Breve introdução à vida e obra do poeta Tao Yuanming

Tradução e texto de Manuel Afonso Costa

A. Vida

Alguns sinólogos europeus chegam a falar de Idade Média para caracterizar o período da História da China que fica situado entre o fim da Dinastia dos Han (220 d. C.) e a breve dinastia dos Sui (589 d.C.). Esse período que, como disse, chega a ser classificado de uma verdadeira Idade Média da história chinesa é mais vulgarmente designado por Época das Seis Dinastias; Liu chao, se as entendermos como sendo as Seis Dinastias puramente chinesas (han) do Sul ou Nan bei chao, se as considerarmos as Dinastias do Sul e do Norte. Bem a meio desta época, de intensa divisão nacional e por isso também muito conturbada, viveu o poeta Tao Yuanming, mais concretamente entre 365 e 427.

Tao Yuanming nasceu em Chai-sang, no sopé Noroeste da montanha Lu. Se bem que Tao Yuanming seja muito mais um poeta do Tempo do que do Espaço, tudo leva a crer que o fascínio do lugar terá desempenhado um papel importante tanto na formação da sua sensibilidade como nas oscilações permanentes do seu modo de vida.

Assim, se Tao Yuanming acedeu ao mandarinato com a idade de 28 anos, a verdade é que interrompeu esta actividade muitas vezes. Em todas elas é possível estabelecer uma relação entre essas interrupções e profícuos regressos ao campo. E estes regressos ao campo são mesmo escolhidos pelos estudiosos da sua obra como marcos referenciais da sua evolução poética.

Durante o primeiro regresso ao campo (400-401) ele escreveu Voltando à minha antiga morada, poderoso poema onde a alegria se mistura com a angústia.

O segundo regresso ao campo (402 a 404), por ocasião do luto por sua mãe, corresponde, sabe-se, ao período provavelmente mais tranquilo da vida do poeta, período durante o qual escreveu os vinte poemas subordinados ao tema do vinho. Se alguma vez Tao Yuanming foi feliz terá sido durante este segundo regresso ao campo e pelo menos por três motivos. Antes do mais porque o evento do luto, permitindo-lhe um prolongado retiro o poupou aos acontecimentos sangrentos desencadeados pela rebelião de Huan Xuan contra o poder imperial, que só acabou quando Liu Yu, que se manteve fiel ao imperador, debelou a rebelião e restaurou a dinastia Jin.

Em segundo lugar porque ao longo destes anos o poeta se exercitou nas práticas agrícolas, tão do seu agrado. Finalmente, porque embora hesitando ainda entre o mandarinato e a agricultura, ele adquiriu, durante este retiro, a consciência inequívoca da sua condição de poeta, tal foi o volume da sua escrita nesta época.

Segue-se o ano de 405, tão terrível, que no ano seguinte começará o retiro definitivo do poeta, cuja primeira parte vai de 406 a 412 e cuja segunda parte culminará na sua morte em 427.

O Grande Retiro que vai afinal de 406 a 427 será poeticamente inaugurado pelo célebre poema longo precedido de uma introdução não menos longa e intitulado Finalmente regresso a casa. Este é provavelmente o mais emblemático poema da obra de Tao Yuanming, pois nele o poeta explana de forma sistemática a sua ideologia de retiro, culto pela humildade e modéstia.

Qual a natureza da motivação destes retiros, tão decisivos tanto na vida quanto na obra do poeta. Tradicionalmente enfatizam-se duas formas de aproximação: A hipótese do princípio moral e a hipótese da inclinação. Recusa da corrupção do regime ou eremitismo confuciano por um lado ou vocação campesina por outro. Por mim, como se verá, inclinar-me-ei mais no sentido de uma espécie de Pastoral on the Self, de grande modernidade e onde o retiro é colocado ao serviço de desígnios literários, embora estes desígnios literários sejam inseparáveis de uma posição moral onde a vida simples é promovida em detrimento da vida palaciana.

 

1
No terceiro mês do ano yi si, em missão à capital na minha qualidade de conselheiro do general encarregado de restaurar o brasão do exército, ao passar por Qian xi …

desde que abandonei estes lugares,
os anos passaram depressa
e agora tenho de novo todo o dia
para olhar as montanhas e o rio
tudo é como sempre foi,
uma chuva ligeira lavou os picos mais altos do bosque
o vento está fresco, contudo agreste,
os pássaros surgem das nuvens de repente
ah! como eu admiro
este mundo tão variado,
esta harmonia
o modo como circula o vento,
natural e benigno
por que terei eu de fazer o que faço!
os desejos mais antigos
não se alteraram nada
e todos os dias sonho
com o campo e com a casa
é difícil ficar longe tanto tempo
por isso ao longo do dia
o meu pensamento
tem a forma do junco
que me há-de levar de volta;
a minha tenacidade é igual à dos ciprestes
também eles desafiam a geada.
2
Finalmente regresso a casa

A minha família era muito pobre e os trabalhos campestres não eram suficientes para sustentar a família. A casa estava cheia de crianças e de arcas vazias. E a verdade é que eu não vislumbrava nenhum caminho para assegurar os proventos necessários à sobrevivência de todos. Por estes motivos, as pessoas mais próximas aconselhavam-me insistentemente para que retomasse um lugar na administração distrital. Mas como consegui-lo? O meu tio, ao ver-me em tal estado de penúria, conseguiu que me fosse entregue um lugar num pequeno distrito. O que mais temia era um lugar demasiado afastado, mas felizmente Peng tse não ficava a mais do que cem lis da minha aldeia. Como o pedaço de terra associada à função garantia também uma boa ração de vinho, decidi aceitar. Alguns dias depois de tomar posse já eu estava morto por regressar. E porquê? Porque sou assim, e recuso o conformismo por instinto. Ainda que a fome e o frio apertassem, viver contrariado punha-me doente. Não era a primeira vez que estava mergulhado em obrigações mundanas, dominado pela necessidade da sobrevivência. Desmoralizado, abatido e revoltado, sentia uma vergonha infinita por estar a trair o grande sonho da minha vida. Esperei, portanto, apenas o tempo de uma colheita para voltar a fazer as malas e durante a calada da noite escapulir-me. Pouco tempo depois desta decisão, a minha irmã mais jovem, esposa de Cheng, faleceu em Wu Chang. As minhas emoções entraram em galope acelerado. E demiti-me logo que pude. Não foram mais do que oitenta dias, desde o meio do Outono até ao princípio do Inverno, os dias em que estive em funções. E como o desenvolvimento dos factos coincidiu finalmente com o meu desejo, eu intitulei esta composição “finalmente regresso a casa”.
No 11º mês do ano yi si

Enfim! Regresso,
os campos e o quintal já devem estar cobertos de mato
porque não regressei mais cedo?
porque deixei que o corpo abusasse da alma?
é inútil ficar abatido, desiludido com a sorte
pois sei que se não há remédio para o passado,
é pelo menos possível tentar mudar o futuro
enfim, estou certo de que não perdi o rumo ainda
escolhi apenas o caminho errado,

o barco desliza protegido por uma brisa suave,
sinto-a através da roupa
interrogo quem passa para não me perder,
lamentando a indecisão matutina da luz
quando de repente vislumbro
sob uma luz crepuscular
a cabana, minha humilde morada
e logo desato a correr em viva excitação
o criado jovem, alegre vem ao meu encontro,
os meus filhos esperam-me na soleira da porta
os caminhos foram invadidos por ervas daninhas
e quase desapareceram
mas os pinheiros e os crisântemos estão intactos
de mãos dadas com as crianças entro em casa
onde me espera um jarro de vinho
na sala bebo um copo sozinho
ao ver as árvores e os campos alegra-se meu coração
apoiado no parapeito da janela que dá para sul
mastigo um desdém imenso pelo mundo
e deixo correr a felicidade
quem com pouco se contenta com pouco se satisfaz
ao longo dos dias por puro prazer passeio pelo jardim
a cancela continua fechada
de bengala na mão ando, passeio e descanso
de vez em quando levanto a cabeça e olho para longe
as nuvens aparecem e desaparecem, sem tréguas,
no cimo das montanhas
os pássaros invadidos pelo temor
sabem que é a altura de voltar a casa
a luz do Sol diminui, o pôr do Sol está breve
encosto-me, com melancolia, a um pinheiro solitário

agora sei que regressei ao lar
que tudo fiz para romper com o mundo,
ele e eu nunca nos demos bem
para quê alimentar ilusões? Não há nada a procurar
agrada-me mais uma boa conversa
com a família e os amigos,
gozo o qin e os livros, são eles que curam as preocupações
quando a Primavera chega,
os camponeses dão-me conselhos
é preciso trabalhar os campos a Oeste
às vezes dou uma volta numa pequena carroça
outras, remo um pouco na minha barca solitária
seguindo as águas mansas e serenas
ou penetrando ravinas profundas,
até ao inesperado de fontes silenciosas
é uma maravilha o mundo com tanta beleza
os ciclos inexoráveis da natureza
e comovo-me ao pensar que a minha vida
também se aproxima do fim, mas sem drama,

É tão pouco o tempo
que aos homens é dado sobre a terra,
enfim, é a vida! por quanto tempo ainda?
então sigamos apenas a voz do coração
a gente afadiga-se, a gente agita-se,
e onde é que isso nos leva!?
não tenho desejos de riqueza
e nem quero alcançar o céu
não quero mais que aproveitar os dias,
fazendo cera,
e andar por aí sozinho
a caminho dos cimos assobiando alegremente,
por margens de ribeiros de águas límpidas
ou mesmo fazendo poemas
sigo o curso das coisas até ao fim,
e se me regozijo com a ordem do céu
o que é que pode preocupar-me deveras?

7 Dez 2022

As 7 viagens oceânicas de Zheng He (parte I)

No dia 11 de Julho de 2005 foi pela primeira vez comemorado na China o Dia do Mar, data a assinalar os 600 anos do início da primeira viagem marítima de Zheng He. Na altura esteve patente no Museu Marítimo de Macau uma exposição com o título “Rumo a Ocidente – As viagens de Zheng He”, onde se pôde ver, para além de vários modelos de juncos, os itinerários dessas viagens e conhecer o grande contributo das invenções chinesas na História marítima da navegação. Sem nos dar os antecedentes das sete viagens marítimas comandadas pelo Almirante Zheng He, permitiu-nos viajar com o que sobrara da História dessa grande aventura realizada entre 1405 e 1433. Aos trinta países e regiões, chegou uma imensa armada sempre com mais de 200 barcos, onde constava o baochuan, conhecido como o barco do Tesouro, com o propósito de desenvolver a influência da dinastia Ming e estreitar relações através da troca de produtos luxuosos: lacas, sedas, chá e porcelana.
Era o culminar de muitos séculos de experiência de navegação, pois já no ano de 97 uma delegação chefiada por Gan Ying chegara a um porto do Golfo Pérsico. No século XII, os juncos tinham capacidade para viajar cinco mil milhas náuticas sem aportar e navegar sem costa à vista, não necessitando de parar no Sri Lanka quando se dirigiam para o Mar Arábico. Nos finais de Novembro partiam da China e em quarenta dias chegavam a Sumatra (actual Indonésia) com a ajuda dos ventos. Aí esperavam até à Primavera do ano seguinte para, de novo com a ajuda dos ventos, atingir o Golfo Pérsico em sessenta dias, e à China regressavam em Maio/Junho. Quando se dirigiam às costas do Malabar usavam o porto indiano de Quilon, dominado na altura por mercadores chineses. Ainda hoje disseminada na costa indiana encontra-se um sistema de pesca chinês, a rede de abater, redes quadrangulares que se levantam facilmente por um sistema de alavanca feito de bambus e cordas. Nas “Cartas Náuticas de Zheng He” ficaram registadas 56 rotas distintas, indicadas com os cursos das viagens e suas durações, bem como as localizações de ilhas, rios, portos, profundidades dos cursos de água, bancos de areia, recifes e outros obstáculos encontrados, para facilitar a navegação às embarcações de diferentes calados.
Poucos anos tinham passado desde o regresso da última expedição ao Oceano Índico da Armada do Tesouro, comandada pelo Almirante Zheng He, quando foi destruída a documentação oficial de todas essas sete viagens marítimas. Estava-se nas primeiras décadas do século XV e a China afastou-se do mar, sendo Malaca o porto mais longínquo onde iam os comerciantes chineses.

