Um sábio não sabe de si

Diz-se que Bodhidharma (達摩), primeiro patriarca do budismo Chán (禪) na China, certa vez se apresentou ao imperador Wu da dinastia Liang (梁朝, 502-557). O diálogo entre os dois, ambos budistas, faz parte da literatura de distintas escolas do budismo sino-coreano-japonês, que compreendem Bodhidharma como o introdutor de suas práticas no Leste Asiático, sendo ele um monge de origem talvez persa vindo das terras a oeste.

Assim se relata: estando frente a frente, o imperador inquiriu Bodhidharma a respeito de seus feitos beneméritos como governante daquelas terras. Que méritos teria ele, imperador, adquirido graças aos esforços que despendera para construir monastérios, ordenar monges budistas, reproduzir cópias e cópias de sutras e entalhar imagens de budas?
“Mérito algum,” teria dito Bodhidharma. “Boas ações mundanas podem originar bons frutos, nesta e em próximas vidas, mas mérito algum advém delas.”
“Então,” continuou o imperador, “qual o sentido de tudo isso?”, teria dito. Ao que Bodhidharma respondeu: “o único sentido verdadeiro é a vacuidade; ela é tudo que existe.” Ou, se pensarmos bem, o que não existe, posto ser vacuidade. Mas a tradição informa que o patriarca teria dito algo assim: “existe apenas vacuidade.”
E por vacuidade, pelo vazio essencial que não é apenas ausência de algo, mas natureza inessencial de todos os fenômenos, Bodhidharma se referia a uma das verdades profundas do budismo, das verdades centrais que, com ele na China, passou a compor parte significativa do entendimento budista do mundo. Desde o Chán, passando pela tradição Seon da Coreia até o mais popular Zen japonês.
Mas aqui, a vacuidade que o monge enfatiza ganha maior materialidade. Porque em sua verdade se desfaz não apenas a ideia essencial de todos os fenômenos — afinal, tudo que existe é vacuidade —, mas a ideia de que o sujeito mesmo que enuncia tal ideia, o enunciador de qualquer enunciado, ele próprio não pode existir. Ou, melhor dizendo, ele próprio é vacuidade. Falta-lhe um cerne essencial que o mantenha imutável ao longo do tempo, das experiências, dos fenômenos todos de uma existência. Com a vacuidade, vem também a verdade budista da impermanência. Nada se mantém eternamente.
Frente a isso, a última pergunta do imperador a Bodhidharma foi a seguinte: “Se tudo é vacuidade, quem é você, agora, defronte a mim?”
E o monge lhe deu a única resposta possível: “Eu não sei, Vossa Majestade.”
Neste pequeno diálogo, anedótico ou não, se registra o coração de uma sabedoria passada de geração em geração, de espírito a espírito, desde o tempo primeiro do budismo Chán. O não se saber, o reconhecimento de que se desconhece qualquer essencialidade última, de que tudo é vacuidade e impermanência, alimenta toda a prática budista dessa escola e das que se desenvolvem a partir dela, na China ou alhures.
E ainda que elementos de tal verdade estejam presentes nos discursos do próprio Buda histórico, nas tradições que já vinham se desenvolvendo em terras indianas, a chegada de Bodhidharma à China é fundamental pelo encontro que promove entre tais perspectivas e certas tradições originárias da China mesma. Pelo encontro da verdade budista com certo espírito existencial que o sinólogo francês François Jullien bem resume ao dizer, como o faz em um título de sua obra, que “o sábio não tem ideia”. O sábio — e não o filósofo, não o teorizador — não tem ideia porque não toma, de partida, nenhum pressuposto. Na experiência da sabedoria, segundo o sinólogo e as tradições às quais se refere, e mesmo ao budismo que aqui citamos, não se tem ideia porque ideias pressupostas são apriorismos essencializantes, ou cristalizações de expectativas, de pontos de vista que são pontos de partida (parti pris, diz Jullien). Ao contrário, não ter ideia é não saber, por exemplo, quem se encontra defronte ao imperador.
Mesmo que quem ali esteja seja o próprio interlocutor do soberano, o próprio monge budista, patriarca que, ao dizer não saber quem é, diz muito mais do que apenas isso: diz-nos que reconhecer seu desconhecimento lhe permite estar ali, defronte ao imperador, sem projetar ilusões em nenhuma relação sua com o mundo. Apenas estando ali, aberto ao que o fluxo dos fenômenos venha a apresentar.

Bibliografia
Broughton, Jeffrey L. (1999), The Bodhidharma Anthology: The Earliest Records of Zen, Berkeley: University of California Press.
Jullien, François. (2000). Um sábio não tem idéia. São Paulo: Martins Fontes.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa. https://www.cccm.gov.pt/

17 Out 2022

O Yingshao

Os atrevidos mortais, que tudo parecem querer classificar e arrumar nas suas frágeis gavetas mentais, amiúde sofrem por não conseguirem sequer rotular certos seres, por estes escaparem às categorias preconcebidas. É o caso do yingshao. Com um forte corpo de cavalo, a pele tigrada como os temíveis felinos, face humana e duas asas implantadas no dorso, ao darem por este estranho ente os sábios hesitam se o hão-de considerar um animal ou um ser divino.
Humano, com certeza, não será; ¿deveremos então considerá-lo pertencente ao reino da natureza ou ao reino do sagrado? Ou, tomando uma outra perspectiva, considerar que a sua existência esbate por completo as fronteiras entre os dois reinos e que essa separação não passa de mais um erro derivado da nossa leitura incapaz do mundo e das dez mil coisas que o compõem.
Segundos os antigos textos, o yingshao terá nascido numa extraordinária montanha chamada Huaijiang, onde o lápis-lazuli, um raro pigmento encarnado, jade branco, ouro e prata abundantemente existem. De tal modo esta montanha esplandece e espanta os homens que muitos acreditam ser a morada terrestre do Imperador do Céu e dão-lhe o nome de Jardim da Paz.
Contudo, a beleza da sua terra originária não foi suficiente para ali prender o yingshao. Aliás, nenhum lugar particular parece ter o condão de o fixar, pois esta criatura, tão magnífica quanto bizarra, é conhecida por continuamente se deslocar, quer por toda a terra, quer através dos Quatro Mares ou traçando temerários riscos ao longo da abóbada celeste.
Relatos arcaicos confirmam a presença do yingshao nos mais díspares e inopinados espaços, sendo desconhecido o que o faz mover-se sem hesitações ou descanso. Num dia poderá ser avistado no sopé de um monte verdejante, no outro descortinado no mais abrasante deserto ou sobrevoando as ilhas ignotas que salpicam os mares.
O yingshao é, sobretudo, apreciado pelos letrados, porque os sons que emite fazem lembrar os que ressoam no ar quando um ser humano lê um livro em voz alta. Quem o escuta, facilmente fantasia estar na presença de um incontido poeta ou de um inesgotável contador de histórias, embora até ao presente ninguém tenha sido capaz de encontrar sentido algum na cascata de sons que a sua boca incessantemente produz.
Alguns comentadores sugerem que o yingshao se exprime numa língua perdida, falada entre os antigos deuses. Estes são os que o consideram como pertencente ao reino dos seres divinos. Já outros apenas consideram esses sons como os grunhidos de uma besta incontinente que, continuamente, se vê impelida a proferi-los, sendo que a semelhança ao homem-leitor não passará de uma coincidência e, definitivamente, o catalogam como pertencente ao reino dos animais.
O que seguramente sabemos é que o homem, nem animal nem divino ou uma mescla infeliz dos dois reinos, é a bamboleante corda sobre o abismo que separa as bestas dos deuses (ou de uma realização humana ulterior, como descreve um bigodudo pensador alemão), ser infeliz de não dar por si como uma totalidade plena de sentido.
Já o yingshao, aproveitando as suas poderosas asas, sobrevoa esse mesmo abismo mas, para espanto de muitos, não se fixa nem de um lado nem do outro, preferindo uma vida nómada e, aparentemente, sem outro sentido que não seja usufruir do movimento a que parece para sempre condenado.

Este texto é uma ficção inspirada no clássico “Livro das Montanhas e dos Mares” (Shanhai Jing).

14 Out 2022

Estudos de Macau – Fábricas de vinho liu-pun

Com licença especial emitida pela repartição da Fazenda Pública, a 15 de Julho de 1892, recomeçou a venda, fabrico e importação de vinho liu-pun em Macau, na Taipa e em Coloane, mas apenas para quem obtivera licença para esse fim.
Antes de 1892, na colónia de Macau existiam mais de dez fábricas de produção de vinho, mas com o novo exclusivo de liu-pun, celebrado em Abril desse ano, estas contam-se pelo número de licenças passadas. Assim, para o período de três meses, entre 31 de Julho e 15 de Outubro de 1892, fica-se a saber existirem catorze licenças para o fabrico de liu-pun em Macau, quatro na Taipa e sete em Coloane. No semestre seguinte, até 14 de Abril de 1893, era menos uma licença para o fabrico de vinho em Macau e nas ilhas mantinham-se as existentes.
No ano de 1896, havia em Macau apenas duas fábricas de liu-pun com sete trabalhadores. O tema do vinho liu-pun desapareceu dos jornais e do Boletin Oficial, onde os assuntos focavam outros e novos monopólios de géneros comerciais, assinalando O Echo Macaense os impostos que as mercadorias pagavam em Macau.
Assim, este jornal a 18 de Julho de 1894 referia: “Quando a peste negra recrudesceu em Hongkong, e se acentuou o êxodo dos chineses, espalhou-se o boato de que algumas firmas chinesas, conhecidas como casas de consignação, tencionavam mudar-se para Macau, e seria uma fortuna se assim acontecesse. Infelizmente, além das desvantagens do porto, antolhou-se logo outro estorvo grande, que há muito tempo tem sido apontado como um sério obstáculo ao desenvolvimento do comércio e da navegação do porto de Macau, a saber, o imposto de tonelagem. Já em relatórios oficiais se tem chamado a atenção do governo da metrópole sobre a inconveniência de manter esse imposto em 50 réis por tonelada, que pelo câmbio actual equivale a 7 avos e 8 milésimos de pataca, enquanto em Hongkong esse mesmo imposto não passa de um avo e em Singapura de dois avos. Não mereceu o assunto consideração alguma da parte do governo da metrópole, e os vapores de Hainan e da costa d’ Oeste que traziam a Macau vários produtos para daqui serem distribuídos para os portos do interior, continuam a fugir do nosso porto, preferindo fazer as descargas em Hongkong, donde vem depois no vapor de carreira esses géneros, que constituem a exportação de Macau para os portos chineses. Por este sistema, o governo não lucra nada com esse imposto, ao mesmo tempo que Macau se vê na necessidade de tornar-se cada vez mais dependente de Hongkong, do qual é hoje apenas um porto sucursal, porque daí procedem todos os géneros comerciais, que não podem vir directamente a Macau, tanto pelo mau estado do porto, como pela taxa proibitiva do imposto de tonelagem.”
Mas não era apenas esse imposto! Num texto do mesmo jornal de 1 de Agosto de 1894 assinala-se: “Estipulado no artigo 4.º da convenção de Beijing, os produtos chineses que tiverem já pago os direito aduaneiros e a taxa likin antes de entrar em Macau ficariam isentos de pagar novamente aqueles impostos quando reexportados para os portos chineses, ficando somente sujeitos ao pagamento da taxa denominada Siao-hao. No entanto, em Macau são de novo onerados com a taxa likin ao serem reexportados para os portos chineses.”
Daí o grande decréscimo da actividade industrial e comercial em Macau, onde em 1910 continuavam a existir apenas duas fábricas de produção de vinho, tendo aumentado o número de trabalhadores para 27.

