O Yingshao

Os atrevidos mortais, que tudo parecem querer classificar e arrumar nas suas frágeis gavetas mentais, amiúde sofrem por não conseguirem sequer rotular certos seres, por estes escaparem às categorias preconcebidas. É o caso do yingshao. Com um forte corpo de cavalo, a pele tigrada como os temíveis felinos, face humana e duas asas implantadas no dorso, ao darem por este estranho ente os sábios hesitam se o hão-de considerar um animal ou um ser divino.
Humano, com certeza, não será; ¿deveremos então considerá-lo pertencente ao reino da natureza ou ao reino do sagrado? Ou, tomando uma outra perspectiva, considerar que a sua existência esbate por completo as fronteiras entre os dois reinos e que essa separação não passa de mais um erro derivado da nossa leitura incapaz do mundo e das dez mil coisas que o compõem.
Segundos os antigos textos, o yingshao terá nascido numa extraordinária montanha chamada Huaijiang, onde o lápis-lazuli, um raro pigmento encarnado, jade branco, ouro e prata abundantemente existem. De tal modo esta montanha esplandece e espanta os homens que muitos acreditam ser a morada terrestre do Imperador do Céu e dão-lhe o nome de Jardim da Paz.
Contudo, a beleza da sua terra originária não foi suficiente para ali prender o yingshao. Aliás, nenhum lugar particular parece ter o condão de o fixar, pois esta criatura, tão magnífica quanto bizarra, é conhecida por continuamente se deslocar, quer por toda a terra, quer através dos Quatro Mares ou traçando temerários riscos ao longo da abóbada celeste.
Relatos arcaicos confirmam a presença do yingshao nos mais díspares e inopinados espaços, sendo desconhecido o que o faz mover-se sem hesitações ou descanso. Num dia poderá ser avistado no sopé de um monte verdejante, no outro descortinado no mais abrasante deserto ou sobrevoando as ilhas ignotas que salpicam os mares.
O yingshao é, sobretudo, apreciado pelos letrados, porque os sons que emite fazem lembrar os que ressoam no ar quando um ser humano lê um livro em voz alta. Quem o escuta, facilmente fantasia estar na presença de um incontido poeta ou de um inesgotável contador de histórias, embora até ao presente ninguém tenha sido capaz de encontrar sentido algum na cascata de sons que a sua boca incessantemente produz.
Alguns comentadores sugerem que o yingshao se exprime numa língua perdida, falada entre os antigos deuses. Estes são os que o consideram como pertencente ao reino dos seres divinos. Já outros apenas consideram esses sons como os grunhidos de uma besta incontinente que, continuamente, se vê impelida a proferi-los, sendo que a semelhança ao homem-leitor não passará de uma coincidência e, definitivamente, o catalogam como pertencente ao reino dos animais.
O que seguramente sabemos é que o homem, nem animal nem divino ou uma mescla infeliz dos dois reinos, é a bamboleante corda sobre o abismo que separa as bestas dos deuses (ou de uma realização humana ulterior, como descreve um bigodudo pensador alemão), ser infeliz de não dar por si como uma totalidade plena de sentido.
Já o yingshao, aproveitando as suas poderosas asas, sobrevoa esse mesmo abismo mas, para espanto de muitos, não se fixa nem de um lado nem do outro, preferindo uma vida nómada e, aparentemente, sem outro sentido que não seja usufruir do movimento a que parece para sempre condenado.

Este texto é uma ficção inspirada no clássico “Livro das Montanhas e dos Mares” (Shanhai Jing).

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