Trabalho de campo

A Rota da Seda, designação dada aos inúmeros caminhos para Oeste a atravessar montanhas e desertos para ligar Impérios tão distantes como o da China e o Romano, foi pela primeira vez referida em 1875 por o geógrafo Ferdinand von Richtofen. Má escolha de nome, pois muitas vezes não era a seda o produto mais importante transportado e daí a porcelana e o chá lhe tomariam a denominação. Os caminhos terrestres dividiam-se em dois percursos: os caminhos do Oeste, por desertos, estepes e montanhas; e os do Sudoeste, por montanhas e rios. Mas existiu também a Rota Marítima da Seda, pelos mares e oceanos que, pela segurança da navegação, após apreendido o mar e apesar dos piratas, foi sempre um caminho aberto ao longo dos séculos, sobretudo ganhando importância quando os caminhos terrestres se fechavam.
Até iniciar as minhas investigações sobre a seda em 1991, pouco ou nada se ouvira sobre essas Rotas e desde então tenho vindo a percorrê-las e a estudá-las, tanto em livros, como nos locais de produção dessas mercadorias e portos para onde eram levadas. Pouco estudados estavam os barcos, tal como as mercadorias transportadas e as rotas que seguiam, sendo diminuto o material disponível nos museus até então visitados. A maioria dos barcos repousa ainda no fundo dos mares, guardando um mundo de conhecimentos e cobertos por séculos de sedimentos. No Museu Marítimo de Macau, aliada à História das embarcações chinesas, encontrava-se explicada a viagem marítima dos portugueses, iniciada na mesma altura em que a China da dinastia Ming se retirava dos mares.
Só nos princípios do século XX apareceu a primeira tese sobre as viagens de Zheng He, escrita por Liang Qichao, abrindo assim à memória um capítulo da História chinesa esquecida por mais de quatro séculos. Em trabalho de campo foram descobertas populações ligadas de alguma maneira ao Almirante Zheng He, como os seus familiares de Yunnan, os guardiões do seu túmulo numa aldeia do clã Zheng, próximo de Nanjing, ou os habitantes de uma ilha no Quénia que acreditam ser descendentes dos marinheiros chineses. Outros registos históricos ganharam luz, como as estelas espalhadas tanto na China, como em Malaca, na actual Malásia, em Galle, no Sri Lanka, e em Calicute, na Índia, tal como os azulejos da sinagoga de Cochim, ou os restos de cerâmica chinesa, datada daquele período, encontrada pela costa oriental de África. Eram estes até 2003 os documentos à disposição dos investigadores, a permitir ter a esperança de um dia conseguir-se reconstituir estas viagens com mais precisão.
Quando em 2005 se preparavam as comemorações para os 600 anos das sete viagens marítimas de Zheng He tinha já falado com historiadores de alguns desses portos visitados e elaborado o percurso dessas expedições marítimas, algo até então indisponível em livro. Daí ter escrito para a Revista Macau um artigo sobre o tema, com o título “As 7 viagens oceânicas de Zheng He” que, apesar de estar já paginado, não foi publicado pois, segundo o editor, faltavam as fontes. Assim, o meu artigo passou para outras mãos e, caricatamente, foi escrito por quem pouco percebia do assunto. Usando algumas das minhas fotografias e os resumos das expedições colocados no mapa dessas viagens, foram as fontes validadas por historiadores questionados ao telefone para confirmar se podia ser verdade o que eu referira, tendo sido publicado em Junho de 2006 o artigo “Zheng He o explorador chinês”.
Desde então visitei muitos dos portos chineses ligados à Rota Marítima da Seda, assim como muito mais informações têm vindo a ser conhecidas e trabalhadas por historiadores. Por isso pretendo desenvolver esta História nas páginas deste jornal.

26 Nov 2022

Cristalizações Pictóricas Contemporâneas: Macau e o Império

I.Introdução
A integração de Macau no Império Português caracterizou-se por um conjunto de especificidades invulgares, mercê não só da distância a que se encontrava da sede metropolitana mas igualmente do modo como a sua população encararia e viveria o estatuto de colónia ultramarina.
A ocupação gradual de Macau a partir do século XVI por navegadores portugueses tornou-a num entreposto comercial entre a China, a Europa e o Japão e assim foi até à devolução da soberania macaense à China, em 1999. Porto europeu na China desde meados do século XVII, Macau desenvolveu-se dentro da estrutura administrativa ultramarina portuguesa e foi visitada – e vivida – por um conjunto de artistas que deixaram nas suas telas representações, e imagens, de uma geografia que constituiu o último território do império português.
Centrando-nos na época contemporânea, escolheram-se dois dos artistas que melhor conseguiram transmitir as especificidades de Macau ligando-a a uma arte transversal à polarização Oriente-Ocidente.

II.Corpus
Marciano António Baptista (1826-1896), pintor macaense dos finais do século XIX, foi um dos raros artistas a deixar um legado pictórico da colónia portuguesa da Macau Oitocentista.
Cedo conheceu o pintor inglês George Chinnery (1774-1852), do qual se tornou aluno. Como os demais pupilos, primeiro seguiu o estilo de pintura do professor, e em seguida desenvolveu técnicas e feições próprias. Segundo Geoffrey Bonsall, da Hong Kong University Press, os seus “esboços e aguarelas são especialmente precisos no que concerne ao detalhe e carregam a marca do seu mestre”, “mesmo quando interpretava os temas com um estilo próprio. As obras mais tardias de Baptista são disso prova, tanto na temática como na estilística e, mais concretamente, através de inscrições nas suas pinturas”.
É preciso notar que, na altura em que Marciano Baptista aprendia os rudimentos das regras clássicas da pintura, e obsorvia a influência da escola da paisagem inglesa do século XIX, Macau vivia um período conturbado, mercê da Guerra do Ópio (1839-1842), tendo a cidade de Macau chegado quase à ruína. Terá sido após o fim desta contenda que Baptista decide ir viver para Hong Kong, episódio que terá ocorrido entre os finais dos anos 40 e o início da década seguinte, quando o território luso-chinês se encontrava devastado e empobrecido pelas consequências do conflito anglo-chinês.
Pintor, professor de arte, desenhador, ilustrador gráfico, cenógrafo e fotógrafo, Baptista ligou-se a artistas chineses de Hong Kong, contribuindo deste modo para um dos primeiros intercâmbios entre pintura ocidental e oriental. Paralelamente, vê-se confrontado com as produções em série, de artistas chineses menos criativos da China Trade, que proliferaram nessa época, e terá sido a qualidade artística das suas pinturas que o fez destacar-se dos demais congéneres. Pinturas de maiores dimensões, de cenas de portos de mar e de paisagens, executadas principalmente em aguarela; álbuns de aguarelas de tamanho médio, com vistas de locais turísticos; desenhos e pinturas de cenas de rua e de motivos históricos.
Assim, na segunda década do século XX, as suas obras começaram a ser objeto de atenção, por parte de um público mais atento. Foi considerado, por muitos, um dos melhores pintores de Macau do século XIX: Silva Mendes, em 1914, chamou-o “aguarista notável”; em 1918, o editor da revista Macau, Humberto de Avelar, classificou-o como “o melhor artista que até hoje nasceu em Macau”.
O artista utilizou poucas cores nas suas pinturas, preferindo as cores primárias azul e vermelho, e algumas vezes o verde e castanho. A sua pincelada mostra-se de cunho claramente chinês, mas em combinação com técnicas ocidentais de perspetiva linear e coloração. Importa salientar que os trabalhos artísticos do pintor mostram uma Macau em vias de extinção: pagodes, fortalezas, juncos de diferentes tipos, não se esquecendo de introduzir frequentemente navios a vapor, simbolizando o século que se aproximava. Mostrou particular agrado em pintar o Templo de A-Má, o que fez com que existam quadros de diferentes perspetivas sobre o tema, tendo ainda pintado o teto e o altar das igrejas de Santo António e de São Lourenço. Um outro aspeto a considerar, “é o facto de haver uma intertextualidade entre as narrativas escritas e as pictóricas, à qual também se pode chamar diálogo inter artes, tendo-se tornado evidente no que diz respeito à descrição da Macau oitocentista, sobretudo nas franjas marítimas da península, as quais são mencionadas nas descrições de Francisco Maria Bordalo (1821-1861) e compare-se com as vistas pintadas por Marciano Baptista”:

Vamos a um dos altos montes da cidade contemplar esta cidade que está otimamente situada, e apresenta uma bela coleção de edifícios por qualquer parte que se encare. Subamos à Penha de França sob a qual se encurva ante as águas do Oceano, essa extensa baía da Praia Grande, toda orlada de formosas habitações. (…) No extremo os penedos escalvados, que formam uma muralha exterior à fortaleza de S. Francisco. Isto é pelo lado do mar.

As telas macaenses de Marciano Baptista ilustram a cor local desta narrativa de viagem, tornando o pintor num cronista visual que cristaliza a paisagem macaense, dentro de uma certa exotização propositada. Mais uma vez a tela Fortaleza de São Tiago da Barra, de 1875-80, ilustra pictoricamente as palavras de Francisco Maria Bordalo.

Por outros termos: há uma remissão da crónica de viagem para a obra do pintor macaense, numa altura em que a palavra-chave entre os teóricos daquela época era “pitoresco”.
Para se ter uma visão do território imperial português, à altura mais distante da metrópole, basta observar o quadro de Baptista Vista da Praia Grande, de 1870-75, ainda que numa estética comum na época, como refere Patrick Conner: “As aguarelas do pintor estão de acordo com muitas das regras do pitoresco”, conforme se denota, por exemplo, nas suas variações sobre o Templo de A-Má.
Interessa mencionar que, depois de Hong Kong se ter tornado britânica e um porto franco, o governo de Macau não tardou a copiar os ingleses nos benefícios de uma zona económica livre de barreiras alfandegárias. Assim, em 1845, Portugal declarou a cidade um porto franco, ordenando-se o fim do pagamento do aluguer anual e dos impostos chineses, a expulsão dos mandarins de Macau e a abolição, em 1849, da alfândega chinesa. Porém, essa ação não conseguiu reter a sua importância económica e estratégica, enquanto porto europeu na China, pois o centro do comércio havia-se mudado para Hong Kong. Ora é essa Macau, em vias de perecer, que Marciano António Baptista exibe nas suas diferenciadas telas, constituindo testemunhos singulares de um território luso-macaense, estruturado a partir de uma vivência peculiar, entretanto desaparecida.