AUMENTO DE PRODUÇÃO

Em 1922, existiam 43 fábricas de vinho liu-pun, três firmas a vendê-lo por grosso, 59 de importação e exportação e 98 de venda a retalho. Havia ainda oito firmas de vinho europeu. Registado pela metrópole em 1926, existiam em Macau 17 destilatórios com produção anual de 600 mil patacas.
Beatriz Basto da Silva, citando Jaime do Inso, refere no ano de 1929 Macau ter 54 fábricas de vinho chinês (destilação de arroz a que se juntam infusões conforme o paladar ou o efeito, até medicinal, pretendido).
As autoridades, no início de Fevereiro de 1929, souberam que, sob falsas declarações prestadas por alguns exportadores de vinho chinês liu-pun, a maior parte do álcool importado para fabrico do mesmo vinho era reexportado sem sofrer alterações; o Governo da Colónia necessitando de pôr cobro a semelhante abuso a fim de evitar os inconvenientes que resultam, quer para a fiscalização quer para os serviços estatísticos, só pode obviar aos inconvenientes apontados, sujeitando as exportações do vinho chinês liu-pun e do álcool à fiscalização do Estado, tendo em consideração o que foi exposto pelo Inspector dos Impostos de Consumo.
O Conselho do Governo aprovou e o Governador interino da Colónia de Macau, usando da competência que lhe confere o n.º 7.º do artigo 70.º da Carta Orgânica, determinava: “Artigo 1.º Os exportadores do vinho chinês liu-pun e do álcool ficam obrigados a declarar na Inspecção dos Impostos de Consumo, antes de efectuarem qualquer exportação dos artigos indicados a data em que se realizará a exportação, a espécie do artigo a exportar, o seu meio de transporte, o seu peso bruto e o seu valor em moeda local. Artigo 2.º A Inspecção dos Impostos de Consumo passará a competente licença de exportação para cada espécie de artigo a exportar se entender que essa licença pode ser imediatamente concedida, tendo a bona fide do exportador. Artigo 3.º Sempre que a Inspecção dos Impostos de Consumo tenha dúvidas sobre a legitimidade da declaração prestada pelo exportador poderá suspender a concessão da competente licença para proceder às necessárias averiguações. Artigo 4.º Qualquer exportador que transgrida as disposições deste diploma será punido com a multa de $10 a $50. § único: Em caso de reincidência será punido com a multa correspondente ao décuplo da importância paga pela transgressão anterior. Macau, 6 de Abril de 1929, o Governador interino João Pereira Magalhães.” Diploma novamente publicado para corrigir o que saíra incorrecto a 2 de Fevereiro e assinado por o Governador Artur Tamagnini de Sousa Barbosa.
Em 1932, a indústria de vinho chinês liu-pun classificava-se em décimo lugar na escala da produção ($250.000,00), sendo exercida por mais de cinquenta fábricas das quais cinco estabelecidas na Taipa e outras cinco em Coloane. Quanto aos importadores e exportadores de vinho chinês eram dezanove, encontrando-se doze na Rua Almirante Sérgio. A exportação fazia-se por intermédio de Hong Kong para Singapura, Penang, Califórnia e ainda para os territórios limítrofes. No entanto, esta indústria ia decrescendo de importância pois os chineses começaram a adoptar o uso de bebidas espirituosas estrangeiras, sobretudo whisky e brandy, que os comerciantes ingleses tinham conseguido introduzir no grande mercado da China.
Apesar de todas as contingências, em 1932, os industriais de Macau mantinham a sua produção, embora um tanto reduzida pela enorme concorrência de fabricantes, alguns dos quais iam empregando álcool de açúcar no seu fabrico, o que, no dizer dos entendidos, lhe tirava a genuinidade.

12 Out 2022

O início dos contactos oficiais entre a China e Ryukyu em 1372

Os historiadores procuram frequentemente datas “redondas” para comemorar eventos importantes. Em 1622, há 400 anos atrás, Macau livrou-se de um grande ataque holandês. Os leitores estão familiarizados com o evento, que foi de grande importância para o Estado da Índia e para a história das relações sino-europeias. No mesmo ano, 1622, novamente há 400 anos, os holandeses ocuparam as Pescadores 澎湖群島. Este foi o prelúdio para a presença holandesa em Taiwan. Ainda antes, há 450 anos, em 1572, Zhu Yijun 朱翊鈞 tornou-se imperador da China. O seu reinado, chamado Wanli 萬曆, foi uma era conhecida pelas suas conquistas culturais, mas também por desastres políticos. 1522 marcou o início da era Jiajing 嘉靖. Este foi o período em que aconteceu a fundação de Macau. Há 550 anos, em 1472, nasceu Wang Yangming 王陽明 (Wang Shouren 王守仁), um dos filósofos mais importantes da China. E em 1372, há 650 anos, no início da dinastia Ming, assistimos à abertura formal das relações entre a China e as ilhas Ryukyu, chamadas Liuqiu qundao 琉球群島 em chinês.
Este evento não foi registado em fontes europeias, mas quando Tomé Pires escreveu a sua famosa Suma Oriental, incluiu no seu livro um breve capítulo sobre as Léquias. Este nome, que ocorre em diferentes formas ortográficas, tornou-se a denominação comum utilizada pelos primeiros viajantes ibéricos para estas ilhas. Muito importante também, no século XVI, estas ilhas são geralmente vistas como uma região independente, intimamente ligada à China. Esta imagem estava correcta, espelhava a verdadeira situação política.
A ilha principal do arquipélago de Ryukyu, com uma cultura e história própria, mas agora pertencente ao Japão, é obviamente Okinawa 沖縄. No século XIV, era governada por três pequenos reinos: Hokuzan 北山, Zhusan 中山 e Nanzan 南山. Estes são os seus nomes japoneses, e o período durante o qual co-existiram, é normalmente chamado Sanzan-jida 三山時代, literalmente “Três Montanhas”, em japonês. O período Sanzan durou de 1322 a 1429. Não sabemos muito sobre a estrutura interna das três entidades políticas, mas fontes revelam que elas estavam envolvidas no comércio marítimo através dos mares do Leste e do Sul da China.
Porque é que é de interesse recordar tudo isso? Há uma razão complexa, que requer uma leitura paciente. Quando o imperador Ming enviou um enviado oficial a Okinawa em 1372, para inaugurar relações formais, os chineses usaram o nome Liuqiu para aquela ilha. Em suma, o enviado, Yang Zai 楊載, foi enviado para Liuqiu; pelo menos, é isto que nos dizem as fontes. Não houve qualquer especificação em relação às três entidades políticas de Okinawa. Mais importante ainda, em tempos anteriores, o nome Liuqiu denominava Taiwan – e não necessariamente as ilhas Ryukyu. Além disso, sabemos que, anteriormente, Yang Zai tinha servido os inimigos dos Ming, ou seja, tinha trabalhado para a corte mongol. Os mongóis, também sabemos, tinham tentado ocupar Taiwan (Liuqiu) no final do século XIII, mas não o haviam conseguido. Esta combinação de acontecimentos e factos levou a uma suposição notável: Provavelmente, devido à sua carreira anterior, Yang Zai tinha uma má reputação aos olhos de alguns oficiais Ming. Por conseguinte, foi enviado numa missão difícil – para Taiwan e não para as Ryukyu. Difícil, porque não existia nenhum estado ou entidade política na ilha de Taiwan com o qual ele pudesse ter estabelecido relações bilaterais. Assim, ele simplesmente navegou para Okinawa e, quando voltou, afirmou ter estabelecido com sucesso contactos oficiais com “Liuqiu”, deixando em aberto para onde tinha ido.
Se esta teoria estiver correcta, então podemos acrescentar outro ponto curioso: Desde o início do período Ming, encontramos três nomes em textos escritos chineses: Liuqiu 琉球, Da Liuqiu 大琉球, e Xiao Liuqiu 小琉球. Os seus últimos equivalentes portugueses foram Léquias, Léquia Grande e Léquia Pequena. Paradoxalmente, os primeiros textos Ming utilizam a versão Da Liuqiu para Okinawa e as ilhas Ryukyu na sua totalidade, enquanto Xiao Liuqiu significava Taiwan. Paradoxalmente – porque Taiwan é muito maior do que as ilhas Ryukyu. Pode-se acrescentar, Liuqiu continua a não ser específico. Pode significar ambos ou referir-se a apenas a um local.
Como ligar tudo isso a Yang Zai? Provavelmente, após a abertura de relações formais com uma – ou várias – das três entidades políticas de Okinawa, o próprio Yang, ou os seus apoiantes na corte, fez circular o nome Da Liuqiu / Grande Liuqiu para sublinhar o peso das suas realizações diplomáticas, e para polir a sua reputação. Se essa suposição for verdadeira, então podemos dizer que a abertura de relações diplomáticas entre as Ryukyu e a China dos Ming assentou numa constelação política complicada, alguns erros, possíveis intrigas dentro da corte chinesa e ambições pessoais. Claro que a corte Ming deve ter percebido o problema geográfico e do nome muito rapidamente, mas como as três entidades políticas de Ryukyu provaram ser vassalos muito leais nos anos vindouros, o nome não importava muito.
Nos anos 1420, Okinawa tornou-se uma entidade política unida com apenas um rei. As relações oficiais com a China continuaram da mesma forma cordial que antes. Ryukyu enviou regularmente embaixadores à corte Ming e os navios tributários de Ryukyu trouxeram enxofre, especiarias do sudeste asiático, e cavalos – tudo muito necessário na China. Fontes também nos dizem que as Ryukyu mantinham então boas relações com o Japão e a Coreia. Além disso, a China apoiou grandemente o pequeno reino de muitas maneiras. O apoio foi principalmente organizado pelos habitantes de Fujian. Curiosamente, também não houve qualquer disputa territorial. As Ilhas Diaoyu 釣魚 encontravam-se fora do domínio de Liuqiu. Estudiosos chineses têm produzido muitas provas disso.
Muito mais tarde, o Japão invadiu as ilhas Liuqiu e as coisas começaram a mudar. Tendo em conta a disputa em curso sobre as Ilhas Diaoyu, a importância militar de Okinawa nos nossos dias, e a situação actual dos habitantes das Ryukyu, pode ser aconselhável e bastante útil, de facto, pensar melhor nos tempos de paz, de que esta parte do mundo desfrutou durante grande parte do período Ming, a partir de 1372. Assim, 1372 é um ano para recordar.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores.

12 Out 2022

Mestre de dez mil gerações

Confúcio hoje? Mas que estratagemas singulares terá desencantado Mestre Kong para renascer, fénix uma e outra vez teimosa, das cinzas vermelhas da Revolução Cultural, como renascera dos escombros cinzelados da dinastia Qin? Onde encontra este pensamento, idoso de 2500 anos, a sua provada resiliência e como consegue ser suficientemente jovem e flexível para se reafirmar hoje no seio da cultura que rectificou e, ao mesmo tempo, estender a sua influência mais além?

Confúcio nasceu em Qufu, na província de Shandong, então reino de Lu, no dia 28 de Setembro de 551 a.E.C., nessa China imperial de antanho, ao que dizem produto de uma tempestade e de uma promessa.

