Nacionalismo com características chinesas

Não se pode falar de um nacionalismo chinês, mas de vários. Estes desenvolveram-se na sequência de acontecimentos que levaram os chineses a formar determinadas ideias da sua nação. Como lemos no artigo de Jean Pierre Cabestan dedicado a este tema no dicionário Compreeender a China Contemporânea, dirigido por Thierry Sanjuan (2009). O autor distingue quatro tipos de nacionalismo, eu acrescentarei mais um.

Há, por exemplo, um primeiro tipo, quase instintivo, advindo do sentimento de insegurança, que conduz ao fechamento da China sempre que esta se sente atacada do exterior. Recordemos que o país foi várias vezes invadido, tendo mesmo recebido dinastias estrangeiras como a Jin (金, 1115 -1234), a Yuan (元, 1271-1368) e a Qing (请,1644-1911). No entanto, conseguiu resistir parcialmente ao longo das duas Guerras do Ópio (1839-1842;1856-1860), tentou fechar-se, mas foi liminarmente aberta e à força. A insegurança resultante de uma ameaça externa, conduz a um forte nacionalismo, seja ele fruto de guerras ou de epidemias e, consequentemente, a uma tendência para a recriação da grande muralha.

Há um segundo tipo de nacionalismo, que surge no discurso político chinês. Este assume a forma de patriotismo, tendo como objetivo específico fomentar a união das 56 nacionalidades chinesas, as cinquenta e cinco minorias, mais a maioria Han (汉 hàn) em torno de um mesmo amor ao país, o Aiguozhuyi (爱国主义/愛國主義 Àiguózhǔyì) , à letra, o “Amor à Pátria”, que como tive oportunidade de salientar em Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental (Alves, 2022: pp. 64-70) vem colmatar e completar a nova ideologia chinesa, que se desenvolveu num socialismo espiritual e ecológico, manifestado num grande amor à terra, após anos de exploração intensa e pouco ecológica dos recursos naturais.

Encontramos um terceiro tipo de nacionalismo, o vingativo, alimentado pelas elites chinesas, cansadas das incompreensões a que a imagem da China é sujeita nos vários países ocidentais e que alimentam no povo chinês o ódio ao exterior, porque também não recebem dos outros países um tratamento carinhoso. Os chineses recolhem nos meios de comunicação ocidentais uma série de epítetos, dos quais “estranhos” e “distantes” estão entre os mais suaves.

Ainda não há muitos anos, quando a nova vaga de emigração chinesa nos primeiros anos do século XXI chegou a Portugal para estabelecer as suas lojas comerciais, ouviu-se de tudo um pouco contra os reccém-chegados, por causa da concorrência que vinham oferecer à classe média portuguesa, com as suas horas de trabalho a perder de vista e a incapacidade de se regerem pelos padrões horários ocidentais. Foi um passo até se espalhar pela sociedade portuguesa que não havia mortos por entre os chineses, com obscuras insinuações agregadas, e que eram todos espiões das autoridades do país.

Um exemplo bem recente da imagem dos chineses divulgada pelos países europeus, são as supostas esquadras policiais que terão surgido em Portugal, França, etc., ou ainda mais próximo o episódio de um balão meteorológico, supostamente espião, que entrou no espaço americano, mantendo-se a teoria da espionagem e interrompendo-se uma viagem do secretário de estado norte-americano Antony Blinken à China, mesmo depois das autoridades chineses terem apresentado desculpas pelo erro de cálculo que levou o engenho a penetrar no espaço aéreo americano.

Já para não falar das teorias da conspiração que grassaram durante o primeiro ano de guerra declarada a que Rússia forçou a Ucrânia, tendo havido quem afirmasse que estavam os chineses por detrás dos russos a alimentar o expansionismo bélico destes, quando, de facto, os chineses têm vindo a manter, de acordo com a sua tradição pacifista, uma posição de neutralidade relativamente ao conflito em curso.

É por isso natural que encontremos entre a população chinesa, informada pelas suas elites, quem pague da mesma moeda aos ocidentais, formando a pior imagem possível das nossas gentes.

Um quarto tipo de nacionalismo surge em nome da modernização do país e à procura de um lugar de destaque no cenário internacional. Este recua aos tempos de presidência de Hu Jintao (胡锦涛 2003-2013) e à sua ideia de “emergência pacífica” (Cabestan, 2009: 229) e tem vindo a ser oportunamente desenvolvido pelas iniciativas do atual presidente chinês Xi Jinping (习近平, 2013-) , através, por exemplo, da pré-pandémica da Rota da Seda e das ideias de uma Nova Era (新时/時代Xīn shídài) assente nas Quatro Modernizações (四个现代化/四個現代化Sì gè xiàndàihuà), a saber, no campo, na indústria, na ciência e tecnologia, com vista à prosperidade da China e à sua colocação inter pares na nova ordem internacional.

Um quinto tipo de nacionalismo, na minha perspetiva, é aquele com características mais especificamente chinesas, ou seja, um nacionalismo cultural assente na plena consciência da cultura chinesa e no modo como esta é vivida e lida por autores contemporâneos, por exemplo por Lin Yutang (林语堂/林語堂, 1895-1976), que foi inventor, romancista, tradutor e filósofo. Este espírito enciclopédico, tanto se interessou por mecânica, dando ao mundo uma máquina de escrever chinesa, a Mingkwai, ou seguindo o alfabeto fonético chinês atual, a Mingkuai (明快 Míngkuài) que significa “clara e rápida”, tendo sido comercializada durante a guerra com Japão, além de ter desempenhado um papel de relevo durante a Guerra Fria. Mas Lin Yutang é também um filósofo, que andou a conhecer mundo, deixou vasta bibliografia em Inglês e Chinês. Entre a sua criação, gostaria de distinguir o best seller escrito em inglês My Country and My People (吾国与吾民) de 1935, ano em que chegaria aos Estados Unidos.