100 anos depois, e já num âmbito de passagem para a época pós-colonial surge uma outra cristalização macaense. Num tempo-símbolo, da entrega de Macau às autoridades chinesas em 1999, Nuno Barreto (1941-2009) pinta uma outra cidade, já distante da idealização da província do extremo oriente do império português de Marciano mas cujas particularidades a tornam relevante.
Até à década de 1980, Nuno Barreto repartiu o seu tempo entre a pintura e as aulas na Escola de Belas Artes do Porto. Daí partiu para Macau, onde iniciou uma fase completamente nova da sua pintura, explorando a matéria luso-asiática. Aí viveu mais de vinte anos, tendo mergulhado profundamente na vida macaense, o que se refletiu na sua obra na qual explora a temática luso-chinesa, combinando vários elementos artísticos.
Foi ele o principal dinamizador da Escola de Artes Visuais, inaugurada em 1989, e que está na origem da atual Escola Superior de Artes. Muita da sua produção pictórica, produzida em Macau, encontra-se nas instituições oficiais da atual região administrativa especial chinesa, nomeadamente na cidade de Xangai. E foi a partir de Macau que a sua pintura mais se projetou e distinguiu destacando-se o “talento para captar o espírito de um lugar, assim como os sentimentos das pessoas que o povoam”.
Em especial nos últimos anos da presença portuguesa, a temática da sua produção assentou numa particular atenção às peculiaridades do território e às diferenças de mentalidades. Essa característica evidenciou-se numa tela em particular, pintada cinco meses antes da transferência de Macau para a China e intitulada O Embarque no Pátria I, uma alegoria ao fim da administração portuguesa daquela colónia na China – e que marca, em simultâneo, o fim do império português. O quadro retrata um momento histórico do ex-território português e representa a despedida, num porto imaginado, dos chefes de Estado da China e de Portugal. Nele cabem figuras como o Infante D. Henrique, Camilo Pessanha (1870-1926), entre mandarins e população local.
Note-se que foi pintada uma segunda versão que, embora quase idêntica à primeira, inclui pequenas alterações: intitulada O Embarque no Pátria II, dá ênfase ao casco do navio, em detrimento das pessoas que se encontram no cais. Nesta versão, o pintor realça tudo o que terá sido levado pelas autoridades portuguesas, nomeadamente peças de arte e antiguidades diversas. Em ambos vê-se o Pátria atracado em Nam Van, ao fundo, o hotel Lisboa – ainda em construção – e Jorge Sampaio, a apertar a mão a um dirigente chinês. Há dirigentes chineses vestidos segundo a dinastia Qing e também individualidades de Macau.
“Com o arrear da bandeira portuguesa na Fortaleza do Monte encerrou-se também um capítulo da minha obra”, afirmava, em entrevista publicada na “Galeria Imaginária”.

III.Balanço em Aberto
Na ida ultramarina e no torna-viagem do regresso ao cais do império, Macau revelou-se um território d’além mar que, pela distância, foi pouco experimentado e invulgarmente visitado. Daí as cristalizações pictóricas de Marciano António Baptista e Nuno Barreto constituírem exceções de inusitado valor plástico, estético e histórico. Claro que ouve outros artistas a pintar a Macau portuguesa: Fausto Sampaio, Júlio Resende ou Graça Morais, entre muitos outros, mas as suas obras foram pontuais não resultando de uma vivência local efetiva e demorada. Por isso, o olhar pictórico de Marciano António Baptista e Nuno Barreto traduzem muito mais do que um lugar distante do império: ele revela influências e paradoxos que se articulam entre 2 povos profundamente diferentes ligados por uma história pretérita da qual se condensam imagens que nos devolvem um olhar sobre o “outro” que não é mais do que uma projeção daquilo que achamos que fomos ou somos.
Na verdade, a reduzida geografia do Portugal insular foi engrandecida em terras d’além mar, muito à conta de a metrópole se ter esquecido de embarcar na viagem efetiva, cristalizando esse outro mundo e mitificando-o, a partir de um cais de onde nunca saiu…
Ganha a consciência imperial demasiado tarde – com o Ultimatum – e renovada pelo sofrimento quase sete décadas depois, com a guerra colonial, os novos ventos trouxeram a derrocada do primeiro, e último, império europeu. Um império que durou 500 anos e se estendeu do Minho a Timor (o seu último raio), fechando um ciclo histórico.
À luz dos novos dias, tem-se tornado percetível que, no que respeita à criação artística, o império colonial português teve poucos interlocutores, remetendo a pintura para um solilóquio de escassos ecos. Embora não tivesse sido rara, a pintura em contexto colonial esteve longe de ser a norma, merecendo pouca atenção por parte da tutela. Apesar de dificilmente ter sido marginal ou pontual, em bom rigor o desinteresse generalizado – e até de uma apatia crónica, por parte da maioria dos artistas metropolitanos – fez com que a produção pictórica de matriz ultramarina se concretizasse numa viagem de muitos silêncios, frugais apontamentos e raros gritos.
Se os pintores nacionais não souberam, não quiseram ou não puderam aproveitar o desafio e a oportunidade que o espaço d’além mar oferecia, isso não impediu que os artistas desses territórios tivessem aproveitado as escassas oportunidades para desenvolver uma arte verdadeiramente sua. Não é possível esquecer que colono e colonizado têm uma história comum, e que os discursos pictóricos de colonialidade sofreram influências recíprocas, ainda que frequentemente transversais e/ou dissimuladas. Se mais não fosse, note-se que o imperialismo não modificou apenas o mundo colonizado mas implicou, igualmente, uma transformação profunda nas sociedades colonizadoras; daí que uma visão desocidentalizada da história seja a condição primordial para o avançar do conhecimento contemporâneo.

REFERÊNCIAS
Bonsall, Geoffrey. George Chinnery. His Pupils and Influence. Hong Kong: Hong Kong Museum of Art, 1985.
Bordalo, Francisco Maria. Um Passeio de Sete Mil Léguas, Cartas a um Amigo. Lisboa: Typ. Rua Douradores N.º 31, 1854.
Castro, Maria João. Pintura Colonial Contemporânea. Da Solidão da Metrópole a um Horizonte de Possibilidades. Lisboa: ArTravel, 2021.
Conner, Patrick. Marciano Baptista e A Sua Arte. Macau: Gráfica de Macau, 1990.
Jesus, Montalto. “Abbé Huc” in Historic Macau. Oxford: Oxford University Press, 1984.
Macau. Semanário Artístico, Literário e Social. Ano I, 16 de dezembro de 1918.
Mendes, Manuel da Silva. “Um Museu em Macau” in O Progresso. 1º Ano, N.º 13, Macau 29 de novembro de 1914.
Nuñez, Cesar. Marciano Baptista e A Sua Arte. Macau: Gráfica de Macau, 1990.
Pereira, Fernando António. Galeria Imaginária. Lisboa: Fundação Oriente, 2006.
Puga, Rogério Miguel. Conferência sobre George Chinnery. Lisboa: FCSH 8 de março 2017.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores.
https://www.cccm.gov.pt/

26 Nov 2022

A Nutrição na Filosofia Chinesa

A nutrição é um dos princípios mais importantes da filosofia chinesa, cruzando a área teórica de encontro à prática científica e à Medicina Tradicional Chinesa. No Clássico da Via e da Virtude (《道德经》), Laozi (老子, 280-233 a.C?) chama a atenção para a necessidade de se encherem as barrigas e esvaziarem as mentes logo no terceiro dos oitenta e um capítulos que compõem a obra, quando declara:

O sábio governa esvaziando os corações, enchendo as barrigas,
fortalece os ossos, enfraquece as ambições.
(是以圣人之治/虚其心/实其腹/弱其志/强其骨/)
(Graça de Abreu, 2013: III).

No entanto, é preciso perceber que esta nutrição, apesar de ser multifacetada, deve ser frugal, porque a frugalidade é, como sabemos, um dos três tesouros que acompanham o sábio ou a pessoa verdadeira taoista (真人 zhen rén). Além disso, no que respeita à alimentação nada como aquela que é fornecida directamente pela Mãe Natureza, em estreita ligação com o Tao (道 Dào), a Mãe do Universo: o sol, a água, o vento, os frutos, as sementes, mas também as paisagens naturais, que elevam o espírito, como a contemplação de um pôr do sol, de um luar, do céu estrelado, do mar numa bela manhã de Primavera ou de Verão, tal como nos é dito pelo filósofo no capítulo vinte num registo confessional:

Sou diferente dos demais,
alimento-me da Mãe do Universo.
(我独异于人/而贵食母)
(Graça de Abreu, 2013: XX)

Na verdade, a nutrição a que o filósofo se refere, na base da concreta e real é muito refinada.
Seguindo esta ordem de ideias, compreendemos bem o que Zhuangzi (庄子, 396- 286 a.C.), o segundo maior filósofo taoista nos pretende transmitir na fábula “A Coruja e a Fénix”, do capítulo dezassete da obra homónima, quando relata o encontro com Huizi (惠子), primeiro-ministro de Liang (梁国 Liáng Guó), depois deste o ter mandado prender, sem sucesso, por temer que ele desejasse roubar-lhe o posto. Ao invés, o próprio filósofo vai ter com ele, contando-lhe a seguinte fábula:

“Conheces um pássaro do Sul de nome fénix? Partiu do Mar do Sul e voou em direcção ao Mar do Norte. Apenas pousou nas árvores sagradas, só comeu rebentos de bambu, bebendo unicamente doce água das fontes celestes. Ao sobrevoar uma coruja que mastigava um rato já decomposto, esta piou de susto ‘Huuu!’: Assim, vós não estareis consternado, piando contra mim por causa do vosso cargo no Reino de Liang? ”
(南方有一种鸟,名叫鵷鶵, 您知道吗?那鵷鶵,从南海出发,向北海飞翔,不是梧桐树它不休息,不是竹子的果实它不吃,不是甜美的泉水它不饮。在这个时候,一只猫头鹰得到一只腐烂了的老鼠,鵷鶵从那里飞过,猫头鹰抬起头望着鵷鶵空了一声:嚇!如今您想用您的梁国的宰相禄位来吓我一声吗?)
(Zhuangzi, XVII. 12).

Para o ponto de vista que desejo defender, a saber, que a nutrição é um princípio fundamental da filosofia chinesa, julgo que é importante considerar a fábula de um modo tão literal quanto possível. Percebe-se que ao nível figurativo, o rato em decomposição representa o cargo do primeiro-ministro e a coruja o próprio Huizi, ao passo que Zhuangzi se identifca com a fénix. No entanto, para o argumento em jogo, não é por acaso que um come rebentos de bambu e o outro um rato já em estado de degradação avançada. Na filosofia chinesa, os nutrientes por que optamos, vão definir não apenas a nossa saúde física como ainda abrir ou fechar as nossas possibilidades mentais. A nutrição não é, portanto, um conceito exclusivamente físico, tem grande importância em termos espirituais, podendo aproximar ou afastar da verdadeira realidade. Assim, há uma permuta constante entre os alimentos espirituais e físicos. A filosofia come-se, um pouco à semelhança do que no outro lado do globo num pequeno país à beira-mar, muitos séculos volvidos, Natália Correia viria a defender mutatis mutandis num verso célebre “Ó Subalimentados do sonho!/ a poesia é para comer”, mas para que seja da melhor, da mais rara, da mais refinada, há que começar pelo corpo e ao nível dos nutrientes mais elementares, com paciência, simplicidade e perícia. Cada um terá que estudar para o seu caso e seu estilo próprios quais os elementos a misturar e em que doses, para obter o efeito filosófico fundamental de misturar os seus elementos primordiais feminino Yin (阴) e masculino Yang (阳) , de modo a equilibrá-los, a fim de entrar em harmonia consigo mesmo e daí com o mundo que o rodeia, inclusive mais além, em ressonância com todo o cosmos. A nutrição, física e espiritual são essenciais para o bem-estar psicossomático das pessoas.
Não têm conta as obras no âmbito da Medicina Tradicional Chinesa dedicadas ao estudo das propriedades constitutivas dos alimentos e seus benefícios para os seres humanos. A título de exemplo, aconselho a leitura de The Art of Long Life. Chinese Foods for Longevity de Henry C. Lu (1996). Uma boa alimentação não deverá ser rica, nem pobre, mas equilibrada, já que cada alimento ingerido poderá danificar ou beneficiar os nossos órgãos, tecidos, fluídos, orifícios, enfim, todo o corpo e mente. Portanto, há que ter em conta os sabores, ao nível micrcósmico, mas também as condições climatéricas e as estações do ano, em termos macrocósmicos. Como nos recordam Cecília Jorge e Beltrão Coelho em Medicina Chinesa, Em Busca do Equilíbrio Perdido (1988) “Particularmente a saúde e a alimentação estão profundamente ligadas, de um modo muito mais íntimo do que em qualquer outra civilização”. (Jorge, Coelho, 1988: 25). Tal implicará uma atenção filosófica voltada para a busca do equilíbrio através da nutrição.
O quinto dos sessenta e quatro hexagramas do Clássico das Mutações, o primeiro de todos os tratados filosóficos chineses, é dedicado à Nutrição (需 xū), como não podia deixar de ser ou a tese aqui defendida não teria fundamento. Este hexagrama também conhecido pelo sugestivo nome de Espera recorda-nos o facto de a nutrição não ter apenas consequências imediatas, mas sim progressivas, que implicam a assimilação e digestão dos nutrientes. No entanto, com a postura certa, quer dizer, sincera perseverante e calma é possível obter boa sorte, seja qual for a aventura em que desejemos embarcar. Quais são os trigramas constituintes da nutrição? Na base encontramos o Céu Criativo (乾 Qián), no topo a Água Abismal (坎 kǎn). Pelo que a imagem do hexagrama nos diz:

