros, mas a si próprio.

(continua)

* O Cai Gen Tan菜根譚foi escrito no século XVI pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). (…) Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas

5 Fev 2023

Falando sobre as raízes da sabedoria – Cai Gen Tan 菜根譚

Tradução de André Bueno

41.
Uma pessoa de pensamento magnânimo trata a si mesmo, e aos outros, com respeito; e por isso, sua grandeza está em toda parte.
Uma pessoa de pensamento mesquinho trata a si mesmo, e aos outros, com pequenez; e por isso, sua malícia está em toda parte.
Uma pessoa virtuosa evita o luxo e a ostentação, e se afasta do aborrecimento e do pessimismo.

42.
Outros têm riquezas, eu tenho o humanismo. Outros têm cargos importantes, eu tenho a beleza interior. Um Educado não se apega as aparências.
Uma pessoa verdadeira pode conquistar o Céu, sua vontade dirige seus pensamentos e emoções. [Por isso] O Educado não se sujeita aos ganhos materiais.

43.
Estar no mundo, sem ideais dignos, é como limpar a roupa com pó, ou lavar os pés com lodo; como realizar-se [interiormente], dessa forma?
Atuar no mundo, sem saber adaptar-se, é como ser uma mariposa que se lança na lama, ou como um carneiro que prende os chifres na cerca; como encontrar paz e alegria dessa forma?

44.
Todos que estudam devem recolher seus pensamentos dispersos, e concentrá-los numa única direção.
Se ao cultivar a virtude, espera-se uma boa reputação, com certeza falhará.
Se ao estudar, pretendem-se apenas belos poemas, com certeza nada se arraigará no coração.

45.
Todas as pessoas têm a capacidade da compaixão. Wei Mo*, um açougueiro, ou um carrasco não se distinguem em sua natureza humana. Em todo o lugar, existe algum tipo de comunhão com a natureza.
Um palácio de ouro ou uma cabana não se distinguem na Terra que as assenta. Mas o desejo obstrui a generosidade pura, e se impondo a ela, separam-se uma da outra como se estivessem a mil li** de distância.
*Vimalakirti, santo budista.
** Li=500 metros

46.
Para ir pelo Caminho da virtude, a mente precisa ser como madeira e pedra*. Se a tentação pela fama e riqueza for maior, com o tempo se fica no mundo dos desejos.
Aquele que quer ajudar o mundo, deve desejar como as nuvens e as águas**. Mas se a tentação pela notoriedade for insaciável, ele atrairá perigo.
*Pureza e Fortaleza, respectivamente.
**Apenas seguir o curso, sem impor a vontade própria.

47.
As ações de uma pessoa correta são serenas, seus sonhos são calmos.
As ações de uma pessoa má são perversas, e suas conversas sempre têm intenções nefastas.

48.
Quando o fígado está doente, os olhos não vêem; quando os rins ficam doentes, os ouvidos não podem escutar. A doença está em um lugar eu não se pode ver, mas seus efeitos são visíveis.
Assim, o Educado, se não deseja que suas faltas apareçam no exterior, corrige primeiro seus erros interiores.

49.
Estar feliz ou não depende de quantas preocupações se têm.
Estar entristecido depende do quanto o coração está disperso.
Só quem está cheio de preocupações sabe que ter poucas levam a felicidade.
Só quem tem um coração tranqüilo sabe que a agitação atrai problemas.

50.
Em tempos tranqüilos, seja correto como um quadrado. Em tempos de desordem, seja correto como um círculo*. Em tempos de decadência, combine o quadrado e o círculo.
Ao lidar com gente boa, seja correto e generoso; ao lidar com gente má, seja correto e rigoroso; ao lidar com gente comum, combine generosidade e rigor.
*Quadrado=retidão, Círculo=flexibilidade

51.
Não me recordo do que fiz pelos outros.
Não me esqueço dos erros que cometi.
Não me esqueço da bondade dos outros.
Não me recordo das ofensas dos outros.

52.
Um benfeitor não considera suas ações boas, nem que ajudou alguém.
Desse modo, um punhado de grãos se transforma num celeiro.
O ganancioso pensa no retorno do que dá, e calcula seus lucros sobre quem ajuda.
Desse modo, uma fortuna eterna não vale uma moeda de cobre.