No princípio era o mito

Seria um das primeiras tardes do ano de 551 a.E.C., quando o céu sobre cidade de Qufu, no reino de Lu, subitamente se cobriu de nuvens negras. Em breve ribombavam trovões e raios fendiam o céu enfurecido. Uma chuva grossa, açoitada pelo vento, tudo atingia e ensopava. Em suma, em meros minutos, montara-se uma tempestade pouco menos que perfeita.

Zhengzai, menina caçula da família Yan, regressava a casa, após tarde de passeio pelas colinas, onde solitária colhera ervas e plantas medicinais. Surpreendida pela inesperada tormenta, não encontrou outro refúgio senão uma simplória cabana de trabalhadores, edificada não longe da estrada. Ainda Zhengzai procurava meio de ali passar confortavelmente algum tempo, quando um homem desconhecido assomou à porta do tugúrio, também carente de abrigo daquela e de outras tempestades.

E foi ali, naquela choça indigna de nota, sob o signo de uma terrível procela, que Zhengzai terá concebido o filho de Kong He, a quem foi dado o nome de clã Kong Qiu, o epíteto de cortesia Zhongni e que viria a ser conhecido como Mestre Kong (Kong Fuzi), latinizado Confucius pelos padres jesuítas, um dos mais influentes pensadores que calcorreou o planeta Terra.

Kong He era um magistrado de 65 anos e fraca descendência masculina (tinha gerado nove filhas com a sua esposa principal e um filho deformado com uma esposa secundária). Face às esperanças de Zhengzai, tudo prometeu lhe proporcionar – riquezas e requintados confortos – caso nascesse um rapaz saudável, o que veio a suceder. Contudo, reza a lenda, logo se percebeu que não nasceria uma pessoa qualquer. Durante a gravidez, acontecimentos miraculosos eram sintomas, índices, augúrios, que de Zhengzai emergiria um grande homem, um excelso sábio, que todos encimaria e cujo destino se entrecruzaria com o da própria civilização chinesa.

Entre eles, destaca-se a aparição de um animal fantástico da mitologia chinesa, que reúne no seu nome qualidades de macho e de fémea: o qilin (unicórnio chinês).

Ora estava a mãe do futuro sábio entretida nos seus habituais afazeres, junto a casa, quando surgiu um qilin, que até seus pés caracoleou e aí depositou uma tablete de jade, onde era profetizada a grandeza futura do seu filho.

No dia 28 de Setembro, nascia Confúcio.

O qilin, entretanto desaparecido, voltaria a surgir na história quando, pouco antes da morte de Mestre Kong, se espalhou um relato segundo o qual uma destas quimeras fôra atropelada por um carroceiro destravado e se encontrava ferida, algures a recuperar.

Independentemente da veracidade desta narrativa inicial e iniciática, eivada de elementos míticos e esotéricos, alguns de inspiração budista, a vida de Confúcio revelar-se-ia uma odisseia atribulada. Pouco depois do seu nascimento (há quem diga no dia seguinte e há quem afirme três anos depois), o seu pai, talvez exultante de alegria, sucumbiu a um achaque e viu-se assim incapaz de cumprir a prometida subsistência de Zhengzai. Esta, entretanto, perdera o seu próprio pai e viu-se então reduzida a uma situação de extrema pobreza. Contudo, arranjou forças para sustentar e educar esmeradamente o seu filho. A tempestade passara e a promessa ficara por cumprir.

Depois veio o sábio. Mais tarde, já homem de seis pés de altura, um tamanho que causava profunda impressão, e sábio reconhecido, especialista nos ritos, Confúcio tentou colocar os seus préstimos ao serviço dos governantes, mas encontrou sempre grandes resistências, sobretudo por parte de ministros que entendiam desfavoravelmente o rigor das suas doutrinas e as consequências dos seus procedimentos. Conseguia ainda assim vaguear de reino em reino, como professor, conselheiro, mestre ou ministro, atraindo cada vez mais discípulos. No entanto, nunca manteve os seus cargos políticos durante um período suficientemente longo para permitir uma extensa avaliação do seus métodos. Foi sempre, em geral, coarctado pela inveja e pelas intrigas de quem rodeava os detentores do poder ou pelas manobras de outros reinos que temiam que o seu bom governo fizesse prosperar demasiado os seus rivais (Sima Qian, 1985, 47).

Tal como Sócrates e Jesus, Confúcio não deixou obra escrita e os seus ensinamentos chegam-nos através dos seus discípulos e comentadores. O Grande Mestre considerava-se, sobretudo, um editor e um transmissor de uma sabedoria esquecida. Face à decadência da dinastia Zhou e à ambição de cada um dos reinos que então constituíam o império, Confúcio propunha um regresso aos modos iniciais da dinastia e, sobretudo, ao exemplo dos grandes homens de Estado como os reis Yao e Shun, o rei Wen e o duque de Zhou. Com o objectivo de transmitir esse saber do passado, reorganizou Os Cinco Livros (Wujīng), que viriam a constituir o nódulo essencial da cultura chinesa clássica: Livro das Mutações (Yijing ), Livro das Odes (Shijing), Livro dos Documentos (Shujing), Livro dos Ritos (Lijing ) e Anais da Primavera e do Outono (Chūnqiū).

Os Cinco Livros, também crismados pelo Ocidente de Pentateuco da cultura chinesa, tornaram-se desde então na referência essencial da aprendizagem e da educação na China, servindo de biblioteca abarrotada de exemplos de uma sabedoria imbuída no comportamento e procedimentos de pessoas exemplares, versando da política à família, da explanação ritual à história, da adivinhação às práticas agrícolas, e até como manual de etiqueta e civilidade.

Mais tarde, já em plena dinastia Han do Oeste, os exames imperiais foram fundamentalmente baseados no conhecimento e capacidade de interpretação destes textos, seleccionados e editados por Confúcio.

O eclodir da obra

Depois da morte de Mestre Kong, num primeiro período, os discípulos e descendentes divulgaram com relativa facilidade as suas ideias, que rapidamente encontraram eco na comunidade pensante da China.

Nos três séculos seguintes floresceriam várias escolas de inspiração confuciana e importantes pensadores basearam-se nas suas ideias, como Mêncio ou Xunzi, cujas obras permanecem referências incontornáveis e inesgotáveis, ao longo dos tempos sujeitas a novas interpretações.

As divergências entre eles, na interpretação do pensamento do Mestre, surgem como um reflexo da complexidade de um saber, de uma via profícua, que conheceria numerosos desenvolvimentos ao longo da história do pensamento chinês.

Mas se, durante este período, os ru1 eram bem recebidos nas casas reais, com o advento da dinastia Qin (221-206 a.E.C.) ganharam extraordinária força as ideias ditas “legistas”, uma outra corrente filosófica chinesa, ferozmente oposta aos conceitos eleitos por Confúcio. Pela primeira vez, o confucionismo foi considerado como “inimigo do Estado”, os livros queimados e os seus seguidores ferozmente perseguidos.

É preciso compreender que Confúcio vivera durante o regime imperial extremamente débil da dinastia Zhou, em que os senhores locais, numa espécie de feudalismo, se encontravam dotados de grande autonomia. De algum modo, as ideias confucianas destinavam-se à interpretação e prática deste tipo de organização política e social, e não às necessidades de um Estado ferozmente centralizado, como preconizava e implementou a dinastia Qin, que pela primeira vez unificou a China.

Além disso e fulcral, temos a questão da cabra.

Vejamos:
O duque Ye disse a Confúcio: “No meu país um homem recto cujo pai roubou uma cabra denunciou o progenitor às autoridades.” Ao que o Mestre respondeu: “Os homens rectos no meu país são diferentes: o pai protege o filho e o filho protege o pai, isto é rectidão.” (Analectos, 13:8)

Como se pode deduzir deste aparentemente inocente episódio da cabra roubada, contudo de trágicas consequências, Confúcio revela dar mais importância à família do que ao Estado e colocar em primeiro lugar as relações familiares e clânicas face ao dever de servir o reino. O Mestre vai ainda mais longe: para proteger a família, poder-se-á mesmo ignorar a lei e ir contra a vontade do soberano. Ora tais propósitos não podiam cair bem junto de quem pretendia fazer da lei e da centralização do poder o sustentáculo máximo da governação, o que era o caso de Qin Huangdi, primeiro imperador da dinastia Qin.

A sabedoria confuciana seria, no entanto, salva da fogueira legista. Reza a lenda que alguém conseguiu esconder os principais escritos (incluindo Os Cinco Livros, as obras de Mêncio e de Xunzi) no interior de um muro, a famosa parede de Lu, que terá pertencido à casa original de Confúcio, hoje parte do Templo do Mestre em Qufu, donde foram recuperados após o advento da dinastia Han (205 a.E.C-224), durante a qual os ensinamentos dos ru foram de novo apreciados, estudados, complexificados e difundidos. Com os Han, o ruismo ganhava contornos de ortodoxia, pois encontrava-se agora ao serviço do Estado.

Contudo, nas dinastias seguintes, especialmente durante a dinastia Tang, a chamada intromissão de crenças estrangeiras, nomeadamente budistas, e a influência do daoísmo mágico, foram relegando o confucionismo para uma posição secundária. Nas cortes, os ru voltavam a perder posição e influência. Esta situação viria a causar uma forte reacção, com o advento da dinastia Song, originando o que se convencionou chamar de “neo-confucionismo”, ou seja, uma rejeição quase liminar do budismo e do taoísmo, acompanhada de um expressivo renascimento da ideias confucianas, agora reordenadas, reeditadas e reinterpretadas segundo os sábios desta dinastia, nomeadamente pelos dois Cheng, os irmãos Cheng Yi e Cheng Hao. Entre os seus seguidores, destacou-se Zhu Xi (1130-1200), que repensou e reorganizou o cânone confuciano, nomeadamente através da edição d’ Os Quatro Livros (Estudo Maior, Prática do Meio, Analectos e Mêncio), que viriam a ser a base incontornável do pensamento chinês tal qual o Ocidente o encontrou no século XVI, sob a lupa dos padres jesuítas, os seus primeiros tradutores para línguas europeias.

Assim, operara-se uma mudança fundamental: enquanto que, até à dinastia Song, os estudos e os exames se baseavam fundamentalmente n’ Os Cinco Livros, algum tempo depois de reconhecido e apreciado o trabalho de Zhu Xi, a cultura chinesa conheceria uma reorganização dos seus textos de referência. Nela assumia agora lugar preponderante a formação ética da pessoa por oposição ao sublinhar da importância dos ritos.

Os Quatro Livros passaram a ser a base dos exames imperiais e regularam o ethos chinês desde então até ao século XX. E, mesmo rejeitados e de novo queimados, pelas correntes modernas novecentistas ou pelo radicalismo dos Guardas Vermelhos, estes volumes continuam a encerrar os valores e ditames que ainda hoje regulam o comportamento e formam a culpabilidade de muitos milhões de pessoas.

Daí que tenhamos entendido como fundamental para o leitor contemporâneo empreender a publicação dos referidos volumes em língua portuguesa, pois neles se revelam as doutrinas que constituem a mais importante raiz não apenas do actual pensamento chinês como da modulação de comportamentos e práticas existentes na China e noutros países influenciados por esta corrente do pensamento.