“Erguem-se nuvens no Céu:
A imagem da espera
Assim a pessoa superior come e bebe
mantendo-se alegre e de boa disposição”
《象曰: 云上于天,需;君子饮食宴乐。》
Zhang, 84:36

Recordo que quando me debrucei sobre este hexagrama, do ponto de vista literário, escrevi o seguinte poema em Visitações:

Nuvens no Céu
Indicam a chuva e o alimento,
Aguarda-se a Água e o sucesso,
Haverá perigo mas a aventura
é melhor do que o exílio.
A espera atenta e persistente
É a única garantia da futura alegria,
Há ainda a surpresa pelo meio
De poder abraçar o infortúnio.
(Alves, 2022: 134)

Na verdade, o Céu concede a força que permite, com a atitude correcta, ou seja, numa interpretação aconselhada a ser o mais literal possível, que se coma e se beba, o mesmo é dizer, se aguarde pacientemente e com abertura de espírito para que sejam criadas as condições, favorecidas no cultivo da força interior necessária à conversão das nuvens em água benfazeja, nutritiva, diluente dos obstáculos físicos e psíquicos conducentes à realização da obra intelectual, mas também do empreendimento físico, requerido na sua realização.
Só com uma boa e progressiva nutrição, realizada pelos alimentos no tempo e medida certos, poderemos construir a longevidade e até imortalidade, sustentados pela força do poder criativo que transforma o perigo em oportuna fertilidade para a qual as circunstâncias exteriores e alheias à vontade de cada um também contribuem. Resumindo, será preciso confiar em mais do que nós mesmos, quando o princípio da nutrição se torna um valor fundamental de uma filosofia. Há que cultivar a abertura que nos vem da natureza e seus múltiplos nutrientes. Estes começam no pão, arroz, vinho ou chá que levamos à boca, progredindo daí para a luz que nos entra e sai da mente-coração (心xīn) no contacto com os outros e com a natureza. Neste panorama mental, é caso para dizer que consoante os alimentos ingeridos e digeridos assim receberemos as filosofias.

Bibliografia
Alves, Ana Cristina. 2022. Visitações. Fafe: Labirinto.
Correia, Natália. 2006-2022. “A Defesa do Poeta”. Poema e Poesia de Natália Correia. Portal da Literatura. Disponível em: https://www.portaldaliteratura.com/poemas.php?id=1291, acedido a 20 de novembro de 2022.
Graça de Abreu, António. 2013 (trad.). Laozi. Tao Te Ching. 《道德经》. O Livro da Via e da Virtude. Edição Bilingue. Lisboa: Vega.
Jorge, Cecília, Beltrão Coelho. 1988. Medicina Chinesa, Em Busca do Equilíbrio Perdido. Macau: Instituto Cultural de Macu, Círculo dos Leitores.
Lu, C. Henry. 1996. The Art of Long Life. Chinese Foods for Longevity. Pelanduk Publications.
Merton, Thomas. 1999. A Via de Chuang Tzu. Petrópolis: Editora Vozes.
Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of changes. London: Arkana, Penguin Books.
張中鐸(編) (Zhang Zhongduo)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84.
Zhuangzi (《庄子》). 1999. Vol. I e II Trad para Inglês de Wang Rongpei e para Chinês moderno de Qin Xuqing e Sun Yongchang. Hunan, Beijing: Hunan People’s Publishing House, Foreign Language Press.

26 Nov 2022

Sonho do Pavilhão Vermelho – Capítulo 27

Autores: Cao Xueqin & Gao E
Tradução Nuno Peres

Baochai persegue borboletas até à Pavilhão de Esmeralda Gotejante
Daiyu chora por pétalas caídas ao lado do Túmulo das Flores