53.
Cada um tem sua vida, com ou sem fortuna; como saber quem é mesmo afortunado?
Cada um tem sua cabeça, com ou sem estudo; como exigir dos outros o entendimento?
Desse modo, se pode comparar as pessoas, e observar suas condutas.

54.
Somente uma pessoa de bom coração pode apreciar a sabedoria dos antigos pelo estudo dos clássicos.
Os maus roubam os antigos, usam-nos em benefício pessoal, e disfarçam com palavras boas as suas ações nefastas.

55.
Para quem vive no luxo e na extravagância, a riqueza nunca é suficiente.
Para quem vive na frugalidade, o pouco que se têm pode ser repartido.
Uma pessoa de talento se esforça, mas só consegue o ressentimento da sociedade.
Uma pessoa simples age de modo simples, e dessa maneira, vive sem preocupação e mantém-se imaculado.

56.
Estudar, sem buscar a virtude dos sábios, é ser um mero copista; ter um cargo oficial, sem amar o povo, é ser um ladrão bem vestido.
Dar lições de virtude, sem praticá-la, é como recitar os clássicos sem compreendê-los; realizar um trabalho, sem visar à virtude, é tão efêmero como a vida das flores ante os olhos.

57.
No coração das pessoas existe um livro da verdade; mas o texto está incompleto, e as folhas estão rasgadas.
O espírito das pessoas guarda uma melodia da verdade; mas ela está encoberta por músicas e danças sensuais e superficiais.
A busca da virtude deve apagar todas as coisas externas e penetrar na raiz das coisas, na origem de sua natureza íntima.
Só assim se alcançará um verdadeiro aprendizado.

58.
No meio das dificuldades, pode-se encontrar a alegria.
No orgulho dos próprios estratagemas, pode-se encontrar a decepção.

59.
Se a riqueza e a reputação vierem do cultivo da virtude, elas serão como flores nas montanhas e bosques; florescem naturalmente e em abundância.
A riqueza obtida pela artimanha é como as flores dos jardins e canteiros; florescem rápido, e acabam logo.
A riqueza obtida pelo poder e autoridade é como as flores de vasos e jarros; sem raízes fortes, apenas aguardam o dia de sua morte.

60.
Quando chega a primavera, o clima é agradável, as flores cobrem a Terra de cores, e os pássaros entoam belos cantos.
Os letrados se alegram de estar nas listas dos aprovados nos exames públicos, e voltam a se vestir e comer bem.
Mas, se nesse tempo eles não prestarem atenção em dizer palavras justas, e realizar ações meritórias, ainda que vivam cem anos nesse mundo, suas vidas inteiras não terão mais significado do que viver um dia apenas.

* O Cai Gen Tan菜根譚foi escrito no século XVI pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). (…) Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas

30 Jan 2023

Falando sobre as raízes da sabedoria – Cai Gen Tan 菜根譚 *

Tradução de André Bueno

(continuação)

11.
Aqueles que comem e bebem, de modo simples, são claros como gelo e puros como jade.
Aqueles que usam roupas finas, e comem sofisticadamente, encontram deleite na adulação de seus escravos.
As aspirações nobres vêm da pureza do coração, e a virtude pode ser alcançada abandonando-se os prazeres materiais.

12.
Seja reservado, mas também tolerante e generoso, e as pessoas não ficarão ressentidas.
Assim, suas obras durarão muito tempo, e as pessoas o recordarão com saudade.

13.
Dê um passo atrás, e deixe passar aquele que está no seu Caminho.
Essa é uma das condutas sociais mais agradáveis e seguras.

14.
Para viver de modo verdadeiro, não é preciso nenhum talento; apenas abandone os sentimentos vulgares, e isso a tornará uma pessoa autêntica.
Para seguir nos estudos, não é preciso nenhuma habilidade especial: apenas afaste as preocupações que o perturbam, e isso o aproximará do mundo dos sábios.

15.
Para fazer amigos, precisa-se de certa cortesia.
Para fazer-se verdadeiro, necessita-se de um coração puro.

16.
Não se adiante aos outros para receber favores e benesses; não recue por agir de modo correto; não se exceda na sua posição; não aceite favores; não se detenha num problema até esgotar o seu talento.

17.
Ao conduzir o povo, o Educado deve ser respeitoso e deixar a passagem livre. Ele dá um passo atrás, para depois avançar resoluto. Tratar as pessoas generosamente é parte da própria felicidade, e ajudar aos outros é ajudar a si mesmo.

