Falando sobre as raízes da sabedoria – Cai Gen Tan 菜根譚

Tradução de André Bueno

(continuação)

261.

Quem vive na margem de um rio se acostuma com o barulho da água, e não o escuta mais; assim, é possível ter tranqüilidade perto da confusão.

As montanhas são altas, mas não impedem a passagem das nuvens; assim, se aprecia o mistério da transformação das coisas.

262.

As montanhas e os bosques são paisagens belíssimas, mas quando as pessoas se encantam com elas, se transformam em feiras.

Livros e pinturas são objetos apreciáveis, mas quando as pessoas os valorizam, se transformam em mercadorias.

Um coração, livre dos desejos de fama e riqueza, transforma a Terra numa residência imortal;

Mas um coração, sempre cheio de desejos, faz com que até um paraíso seja um mar de lágrimas.

263.

No meio do barulho e da confusão, a tranqüilidade da mente se dispersa e se perde;

Em meio à paz e a tranqüilidade, o que se perdeu regressa, e o que foi esquecido é lembrado;

Entre a calma e a agitação há pouca diferença, mas entre a ignorância e a sapiência, há uma diferença enorme.

264.

Deitado na minha cabana nas montanhas, a neve cai, as nuvens voam ao meu redor no ar da noite; apenas com meu copo de vinho na mão, recitarei poemas ao vento, sob a luz da lua, e estarei longe de tudo*.

*[No Original: ‘Estarei a dez mil Zhang (丈= aprox. 3, 3 metros) de toda poeira vermelha’.]

265.

Se entre todos os oficiais paramentados, surge um montanhês rude com seu bastão, a cerimônia adquire importância;

Se pescadores ou lenhadores fossem acompanhados por um oficial vestido de gala, o grupo ficaria muito estranho;

O exagero não é melhor que o simples, o vulgar não é tão bom quanto o refinado.

266.

Só é preciso estudar e experimentar o Caminho para se realizar no mundo; não é necessário afastar-se das pessoas, ou fugir da civilização.

Para que o coração se realize, use suas habilidades ao máximo, não transforme sua mente em cinzas, nem deprecie o mundo.

267.

Se minha vida não está em conflito com o mundo; glória ou desonra, êxito ou fracasso, quem pode me dar ou tirar tais coisas?

Se meu coração permanece em paz e sossego; bem ou mal, ganho ou perda, quem poderá me enganar ou confundir com essas coisas?

268.

Perto da cerca de bambu, ouço o cão ladrar, e a galinha cacarejar, e me sinto como se estivesse num mundo de nuvens;

Da minha sala de estudo, escuto o som dos grilos e dos patos, e me dou conta que, dentro do silêncio, há um outro mundo.

269.

Se não cobiço honras e riquezas, que favores ou ganhos podem tentar-me?

Se não compito por altos cargos, que problemas oficiais podem incomodar-me?

270.

Passeando pelas montanhas e bosques, pelas fontes e rochedos, a agitação do coração gradualmente desaparece.

Há uma calma prazerosa na poesia e na pintura, que faz os pensamentos vulgares desaparecerem.

Assim, o sábio não se apega aos prazeres, nem perde suas aspirações, e sempre encontra formas de cultivar a si mesmo.

271.

Na primavera, a paisagem é toda florida, e as pessoas se enchem de felicidade;

Mas o melhor é o outono, com suas nuvens brancas e seu vento fresco, suas orquídeas cheirosas e ramos frondosos, a água e o Céu com a mesma cor.

Acima e abaixo, tudo brilha, dando leveza e purificando o corpo e o espírito.

272.

Uma pessoa sem conhecimento, mas que fala com um sentimento poético, pode ter compreendido a poesia;

Uma pessoa que não estudou as escrituras budistas, mas que fala sabiamente, pode ter despertado para a sabedoria das coisas.

273.

Uma pessoa inquieta vê sombras de serpentes, e suspeita de todos; vê tigres na espreita, onde há rochas paradas; enfim, tudo lhe parece sinistro e fatal.

Uma pessoa tranqüila vê gaivotas nas pedras em que os outros vêem tigres; ouve canções nos ramos que se mexem, e tudo que vê lhe parece ter um aspecto benéfico.

274.

O corpo é como um bote desamarrado, bóia na corrente até topar numa margem;

O coração é como madeira queimada, não se pode cortá-lo, nem fazer dele incenso.

275.

As pessoas escutam o canto do papa-figo e acham-no agradável, ouvem o coaxar das rãs e acham-no repulsivo.