O confucionismo é hoje uma das doutrinas mais presentes e realmente praticadas em todo o planeta. A sua influência não somente enforma a sociedade chinesa, com os seus 1,4 mil milhões de pessoas, como se espalhou a outras civilizações asiáticas onde desempenha um papel central (como a Coreia, Japão, Vietname e Singapura) ou constitui uma importante influência (como a Tailândia, Indonésia, Laos, Camboja e Malásia). Fazendo as contas, o confucionismo constitui a base moral de mais de um terço da humanidade e, com o crescimento da importância da China no palco mundial, a sua expansão não deverá ficar por aqui. Aliás, os indicadores do século XXI revelam que alguns aspectos da “moral oriental” tendem a emigrar para Ocidente e a “contaminar” as sociedades ocidentais, de matriz greco-romana, com os seus valores, tal como estas desde o século XVI têm “contaminado” o Oriente. Eis mais uma razão para do confucionismo fazer um estudo de eleição, no sentido de compreender, ao extremo, estas “viagens de ideias” e antecipar as suas consequências, para um lado e para o outro.

É a moral, pois claro!

Em palavras contemporâneas, diríamos que, para Confúcio, o homem é, antes de mais e de tudo, um produtor de moral. Sabe distinguir o bem do mal e encontra-se dotado de livre arbítrio. Estas qualidades distinguem-no dos animais e de todos os outros seres. Portanto, daqui advém também a sua responsabilidade, o dever de incorrer em acção correcta, de modo a criar um mundo em que prevaleça a harmonia.

Assim, o modo como se apresenta, como se veste, como anda e como fala; o que diz, o que lê, o que desenvolve como actividade, o que produz e como se dirige aos outros; enfim, toda e qualquer acção humana (e mesmo a ausência dela) é imediatamente produtora de valores morais (e, num plano superior, estéticos), quer como exemplo para os outros, quer a partir dos resultados das práticas concretas.

De sublinhar que, ao contrário de Sartre (para quem “o inferno são os outros”), Confúcio só entende o homem em relação com outros homens, como animal gregário, social e cultural. Para ele, a vida são os outros e este é um facto incontornável. Dos desígnios do Céu, do mundo, da vida depois da morte, dos espíritos, pouco ou nada sabemos e de nada podemos ter a certeza. Por isso, antes de mais, devemos regular o que podemos controlar: as nossas relações humanas e sociais.

O confucionismo é um pensamento moral e ético, que visa uma prática, destinado a contribuir para uma excelsa regulação das relações entre os homens e destes com o mundo. Pensamento político, com certeza e, em grande parte, destinado aos que exercem o poder, no sentido de os convencer da necessidade imperiosa de autovigilância, virtude e benevolência nas suas acções, o confucionismo cedo ignora a metafísica e se centra na regulação dos assuntos humanos.

O objectivo do confucionista é tornar-se uma pessoa exemplar (junzi), ou seja alguém cujo comportamento é de tal modo virtuoso e benevolente que os outros naturalmente o seguirão. Mas como atingir este estado de exemplaridade? Para os ru, o homem nasce dotado de uma “luminosa virtude”, que lhe é conferida, homologamente, pelo Céu. Mas, ao longo da sua vida, ao roçagar pelos constrangimentos sociais e com a emergência dos desejos egoístas, a sua natureza original gradualmente se esvai, sendo então necessário recuperá-la.

Como fazê-lo? Várias escolas indicam diversos caminhos mas, fundamentalmente, todos concordam que tal se efectua pelo “cultivo de si” (xiushen). Quer este “cultivo de si” signifique a aquisição de conhecimento, “a investigação das coisas”, como querem uns, ou meramente “a rectificação do coração” e “tornar íntegros os pensamentos”, como sugerem outros, o cultivo de si representa no confucionismo o esforço individual, o dao de cada um, para atingir a plena prática de ren. Neste sentido, o cultivo de si, embora deva ser feito através do estudo, permanece como um trabalho constante do indivíduo no sentido de rectificar constantemente o seu coração, tornando os seus pensamentos eficazes e autênticos (cheng). É neste sentido que no Estudo Maior (Da Xue) surge escrito: “Na banheira de Tang, fora gravado: “Renova-te com rigor dia após dia. Que haja uma renovação diária.”

A necessidade de renovação contínua inscreve-se num permanente acompanhamento do devir do universo. Zhu Xi prescreve-a, através da inscrição da banheira de Tang e da comparação higienista. Esta funciona em dois planos: primeiro, a urgência de continuamente renovar a investigação das coisas e os seus princípios, por estarem permanente transformação; segundo, a eliminação das máculas que o exterior vai traçando em cada natureza original3. Finalmente, sublinha a importância de uma constante atenção: “É impossível admitir, ainda que por negligência, um intervalo ou uma interrupção”.

Por outro lado, a eficácia destes procedimentos passa em grande parte pela compreensão e a execução dos ritos, na medida em que estes proporcionam o modo correcto de proceder.

Qualquer pessoa pode afinar o seu comportamento vergando-o à execução dos ritos. O rito é uma via segura para o discorrer da acção. Assim, por exemplo, ao entrar numa sala, a criança sabe de antemão, se conhecer o rito, quem deve cumprimentar em primeiro lugar e como se dirigir de forma apropriada a cada um dos presentes, consoante a sua posição social e/ou familiar. Assim se evita o erro e se mantém a harmonia.

Eficácia até ao fim?

A postura de Confúcio face ao saber (afinal, o que podemos conhecer?) foi determinante para o pensamento chinês como a de Sócrates para o pensamento ocidental. Neles detectamos propósitos semelhantes e gigantescas diferenças.

De facto, ambos transformaram o pensamento do seu tempo numa “antropologia”, ao fazerem do homem o centro das suas preocupações. Sócrates desprezava tanto o discurso sobre o cosmos, querido aos sofistas, como Confúcio ignorava o que não fosse relações humanas. Contudo, o Mestre de Dez Mil Gerações emitia um pensamento voltado para a “eficácia” e não para a descoberta da “verdade”, já que quanto a essa, tão querida à “parteira grega”, entendia que cada família, cada grupo, cada pessoa teria a sua e isso interessa muito pouco ao modo como nos relacionamos uns com os outros. A verdade exclui e por isso é criadora de conflitos e desarmonia.

Metafísica, vida depois da morte, a existência dos deuses e dos espíritos, a sacralidade do Céu e da Terra, nada disto realmente preocupava Confúcio, já que o que ele via, o que ele vivia e ressentia era o quotidiano dos camponeses e as iniquidades dos senhores, os esforços dos letrados e o desprezo pelo saber dos ocupantes das cadeiras do poder, cujo comportamento vicioso, distanciado dos princípios morais, impedia o estabelecimento da harmonia e de um governo justo para todos os homens.

Eficácia ao invés de verdade, Li em vez de logos — narra a história deste pensamento que, para plenamente se exercer, não se satisfaz com o respeito à moral social vigente mas obriga a uma profunda interrogação ética. É certo que muitos atribuem (e bem) ao ruismo uma inclinação para o conformismo social, como se cada um devesse ficar satisfeito com o lugar que o destino lhe atribuiu na sociedade e, consequentemente, respeitar os poderosos. E, claro, o poder soube ao longo dos tempos aproveitar-se dos aspectos mais “reaccionários” da sua obra ou o confucionismo não teria sido incensado e servido de cartilha em numerosos momentos da história chinesa.

Mais recentemente, vários pensadores chineses reinterpretam o confucionismo enfatizando aspectos que lhes permitem hierarquizar os “direitos colectivos” acima dos “direitos individuais”, os “deveres” para com a comunidade acima dos “direitos de cidadania” e, sobretudo, recusar a ideia de indivíduo — isolado e considerado independentemente de outros membros da sua sociedade — adaptando este pensamento à ideologia hoje reinante na China em que o Estado sobremaneira controla e regula a cidadania (Chen Lai, 2014).

Será mesmo assim ou a leitura dos textos originais abrirá portas que permitem outras interpretações e conclusões? Estamos perante uma doutrina “reaccionária”, “nacionalista”, “só para orientais”; ou conterá virtualidades, como a “benevolência, integridade, rectidão, harmonia, cultivo de si e virtude”, que lhe permitirão tornar-se num pensamento global?

Certo é que entender Confúcio é entender a China de ontem, de hoje e de amanhã. E, nesse entendimento do confucionismo, na sua reavaliação e actualização, residirá grande parte da resposta à pergunta: que papel desempenhará o pensamento chinês no futuro da humanidade e que consequências daí advirão?

 
Notas

1 Ru significa “letrado”, “culto”, e é utilizado para pessoas, ideias ou coisas relacionadas com os pensamentos e as práticas derivadas de Confúcio. No passado, ru era, por exemplo, o conjunto dos letrados confucionistas que ensinavam ou aconselhavam os governantes e as suas famílias. Segundo Zhou Youguang, o pai do pinyin, ru originalmente referia-se aos antigos métodos utilizados pelos xamanes nos rituais, mas depois de Confúcio tornou-se na designação para os que espalham as suas ideias e educam o povo. Alguns pensadores contemporâneos rejeitam mesmo o termo “confucionismo”, por ser de origem europeia, e propõem que as doutrinas relevantes sejam chamadas de “ruismo” e os seus seguidores “ruistas”, por entenderem que tal é mais fiel ao original chinês.

2. Legge escreve não ter encontrado em qualquer outro documento referência alguma a esta citação, gravada na banheira de Tang, fundador da dinastia Shang. Admite que terá sido recolhida da sabedoria tradicional. Legge, James; THE FOUR BOOKS, The Great Learning; Culture Book Co.; pág. 10.

3. Natureza (xing) significa fundamentalmente “natureza humana”, apesar de Zhu Xi a generalizar a todos os seres. O Céu confere ao homem a sua natureza que necessita, no entanto, de ser regulada através da educação porque ao longo da vida ela é, geralmente, desvirtuada. Portanto, a natureza humana é entendida como tendo um carácter transcendental, na medida em que é decorrente do Céu. Segundo o comentário de Zhu Xi, Zisi transmite neste capítulo as bases da concepção confuciana do mundo, começando por referir a origem celeste da Via e a sua imutabilidade. O homem encontra-se plenamente munido desta realidade substancial e não a pode abandonar.

Ao apresentar na mesma frase quatro noções interligadas – Céu, Natureza Humana, Via e Educação, este livro lança os fundamentos da cultura filosófica chinesa: a realidade da natureza moral do homem encontra o seu fundamento no Céu; para se manter na Via, deverá ser empreendido o cultivo de si (regresso à natureza original/celeste), através da educação. De notar ainda que existe uma homologia (uma mesma estrutura) entre Céu e Natureza Humana, o que justificará o desenvolvimento ao longo de todo o pensamento chinês (nomeadamente, entre os letrados) de uma “ontologia” moral.

A moral encontra aqui um princípio natural e universal, que é inalterável, coerente e espontâneo. O que poderia, em termos de filosofia ocidental, ser considerado unicamente transcendente, absorve aqui a noção de imanência. A moral não vai contra a natureza humana; pelo contrário, ela é um “estado natural” do homem, sendo pervertida pelos acidentes da existência e pelo egoísmo de cada indivíduo. A natureza humana (moral) é dada, mas não realizada. Para a realizar, há que recorrer à educação/cultivo de si.

11 Out 2022

Manuel Fernandes Rodrigues – Preservar a identidade: Uma história da cozinha macaense

Por Manuel Fernandes Rodrigues*

 

Quando se pergunta a um macaense porque é que ele ou ela sente macaense, as respostas variam. Alguns dirão que se sente parte da vida da comunidade e dos encontros sociais. Outros colocarão ênfase nas tradições e costumes. Um terceiro grupo reivindicará a influência de uma educação religiosa ou de ter estudado em português.