18.
Todos os méritos e conquistas podem ser arruinados com apenas uma palavra desastrosa;
Todos os crimes e pecados podem ser absolvidos com apenas uma palavra de arrependimento verdadeiro.

19.
Uma boa reputação e uma moral elevada não devem servir somente a si mesmo, mas devem ser compartilhadas; assim, afastam-se os perigos.
Uma má reputação e uma conduta vergonhosa não devem afetar aos outros, senão a si mesmo; assim, se ocultam os talentos e se cultiva a virtude.*
*[No caso, a má reputação não é causada, necessariamente por um defeito moral da pessoa: ele pode ser vítima de uma intriga, e por isso, deve resguardar-se.]

20.
Em tudo que faço, deixo sempre uma pequena parte incompleta; assim, Deus não se incomodará, e os espíritos não me perturbarão.
Se em todos os negócios eu buscar a perfeição, e se em todas as coisas mundanas eu desejar ir além, não estarei incorrendo em nenhum erro íntimo, mas atrairei muita desgraça externa sobre mim.

21.
Nas disputas, existem regras de cortesia;
Na vida cotidiana, se encontra o Caminho;
Se as pessoas praticassem a sinceridade e a harmonia, usando palavras boas e ponderadas, pais e filhos não estariam separados.
A troca de idéias e o diálogo são melhores do que os exercícios respiratórios e as meditações.

22.
Uma pessoa ativa é como um relâmpago no meio das nuvens, ou como uma luz no meio da tormenta.
Uma pessoa inativa é como brasa que se apaga, ou uma árvore morta.
A essência do Caminho está no movimento da quietude, e na quietude do movimento, do mesmo modo com um pássaro atravessa as nuvens imóveis no Céu, ou um peixe nada pelas águas quietas do lago.

23.
Ao censurar alguém pelas suas faltas, cuide com seu temperamento;
Ao ensinar a moral para alguém, considere suas propensões.

24.
O besouro que vive no excremento é sujo, mas um dia vira cigarra, e bebe do vento outonal.
A erva podre não brilha, mas nela nascem os vaga-lumes que cintilam abaixo da lua de verão.
Assim, a pureza pode surgir da impureza, e o claro pode vir do obscuro.

25.
Presunção e arrogância são os extremos; controle-os, e cultivará atitudes saudáveis.
Desejos e enganos vêm de pensamentos impróprios; largue-os, e realizará sua verdadeira natureza.

26.
Quem come apenas para se saciar desfruta a verdadeira saciedade, e a gula desaparece.
Quem faz sexo apenas para se saciar desfruta a verdadeira calma, e a luxúria desaparece.
Por isso, se uma pessoa puder se arrepender de seus erros e se desfazer de suas obsessões, então sua natureza se acalmará e se centrará, e suas ações serão sempre sem erro.

27.
Ao estar na Corte, não se esqueça do cheiro da montanha e dos bosques;
Ao estar só no meio da floresta, não esqueça do cheiro dos livros.

28.
Ao viver em sociedade, não busque com ansiedade o êxito; não cometer erros já um mérito.
Ao tratar os outros com Humanismo*, não espere gratidão em troca; se eles não virarem seus inimigos, isso já é gratidão.
*Ren 仁, o Humanismo Confucionista, também traduzido como ‘Altruísmo’ ou ‘Benevolência’.

29.
Se mortificar por ações virtuosas é moralmente belo, mas sofrimento demais traz um grande desassossego interior.
Desprezar o poder e a riqueza é uma qualidade notável, mas privações demais dificultam a própria caridade com os outros.

30.
Ao julgar alguém que arruinou-se, compreenda seus propósitos.
Ao julgar alguém que alcançou sucesso, conheça seus fins.

31.
Aquele que tem um alto posto deve ser generoso e evitar a intriga; do contrário, agirá como uma pessoa inferior. Como poderia, assim, desfrutar de seu cargo?
Aquele que for Educado deve ocultar seus talentos, e evitar a presunção; de outro modo, ele agirá como um bobo. Como poderia, assim, evitar a ruína?

32.
Quem morou em um lugar baixo, sabe o perigo de ir para o alto. Quem esteve na escuridão, sabe o quão deslumbrante é a luz.
Para manter-se sossegado, conheça as preocupações que o afligem. Quem sabe cultivar o silêncio, sabe quanto é incômodo o falatório.