Daiyu chorava desconsolada. Nisto, o portão range e ao abrir saem Baochai, acompanhada por Baoyu, Xinren e as outras criadas.
Daiyu tenta aproximar-se de Baoyu para o interpelar, mas acaba por recuar com receio de o embaraçar em frente a tantas pessoas. Então, afasta-se até Baochai sair. Apenas depois de Baoyu e o restante grupo entrarem no pátio e fecharem o portão é que ela decide regressar.
Derrama algumas lágrimas enquanto os seus olhos fitam o portão fechado. De imediato, apercebe-se da futilidade do seu comportamento e regressa ao seu quarto preparando-se apaticamente para dormir.
Zijuan e Xueyan conheciam bem a têmpera de Daiyu: Ela costumava ficar sentada melancolicamente, franzindo a testa ou suspirando por tudo e por nada; ou simplesmente derramava lágrimas sem nenhuma razão aparente.
A princípio, elas haviam tentado confortá-la, julgando que ela tinha saudades dos pais ou de casa, ou que talvez tivesse sido maltratada por alguém.
No entanto, com o passar do tempo, ela continuava a comportar-se assim. Então, habituaram-se e passaram a não lhe prestar mais atenção. Por este motivo, nessa noite, foram-se deitar, deixando-a só na sua melancolia.
Daiyu encostou-se ao balaústre da sua cama e apertou os joelhos nos seus braços. Com os olhos carregados de lágrimas ficou imóvel como uma estátua de madeira ou de argila e não se deitou antes de serem dois geng.
O próximo dia seria o vigésimo sexto do quarto mês do calendário chinês, o Festival de Grão na Espiga. Era costume desde tempos antigos oferecerem-se diversos tipos de presentes e fazer-se uma despedida ao Deus das Flores.
Diziam que o Festival de Grão na Espiga marcava o início do verão, quando murchavam todas as flores e o Deus das Flores deveria abdicar do seu trono e ser deposto.
Como o costume era mais popular entre as mulheres, todas as internas do Jardim da Grande Visão levantaram-se cedo naquele dia.
As raparigas utilizaram flores e vimes para tecer cadeirinhas e cavalos de palha, fizeram galhardetes e bandeiras de seda e gaze. A seguir, amarraram os enfeites que fizeram em todas as árvores e ataram as flores com fitas coloridas, tornando todo o jardim numa chama de cores. Além disso, enfeitaram-se de forma tão graciosa que fizeram corar os pessegueiros e as amendoeiras, inveja às andorinhas e acanhar os rouxinóis.
Mas o tempo impede-nos de descrever aquela esplêndida cena com mais detalhe.
Agora Baochai, Yingchun, Tanchun, Xichun, Li Wan e Xifeng divertiam-se no jardim com a filha de Xifeng, Xiangling e as outras criadas. A única pessoa que não aparecia era Daiyu.
– Porque é que a prima Lin não está aqui? – perguntou Yingchun. – Que rapariga indolente! Ainda estará a dormir?
– Esperem aqui. Vou acordá-la. – disse Baochai quando deixou as suas companheiras e se dirigiu para o Pavilhão de Bambu.
A caminho do Pavilhão, encontrou doze raparigas entre as quais Wenguan. Elas cumprimentaram-na e conversaram durante algum tempo. Apontando para a multidão, Baochai disse:
– Elas estão todas ali. Vocês podem-se juntar a elas. Vou chamar a Menina Lin e já volto. Então, dirigiu-se para o quarto de Daiyu seguindo por um caminho sinuoso.
Quando se aproximou do Pavilhão, viu Baoyu entrar no pátio, o que a fez deter-se. De cabeça baixa, pensou:
Baoyu e Daiyu cresceram juntos desde a infância e não se importam de escarnecer mutuamente ou de mostrar os seus sentimentos um ao outro.
Além disso, Daiyu é bastante ciumenta e mesquinha. Se eu entrar no quarto agora, Baoyu pode sentir-se constrangido e Daiyu pode ficar com ciúmes. É melhor que eu saia.
Voltou a procurar as outras raparigas quando um par de borboletas, cor-de-jade e do tamanho de um leque apareceram à sua frente. As borboletas flutuavam para cima e para baixo, enfeitiçadamente na brisa, o que era muito interessante.
Baochai sentiu vontade de capturá-las. Então, tirou o leque da manga para acertar nas borboletas e seguiu-as até a um ervaçal. Voando para cima e para baixo, às vezes avançando, às vezes recuando, as duas borboletas levaram Baochai a atravessar as flores e os salgueiros até à beira do lago.
Quando se aproximava do Pavilhão da Esmeralda Gotejante, ofegante e suada, Baochai decide desistir e regressar. Só então sente que havia pessoas que conversavam dentro do Pavilhão.
O Pavilhão, no meio do lago, cercado dos quatro lados por corredores cobertos de balaustradas, estava ligado às margens por pontes em zigue-zague.
Baochai deteve-se à entrada do Pavilhão e tentou ouvir o que se dizia.
– Veja este lenço. Se for aquele que você perdeu, guarde-o. Se não for, devolvo-o ao Mestre Yun.”
– É mesmo o meu! Dê-mo.
– Como é que pensa agradecer-me? Você não esperava que fizesse isso em troca de nada, pois não?
– Não se preocupe. Já lhe prometi uma recompensa, não a enganarei.
– Trouxe-lhe o lenço, é natural que você me recompense; mas como é que vai agradecer à pessoa que encontrou o lenço?
– Não diga isso. Ele é um cavalheiro. É natural que devolva as coisas que encontra. Porque terei eu de o recompensar?
– Se não o recompensar, como lhe vou responder? Ele disse-me repetidas vezes que eu não lhe poderia dar o lenço a menos que você lhe oferecesse alguma recompensa.
Houve um curto silêncio e depois uma voz respondeu:
– Está bem. Dê-lhe este objeto meu como recompensa. E se você disser a outros? Tem que fazer um juramento.
– Se eu revelar algo do que se passou a outra pessoa, então que me apareça um furúnculo e morra na miséria.
– Ah! Temo-nos ocupado a conversar. E se alguém nos está a escutar lá fora do Pavilhão? É melhor abrirmos as janelas. Se alguém nos vir, pensará apenas que estamos a cavaquear. Se alguém se aproximar, podemos vê-la e mudar de tema.
Ao ouvir estas palavras, Baochai, pensou surpreendida:
– Não é de admirar o que se diz das pessoas más e desonestas, que são sempre astutas. Quando abrirem as janelas e me virem, decerto ficarão envergonhadas. Além disso, uma das vozes é bastante parecida com a de Honger que trabalha para Baoyu. Ela é presunçosa e uma das criaturas mais estranhas e astutas que conheço. ‘O desespero leva as pessoas a rebelar-se e os cães a saltar um muro.’ Se ela souber que eu descobri o seu segredo, pode-me causar problemas e causar-me algum embaraço. É tarde demais para me esconder. Tenho de pensar numa maneira para evitar que suspeitem de mim, como uma cigarra que se desfaz da sua exúvia.
Ainda não tinha acabado de pensar quando ouviu o ruído de janelas a abrir. Começou imediatamente a correr fazendo os seus passos os mais pesados possíveis.
– Daiyu, onde está escondida? – disse com um sorriso quando se apressou para a frente, de propósito.
Hongyu e Zuier, que tinham acabado de abrir a janela, ficaram pasmadas quando viram Baochai.
Mas Baochai pergunta-lhes alegremente:
– Onde é que vocês esconderam a Menina Lin?
– Menina Lin? Não a vimos. – respondeu Zhuier.
– Vi-a agora mesmo desde o outro lado do lago. Ela estava aqui agachada, a brincar com a água. Tinha pensado em pregar-lhe um susto, mas ela viu-me antes de eu me conseguir aproximar. Correu para o lado leste e desapareceu. Talvez ela esteja escondida dentro do Pavilhão? – disse Baochai quando entrou propositadamente no Pavilhão à procura de Daiyu.
A seguir, saiu do Pavilhão e afastou-se delas, mas antes disse:
– Com certeza que ela está escondida numa gruta entre as rochas. Se uma cobra a morder, ela bem o merece.
Saiu e pensou satisfeita:
Consegui livrar-me desta maçada. Não sei o que elas irão pensar.
Hongyu, de facto, acreditou nas suas palavras. Quando Baochai já estava bastante longe, pegou em Zhuier pelo braço e murmurou:
– Que horror! Se a Menina Lin estivesse aqui, com certeza que tinha ouvido a nossa conversa!
Zhuier ficou silenciosa e nada disse.
– O que devemos fazer? – perguntou Hongyu.
– Mesmo que ela tivesse ouvido alguma coisa, isso não é da conta dela. – respondeu Zhuier. – Cada uma cuida dos seus próprios assuntos.
– Se estivéssemos a falar da Menina Xue, a situação não seria assim tão má. – disse Hongyu. – Mas a Senhorita Lin é mesquinha e gosta de dizer mal das pessoas. Se ela tivesse ouvido a nossa conversa e denunciasse o nosso segredo, o que seria de nós?
A conversa delas acabou por causa da chegada de Wenguan, Xiangling, Siqi e Daishu. Então, começaram a conversar entre elas como se nada tivesse acontecido.
Hongyu viu que Xifeng a chamava desde a encosta. Então, despediu-se das outras raparigas e correu para Xifeng.
– O que posso fazer pela Senhora? – perguntou Hongyu com um sorriso doce.
Xifeng examinou-a minuciosamente e ficou contente pela sua boa aparência e pela sua maneira cordial e agradável de falar.
– Hoje a minha criada não me acompanha. – disse Xifeng com um sorriso. – Mas lembrei-me agora de uma coisa e tenho de mandar alguém fazê-la. Acha que pode transmitir um recado meu de forma correta?
Hongyu sorriu e disse:
– A Senhora pode dizer-me o seu recado. Se eu não conseguir transmitir de forma correta e comprometer esta tarefa a Senhora pode punir-me como desejar.
– Para qual das meninas é que você trabalha? – perguntou Xifeng com um sorriso. Se ela a procurar, poderei explicar-lhe por si.
– Trabalho para o Mestre Bao. – respondeu Hongyu.
Xifeng riu e disse:
– Ah! Trabalha para Baoyu! Então é fácil de explicar. Deixe lá, se ele perguntar, explico-lhe por si. Agora vá à minha casa e diga à sua irmã Ping que ela pode encontrar um pacote com cento e sessenta taéis de prata debaixo da prateleira do prato de porcelana ju que está na mesa da sala exterior. É o pagamento dos bordadores. Quando a esposa de Zhangcai chegar, ela tem que pesar a prata na sua frente antes de você lha dar. Também quero que você faça uma outra coisa. Traga-me a bolsa que está debaixo da almofada na cama do quarto interior.
Despois de receber as ordens, Hongyu dirige-se para a casa de Xifeng. Quando regressa, Xifeng já não estava naquela encosta. Mas viu que Siqi saia de uma caverna e que parou para apertar o seu vestido. Então, Hongyu aproxima-se dela e pergunta:
– Sabe aonde foi a nossa Segunda Senhora?
– Não faço ideia. – respondeu Siqi.
Hongyu olhou em volta e reparou que Tanchun e Baochai estavam à beira do lago a observar os peixes. Então foi lhes perguntar:
– As Meninas sabem aonde foi a nossa Segunda Senhora?”
– Vá procurar no pátio da sua Primeira Senhora. – disse Tanchun.
Então, Hongyu dirigiu-se para o Pátio do Arroz Fragrante. A meio do caminho encontra Qingwen, Qixian, Bihen, Zixiao, Sheyue, Daishu, Juhua e Yinger.
Ao ver Hongyu, Qingwen ralha-lhe:
– Continue a deambular! Não regou as flores do nosso pátio, nem alimentou os pássaros ou acedeu a caldeira do chá. Só sabe deambular e divertir-se por aí fora!
– O nosso Mestre Bao disse ontem que não é preciso regar as flores hoje. Basta regá-las de dois em dois dias. – replicou Hongyu. – Alimentei os pássaros quando a irmã ainda estava a dormir.
“E a caldeira do chá? – perguntou Bihen.
– Hoje não é a minha vez. Então, não perguntem se há chá ou não. – respondeu Hongyu.
– Ouçam o que ela está a dizer! – mofou Yixian. – É melhor que não digamos mais nada e a deixemos continuar a deambular.
– Quem é que disse que eu estou a deambular? A Segunda Senhora mandou-me transmitir um recado e buscar uma bolsa. – replicou Hongyu, quando lhes mostrou a bolsa.
Então, as raparigas deixaram de a repreender e afastaram-se.
– Não é de admirar! – escarneceu Qingwen. – Ela subiu ao ramo mais alto da árvore e agora já não nos dá atenção. A nossa Segunda Senhora apenas lhe dirigiu uma ou duas palavras, não sabia sequer o seu nome e ela já ficou toda cheia de altivez! Olhem a vaidade dela! Transmitir um recado não tem nenhuma importância. Vamos esperar para ver o que vai sair dali! Se ela for assim tão esperta, é melhor que saia deste pátio e fique para sempre naquele ramo alto.
Hongyu não conseguiu encontrar uma maneira adequada para lhe responder. Engolindo o ressentimento, ela continuou a procurar Xifeng. Quando chegou ao quarto de Li Wan, viu que Xifeng e Li Wan estavam a conversar. Hongyu deu um passo em frente e relatou a Xifeng:
– A irmã Ping disse que ela recolheu a prata logo que a Senhora saiu. Quando a esposa de Zhangcai lha foi pedir, ela pesou a prata à sua frente e entregou-lha.- Entregou a bolsa a Xifeng e continuou – A irmã Ping pediu-me para dizer à Senhora que Lai Wang foi há pouco à sua casa pedir as suas instruções antes de partir para a mansão para onde a Senhora o mandou. Ela deu-lhe as instruções conforme as intenções da Senhora.
– Como é que ela transmitiu as minhas intenções? – riu Xifeng.
Hongyu respondeu:
– A irmã Ping disse: A nossa Senhora apresenta os seus melhores cumprimentos à vossa Senhora. O nosso Segundo Mestre não está em casa, por isso, a vossa Senhora não precisa de se preocupar com a demora de alguns dias. Quando a Quinta Senhora melhorar, a nossa Senhora vai visitar a vossa Senhora juntamente com ela. A Quinta Senhora mandou um recado à nossa Senhora, dizendo que a cunhada da nossa Senhora lhe enviou uma carta em que ela apresenta os seus melhores cumprimentos à vossa Senhora e manifestou o seu desejo de pedir duas pílulas de longevidade à cunhada da vossa Senhora. Se a sua cunhada tiver dessas pílulas, a vossa Senhora pode mandá-las para a nossa Senhora. Se alguém for à mansão da cunhada da nossa Senhora, trar-lhas-á.
– Poupe-me! – Li Wan cortou o discurso de Hongyu. – Estou confusa com tantos Senhores e Senhoras.
Xifeng riu e disse:
– É normal que você fique confusa. Existem cinco famílias envolvidas.
Voltou-se para Hongyu e disse:
– Você fez um bom trabalho e transmitiu todas as mensagens de forma correta e clara, não como as outras pessoas que zumbem como mosquitos.
Virou-se para Li Wan e continuou:
– Você sabe, tenho medo de falar com a maioria das criadas, exceto as poucas que ficam sempre ao meu lado. Elas vão prolongar uma frase e cortá-la aos pedaços. Vão falar devagar, balbuciar até e não conseguem transmitir claramente as informações, o que me deixa ansiosa. Antigamente, a minha Pinger também se costumava comportar assim. Perguntei-lhe: Para ser uma beldade, é necessário zumbir como um mosquito? Melhorou o seu comportamento depois de eu ralhar com ela algumas vezes.
Li Wan riu e disse:
– Nem todas as pessoas são mordazes como você.
– Mas gosto desta rapariga. – disse Xifeng. – Embora não tenha falado muito, transmitiu bem as mensagens. – Sorriu para Hongyu e continuou: – Vai começar a trabalhar para mim a partir de amanhã. Vou reconhecê-la como minha filha adotiva. Você vai fazer bons progressos sob a minha orientação.
Ao ouvir as palavras de Xifeng, Hongyu soltou uma gargalhada.
-Porque está a rir? – perguntou Xifeng. – Pensa que não sou muitos anos mais velha do que você e que ainda sou tão jovem que não possa ser sua mãe? Se pensa assim, é porque está muito iludida! Pergunte às outras criadas. Há muitas pessoas cuja idade é muito maior do que a sua que desejam chamar-me de mãe e não as reconheço. Estou a dar-lhe essa honra!
– Não estou a rir por causa disso. – respondeu Hongyu sorrindo. – Estou a rir porque a Senhora se enganou na minha procedência. A minha mãe é sua filha adotiva e agora a Senhora também me pretende reconhecer-me como sua filha adotiva.
– Quem é a sua mãe? – perguntou Xifeng.
– Não sabe quem é esta rapariga? – disse Li Wan com um sorriso. – Ela é a filha de Lin Zhixiao.
– Ah! É a filha dela! – Xifeng ficou bastante surpreendida, então sorriu e continuou: – Não se consegue fazer com que Lin Zhixiao e a sua esposa abram a boca mesmo que os espetem com uma agulha. Tenho dito que eles formam o casal perfeito. Um é surdo e o outro mudo é. Quem imaginaria que iriam criar uma filha tão esperta! Quantos anos tem?
– Dezassete. – respondeu Hongyu.
A seguir, Xifeng perguntou o nome dela.
– Inicialmente, eu chamava-me Hongyu. – respondeu ela. – Agora chamam-me Honger porque o nome do Mestre Bao também tem o caráter ‘yu’ de jade.
Xifeng franziu a testa e abanou cabeça:
– Que desagradável! Todas as pessoas agora querem chamar-se ‘yu’ como se pudessem colher benefícios desse carácter.
Xifeng disse a Li Wan:
– Agora ela pode ficar comigo. Você sabe? Já disse uma vez à sua mãe que a esposa de Lai Da está muito ocupada e não conhece bem as criadas desta mansão. Pedi-lhe que escolhesse um par de raparigas capazes para mim. Ela não escolheu a sua própria filha para ficar comigo e enviou-a para um outro lugar. Será que ela pensou que a rapariga iria sofrer muito se trabalhasse para mim?
– Você é demasiado desconfiada! – Li Wan riu e disse. – Ela já estava a trabalhar aqui quando você lhe fez esse pedido. Como é que pode culpar a mãe dela?
Xifeng disse:
– Amanhã vou falar com Baoyu e pedir que ele procure uma outra criada e que me mande esta rapariga. Não sei se ela mesma quererá trabalhar para mim ou não.
– Não podemos dizer se queremos ou não. – disse Hongyu com um sorriso. – Mas se for trabalhar para a Senhora, posso aprender mais sobre etiqueta e adquirir mais experiência.
Foi naquele momento que uma criada da Senhora Wang veio chamar Xifeng. Então, despediu-se de Li Wan e saiu. E Hongyu regressou ao Pátio do Vermelho Radiante.
Voltamos a Daiyu, que se levantou tarde nesse dia por causa da insónia sofrida na noite passada. Quando ouviu que todas as outras raparigas estavam no jardim a despedir-se do Deus das Flores, apressou-se a lavar-se e pentear-se e saiu do quarto, com receio de ser ridicularizada por causa da sua preguiça. Mal saiu do quarto, viu que Baoyu entrou pelo portão.
– Querida prima, denunciou-me ontem? – perguntou ele com um sorriso. – O meu coração ficou em suspenso durante toda a noite.
Daiyu voltou-se para Zijuan e ordenou:
– Limpe o quarto e depois feche as cortinas de gaze. Se alguma andorinha grande tentar entrar, baixe as cortinas e prenda-as com os leões. E não se esqueça de cobrir o incensório depois de acender o incenso. – disse enquanto ia saindo.
Baoyu pensou que a sua atitude fria se devia às palavras usadas ontem ao meio-dia. Sem saber o que tinha acontecido na noite anterior, ele curvou-se e apertou as duas mãos junto ao peito para manifestar o seu arrependimento. Ainda assim, Daiyu não olhou sequer para ele. Saiu do pátio e foi procurar as outras raparigas.
Baoyu ficou perplexo:
De certeza que não é por causa do que aconteceu ontem. Mas regressei tarde ontem à noite e não a encontrei. Por isso, não há mais nada com que eu a pudesse ter ofendido. – pensava para si enquanto a seguia.
Baochai e Tanchun estavam a apreciar a dança das cegonhas. Quando viram Daiyu, começaram a conversar com ela.
Ao ver Baoyu, Tanchun disse com um sorriso:
– Está tudo bem consigo, irmão Bao? Já não o vejo há três dias.
– Está tudo bem, irmã. – respondeu Baoyu com sorriso. – Perguntei anteontem à nossa cunhada mais velha por si.
– Irmão Bao, venha cá. – disse Tanchun. – Quero conversar consigo.
Baoyu despediu-se de Baichai e Daiyu e acompanhou Tanchun até ao pé de uma romãzeira.
– O nosso pai chamou-o nestes últimos dias? – perguntou Tanchun.
– Não, ele não me tem chamado. – respondeu Baoyu com um sorriso.
– Alguém me disse ontem que ele o chamou.
– Essa pessoa deve ter ouvido mal. Ele não me chamou.
Tanchun sorriu e continuou:
– Consegui poupar uma dúzia de cordões de moedas nestes últimos meses. Quero que os aceite e me compre algumas boas peças de caligrafia e pinturas ou alguns objetos interessantes que conseguir descobrir na próxima vez que sair da mansão.
– Não tenho encontrado nada de interessante nem de refinado durante os meus passeios pela cidade e pelos mercados dos templos. – disse Baoyu. – Nada mais tenho visto do que antiqualhas de ouro, prata, bronze e porcelana, ou coisas como sedas e cetins, guloseimas ou vestimentas.
– Não quero nada dessas coisas! – disse Tanchun. – O que eu quero são coisas como pequenas cestas de vime, ou caixas de incenso de bambu esculpido ou os pequenos fornos de argila que você me comprou na última vez. Adoro esse tipo de coisas delicadas, mas as outras raparigas também gostam muito. Atiram-se a essas coisas como se fossem tesouros.
– Você quer essas coisas. – gargalhou Baoyu. – São baratas. Dê aí umas quinhentas moedas aos criados que eles lhe enchem duas carruagens com esse tipo de coisas.
– Os criados não têm gosto para apreciar essas coisas. – respondeu Tanchun. – Você compre-me coisas simples, mas que não sejam banais, originais, mas que não sejam grosseiras. Vou fazer-lhe um outro par de sapatos. Vou fazê-los com mais primor do que da última vez. Pode ser?
Baoyu riu e disse:
– Por falar em sapatos, lembro-me de que encontrei o nosso pai enquanto usava os sapatos que você me fez. Ele perguntou desgostoso quem os tinha feito. Tive medo de dizer que tinha sido você. Então, disse-lhe que foram um presente da Tia Wang pelo meu aniversário. Ao ouvir isso, ele não pôde fazer mais comentários. Mas depois de um silêncio, ele disse: “Não valia a pena! Que desperdício de tempo, energia e seda!” Quando regressei ao quarto, falei com a Xiren e ela disse-me: “Isso não é nada. Mas a concubina Zhao tem-se queixado irritada: O próprio irmão mais velho dela usa sapatos e meias furadas e ela nem quer saber. Mas faz sapatos para o Baoyu.”
Tanchun ficou arreliada e disse:
– Que absurda que ela é! Ela acha que o meu trabalho é fazer sapatos? Huan não tem roupas, sapatos e meias que cheguem? Além disso, ele também tem muitas criadas que lhe podem fazer sapatos. Do que é que ela se pode queixar? A quem é que ela se tem queixado? Se eu fizer um par de sapatos no meu tempo livre, posso dá-los a quem quiser. Ninguém tem o direito de interferir nas minhas escolhas! Ela irritou-se por isso? É louca!
Baoyu acenou com a cabeça e disse com um sorriso:
– Você não sabe já? É natural que ela pense de uma maneira diferente.
Ao ouvir isso, Tanchun ficou ainda mais abespinhada. Virou de repente a cabeça e disse:
– Você ficou louco também? Decerto que ela pensa nas coisas de uma maneira diferente, de uma maneira dissimulada e insidiosa. Ela pode continuar a pensar dessa forma que eu não me importo. Só ouço as palavras do nosso pai e da sua esposa e não me preocupo com o que os outros dizem sobre mim. Se os irmãos e as irmãs me tratarem bem, vou tratá-los bem sem pensar se ele ou ela é filho de uma esposa ou de uma concubina. Na verdade, eu não devia estar com esta conversa, mas ela é demasiado absurda! Vou contar-lhe uma outra história ridícula. Dois dias depois de eu lhe dar o dinheiro para que você me comprasse coisas para me distrair, fui cumprimentá-la e ela queixou-se da sua falta de dinheiro e das suas dificuldades. Não lhe prestei atenção. No entanto, quando todas as criadas saíram do quarto, ela começou a criticar-me e perguntou-me porque é que lhe dei o dinheiro que eu tinha poupado em vez de o dar a Huan. Ao ouvir isso, não sabia se havia de rir ou de chorar. Então, despedi-me dela e fui até ao quarto da nossa Senhora.
Tanchun ainda estava a falar quando Baochai a interrompeu de longe com as suas palavras sorridentes:
– Ainda não acabaram a vossa conversa? Venham cá. Vê-se mesmo que vocês são irmãos. Deixaram os outros e foram falar sobre os vossos assuntos privados. Não conseguimos ouvir nem perceber uma única palavra da vossa conversa!
Tanchun e Baoyu sorriram e foram-se juntar a ela.
Daiyu tinha saído e Baoyu soube que ela se estava a esconder dele. Ele decidiu esperar alguns dias e aproximar-se dela depois de a sua disposição ter melhorado. Quando baixou a cabeça, viu que o chão estava coberto de flores caídas incluindo pétalas de beijo-de-frade e de flores de romãzeira.
– Ela está tão zangada que nem sequer recolhe as flores caídas no chão. – suspirou Baoyu. – Vou trazer estas flores comigo e tentar falar com ela amanhã.
Baochai convida-os para darem um passeio.
– Vou-me juntar a vocês depois. – disse Baoyu.
Quando Baochai e Tanchun se afastaram, ele recolheu as flores nas suas vestes. Atravessou uma pequena colina, depois um riacho, passou por entre árvores e flores e dirigiu-se para o sítio onde havia enterrado com Daiyu as flores de pessegueiro caídas. Quando chegou ao túmulo das flores e antes de cortar rumo à colina, ouviu o som de soluços que vinham do outro lado da encosta. Era alguém que se lamentava e soluçava, como se tivesse o coração despedaçado.
Deve ser alguma criada que foi maltratada e veio para aqui chorar. – pensou Baoyu. Para quem é que ela trabalhará?
Parou para ouvir a rapariga que murmurejava em gemidos:

Caindo e voando, as flores enchem o céu,
Quem lamentará as cores que desbotam e o perfume que se esvai?
Suavemente, teias de aranha flutuam entre pavilhões primaveris,
Gentis penugens de salgueiro colam-se às cortinas bordejadas.

Suspira a rapariga na sua câmara pelo fim da primavera,
A melancolia enche-lhe o coração.
Sai da alcova de enxada na mão,
Contendo-se em pisar as flores caídas no chão.

Salgueiros e olmos viçosos, verdejantes
Ignoram se são flores de ameixeira ou de pessegueiro que o vento carrega.
As ameixeiras e os pessegueiros voltarão a florescer,
Mas quem restará no quarto na próxima primavera?

No terceiro mês tecem-se ninhos perfumados,
Mas as andorinhas no telhado são cruéis.
Na próxima florescência, voltarão a bicar pétalas,
Os ninhos cairão do telhado e o quarto estará vazio.

Trezentos e sessenta dias por ano,
Ameaçada sem clemência por sabres de vento e adagas de gelo.
Quanto tempo se manterá esta flor fresca e bela?
Soprada pelo vento, irá tombar e desmanchar-se sem encontrar o seu destino.

Caídas, as flores mais viçosas são difíceis de encontrar,
Tristonha, a coveira das flores de pé junto aos degraus.
Sozinha, de enxada na mão, disfarça as suas lágrimas,
Que resvalam pelos galhos vazios como um orvalho de sangue.

Cucos em silêncio ao anoitecer.
Regressa com a enxada e cerra as portas.
Uma candeia a óleo alumia a parede, ainda mal adormeceu,
A chuva fria começa a bater na janela, o cobertor está ainda frio.

O que causou esta minha dupla angústia?
O amor e o despeito à primavera
Porque num repente vem e de repente se vai,
Chega sem aviso e parte sem rumor.

Ontem à noite, do pátio surgia uma canção triste,
Foi o espírito das flores, ou o espírito dos pássaros?
Difícil é conter o espírito das flores ou dos pássaros,
Porque os pássaros não falam e as flores acanham-se.

Anseio por ter asas e flutuar
Com as flores até ao fim do mundo.
Mas mesmo no fim do mundo,
Encontrarei eu uma encosta para sepultar as flores perfumadas?

Melhor será recolher as formosas pétalas numa bolsa de seda,
E enterrar a sua beleza com terra limpa.
Vieste pura e pura partirás,
Sem cair em valas ou suja de lama.

Agora finadas, irei enterrá-las,
Não se sabe o dia em que partirei.
Riem da minha loucura por enterrar flores caídas,
Mas quem me irá sepultar quando morrer?

Vejam, a primavera que finda com as flores que caem,
A beleza que desbota e se desvanece.
Quando a primavera acaba e a beleza murcha,
Quem saberá das flores caídas e da rapariga morta?

Ao ouvir o lamento triste da rapariga, Baoyu desaba numa enorme comoção.
Se o nosso leitor quiser saber mais pormenores sobre esta estória, leia por favor o próximo capítulo.