Ao verem flores, querem cultivá-las, ao verem ervas-daninhas, querem arrancá-las.

Essas são manifestações de personalidade, de aversão ou repulsão por uma coisa ou outra.

Se pudermos reconhecer o princípio do Céu, não haverá som animal incômodo, e todas as plantas nascerão livremente, seguindo naturalmente sua natureza original.

276.

O cabelo e os dentes caem, é o declínio natural do corpo físico;

Mas no canto dos pássaros e na beleza das flores, podemos perceber a vitalidade essencial da natureza.

277.

Um coração cheio de desejos cria ondas num lago gelado, e não encontra paz, nem nas montanhas, nem nos bosques;

Um coração calmo encontra frescor no verão mais quente, e nem nota o alvoroço no mercado.

278.

Quem acumula riqueza, multiplica cuidados; os ricos e poderosos têm, assim, mais preocupações que os pobres.

Quem alçou um alto cargo vacila e cai; e quem se preocupa com isso, nunca descansa como as pessoas comuns.

279.

Ao amanhecer, lendo o Tratado das Mutações debaixo da janela, môo a pedra de pigmento e uso orvalho dos pinheiros para fazer tinta, e sublinhar passagens de sabedoria.

Ao meio dia, comentando as escrituras budistas sobre a mesa, ouço tocar os sinos de jade pelo vento, e deixo que ele leve esses sons para o bosque de bambus.

280.

Uma flor pode crescer num vaso, mas sua força natural logo se esgota;

Um pássaro pode cantar numa gaiola, mas nunca será um canto naturalmente livre;

Não são os pássaros e as flores da montanha que estão misturados na paisagem rica de cores, mas sim, é a liberdade que permite compreender a sua existência, sem grilhões, em meio à natureza.

281.

A pessoa vulgar pensa demais em si mesmo, e por isso também se preocupa demais com tudo.

Os antigos diziam: ‘se você conhece a si mesmo, como pode se preocupar tanto com as coisas?’.

Também disseram: ‘se você sabe que seu corpo não é você mesmo, porque deixa que tantas preocupações entrem em seu coração?’

Essas palavras dizem toda a verdade!

282.

Ao ver um velho triste e solitário, pense que talvez ele possa ter passado sua vida lutando por bens e fortuna;

Ao ver uma pessoa que acabou com sua fortuna, pense no fato de que toda sua riqueza se foi, sem deixar nada atrás de si.

283.

Os Caminhos humanos e das formas naturais mudam, num piscar de olhos, de dez mil maneiras diferentes, mas isso não deve ser levado ao pé da letra.

Disse Yaofu*: ‘o que nos tempos passados se chamava ‘Eu’, no presente se chama ‘Ele’; mas não sei no que se converterá, no futuro, o que hoje se chama ‘Eu’.’

Reflita com cuidado nessa afirmação, e se livrará de toda a angústia e ansiedade.

*Poeta que viveu durante a dinastia Song (960-1127)

284.

Em meio à algazarra, considere as coisas com um olhar sóbrio, eliminando da mente o que lhe incomoda.

Em meio à desolação, conserve a alegria do espírito, e encontrará as causas da felicidade verdadeira.

285.

Onde há alegria, há tristeza; onde há prazer, há desgosto;

Numa vida comum, em sua própria casa, comendo de maneira simples, se pode encontrar as coisas mais belas, tendo o conforto e a segurança de um ninho.

286.

Abra as cortinas, veja as montanhas verdes e as águas azuis envoltas em bruma, e entenderá o quão livres são o Céu e a Terra.

Veja os bambus e as árvores que acolhem os pardais, anunciando a nova estação, e esquecerá a diferença entre você e o mundo.

287.

Sabendo que existe a mutação, e que tudo um dia declina, o desejo de obter sucesso já não é tão forte;

Sabendo que existe vida, e que tudo um dia morre, não desperdice mais tanta energia querendo ser imortal.

288.

Um monge budista de grande virtude disse: ‘A sombra das folhagens do bambu varre os passos, e não larga poeira; o reflexo da lua, na lagoa, não deixa marcas na água’.

Um estudioso confucionista comentou: ‘Ainda que as águas fluam com violência, permanecem tranqüilas; ainda que caiam pétalas de rosa em ti, permaneces o mesmo’

Uma pessoa que cultivar esse tipo de atitude conseguirá obter a liberdade do corpo e da alma.

289.