33.
Ao abandonar os desejos de poder e riqueza, livra-se das tentações do mundo.
Ao extrair do coração as limitações da moralidade, pode-se entrar no reino da sabedoria.

34.
O desejo não dana o coração puro, mas pensar em si mesmo, apenas, é uma praga.
O prazer não é um obstáculo ao Caminho da virtude, mas o uso inadequado da inteligência é.

35.
Os sentimentos humanos mudam, o Caminho da vida é difícil.
Ao se deparar com um obstáculo, saiba dar um passo atrás.
Ao avançar sem problemas, deve-se abrir Caminho para os que vêm atrás.

36.
Ao lidar com os maus, não é difícil ser correto, difícil é não odiá-los.
Ao lidar com os sábios, não é difícil ser respeitoso, o complicado é agradá-los.

37.
Conserve a simplicidade natural, não busque o sofisticado, e deixe uma influência pura no mundo.
Se satisfaça com o simples, abandone os luxos, e deixe um nome puro no mundo.

38.
Para conquistar os demônios, primeiro conquiste o próprio coração. Quem conquista seu coração, submete os demônios.
Para controlar a violência, primeiro se controlam os motivos. Se o espírito estiver calmo, a violência externa não poderá invadi-lo.

39.
Ensinar as crianças é como educar boas moças; o mais importante é mostrar a sabedoria de escolher boas amizades.
Ser íntimo dos maus é como jogar má semente em boa Terra; com o tempo, a colheita será arruinada.

40.
Ao estar de posse de coisas materiais, não se apresse a tê-las em demasia. Fazer isso o jogará num poço profundo e difícil de sair.
Ao estar de posse da virtude, não retroceda nem um passo diante das dificuldades. Fazer isso o levará longe, a mil montanhas de distância.
(continua)

* O Cai Gen Tan菜根譚foi escrito no século XVI pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). (…) Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas

19 Jan 2023

Falando sobre as raízes da sabedoria 菜根譚Cai Gen Tan

Hong Yingming

Tradução de André Bueno

A Via do Meio inicia hoje a publicação do livro 菜根譚 (Cai Gen Tan) “Falando sobre as raízes da sabedoria”, de Hong Yingming (1572-1620), numa tradução do sinólogo brasileiro André Bueno.

CAI GEN TAN
Introdução

O Cai Gen Tan菜根譚 foi escrito no século 16 pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). Apesar de ter publicado vários outros textos, com certeza foi o Cai Gen Tan que teve maior destaque na obra de Hong. O título é de difícil tradução: literalmente, ele significaria algo como ‘Discurso sobre as raízes dos vegetais’. Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). Para que as ‘raízes’ das três frutificassem, portanto, precisavam ser cultivadas no intimo do ser humano. Daí, pois, a opção (liberal, admito) por traduzir o livro com o título de ‘Falando sobre as raízes da Sabedoria’. Manter a tradução literal do mesmo seria, para nós, quase incompreensível.
O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas (tivesse ele colocado mais cinco aforismos, e eu sugeriria que fosse lido um por dia, ao longo do ano…). Hong teria seguido à risca a proposta que ele mesmo apresentou no livro: uma vida simples, desprendida, longe das convenções e dificuldades representadas pelo cotidiano. A prova disso é o quase total desconhecimento de informações sobre sua vida. Muitas suposições (e poucos dados) apontam que Hong tenha vivido o curso de sua existência discretamente. A partir do livro, pois, é que podemos compreender um pouco mais sobre seus pensamentos.
§
O Cai Gen Tan está estruturado, como dissemos, nos três grandes ensinamentos: o Confucionismo 儒家, o Daoísmo 道家e o Budismo 佛教Chan禅(em japonês, Zen). Hong organizou seus aforismos em torno de alguns aspectos principais:
• A importância da Educação: a busca de uma vida correta se centra no ideal do Junzi 君子, o ‘Educado’ confucionista. Estudar 学 e Educar-se 教são fundamentais para compreender o Caminho (Dao道), e para adquirir as habilidades sobre uma vivência correta. Estudar, na visão de Hong, inclui não apenas os clássicos confucionistas, mas também, os textos daoístas e budistas.