Apesar destas diferentes razões, os macaenses concordam que a comida macaense com os seus pratos icónicos e representativos, a maioria dos quais receitas centenárias, é única. A cozinha macaense identifica e preserva a história dos macaenses, tornando-os um grupo distinto de qualquer outro grupo ou etnia. A gastronomia macaense é uma afirmação da identidade macaense.

A cozinha representada pelos pratos da tradicional Sentá Mesa e Chá Gordo são passos numa viagem marcada por séculos de história e interacção social entre os macaenses que forjaram e consolidaram a sua identidade.

Isto levanta a questão de saber porque razão os acontecimentos históricos por si só não constroem um sentimento de pertença nem criam uma memória colectiva. Não houve contribuição dos portugueses que governaram Macau durante séculos? Não houve influência dos chineses, japoneses ou outras influências orientais no desenvolvimento da identidade macaense? Obviamente, houve um impacto das culturas portuguesa, chinesa, japonesa e de outras culturas orientais que enriqueceu a identidade macaense. A partir desta interacção, a cozinha macaense evoluiu, um processo semelhante a outras culinárias no mundo. Por exemplo, o esparguete, inquestionavelmente de origem oriental, é hoje reconhecido como genuinamente italiano.

Os pratos da cozinha macaense permitem aos macaenses conhecer a origem histórica por detrás de cada prato. Abrem uma janela para revisitar a história e examinar a maquilhagem e o desenvolvimento deste grupo étnico.
As receitas da cozinha macaense são extraordinariamente ricas e, como investigador, considero-as um arquivo vivo da história macaense.

Daí,
miçó cristão (miso cristão) mostra a influência dos cristãos japoneses e Filhos da terra (descendentes de homens portugueses casados com mulheres locais) de Nagasaki atestando uma identificação católica.
Galinha di português retrata a associação de Filhos da terra e contrabandistas chineses numa guerra contra os holandeses para que Timor pudesse continuar a ser português.
Minchi, o prato icónico dos cristãos japoneses exilados e esquecidos e Filhos da terra de Nagasaki e outras cidades do Japão que ajudaram a construir a igreja de São Paulo, hoje um símbolo reconhecido de Macau.
Peixe têmpora, conhecido entre os macaenses como peixe temp’ra, foi levado para o Japão pelos jesuítas no século XVI, tornando-se tempura, o prato mais conhecido da cozinha japonesa. Peixe têmp’ra foi também levado para a região portuguesa da Extremadura por marinheiros e monges que regressaram, tornando-se peixinhos da horta com feijões verdes de forma semelhante aos pequenos peixes, um substituto do biqueirão original utilizado em Macau.
Balichã ou balichão, uma pasta de camarão desenvolvida por mulheres macaenses, foi posteriormente adoptada pela cozinha chinesa. Foi descrita por Austin Coates, um historiador britânico, como uma contribuição importante para a cozinha do Oriente.

Alguns pratos macaenses são apresentados por alguns autores como adaptações de antigas receitas portuguesas utilizando ingredientes locais. Os exemplos seguintes são uma ilustração limitada sobre como as semelhanças entre pratos podem levar a conclusões que a história contradiz:

Sarã surabe, um bolo macaense é apresentado como sendo baseado na receita de fatias da China. Fatias da China aparece em Portugal por volta de 1876. O nome foi alterado no final do século XIX para Fatias de Tomar.

Vale a pena notar que sarã surabe, significa ninho de pássaro no bazar malaio. Aparece primeiro em Macau durante a segunda metade do século XVI, mais tarde levada para a região da Extremadura em Portugal por monges e tripulantes de navios que regressam. Chamavam ao bolo fatias da China, uma lembrança da Cidade do Nome de Deus na China, como a cidade de Macau era conhecida em documentos portugueses mais antigos.

Pan pan di mamã (pão da mãe) foi mostrado com base na receita do pão de Deus que aparece nas padarias portuguesas no último quartel do século XIX. No entanto, o pan di mamã é descrito em pormenor em Ou-Mun Kei-Leok (澳門記畧), o mais importante e completo repositório chinês de observação factual e costume de Macau publicado em 1775, como um pão de origem macaense.
Chau chau parida é um prato fortificado dado às mulheres após o parto. Uma sopa ou canja é mencionada no Colóquio dos simples e drogas e coisas da Índia de Garcia da Horta, publicado em Goa em 1563. A receita de Chau chau parida, contudo, é feita com ingredientes indicados na Farmacopeia Chinesa de Matéria Medica (本草綱目 Pun Ch’ou Kóng Môk- Princípios e Espécies de Raízes e Ervas) compilada por Lei Si-Tchân entre 1552-1578 e distribuída pela ervanária em Macau. Embora com o mesmo objectivo, os ingredientes e os métodos de cozedura são diferentes.

– Arroz doce é considerada hoje uma sobremesa portuguesa quintessencial e está incluído no livro de cozinha de Domingos Rodrigues publicado em 1680 com o nome de arroz doce do Japão e no livro de cozinha de João da Mata de 1875 como simplesmente arroz doce. No entanto, o arroz doce do Japão, como o nome indica, é uma receita trazida do Japão, em primeira mão, pelos jesuítas, que estavam baseados em Macau, a porta de acesso ao Japão e o porto terminal para os barcos do comércio Japão-Macau. Esta receita foi levada para Macau no século XVI por famílias cristãs japonesas e Filhos da terra e depois transmitida aos comerciantes portugueses que, por sua vez, levaram a receita para Portugal. Este é um facto histórico. Curiosamente, a receita mais antiga de arroz doce em Portugal é conhecida como arroz doce bairradino, considerado como o mais fino devido ao grande número de gemas de ovo utilizadas e à ausência de leite. A ausência de leite na receita é idêntica à do arroz doce macaense, que era um mingau de arroz cremoso e suave pela mistura de gemas de ovo, depois adoçado com açúcar e polvilhado com canela.

Muitas tradições culinárias macaenses continuam vivas hoje em dia, dando-lhes a oportunidade de reviver os sabores e as ocasiões, reforçando o sentimento de pertença. Chá Gordo é uma conhecida tradição macaense e uma obrigação em qualquer celebração no Natal, Páscoa, baptismos ou qualquer outro evento especial.
Chá Gordo é uma tradição associada à refeição substancial servida no dia de Natal em 1563, nas horas da Ave Marias, 18.00 horas, em Firando, hoje Hirado, na Prefeitura de Nagasaki. Evoluiu para um banquete com 6 a 18 pratos diferentes servidos geralmente à tarde, por volta das 18 horas, consistindo em:

– Aperitivos tais como apa-bico, apa-mochi, mochi, ladu, bolo de nabo, pan di minchi e chilicotes;
– Os pratos principais incluem bafassá de porco, tâcho/chau-chau pêle, galinha di português, chicu di porco, lacassá, congee, mela-miçó di porco e o icónico prato de minchi e arroz branco representando tenacidade e sucesso.

– Molhos, tanto quentes como vinagres, como o chili-miçó, miçó-christãn e os diferentes tipos de achar (prato vinagroso) feitos com gamên, limão, estrela de fruta e outras frutas da época para limpar o paladar e estimular o apetite.
– As sopas incluem imbigo di frade, abobra-verdi e abobra cambalenga.
– As sobremesas são compostas por chácha, uma sopa doce, pudins como bagi, chawan-no-mushi, e “ovos de aranha” seguidos de bolos feitos com receitas antigas e apreciadas como o celicário, bolo minino e sarã-surabe.

Todos estes pratos contêm factos históricos e tradições sociais associadas a um sentido macaense de identidade. A origem histórica e social por detrás do minchi está ligada ao Édito emitido por Shogun Tokugawa em 1614 expulsando os cristãos japoneses e os Filhos da Terra que não rejeitaram a fé católica. Em 1623-24, homens portugueses (pais, maridos, irmãos e filhos) foram expulsos do Japão. Em 1627, nobres militares japoneses (samurais) e as suas famílias foram entregues aos barcos portugueses destinados a Macau. Em 1636, mulheres casadas com homens portugueses e as suas filhas foram exiladas para Macau. Esta migração forçada aumentou substancialmente a população local em Macau, levando a povoações no bairro de São Lázaro e outras áreas fora das muralhas da cidade, conhecida como Campo, uma área que se estende até às Portas do Cerco, que marca a fronteira com a China.

A sobrevivência destas povoações não estava assegurada e o minchi tornou-se um elemento básico nestas condições extremamente difíceis. Esta é a razão pela qual o minchi, na psique macaense, é um legado dos exilados e esquecidos, um prato emblemático representando a tenacidade e o sucesso do povo macaense.

A sopa Imbigo di frade é uma oferta de acção de graças a São Francisco Xavier, apóstolo do Japão e padroeiro de Macau, pela sua protecção durante as tempestades sofridas pelas tripulações da frota comercial macaense, que por vezes passavam anos no comércio marítimo, escalando vários portos do Oriente, antes de regressarem a Macau cuja população dependia exclusivamente do comércio marítimo para sobreviver.

Uma missa de Te Deum, seguida de uma procissão, era realizada anualmente, como mostra de gratidão na igreja de São Paulo, construída com os lucros do comércio Macao-Japão e do trabalho dos cristãos japoneses e dos artesãos Filhos da terra. A 10 de Dezembro, esta procissão percorria as ruas do Monte, um bairro em redor da Igreja de São Paulo, após o que era servida uma refeição reconfortante com sopa Imbigo di frade. A pirataria e o clima tempestuoso eram riscos perigosos para os que se encontravam no navio. Muitos naufrágios atestam este facto, como escrito por Frei José Jesus de Maria no seu manuscrito de 1740-45 intitulado Azia Sinica e Japonica, Macau conseguido e perseguido, que Macau era uma cidade de mulheres destituídas.

O período histórico e social da guerra contra os holandeses no século XVII aponta para a origem do bagi e do celicário. A derrota e subsequente expulsão dos portugueses e Filhos da Terra de Makassar, em 1660, reforçou a sensação de derrota causada pela queda de Malaca, em 1641. Makassar era, na altura, o centro mais importante do comércio intra-asiático no leste do arquipélago malaio com uma importante comunidade portuguesa e Filhos da Terra. Esta população derrotada escolheu instalar-se em Macau porque, na altura, era uma cidade governada por cidadãos eleitos, separada do governo do Capitão-General nomeado pelo Vice-Rei em Goa.

Em 21-22 de Julho de 1622, a marinha holandesa bem organizada e equipada invadiu Macau mal defendida. Graças a um tiro de canhão da Fortaleza do Monte disparado por jesuítas, as forças macaenses conseguiram subjugar os holandeses e alcançar a vitória. Para os macaenses esta tremenda vitória prevaleceu sobre todas as derrotas anteriores nas mãos dos holandeses e o bagi, um prato desenvolvido em Makassar, tornou-se o símbolo dos derrotados, mas não vencidos. Considerando a enorme disparidade entre as forças holandesas e macaenses, a vitória de 22 de Julho só podia ser atribuída à intervenção divina, uma crença da população macaense.

O Celicário reflecte a lenda do bem vencendo o mal representado pelos invasores holandeses a quem os chineses chamavam demónios ruivos (紅毛鬼 Hon môu kwei). Tornou-se um símbolo de unidade porque as pessoas deixaram de lado as suas diferenças para se unirem contra um inimigo comum.