Escuta o som dos pinheiros no bosque, ou o murmúrio das fontes nas rochas, e poderá admirar os sons do Céu e da Terra;

Observe a névoa por cima dos pastos, e o reflexo das nuvens na água, e poderá contemplar o belíssimo idioma da natureza.

290.

Quando a Dinastia Jin estava prestes a acabar, um par de camelos de bronze reais foi roubado, e largado no meio do mato, cumprindo uma antiga profecia sobre o fim do reino; ainda assim, eles se orgulhavam de seu garboso exército.

Mesmo que seus corpos estivessem prontos para servir de pasto para os cães e as raposas do norte, ainda assim, se preocupavam em acumular ouro.

Um provérbio diz: ‘bestas ferozes podem ser domadas, mas o coração humano é difícil de dominar; vales profundos podem ser preenchidos, mas a ganância humana é insaciável’.

Palavras verdadeiras!

291.

Se dentro de sua mente não houver nem vento nem ondas, então, em todo o lugar, você estará em meio a montanhas e águas azuis.

Se seu espírito alcançou o florescimento da consciência perfeita, então, em todo o lugar você verá peixes saltando, e pássaros cantando.

292.

Quando alguém bem vestido vê a felicidade de um pobre em suas roupas humildes, ele suspira desconcertado, e pensa em suas pesadas responsabilidades;

Quando alguém rico, em meio a um suntuoso banquete, vê a alegria do humilde em seu próprio canto, sente um tanto de inveja;

Porque as pessoas fazem bois correrem com fogo? Porque tentam cruzar touros com cavalos?

Porque as pessoas vivem de aparências, ao invés de simplesmente seguirem suas naturezas?

293.

Quando um peixe nada, não tem consciência da água em que se move;

Quando um pássaro voa, não tem consciência do ar em que se move;

Quem se der conta disso, pode superar as aparências, e adentrar os mistérios da natureza.

294.

As raposas dormem nas ruínas, e os coelhos em terraços desolados; ambos já foram, antes, salões de baile e de festa;

Os campos de lírios molhados de orvalho, e cobertos agora de erva e bruma, foram os lugares onde lutaram os heróis;

A prosperidade e a decadência são eternas; onde estão aqueles que eram fortes, e onde estão os que eram fracos?

Esse pensamento faz com o que o coração se aflija!

295.

Não importam os favores ou os insultos que você receba; em seu posto, nunca mude de conduta.

Na calmaria, observe a Corte como as flores, que se abrem e depois murcham.

Não importa que você permaneça, ou seja retirado de seu posto; que isso não seja nada para você.

Apenas observa o Céu, serenamente, e veja como as nuvens se juntam e se dispersam logo.

296.

No Céu claro iluminado pela lua não há um espaço enorme para voar? E assim mesmo, a mariposa se lança contra a luz da vela.

Entre as fontes puras e os frutos silvestres, não há o que beber e comer? No entanto, a coruja não insiste em seu vício pela carne podre dos ratos?

Ah! Quantas pessoas no mundo não são como as mariposas e as corujas?

297.

Quem tomou uma balsa para atravessar o rio, e depois se esqueceu dela, é alguém que já não está no Caminho das aparências.

Quem está montado num burro, e pensa nos burros que vai montar, não compreendeu nada, ainda, do Caminho Chan.

298.

Quem é rico e poderoso, com porte de dragão voador, herói destemido, que luta com tigres;

Para o Educado, ele é como uma formiga ao redor de carne podre, ou como uma mosca disputando uma gota de sangue.

As perguntas sobre bem e mal, que incomodam como um enxame de abelhas, e as discussões sobre perda e ganho, que espetam como um porco espinho, não devem incomodar um espírito tranqüilo; assim, elas se fundirão como ouro no forno, ou como a neve na água fervente.

299.

Quem leva a vida, acorrentado aos desejos, pensa que ela é ruim.

Quem chega à morada do conhecimento em si mesmo, pensa que a vida é boa.

Reconheça a origem da aflição, elimine-a, e seu espírito se acalmará.

Ao saber a razão das alegrias, se chega à morada dos sábios.

300.

Se no coração não houver mais desejos materiais, ele é como a neve numa estufa, ou o gelo que derrete debaixo do sol.

Se os olhos vêem um pedaço de brilho na vastidão, sabem que é a lua do Céu, refletida nas ondas do lago.

(continua)

* O Cai Gen Tan菜根譚foi escrito no século XVI pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). (…) Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas

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