26 Nov 2022

Han Fei Zi e o legismo

Han Fei (280 -233 a.E.C.) nasceu na família real do País de Han, no centro da China, durante a fase final do Período dos Estados Combatentes. Na sua formação foi determinante a influência de Xun Zi um confucionista de grande relevo político à época. Para além deste mestre, a outra fonte para as suas teorias políticas foi, curiosamente, o “Dao De Jing” de Lao Zi, que Han Fei interpretava mais como um texto político do que como um guia místico, como pareceu ser prática subsequente e mesmo hodierna. Han Fei via o “Dao” como uma lei natural que todas as coisas e todos os homens estavam destinados a seguir. No entanto, o filósofo acabou por chegar a um pensamento em que o soberano era colocado no centro absoluto, controlando o Estado com a ajuda de três conceitos: poder (“shi”), técnica (“shu”) e as leis (“fa”). Este pensamento seria objecto de um radical refinamento ao longo da sua vida e obra.
Han Fei assistiu ao gradual, mas constante, declínio do Estado Han e, em diversas ocasiões, tentou persuadir o rei a seguir políticas diferentes, apesar do monarca nunca ter ouvido os seus conselhos (diz-se que Han Fei seria gago, o que se, por um lado, lhe dificultava a comunicação das ideias na corte, por outro, o terá levado a desenvolver aquele que ainda hoje é considerado como um dos mais brilhantes estilos escritos da China). Com um desespero crescente, via como os políticos do seu tempo eram levados pelos filósofos Ru (nome da escola confucionista) e pelos seguidores de Mo Zi (490-403 a.c. Filósofo de estatura equivalente à de Confúcio, que recusava a ordem aristocrática e preconizava uma certa noção de “Amor Universal”) que pregavam interminavelmente acerca das virtudes morais.
Para além desta influência, que considerava perniciosa em extremo, os estados da sua época estavam à mercê de bandos de cavaleiros mercenários que a cada passo escarneciam e agiam contra as leis, acrescentando à confusão da sociedade e dos regentes, como uma errante nuvem negra de anti-heróis pairando sobre todo um período histórico.
Por fim, as obras de Han Fei acabaram por chegar ao centro de poder do Estado de Qin, onde pontificava aquele que viria a ser o Primeiro Imperador (o imperador Huangdi). No entanto, na corte Qin o filósofo foi rapidamente vítima de uma teia de suspeitas relacionadas com a sua origem no país de Han e consequente incapacidade natural de servir a outro senhor. Este clima conspiratório acabaria por conduzir Han Fei ao suicídio.

O Legismo da Dinastia Qin

O ponto principal e básico de onde Confúcio e Mencius partiram assentava numa visão do homem como fundamentalmente bom. Cada ser humano nascia com “de” ou “virtude moral”. Curiosamente, um dos maiores confucionistas da antiguidade, e mestre de Han Fei, Xun Zi (298 -238 a.E.C.), acreditava exactamente no oposto: que todos os seres humanos nasciam fundamentalmente depravados, egoístas, gananciosos e cheios de luxúria. No entanto, esta não era uma visão inteiramente tenebrosa e pessimista da humanidade, pois Xun Zi acreditava, simultaneamente, que os homens poderiam ser tornados bons através da educação e da convivência social. O seu aluno Han Fei começou a pensar a partir do mesmo ponto, embora tenha chegado à conclusão de que os seres humanos são tornados bons pelas leis do Estado.
Para o filósofo, a única forma de contrariar o egoísmo humano e a sua depravação era através do estabelecimento de leis que recompensassem abundantemente as acções, que beneficiassem os outros (a comunidade, a sociedade; o próprio Estado, na figura do soberano) e punissem impiedosamente todas as acções que causassem mal aos outros ou ao Estado. Se, para Confúcio, o poder era algo para ser usado em benefício do povo, para Han Fei, o benefício do povo residia no controlo sem restrições do egoísmo individual.
Radical, Han Fei acrescentava que se não se puder confiar no próprio Imperador para se comportar à altura do interesse do seu povo, isto é, se se pode esperar egoísmo do próprio Imperador, é necessário que as leis tenham um carácter supremo acima mesmo do soberano. Idealmente, se as leis fossem suficientemente bem escritas e aplicadas com agressividade, não existiria necessidade sequer de liderança individual, pois as leis seriam só por si suficientes para governar o Estado. Mais um aspecto em directa oposição ao idealismo confucionista de uma condição social humana em que as leis não seriam necessárias.
Quando os Qin ganharam poder imperial ao cabo de décadas de guerra civil, adoptaram as ideias dos Legistas como a sua teoria política. Na prática isto significou apenas uma nova forma de totalitarismo uniforme. As pessoas eram obrigadas a trabalhar por períodos indefinidos em projectos do Estado, um dos quais foi a construção de secções de muralhas defensivas, parte da Grande Muralha. Todos os tipos de discórdia com o governo passaram a ser objecto de pena capital. Todos os modos de pensamento alternativo, que os Legistas entendiam como encorajando a tendência natural de fraccionamento da humanidade, foram banidos. Estas políticas acabariam por causar a queda da própria Dinastia Qin ao cabo de apenas catorze anos no poder. As revoltas locais não encontraram resistência por parte dos oficiais do governo, que temiam que os próprios relatórios sobre essas revoltas pudessem ser considerados como críticas ao governo e assim resultassem na sua própria execução. A corte só descobriu estes levantamentos quando era já demasiado tarde e, em termos gerais, os Qin caíram em descrédito por mais de dois milénios.
Apesar de tudo isto, não é de facto simples desacreditar o Legismo como apenas um curto, anómalo e desagradável período de totalitarismo na história da China. Os Legistas estabeleceram formas de governo que influenciariam profundamente o futuro. Em primeiro lugar, adoptaram e colocaram em prática o idealismo de Mo Zi acerca do utilitarismo: as únicas ocupações a que o povo se devia dedicar deveriam ser aquelas que beneficiassem materialmente os outros, em particular a agricultura. A maioria das leis dos Qin foram tentativas de demover as pessoas de certas actividades inúteis tais como as Letras e a Filosofia. Este utilitarismo haveria de sobreviver como uma das correntes mais dinâmicas da teoria política chinesa.
Em segundo lugar, os Legalistas inventaram aquilo a que podemos chamar “o primado da lei”, ou seja, a noção de que a lei é superior a cada indivíduo, incluindo governantes. É a lei que deve governar e não os indivíduos, cuja autoridade se limita à administração da lei.
Em terceiro lugar, os Legistas aplicaram, quase como conclusão lógica, uma padronização uniforme da lei e da cultura. De modo a ser eficaz, a lei deve ser aplicada com uniformidade, ninguém deve ser punido mais ou menos severamente por causa do seu estatuto social. Esta noção de igualdade perante a lei permaneceria, com algumas alterações (nomeadamente na questão religiosa, levantada sobretudo com o advento do budismo organizado na China), um conceito central nas teorias chinesas de governo.
Na sua busca de uniformização, os Qin levaram a cabo um projecto de padronização da cultura chinesa abarcando o sistema de escrita, o sistema monetário, os pesos e medidas, e os sistemas filosóficos (o que conseguiram sobretudo através da destruição de escolas de pensamento rivais). Tudo isto afectou profundamente a coerência da cultura chinesa e a centralização do governo. A dinastia que lhes sucedeu, a dos Han (202 a.E.C. – 9 a.E.C.), continuou esta tentativa de fusão de escolas rivais num processo conhecido por Síntese Han.

16 Nov 2022

A solidão e a saudade na poesia de Wang Wei

Wang Wei(701-761), o poeta budista, nasceu no condado de Qi, província de Shanxi. É um dos grandes representantes da poesia paisagística e pastoril da dinastia Tang. Desde muito cedo, acreditava no budismo, pensava de uma forma inconvencional, ademais, fez uma carreira de oficial saliente. O núcleo da sua poesia é a beleza e solidão das montanhas e dos rios, carrega versos que refletem o panorama da montanha arborizada e o prazer da vida em seclusão, a tranquilidade da floresta de bambu e a beleza e solidariedade da lua. Muitas vezes, sua forma de expressar representa a combinação entre a poesia, a pintura e a música, e expressa o vazio do silêncio e o baço do indistinto sem separar do ambiente natural, seu estado de veemência e serenidade, a profundeza e a cordialidade da sua alma. Depois dos quarenta anos, passou a viver meio oficial e meio ermita. Em forma de jueju (composições poéticas belas e entoadas compostas por quatro versos), vamos viajar pelos recantos nostálgicos criados pelo Wang Wei:

鹿柴

空山不见人,
但闻人语响。
退影入深林,
复照青苔上。

Floresta dos cervos

Ravina vasta, desabitada,
Eco de voz se ouvia.
Raios do ocaso penetram na floresta profunda,
Sombra matizada, sobre o musgo verde, reflectia.

竹里馆

独坐幽簧里,
弹琴复长啸。
深林人不知,
明月来相照。

Recanto de bambus

Sozinho, sentado no meu recanto,
Toco, para o céu, assobio.
Nesse recanto profundo, ninguém sabe se existo
Só a lua com seu brilho e companheirismo.

送别

山中相送罢,
日暮掩柴扉。
春草年年绿,
王孙归不归?

Despedida na montanha

Depois de me despedir do velho amigo,
À noite, silenciosamente, fecho a porta do meu abrigo.
No próximo ano, quando as ervas voltarem a verdejar,
Será que nos voltaremos reunir, amigo?

相思

红豆生南国,
春来发几枝?
愿君多采撷,
此物最相思。

Ervilha de Rosário

A sua árvore cresce nas terras do sul,
Quantos ramos brotaram na primavera?
Colhe mais! colhe até encher sua mão,
Ela é o que mais representa a dor da sua solidão.

杂诗

君自故乡来,
应知故乡事。
来日绮窗前,
寒梅著花未?

Miscelânea

Paisano, vieste da nossa terra
Deves saber as notícias de lá!
Quando partiste, aquela agridoce à frente da janela,
Teria já florescido?

九月九日忆山东兄弟

独在异乡为异客,
每逢佳节倍思情。
遥知兄弟登高处,
遍插茱萸少一人。

Recordo meus amigos no monte Hua no dia do festival Yang

Solitário vagueando por terra desconhecida,
Saudade aperta nesta data festiva.
Lembro amigos no alto do monte, de cornisos na cabeça,
Distantes, sentem a falta da minha presença.