Chilicote, um pequeno frito recheado de carne picante moída, desenvolvido por mães macaenses de Malaca, continua a ser a melhor expressão de hospitalidade. A origem deste prato remonta ao primeiro encontro entre as tripulações das caravelas portuguesas comandadas por Diogo Lopes Sequeira e os juncos chineses no porto de Malaca, em 1509. Este encontro proporcionou a base para uma longa amizade entre marinheiros portugueses e chineses que permitiu a Jorge Álvares aceder a cartas marítimas chinesas e embarcar num junco chinês para viajar até Tamão na China, onde um padrão com o brasão real foi erguido em 1514. Além disso, esta relação permitiu a Fernão Peres de Andrade visitar Cantão para assistir a uma feira em 1517. A partir desta data, os portugueses e os Filhos da Terra estabeleceram vários povoados na costa da China, levando ao estabelecimento de Macau em 1553-1555.

Para concluir e olhando para a história das populações, a gastronomia foi sempre um importante elemento de construção da identidade. A alimentação é uma presença constante e desenvolve-se juntamente com uma sociedade em mudança, ajudando a transmitir a experiência pessoal e comunitária, enriquecendo a sociabilidade e o sentido de pertença dos macaenses.

Olhando para a vida de outras comunidades étnicas, descobrimos que a alimentação, através de pratos emblemáticos, é um fio de continuidade na salvaguarda da identidade e de um sentido de filiação. O Kristang em Malaca, Larantuqueiros na Ilha das Flores, o Português Negro (Zwarte Portugueesen) de Batávia, hoje Jacarta, e o Indp-Português de Goa são testemunhos deste facto.

Entre os blocos de construção da identidade, a cozinha macaense continua a enriquecer e reforçar o orgulho de pertencer e ajuda a definir o que significa ser macaense.

 

Referências:
Boxer, C. R. (1959). The Great Ship from Amacon. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos.
Coates, A. (1978). A Macao narrative. Hong Kong: Heinemann Educational Books (Asia) Ltd.
Fróis S.J., Pe. Luís (1976). História de Japam. Lisboa: Biblioteca Nacional.
Maria, Fr. José de Jesus (1988) Ásia Sínica e Japónica. Macau: Instituto Cultural de Macau/Centro de Estudos Marítimos de Macau.
Rodrigues, M. F. (2015). A gastronomia como elemento de identidade: a culinária macaense. Lisboa: DAXIYANGGUO Portuguese Journal of Asian Studies Nº20 p. 67-88. Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa/ Instituto do Oriente.
______________ (2018). História da Gastronomia Macaense: Contributo para o reforço de uma identidade singular. Lisboa: Edições MGI.
______________ (2020). Macanese cuisine: Fusion or evolution? Macao: Review of Culture 62 p 17-25. Instituto Cultural de Macau.
______________ (2021). Macanese Heritage from Nagasaki. Macao: Review of Culture 65 p.82-91. Instituto Cultural de Macau.
_____________ (2021). O Chá Gordo Macaense: Análise histórica das narrativas sobre a sua origem. Lisboa: DAXIYANGGUO Portuguese Journal of Asian Studies Nº26. Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa/ Instituto do Oriente.
Teixeira S.J., Pe. Manuel, (1993). Japoneses em Macau. Macau: Instituto Cultural/ Comissão Territorial para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.

* Manuel F. Rodrigues, MA in Economics, York University, Toronto, Canada. Pós-graduações: University of Virginia and Michigan USA, e European College, Brugges, Belgium. Oficial reformado da Comissão Europeia. Economista na Ontario Energy Board. Ex-professor assistente na York University. Publicações recentes: artigos na Daxiyangguo – Revista Portuguesa de Estudos Asiáticos da Universidade de Lisboa e na Revista de Cultura do Instituto Cultural de Macau.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores.

10 Out 2022

Do Silêncio e do Vazio na poesia de Su Dongpo

O grande 蘇東坡Su Dongpo (1037-1101) não pára de nos surpreender. A sua vasta poesia, multifacetada nos temas, na abordagem ao real e ao fantástico, desdobra-se diante dos nossos olhos e sensibilidades, num painel distante e próximo de encantamentos e maravilhas. O vazio e o silêncio são temas caros à grande poesia chinesa. Eis quarenta caracteres de poemas de Su Dongbo, recriando o tema:

Vazio e silêncio (dois excertos)
欲令诗语妙
无厌空且静
静故了群动
空故纳万境

Para a maravilha do poema,
o melhor é o vazio e o silêncio.
Em silêncio, floresce tudo o que se move,
o vazio alberga dez mil imagens.

我心空无物
斯文定何间
君看古井水
万象自往还

O meu coração vazio, suportando coisa nenhuma,
não importam as comezinhas coisas do mundo.
Olhem a água de um velho poço,
dez mil imagens aparecem, desaparecem.

A propósito destes versos, do silêncio e da água no velho poço, escreveu He Qing, letrado chinês nosso contemporâneo:
“O vazio e o silêncio são considerados como o princípio primevo da poesia. Quanto mais vazio e silencioso um poema soa, mais valor estético ele ganha.
“(…) Pode-se imaginar esse silêncio, essa imobilidade, essa limpidez, essa frescura, essa profundidade temporal da água de um antigo poço, e imaginar que esta água silenciosa reflecte, serenamente, os vôos das aves, as viagens das nuvens, as vibrações da luz do sol, as oscilações das relvas e dos ramos das árvores, as mil cores da natureza. Nesta imagem poética reside não só a maior sabedoria chinesa, mas também o estado ideal da estética chinesa: permanecer ancorado no silêncio mais profundo e contemplar os movimentos mais íntimos do universo…” (He Ding, Images du Silence, Pensée et Art Chinois, Paris, L’Harmattan, 1999, pag. 79/80.)

7 Out 2022

Sentido de Justiça, por Ana Cristina Alves

por Ana Cristina Alves*

Heraclito ou Heráclito, o Obscuro, nasceu em Éfeso, antiga colónia grega da Ásia Menor (Turquia), em meados do século VI a.C. Pensa-se que fosse filho do Rei-Sacerdote de Éfeso. Segundo Diógenes Laércio, abdicou do trono, heranças e mordomias cedendo os direitos ao seu irmão. Tornou-se misantropo e era muito admirado pela sua sabedoria, embora fosse considerado um pensador obscuro e ele mesmo tivesse como meta a sabedoria, acreditando à semelhança de um dos seus sucessores na filosofia, Sócrates, que esta se encontrava além, pois quanto mais fundo se ia no conhecimento, tanto mais vasta era a consciência do horizonte desconhecido.

Abrigou-se por um tempo no templo de Ártemis, a deusa grega da caça, filha de Zeus e de Leto, irmã gémea de Apolo, personificava o espírito feminino independente. Depois tornou-se eremita nas montanhas, seguindo o mais estrito regime vegan, pois para a sua alimentação não contava com mais do que raízes e plantas.

Segundo Heraclito, na physis, ou natureza, o princípio gerador e regulador do cosmos expressa-se no fogo, imagem viva da justa transformação, numa realidade em devir, cujas mutações seguiam uma racionalidade dialética própria, um logos, razão do universo, viabilizador do todo organizado, ou seja, o cosmos, iluminado por esta razão à semelhança do fogo solar, dando visibilidade a todos os seres da terra. É dele o famoso aforismo: ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, porque tanto a água como o homem mudam incessantemente, estando e não estando; sendo e não sendo.

Considerava, portanto, que o pensamento tudo governava, incluindo a mudança, que geria de um modo tensional, donde resultava a harmonia, da oposição e da discórdia. Um outro aforismo célebre é: A guerra é a mãe e rainha de todas as coisas, alguns transforma em deuses, outros em homens; de alguns faz escravos, de outros homens livres.

Ainda que Heraclito reconhecesse a importância da guerra na lógica da organização do mundo, ele não era um guerreiro stricto sensu. O muito pouco que se conhece da sua biografia, leva a concluir precisamente o contrário.

Sabemo-lo vegetariano e eremita. Mas não é menos verdade que terá depositado os seus escritos à guarda da Deusa da Caça, no tempo que lhe era dedicado. Assim, seria um guerreiro sábio lato sensu, já que destacava a luta e a discórdia para a organização de um cosmos sempre em transformação dialética e racional, personificada pelo fogo terreno e astral, que com os seus ritmos e regularidades iluminavam o mundo.

Os escassos aforismos que nos chegaram de Heraclito aproximam-no, com alguma margem hermenêutica, do pensamento de Sunzi (孙子), que também terá vivido entre os séculos VI e V a.C., sendo o maior estratega da antiguidade chinesa, igualmente filósofo, a quem é, por tradição, atribuído o tratado de estratégia, a Arte da Guerra 《孙子兵法 Sūnzi bīngfǎ》. Este, talvez registado pelos seus discípulos, inaugura com o capítulo “Planear da seguinte forma” (Sunzi, 2001:2):

“Disse Sunzi: a guerra é uma questão de importância vital para o estado, uma questão de vida ou morte, uma estrada para a sobrevivência ou ruína. Assim é, um assunto que exige um estudo cuidadoso.” (孙子曰:兵者,国之大事,死生之地,存亡之道,不可不察也)

Ora, o estudo cuidadoso traduz-se numa exposição minuciosa da estratégia da guerra, cuja racionalidade deve ser analisada em profundidade, como sucede neste tratado de treze capítulos, que inicia com o Planear da Guerra, passando para Fazer Guerra, Ofensiva Estratégica, Formas e Disposições, Potencial; Pontos Fracos e Fortes; O Conflito; As Nove Variáveis; O Exército em Marcha; O Terreno; Os Nove Tipos de Terreno; O Ataque pelo Fogo, terminando em Utilização de Espiões.

Nada é deixado ao acaso, neste jogo de vida ou de morte. Os planos devem ser estudados em pormenor, as ações medidas, porque se está perante um assunto da maior gravidade, definindo-se o grande estratega como aquele que consegue evitar o conflito no terreno, a menos que seja realmente forçado a partir para ele. Os cinco fatores fundamentais para perceber a conclusão de uma guerra são (Sunzi, 2001:2): o dao (道 dào), “caminho”; o céu (天 tiān ); a terra (地dì); o comando (将 jiàng)e os regulamentos(法 fǎ ), sendo fundamental o primeiro, “o caminho”, definido em termos de “influência moral”. Oiça-se o estratega (Ibidem): “Pelo “caminho”, entendo a influência moral, ou o que leva a população a pensar da mesma forma que o soberano, seguindo-o em cada vicissitude, seja para viver ou para morrer, sem receio do perigo mortal” (道者,令民与上同意也。故可以与之死,可以与之生,而不畏危). Há, assim, uma justiça inerente ao próprio processo de desencadear e conduzir o conflito que muito influencia a derrota ou a vitória numa guerra. Um soberano, que não obtenha a confiança do seu povo, ou um general, que não se imponha moralmente aos seus militares, estarão condenados ao fracasso.

Não se espere, pois, que chefes injustos na distribuição de recompensas e castigos possam conduzir as suas tropas à vitória (Sunzi, 2001:7): “Para que eu possa prever qual dos lados sairá vitorioso, é preciso descobrir qual o soberano que possui mais influência moral, qual o general mais capaz, qual dos lados beneficia de mais vantagens do céu e da terra, quais as tropas mais bem armadas e treinadas, qual o comando mais justo na distribuição de recompensas e castigos” (曰:主孰有道?将孰有能?天地孰得?法令孰行?兵众孰强?士卒孰练赏罚明?吾以此知胜负矣。)

E se é verdade que a guerra implica logro e dissimulação, fingimento, até espionagem, estes estratagemas não devem servir causas menores. Digamos que um bom chefe age corretamente em todas as situações, sendo justo para quem o é, mas também deverá estar à altura do adversário, ou, em linguagem bélica, do inimigo, porque a sua responsabilidade maior é para com a população que deverá proteger. Para tal, será necessário recorrer à inteligência em profundidade, espera-se que seja um guerreiro sábio, como somos informados em Ofensiva Estratégica, porque melhor do que travar batalhas é não o fazer (Sunzi, 2001: 21) : “Travar cem batalhas, ganhando cada uma delas, não é a atitude mais sábia. Quebrar a resistência do inimigo sem lutar, é.” (是故百战百胜,非善之善者也;不战而屈人之兵,善之善者也。).