• A ‘Não-ação’: contudo, a busca constante pela perfeição moral, e pelos ganhos do mundo cotidiano se constitui um erro. O estudo precisa ser contrabalanceado pela ação isenta, ou ‘Não-ação’ (Wuwei 无为), conceito fundamental do pensamento daoísta. A ação isenta de propósitos artificiais permitira um retorno à nossa ‘natureza original’ (Ziran 自然), na qual o ser humano alcança a verdadeira harmonia com a natureza e consigo mesmo.

• Desprendimento, meditação e contemplação: ainda assim, desprender-se do mundo humano não leva ao aperfeiçoamento da mente e da alma. Afinal, pode-se fugir para o meio do mato, e continuar com as mesmas tensões de sempre. Essa interiorização meditativa é trazida pelo aspecto budista da obra. Hong insiste na necessidade da contemplação e na meditação para alcançar o que ele chamava de uma ‘verdadeira essência das coisas’ (o Li 理, ou princípio das coisas). O Budismo de Hong é, claramente, o Chan 禅(ou Zen), cujo impacto da meditação ativa e do desprendimento são características marcantes. O controle da Mente é fundamental na proposta da vida ideal.

Hong, porém, balanceava todas essas coisas. Seu sábio ideal bebe, canta, estuda, passeia pelos bosques, mas sabe também agir em meio à multidão. Ele medita, contempla a natureza, adora a Lua, a simplicidade, o despojamento, mas conhece as armadilhas do mundo material. Os aforismos do livro se dirigem, portanto, a necessidade de cuidar com as ilusões da vida. Em alguns trechos, o livro nos aconselha a pensarmos na morte, e encararmos a vida como algo passageiro. Se bem compreendidas, essas passagens nos esclarecem que a vida é curta demais, e que deve ser vivida de modo feliz; e para se alcançar essa felicidade, seria importante retornar a simplicidade.
Por fim, a mentalidade presente no Cai Gen Tan é um produto típico do pensamento chinês que busca, na síntese das idéias, a harmonia das visões de mundo. Para um pensador típico dessa civilização, Confucionismo, Daoísmo e Budismo são visões incompletas do todo; são, justamente, Caminhos (Dao道) para se alcançar a Harmonia 和 (ou, ‘Equilíbrio’). Todavia, cada uma dessas propostas foca em um aspecto determinado, e disso resultam suas incompletudes. Durante séculos, diversos pensadores chineses se debruçaram sobre o problema de como aproveitar os melhores aspectos, de cada uma das três grandes linhas, em um único sistema coerente. Hong nos oferece, no livro, sua visão das coisas. Ele viveu num momento histórico em que a economia chinesa era uma das maiores do mundo, e a ideologia da riqueza fácil pulsava em meio à sociedade. Por isso, existia uma grande preocupação entre os intelectuais chineses quanto à degradação de sua cultura e dos valores morais e sociais. A queda da dinastia Ming, em 1644, é em parte atribuída, pelos historiadores tradicionais chineses, a essa crise moral que assolou uma China rica, poderosa e, porém, corrompida.
§
É costume afirmar que o Cai Gen Tan não foi muito lido na China, mas isso não me parece exato. Apesar de ser razoavelmente divulgado, o livro não fazia parte dos cânones tradicionais das três grandes escolas (Confucionismo, Daoísmo e Budismo). Esse era o custo de Hong Yingming ser um pensador independente. Sabemos que ele era lido pelos intelectuais chineses da época, sendo citado, ocasionalmente, em um ou outro texto; todavia, era um escrito que encontrava mais ressonância no leitor comum, interessado em aprender um pouco mais sobre sabedoria.
Foi no Japão que o livro encontrou a sua total redenção. O Sankontai (pronúncia japonesa) se tornou um absoluto sucesso, por conta de sua simplicidade e elegância. Os japoneses apreciavam bastante o livro, por entender que ele resumia, de maneira direta e profunda, os ensinamentos das três grandes escolas. Contudo, o Sankontai fazia mais: ele se tornara um guia para a vida cotidiana.
Passados quase quatrocentos anos, o livro continuou a ser um dos clássicos mais admirados e consultados pelos japoneses. Foram eles, de fato, que ajudaram em sua divulgação maciça no Ocidente. Falando sobre as raízes da sabedoria é um dos textos preferidos no país, sendo amplamente citado e utilizado na educação, no pensamento e no trabalho. De fato, essa ampla divulgação reascendeu o próprio interesse chinês pela obra.
§
Quanto às traduções, podemos encontrar um bom número delas em outros idiomas – principalmente em inglês, mas existem duas boas em espanhol. Essa é a primeira tradução que tenho notícia em português. Como sempre, pode-se optar por dois tipos de tradução: uma mantém a estrutura original do texto, incluindo as imagens poéticas e a terminologia específica do mesmo. Exemplo: usar o termo original chinês ‘dez mil coisas’, que significa ‘tudo’. Na maior parte dos casos, preferi usar essa opção, para familiarizar o leitor. O outro modo de se traduzir é ‘transcriar’ a passagem, empregando um termo que corresponda ao sentido original. Exemplo: traduzir ‘as dez mil coisas abaixo do céu’ simplesmente como ‘mundo’. A questão é que, em alguns casos, Hong variava o uso das expressões. Acoplar sentidos é uma opção do tradutor, do qual me valho ocasionalmente quando vejo que o texto fica incompreensível. Contudo, entendo que a ‘tradução do sentido’ deve ser uma opção, quando não há solução viável, e não uma regra. Se assim fosse, a compreensão do livro seria dada por minhas interpretações pessoais, o que acaba sendo um tanto problemático e limitador. Por outro lado, toda tradução não deixa de ser um conjunto de opções do tradutor. Então… Decidi, por fim, manter sempre que podia o mais próximo do original, e adaptar quando necessário.
Em comparação com outras traduções, essa versão em português parecerá, assim, simplista e direta. Entendo que esse era o estilo de Hong. Como dizia Confúcio, o ‘sabio não maltrata nem as pessoas nem as palavras’. Hong assimilou isso perfeitamente, e escreveu em aforismos curtos, belos e elegantes. Porque gastar palavras demais?