À época também ele notou que os chineses eram sistematicamente mal compreendidos pela comunidade internacional: “É o destino dos grandes ser mal compreendidos, portanto é também o destino da China. A China tem sido imensa e magnificamente mal compreendida.” (Lin, 1998: 6) E diz-nos mais, com um orgulho claramente cultural a respeito do seu país: “É a nação viva mais antiga com uma cultura contínua” (Lin, 1998: 4) . Adiante, distinguirá como característica da mente cultural especificamente chinesa estabelecer uma ligação direta entre a cabeça e o coração, dando origem à ideia que nós atualmente, na sequência dos estudos do sinólogo e filósofo Chad Hansen, apelidamos de “coração- mente (心 xīn)”, devido à deteção da bem sucedida união entre o coração e a mente, e acrescenta: “estabelecer a união entre a mente e o coração não é um estado de graça fácil, já que envolve nada menos do que resgatar uma cultura antiga” (Lin, 1998: 13).

Ora é esta capacidade de ver com o coração o que torna, segundo o filósofo, os chineses tão únicos no panorama mundial. Ao que se segue um pedido não do distanciamento entre ocidentais e chineses, mas a procura de uma comunidade de valores humanos partilhados por todas as civilizações. Antecipa o mesmo sentido a obra do pensador Gu Hongming (辜鸿铭,1857-1928), de influência claramente romântica, intitulada The Spirit of Chinese People《中国人的精神》, na qual se defende ser a civilização chinesa profunda, vasta e simples, apesar de não ser uniforme e haver diferenças regionais significativas, especialmente entre o Norte e o Sul da China, ainda assim consegue o autor descobrir um traço de união entre todos os chineses, que, tal como sucede com a defesa de Lin Yutang, lhes advém da simpatia e da ligação direta ao coração, que utilizam para comunicar e interpretar a realidade circundante.

Diz-nos o pensador (Gu, 1998: 13): “Os chineses têm o poder da simpatia, porque vivem uma vida totalmente concentrada no coração – uma vida de emoção ou de afectos humanos”, sendo por essa razão que possuem, segundo Gu Hongming, tão boas memórias, “porque se lembram das coisas com o coração e não com a cabeça.” (Gu, 1998:15) e, ainda, parafraseando o pensador, têm uma grande espontaneidade e simplicidade, que se nota por exemplo na língua, manifestação cultural muito valorizada, daí os estrangeiros serem aconselhados a aprender chinês cultivando a simplicidade infantil. (Gu, 1998: 14).

Estes autores concordam para que haja comunicação entre civilizações é necessário desfazer ideias e preconceitos, procurando, por exemplo, através da defesa expressa por Lin Yutang, encontrar valores comuns, acima de todos os nacionalismos, ou, ainda, como Li Xia (李霞) (2009) aconselha em Unravelling The Mystery Chinese Faces/《趣读中国人》, no capítulo Olhar para o Povo Chinês (看中国人去) proceder a uma reavaliação de imagens, quer por parte dos chineses quer por parte dos ocidentais, em nome de um saudável realismo. Seria bom que houvesse mais contacto e turismo cultural entre os povos (Li, 2009: 145): “Há cada vez mais ocidentais a virem para a China, apesar da ambivalência de sentimentos e impressões que têm das muitas faces do nosso povo e da nossa cultura (…) A ideia Ocidental do povo chinês está-se a aproximar muito mais da realidade. O melhor que temos a fazer é continuar a viver as nossas vidas ao máximo e manter a calma e a abertura de espírito quando lidamos com a observação e avaliação Ocidental.”

Do meu ponto de vista, entre os nacionalismos chineses, o mais constante e duradouro é o nacionalismo cultural, pelo que não será preciso muito para nós ocidentais obtermos uma imagem realista dos chineses, basta que procuremos compreender, com igual calma e abertura de espírito, os sinais emitidos pelas várias manifestações culturais chinesas, através das artes como a poesia, a caligrafia, a pintura e a música, ou até as artes marciais, onde bem transparecem o humanismo e pacifismo dos chineses, bem como a vontade deste povo em ser aceite sem preconceitos pela comunidade internacional.

 

Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coordenação de Carmen Amado Mendes. Coimbra: Almedina e Centro Científico e Cultural de Macau.
Cabestan, Jean-Pierre. 2009. “Nacionalismo”. Compreender a China contemporânea. Um Dicionário. Direção de Thierry Sanjuan. Lisboa: Edições 70.
Gu Hongming (辜鸿铭) 1998. Spirit of Chinese People《中国人的精神》Beijing: Foreign Language Teaching and Research Press.
Li Xia (李霞) .2009. Unravelling The Mystery Chinese Faces/《趣读中国人》.Beijing: Foreign Languages Press.
Lin Yutang (林語堂). 1998. My Country and My People. Beijing: Foreign Language Teaching and Research Press.

“Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores.
https://www.cccm.gov.pt/”

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