Mas nem sempre é possível evitar o conflito, porque há atos agressores que não podem ficar sem resposta. Nesse caso, aconselha-se um conhecimento profundo das suas próprias forças e das do adversário, porque se parte do mesmo princípio a animar o pensamento de Heraclito, há medida e racionalidade em toda a natureza e nos comportamentos humanos, logo aquele que domina a sua própria razão e entende a dos outros, está votado ao sucesso. Assim somos aconselhados no capítulo O Terreno (Sunzi, 2001: 95): “Por isso se diz: Conhece o inimigo e conhece-te a ti mesmo para que a vitória não esteja em causa; conhece o céu e a terra para que a vitória seja completa.” (故曰:知彼知已,胜乃不殆;知天知地,胜乃不穷。)

O melhor chefe, nesta China dos tempos antigos, era quem possuía visíveis virtudes morais, ainda que tivesse de ostentar uma atitude silenciosa e imperscrutável perante as suas tropas, deveria ser capaz de manter a disciplina, quase espontaneamente, porque era imparcial e/ou justo, se o critério da justiça se aferir por um comportamento correto e equitativo, como nos é dito no capítulo Os Nove Tipos de Terreno (Sunzi, 2001: 107). Já no penúltimo capítulo, O Ataque pelo Fogo, não restam quaisquer dúvidas sobre os verdadeiros princípios defendidos neste primeiro tratado de estratégia chinês e o mais lido ao longo de toda a sua história. Se a guerra acompanha as transformações do mundo, sendo inevitável e de importância decisiva, tornando uns senhores e outros escravos, uns vencedores e de outros vencidos, é um assunto nesta tradição estratégica de uma gravidade tal, que nenhum conflito deve ser travado de ânimo leve, implicando cuidadosas deliberações; é sempre preferível em última análise, não a travar, porque (Sunzi, 2001:121 ) “Um estado que pereceu não pode ser restaurado, nem os mortos trazidos de regresso à vida. Por isso, o soberano iluminado aborda a questão da guerra com a maior precaução, evitando um bom comandante qualquer atitude precipitada. Porque este é o caminho para manter o estado seguro e o exército a salvo. ”(亡国就不可以复存,死者不可以复生。故明君要慎之,良将警之,此安国全,军之道也。)

Pergunte-se se a mentalidade chinesa mudou ao longo dos séculos, sobretudo depois de verificar a consistência com que a China de Xi Jinping tem defendido a neutralidade no conflito russo-ucraniano e, talvez agora, se perceba melhor a razão por que o faz. O primeiro interesse do país é o de assegurar o bem-estar da sua própria população, sobretudo quando tem estabelecidas relações culturais e comerciais com o vizinho russo, que vêm de longa data, mais constantes desde os tempos da fundação da República Popular Chinesa, para a qual ao tempo a União Soviética contribuiu ideologicamente, e não só. Já que à época estes apoiaram o desenvolvimento económico chinês, nomeadamente no setor industrial. Recorda-nos José Milhazes em Rússia e Europa: uma parte do todo que nos anos 40 e 50 do século XX, Estaline e Mao juraram amizade eterna, “russos e chineses – irmãos para sempre” (Milhazes, 2016: 83), mas com a morte de Estaline reacenderam-se os combates fronteiriços entre os dois vizinhos. Ora é precisamente este tipo de situação que os chineses tentam evitar, para não mencionar os interesses nacionais entre a Gazprom e a China National Petroleum Corporation, com o consequente contrato de fornecimento de gás russo à China por 30 anos, a construção de gasodutos, etc.

Embora haja grandes interesses económicos em jogo, nota-se que o presidente russo Vladimir Putin não consegue quebrar a tradição de neutralidade chinesa, que tem vindo a ser consolidada pela China nas questões de política internacional desde meados do século XX até ao presente, sendo os conselhos mais recentes de Xi Jinping ao homólogo russo de procurar restabelecer a paz perdida, com ênfase para o enaltecimento apenas via das conversações e do diálogo sem outros compromissos, como sucedeu recentemente no discurso que o presidente realizou na reunião do Conselho de Chefes de Estados Membros da Organização de Cooperação de Xangai (SCO) a 16 de setembro de 2022, onde apelou aos valores éticos tradicionais que conduzem a política chinesa, aqueles que já conhecemos desde o clássico A Arte da Guerra: a preocupação com a segurança interna e externa, a confiança mútua, tolerância, justiça, cooperação e diálogo. Ontem e hoje os valores defendidos são os mesmos na China, é a ética que conduz a política e a meta a paz.

Mas há quem veja intenções escondidas neste discurso neutro proferido pelas autoridades chinesas. Recordemos o que nos diz José Milhazes na obra já referida: “Pequim é conhecido pelo seu pragmatismo nas relações internacionais, que não deixa qualquer espaço a sentimentos. Por isso, a Rússia é, para a China, um dos muitos instrumentos que poderão ser aproveitados na disputa com os Estados Unidos” (Milhazes, 2016: 90).

Não é esta a minha posição, acredito sinceramente na via da moralidade e segurança defendida pelos chineses, e se o fazem não é por razões sentimentais, no que partilho o parecer de Milhazes, mas sim por uma tradição racional, que encontra a sua justiça num sábio equilíbrio de opostos, onde a bela harmonia nasce, recordando as palavras de Heraclito da ponderação e afinação da discórdia.

 

Referências Bibliográficas

Frazão, Dilva. 2019. “Heráclito”. Ebiografia. Disponível em: https://www.ebiografia.com/heraclito/, acedido a 22 de setembro de 2022.

Kirk , G.S, J.E. Raven, M. Schofield. 1983 The Presocratic Philosophers: A Critical History with a Selection of Texts. Cambridge: Cambridge University Press.

Milhazes, José. 2016. Rússia e Europa: uma parte do todo. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.

《孙子兵法》Sunzi: The Art of War. 2001. Tradução de 林戊荪.北京:外文出版社.

Sun Tzu. A Arte da Guerra. 2008. Tradução de Ricardo Silva. Versão resumida. Vila Nova de Famalicão: Quasi.

* Coordenadora do Serviço Educativo do Centro Científico e Cultural de Macau

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores.

6 Out 2022

Tereza Sena, historiadora: “Houve confiança do Imperador em Tomás Pereira”

Acaba de ser lançado, em Portugal, o livro “Tomás Pereira e o Imperador Kangxi – Um Diálogo entre a China e o Ocidente”, editado pela Guerra e Paz, e da autoria de Tereza Sena, historiadora e ex-residente de Macau. Trata-se de uma narrativa histórica, com elementos ficcionais, do percurso do jesuíta português até à China e da relação especial que estabeleceu com o Imperador Kangxi. O objectivo é mostrar mais detalhes sobre a missão deste português jesuíta ainda pouco conhecido do grande público

 

Quando começou o projecto para a construção desta narrativa histórica?

Tudo partiu de um convite da embaixada de Portugal em Pequim, na pessoa de José Augusto Duarte [ex-embaixador] que fez uma proposta à Universidade de Macau em prol de uma maior divulgação da figura de Tomás Pereira. Este não é um trabalho académico, mas sim uma narrativa histórica destinada ao grande público. É uma obra síntese sobre Tomás Pereira, que é ainda desconhecido. Na altura, fiquei em Macau mais algum tempo e fui enquadrada na Universidade de São José com o objectivo principal de escrever esta obra, que poderá ser traduzida para chinês e para inglês.

Decidiu então escrever sobre a relação próxima que Tomás Pereira teve com o imperador Kangxi.

Esta foi a forma de abordar [o tema] e trazer um pouco para o lado português as relações sino-ocidentais e o papel de Macau, bem como os aspectos da acção dos missionários, com especial destaque para os jesuítas, devido ao papel que tiveram na corte imperial. Há todo um trabalho académico que foi feito sobre Tomás Pereira, sobretudo em 2008, uma série de iniciativas comemorativas dessa personalidade, quando se celebraram os 400 anos do seu falecimento. Nessa altura, do ponto de vista científico, ele era uma figura pouco estudada. Em toda a historiografia, mesmo dos jesuítas, dá-se sempre relevo a outras personalidades na corte de Pequim. Nessa altura surgiu o projecto, no seio do Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM), de reunir, com vários académicos, as diversas obras de Tomás Pereira, que estavam dispersas, nomeadamente as cartas.

Que trocou com que personalidades?

Dentro da própria Ordem, com os superiores e os companheiros, e temos algumas cartas trocadas com autoridades, algumas com o próprio rei de Portugal, e cartas de viagens que fez. Temos um texto, a pedido de um antigo mestre dele, o João Queirós, sobre o budismo na China. Mas esse foi um trabalho académico, aqui faço uma abordagem diferente, uma tentativa de construção de um quase romance, um guia do que foi a vida de Tomás Pereira, mas contextualizado. Isto porque pouco sabemos dele até à sua chegada a Pequim. Tentei fazer esse ajuste biográfico, construindo uma narrativa em que o Tomás Pereira aparece como protagonista, mas não como herói. Aparecem no livro uma série de conjunturas em que ele está inserido. Fui buscar textos, mesmo que não sejam do tempo do Tomás Pereira, que contextualizam a viagem marítima, a vida em Goa, a formação dos jesuítas, um pouco da história de Macau. Há depois uma segunda parte em que o protagonista entra directamente em cena e já é uma narrativa construída, mas onde fui buscar mais elementos à sua epistolografia [escrita de cartas]. Não só utilizei material que tinha compilado em 2008 como me socorri das Obras Completas de Tomás Pereira, que foram depois publicadas.

Porque é que Tomás Pereira foi tão importante?

Houve uma grande propaganda, por parte dos jesuítas franceses, com o Tratado de Nerchinsk [assinado em 1689], quando se conseguiu uma certa liberdade religiosa em Pequim, embora não fosse plena. Há que olhar para os conflitos entre as nações que existiam na altura. A Companhia de Jesus [a que pertencia Tomás Pereira] estava cada vez mais nacional e menos internacional, porque tinham membros de todas as nacionalidades. Os jesuítas eram criticados pela exclusividade da missão missionária na China por parte de outras ordens, que também queriam ter as suas missões e, como sabemos, a Companhia de Jesus teve a exclusividade, até certa altura, do trabalho missionário na China e no Japão. Houve a contestação dos direitos do Padroado também. Tomás Pereira foi um acérrimo defensor dos direitos do Padroado e assume um papel extremamente importante nesse aspecto, tendo sido atacado por muitos, acusado de estar ao serviço do Padroado. Sendo um jesuíta português de grande envergadura, e com assento na corte de Pequim, com contactos com o Imperador, ensinando-lhe música, e sendo-lhe confiadas algumas missões importantes, mesmo ao serviço da corte…

Tais como?