O TEXTO

1.
Aquele que preserva sua virtude, sofre de solidão.
Aquele que vive atrás do poder e da riqueza, sofre uma miséria sem fim.
Aquele que aspira a verdade, e vê além das coisas materiais, prefere sofrer de solidão, e evitar a miséria sem fim.

2.
Quem experimenta as coisas do mundo de modo superficial, traz consigo as marcas da superficialidade; quem conhece as tramas da vida, vive da astúcia.
Quem busca virtude, prefere a simplicidade ao invés da astúcia; e se desfaz das coisas, ao invés de ficar preso a elas.

3.
O coração do virtuoso é claro como Céu azul, e ele não é mal interpretado.
Os talentos de um virtuoso devem ser como jades e pérolas ocultas, de modo que eles não sejam facilmente conhecidos.

4.
Quem não está perto do poder e de seus luxos é limpo; quem está perto, mas não se contamina, é mais limpo ainda.
Quem não conhece as artimanhas do mundo é nobre; mas quem as conhece, e não as usa, é mais nobre ainda.

5.
Escutamos com freqüência palavras desagradáveis, nossa mente é incomodada por provocações, e nossa conduta moral é criticada como uma pedra de afiar facas.
Se tudo que escutássemos fosse agradável, e se tudo que víssemos fosse conveniente, isso seria como afogar-se em vinho venenoso.

6.
Com ventos ruins e chuvas fortes, as aves estão cansadas; com sol forte e brisas suaves, a vegetação floresce.
Assim, no mundo não há um só dia que seja desprovido de paz, como no coração das pessoas não deve haver um só dia desprovido de alegria.

7.
As melhores bebidas, e as comidas mais saborosas, não contêm o sabor verdadeiro; o sabor verdadeiro é insípido.
O fazedor de prodígios não é verdadeiramente um sábio; o sábio vive em paz no dia-a-dia.

8.
O mundo parece parado, mas suas partes se movem; sol e lua se mexem com rapidez, dia e noite, e brilham sempre.
Assim o sábio, quando não está ocupado, cuida com o que pensa; e quando está ocupado, fica em paz.

9.
Nas profundezas da noite uma pessoa, só e quieta, senta e esquece.* Então, os pensamentos impróprios desaparecem, e os verdadeiros permanecem. Quando termina, a pessoa se deleita com sua inspiração interior; mas se algum pensamento impróprio não foi eliminado, ela sente um grande incômodo, e se envergonha de si mesma.
*Meditar

10.
A sorte pode trazer calamidades; em tempos de alegria, reflita sobre o futuro.
Depois de uma derrota, pode vir a vitória; mas para isso, pondere sobre o que preocupa o coração, antes de eliminar a causa.
(continua)

11 Jan 2023