Uma delas foi o papel de mediador na assinatura do tratado sino-russo [de Nerchinsk]. Foi-lhe atribuída a responsabilidade sobre o tribunal das matemáticas, embora em conjunto com outro jesuíta. Houve uma confiança que o Imperador depositou em Tomás Pereira, que é, de facto, uma figura de relevo nas relações sino-ocidentais e é um português. Não é tão conhecido, porque todos falam do Mateus Ricci, por exemplo. Todos tinham o seu papel no seio da Companhia de Jesus, mas de facto Tomás Pereira não é uma figura tão popular como os outros.

Esta relação com o Imperador Kangxi foi de facto especial.

Creio que sim, embora tenhamos de ter sempre alguma precaução. Nestas narrativas jesuíticas sobre este conflito de interesses, de contestações, de Roma e de outras ordens, sempre com as pressões nacionais por detrás, qualquer gesto do Imperador, relativamente aos jesuítas, à Missão, à própria Companhia ou à Igreja, era exacerbado. Colocavam tudo nas cartas para que o Ocidente soubesse da sua relação privilegiada com o Imperador. Por isso temos sempre de ter alguma precaução. Os pequenos gestos que são descritos, de ofertas do Imperador, por exemplo, têm de ser interpretados como sinais que o Imperador dava de estima daquelas pessoas, e que os considerava seus cortesãos, embora respeitando uma hierarquia na corte imperial.

Chegou-se a estabelecer uma espécie de relação de amizade entre os dois?

É muito difícil de dizer, embora Tomás Pereira se tenha referido ao “grande amor” que o Imperador sentia por ele. Amor no sentido figurado, de respeito. A minha interpretação é que se tratou mais de uma relação de respeito e de confiança. Ao atribuir-lhe determinadas tarefas e missões o Imperador revela ter confiança em Tomás Pereira. Havia sempre um cerimonial, regras. Era uma relação sempre um pouco à distância, até porque o Imperador era sempre intocável. Não havia uma intimidade entre os dois como a concebemos no Ocidente. Eles poderiam, por exemplo, inquirir mais directamente o Imperador, enquanto os restantes cortesãos tinham de fazer um requerimento.

Sente que, com esta obra, dá mais um contributo para o conhecimento da China, também, além da própria figura de Tomás Pereira?

Sim. A ideia é também essa, mostrar e despertar a curiosidade do leitor que não está familiarizado com estas temáticas para este tipo de relações e sobre a presença de portugueses na China, neste período, com determinados objectivos. Perceber como se faziam os contactos, como se organizava a corte imperial chinesa e até como era o papel de Macau em tudo isto. Este tipo de livros praticamente não tem uma bibliografia porque é quase ficção, ainda que seja uma narrativa histórica.

O livro tem muitos elementos ficcionados?

Alguns. A parte da viagem, por exemplo. A infância. Inspirei-me em leituras que já tinha feito e em muitos textos que são aqui utilizados, [existindo elementos] que fazem parte do nosso imaginário sobre a Expansão e que nem são do tempo do Tomás Pereira. Fiz isso para mostrar, por exemplo, como era a vida a bordo. É uma narrativa plausível, e se ele não passou exactamente por aquilo, poderia ter passado. A ideia é dar a conhecer a vida destes homens e por isso não dei a Tomás Pereira o papel de herói, mas sim de protagonista de um movimento que envolveu muitos portugueses. Não se sabe a rota exacta que fez de Macau para Pequim, e aí aproveitei elementos dos escritos do Fernão Mendes Pinto, por exemplo. Foi uma conjugação de múltiplos textos que fazem parte da nossa memória colectiva.

6 Out 2022

Poemas de Su Dongpo

苏轼 Su Shi, ou 苏东坡 Su Dongpo, é considerado o maior poeta da dinastia Song (960-1279) e um dos maiores de toda a poesia chinesa, ao lado de Li Bai e de Du Fu. Nasceu em Meishan, em 1037, na província de Sichuan.

A sua figura corresponde ao ideal do letrado/mandarim da velha China, poeta e prosador, calígrafo e pintor, homem político e criador de jardins. Crítico dos poderosos do império, conheceu mais de uma dezena de despromoções e exílios. A sua poesia, imaginativa, rica de cores e tonalidades, influenciada pelo budismo禅 chan (o zen japonês) desdobra-se por excelentes descrições da natureza e também pelos temas da amizade e do amor.

A lua, no meio do Outono

Ao entardecer, nuvens dispersas desaparecem,
não se vêem mais montanhas,
silenciosa, a Via Láctea dá a volta, na abóbada de jade.
Se nesta noite, neste nosso existir,
não fruirmos prazer, mil alegrias,
no próximo mês, no próximo ano,
quem sabe por onde se desdobrarão as nossas vidas?

鹧鸪天·林断山明竹隐墙

林断山明竹隐墙。
乱蝉衰草小池塘。
翻空白鸟时时见,
照水红蕖细细香。
村舍外,古城旁。
杖藜徐步转斜阳。
殷勤昨夜三更雨,
又得浮生一日凉。

Fim da floresta, resplandece a montanha

Acaba a floresta, resplandece a montanha,
os bambus escondem um muro feito pelos homens.
O canto das cigarras na erva murcha, junto ao lago,
pássaros brancos em círculos no céu aparecem, desaparecem.
Lótus vermelhos reflectem-se na água, soltam perfumes,
uma muralha antiga rodeia um velho lar.
Lentamente, apoiado no bastão, caminho para o sol poente,
de súbito, uma chuva cai, ilumina o céu,
Sempre a incerteza no avançar do tempo,
o final do dia envolto em espasmos de frescura.

Ainda, o último poema de Su Dongpo, escrito em 1101, numa das mais fantásticas montanhas da China, Lushan, na província de Jiangxi.

庐山烟雨浙江潮

庐山烟雨浙江潮,
未至千般恨不消。
到得还来别无事,
庐山烟雨浙江潮。

Névoas de Lushan, marés de Zhejiang

Névoas de Lushan, marés de Zhejiang.
Antes da viagem, nostalgias mil,
depois da viagem, o crescer dos dias.
Névoas de Lushan, marés de Zhejiang.


Tradução e texto de António Graça de Abreu

6 Out 2022

Wang Jun e as Pedras de Sonho

Ruan Yuan (1764-1849) cumprindo as suas funções de funcionário imperial iria desde a sua terra natal de Yizheng perto da grande cidade de Yangzhou (Jiangsu) até às mais díspares regiões, algumas tocando as fronteiras do Império Qing, criando no espaço e no tempo uma intrigante figura luzente. Desenhada a partir das suas origens humildes ao Grande Secretariado em Pequim, escorada na convicção confuciana do homem justo e da sua virtude, também vislumbrou o indizível da arte.

Governador da Província de Guandong entre 1817 e 1826 tomou acções decisivas no combate ao comércio do ópio tendo estendido a sua acção até Macau onde, em 1821, terá ordenado a prisão de vários traficantes. Mas a sua curiosidade estendeu-se aos conhecimentos dos estrangeiros, ao publicar um estudo biográfico sobre astrónomos e matemáticos da dinastia que incluiu trinta e sete missionários Europeus que viveram no Império e escreveram sobre o assunto.

Em 1820 em Cantão, fundou a notória Academia do Oceano da Erudição (Xuehai Tang). O pintor Wang Jun (1816- depois de 1883) interrogou o seu enigma vital nos locais por onde ele caminhou. No álbum Legado dos feitos de Ruan Yuan em dez cenários pintados (tinta e cor sobre papel, 27,9 x 33,7 cm, no Metmuseum) escreveu na última folha: «No meio do Inverno de 1883 o neto do mestre, Jingcen, trouxe-me um álbum para pintar, assim reuni passagens das “Notas do barco de um imortal” (Yingzhou Bitan) que ele compilou e que poderiam ser representadas em pinturas e apresentei-as nas páginas precedentes para sua instrução.» Essas passagens referem lugares como a Torre Wenxuan onde «o mestre não apenas erigiu uma torre a Oeste do templo da sua família, exclusivamente para guardar os seus livros mas também escreveu um ensaio sobre ela.»

Wang Jun referia assim o apego de Ruan Yuan aos livros, sendo inéditas as bibliotecas que ele promoveu bem como as reuniões de objectos artísticos que prolongavam a sua colecção pessoal e que foram pioneiras da ideia de um «museu» em templos célebres. Deles faziam parte as «pedras de pintura» (huashi) ou «pedras de sonho» (mengshi) da montanha Cangshan, na área de Dali, que ele coleccionava desde que fora governador de Yunnan (1826-35).

Nessas pedras cortadas em fatias, conservando os veios, o observador podia recriar na sua imaginação o aspecto de uma paisagem e escrever na margem uma anotação. Num rolo vertical (tinta sobre papel salpicado de ouro, 164,5 x 40,7 cm, no Smithonian) ele caligrafou um poema evocando Su Shi, que começa: «Pedras de pintura de Taicang assemelham-se a multidões de nuvens,/ O engenho humano não alcançaria a majestade da arte do Céu./

As caravanas de flores e pedras terminaram e o rio Bian congelou,/ O estúdio do Lago de neve foi destruído, as nuvens escureceram, o mestre Su há muito partiu e a sua pedra também.»

6 Out 2022

O Fuxi

Ó meus amigos, companheiros destas funestas viagens por países tão antigos quanto as estrelas e a Lua, e tão estranhos quanto o profundíssimo interior de nossas desgraçadas almas, ¿que sobressaltos ainda nos esperam, que magias secretas teremos ainda de superar, que horrores se erguerão perante as nossas pupilas dilatadas de espanto e terror?

Cada vez mais perto de nossas precárias existências, uiva o monstro da guerra, que ameaça fundir de vez a humanidade com a terra, incessantemente percorrida pelo espectro esquálido da fome e pela invisível maldade de dez mil pestes.

Ó maldito humano, que te crês superior à própria Natureza, mas depois te revelas, uma e outra vez, incapaz de simplesmente ordenar a tua existência e não compreendes que te encontras possuído pela inconstante ira e és escravo da tua própria ambição! Não te contentas com o jade branco ou o refulgente ouro, não há tesouro que sacie tua inextinguível sede de mando sobre os outros homens, os animais e as coisas; pois em ti habita uma eterna angústia; em ti rastejam as serpentes expulsas; por ti cresce, poderosa e impante, a fertilíssima hera do Mal!

É talvez por isso que no Monte a que chamam do Veado Branco, onde um dos oito imortais em montada sagrada se evolou pelos céus rumo a Penglai, habita o fuxi, um pássaro cuja forma lembra a do galo, embora encimada por uma cabeça humana. ¿Que estranhas cópulas, que monstruosos amplexos, que terríveis procedimentos terão ocorrido para tornarem possível a existência deste sinistro animal? Não sabemos, mas basta a nossa mente extenuada atrever-se a alvitrar uma resposta, para logo sentirmos a pele percorrida por horrendos arrepios e o coração disparar em desfilada, qual cavalo selvagem fustigado pelo chicote nocturno do medo, alheio a rédeas e contenção.

Que os homens se abstenham de percorrer o Monte do Veado, pois apesar de nele existirem riquezas capazes de acalmar as mais desvairadas ambições, se tiverem a desgraçada sorte de vislumbrarem um fuxi, é certo que cedo se desencadeará uma Guerra e por ela perecerão os campos cultivados, por ela serão decapitados os mansos animais, por ela serão sacrificados os melhores mancebos de duas gerações e destruída a soberba dos países.

O fuxi emite um som que lembra o seu nome. Se o ouvirdes, sombria noite ou dia claro, arrepiai caminho, pois a senda onde vos encontrais é a mais certa das vias para a desgraça!

30 Set 2022