16 Nov 2022

Som e sentido na escrita chinesa

Dando sequência à crítica aos ideogramas como ideologia — ou, no mínimo, à revisão do que costuma ser tomado como o mundo afônico dos ideogramas, convém que nos debrucemos sobre um caso e, por ele, busquemos algumas novas interpretações que ampliem o campo da linguística, no qual nos aventuramos em nossa última coluna. Tomemos Buda como exemplo. O caractere que o representa no extenso rol de ideofonogramas chineses é o seguinte: 佛. Fó, cuja pronúncia se dá no segundo tom.
Huo Datong, “o único psicanalista da China”, nos recorda de que a parte esquerda dos caracteres compostos (no caso de 佛, trata-se do radical para 人, rén, pessoa, ser humano) está, geralmente, relacionada com a imagem, numa conexão lacaniana com o significante que, concreto, encontra correspondência na realidade objetiva. Segundo essa compreensão, ao identificar 人, vejo uma pessoa em pé, e isso já imprimiria “ideogramicamente” o sentido do que hei de ver. A parte direita do caractere (弗, fú, no caso de Buda) seria então a atribuição fonética ao novo caractere, composto. Nesse caso, a origem etimológica perderia o significado ideal, “ideogrâmico”, e figuraria apenas como acessório sonoro à composição. Sendo o caractere 弗 um elemento de negação, poderíamos até aventar a hipótese de que buda, em última instância, seria um não-humano (o que não deixa de ser verdade, em certo sentido: os budas, isto é, os iluminados que nascem no reino humano — pois, em verdade, há budas em todas as direções, todos os reinos e todos os tempos, animais, espirituais, divinos — deixam de ser humanos sujeitos ao ciclo quase eterno de renascimentos e mortes, libertando-se por meio da iluminação. Chegam a ser algo como não-humanos, portanto…)
Mas não é isso que se dá, a menos que queiramos poetizar a não-humanidade (ou a suprema humanidade) de Buda. A composição do caractere ocorre por uma razão simples, nos diz Huo Datong: a visão do elemento à esquerda acionaria o hemisfério direito do cérebro, responsável pela compreensão mais abrangente e visual do contato sensorial, lidando com a totalidade orgânica dos dados percebidos e com sua conexão com elementos concretos.
A visão do elemento à direita acionaria, por sua vez, o hemisfério esquerdo do cérebro, responsável por funções fonadoras, racionalização, pela concretude e pela generalidade dos processos linguísticos.
E o psicanalista nos diz mais, a partir de bases que apenas reforçam que o mito do ideograma, como sugeriu John DeFrancis, é mesmo um mito: Datong afirma existir uma quebra entre a imagem e a realidade, com a primeira não mais remetendo à segunda, num processo de patologização da linguagem alienada:
“A ruptura que ocorre entre a figura do caractere chinês e o significado representa a ruptura do vínculo entre o imaginário e o real. A manifestação patológica dessa ruptura é a amnésia, cujo estado extremo é que o paciente não se lembra mais de nada. […] Podemos notar também que o pictograma do cavalo no ideofonograma da mãe desempenha apenas um papel fonético, enquanto sua figura como imagem visual do cavalo perdeu sua função de representação-coisa, ou seja, seu elemento da figura foi reprimido. O pictograma do cavalo agora não indica o cavalo, mas apenas o som, ma.” (Huo Datong em francês no original).
Explicando que o elemento cavalo do caractere para mãe (o 马 de 妈) cumpre apenas função fonética, o psicanalista diz algo semelhante ao que nos diz Jonathan Stalling quando critica a visão reificada, concreta e imagista que — sobretudo — Ezra Pound imprimiu à sua leitura da escrita chinesa.
Pound fazia parecer que a escrita ideogrâmica era sumamente fotográfica, com tudo sendo diretamente vinculado a um elemento do real, algo aproximado do mito que DeFrancis analisa. Stalling, sobre isso, percebe a constante “ruptura entre real e imaginário” que Huo Datong enunciou e desmente, assim, a ubíqua relação concreta dos poetas:
“A velha teoria quanto à natureza do caractere escrito chinês (que Pound e Fenollosa seguiram) é a de que o caractere escrito é ideograma — uma imagem estilizada da coisa ou conceito que representa. A teoria oposta (que prevalece hoje entre os estudiosos) é que o caractere pode ter suas origens pictóricas em tempos pré-históricos, mas que essas origens foram obscurecidas em todos, exceto em alguns casos muito simples, e que, em qualquer caso, os utilizadores nativos não têm o significado pictórico original em mente enquanto escrevem.” (Jonathan Stalling).
Há uma questão interessante que surge dessa sequência de críticas, e que pretendemos desenvolver no futuro, mas aqui a sumarizo: o tal mito ideográfico, ao sobrepor a visualidade à materialidade sonora da língua falada e, com isso, ignorar a dissociação que a história imprime entre caractere e sentido originário, faz com que os leitores — sobretudo — ocidentais da escrita chinesa, de sua poética própria, valorizem a pictografia em detrimento da sonoridade, a materialidade concreta dos traços em lugar da fluidez maviosa que o falar carrega consigo.

Bibliografia

Datong, Huo. (s/d). L‘inconscient est structuré comme l’écriture chinoise. Lacan et le monde chinois. Disponível em: http://www.lacanchine.com/Ch_C_HuoInc_Txt.html
Duarte-Plon, L. (2003). Psicanalista Huo Datong. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica [online], v. 6, n. 1. DOI: https://doi.org/10.1590/S1516-14982003000100009.
Durazzo, L.; Jatobá, J. (2014). Ensaiando uma tradução coletiva: Yao Feng e o som da poesia chinesa. Translatio, n. 7. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/translatio/article/view/50795
Stalling, J. (2011). Poetics of Emptiness: Transformations of Asian Thought in American Poetry. New York: Fordham University Press.

16 Nov 2022

Os desterrados de Cai Jia

Zhong Kui, o terrível sufocador de demónios que transita entre a cultura erudita e popular como protector contra o mal, foi sendo sempre representado em pinturas com a sua temível expressão furiosa de olhos protuberantes. No século dezoito nota-se uma intrigante representação da mítica figura, olhando a sua estranha face num espelho. Os espelhos apareciam em muitas pinturas desde a dinastia Song, mas caracterizando a compreensão do lugar da mulher no gineceu: o reconhecimento da beleza e elegância feminina que em excesso revela a vaidade ou apenas a nostálgica percepção da passagem do tempo.
Na história da pintura, pessoas mirando-se ao espelho podem ver-se logo no memorável rolo de Gu Kaizhi (345-406) Advertências da instructora da corte para as senhoras do palácio, que na sua sexta cena é acompanhada das palavras: «Todos sabem como embelezar as suas faces, ninguém sabe como adornar o carácter.» Algo dessa ideia da moldagem do carácter poderá passar para o retrato de Zhong Kui olhando a sua face num espelho. Numa pintura de Cai Jia (1680-1760) que está no Museu de Arte de Santa Bárbara (Califórnia), feita na horizontal mas que se apresenta montada num rolo vertical (tinta e cor sobre papel, 88,9 x 121,9 cm), ele está sentado numa embarcação, a sua cabaça de viajante pendurada negligentemente num mastro evocando o seu trágico destino de condenado à errancia e à sua frente numa jarra, um arranjo de flores, símbolizando empenho na educação, evoca o seu passado de estudante diligente.
Olhando as suas feições grotescas, motivo da sua condenação, o guardião da paz contra demónios inquietantes não parece incomodado. Na sua figura duplicada de cruzador de fronteiras entre o mundo dos vivos e o dos condenados, entre o fantástico popular e a literatura erudita interroga-se um obscuro desígnio na confrontação com o mal.
Cai Jia teve uma formação inicial de ourives, tendo vindo para a grande metrópole de Yangzhou para se dedicar à pintura como pintor profissional sendo por vezes associado ao grupo dos chamados «Oito excêntricos» (Yangzhou baguai) que se distinguia pela sua originalidade e liberdade de atravessar limites entre a pintura dos amadores e dos profissionais. No rolo vertical Visitando um eremita nas montanhas do Outono (tinta e cor sobre papel, 110,8 x 38,8 cm, no Museu de Arte de Indianapolis), ele figura essa ultrapassagem de limites reflectindo sobre a concepção budista do «eu vazio», silencioso e condicionado pelas forças externas do mundo em redor, tal como se pode ler em poemas de Wang Wei (701-761) escrevendo: «A montanha vazia está cheia de árvores, tocada por uma gloriosa luz que vem de longe. Os eremitas encontram-se face a face, esquecendo os problemas mundanos. Agora mesmo se tivessemos a fermentação de xingfeng, soltaríamos um longo grito e completamente ébrios, regressariamos a casa.»

10 Nov 2022

Filosofia da Paz

Em “The Crisis of Hermeneutical Consciousness in Modern China” (1997), Yin Lujun da Universidade de Stanford reflete sobre os desafios da filosofia chinesa contemporânea, defendendo que esta necessita de se reconstruir, após o reconhecimento da perda de referentes da filosofia tradicional, afirmando ainda que a reconstrução não pode ser feita ao acaso nem entregue apenas a uma ou várias perspetivas filosóficas ocidentais em conflito (1997: 233). Certo fica que não bastará à filosofia chinesa apegar-se às noções da ética tradicional, nem resumir-se à tematização de perspetivas cientifistas, nem tão-pouco subordinar os interesses materiais a ideias morais e muito menos ater-se em exclusivo à noção de progresso. Ora embora se reconheça a importância de uma modernização orientada por leis, nomeadamente leis históricas, a filosofia chinesa não se esgota no seguir de um único caminho filosófico, seja ele de orientação marxista ou tradicionalista, modernista ou outro qualquer. Problemático é, segundo o autor, o que considera “o uso e o abuso da Filosofia Tradicional Chinesa” (Yin, 1997:237). Não se julgue, porém, que estamos perante uma condenação da filosofia tradicional tout court. Nada disso, pede-se antes que os filósofos e outra gente de cultura tenham consciência de que quando recorrem à filosofia tradicional chinesa devem contar com o processo hermenêutico em que se envolvem, inalianável de um intérprete, bem como de um horizonte de interpretação, ou seja, é preciso que os pensadores se consciencializem de que o passado nos é devolvido com as nossas marcas mentais do presente. Assim sendo, não devemos procurar captar o sentido puro e original da filosofia chinesa, mas tal como ele se nos oferece nos nossos dias e de acordo com as nossas vivências. Pelo que “o sentido nunca pode ser separado da interpretação e da compreensão” (Yin, 1997: 246), para todas as tentativas de reconstrução da filosofia chinesa.
Aceitando esta orientação filosófica interessante e válida, há que procurar encontrar e construir caminhos semânticos possíveis para a filosofia chinesa contemporânea, incluindo, mas também indo além da carga ideológica que lhe tem vindo a ser associada.
Nota-se desde os primórdios caligráficos do pensamento chinês uma preocupação constante com a noção harmonia (和/和谐 – hé/héxie), mas tamém com a de paz (和平hépíng) , que é idêntica numa das formulações caligráficas para paz (há várias!) no primeiro dos caracteres, ou seja, a noção de paz está intimamente ligada à de harmonia, integrando esta úlima.Como a escrita chinesa começou por ser monossilábica, quer dizer, constituída por apenas um caractere, pois o dissilabismo é muito posterior, admite-se sem problema que tempos houve em que “harmonia” e “paz” coincidissem no seu registo caligráfico como hé (和) , caractere cujos constituintes são “espiga” (禾 hé) e “boca”(口 kǒu), corporizando desta forma conceitos, que encheu de elementos concretos e materiais.
Desde o Clássico das Mutações (《易经》Yìjing), um dos mais antigos do mundo e o primeiro na ordem dos materiais filosóficos ao dispor na China, que encontramos entre os seus 64 hexagramas, um devotado à noção de paz, o décimo primeiro, na ordenação de Richard Wilhelm em I Ching or book of changes (1989: 48). Este hexagrama, tài (泰), também significa “paz”, sendo o caractere que consta no Monte Tai (泰山 Tàishān), o Monte da Paz, fundamental na filosofia chinesa e em todas as escolas da meditação. Ora este hexagrama é constituído pelo trigrama do Céu (乾 Qián) na base e o da Terra (坤 Kūn) no topo, invertendo a posição natural dos dois princípios fundamentais da filosofia tradicional chinesa, as primeiras corporizações do princípio masculino Yang (阳 Yáng) e do princípio feminino Yin (阴 Yīn). Por que razão traz esta inversão da ordem natural paz, boa sorte e sucesso, como nos é dito no Juízo do Hexagrama? Porque, desenvolve-se na Imagem, o Céu e a Terra se unem de modo a completar-se, viabilizando a força do Céu, que é criatividade, o florescimento de toda a Terra, a receptiva. O Céu ao descer ao interior da Terra torna-se dadivoso, cobrindo-a de presentes, resplandesce em prosperidade concreta e material, que os governantes sabiamente adminstrarão. Fique-se com o Juízo do Hexagrama: “Paz, os pequenos distanciam-se, os grandes aproximam-se, boa sorte. Sucesso.” (《彖》: 泰,小往大来,吉,亨。《易经•泰卦第十一》). Percebe-se então como a paz, o florescimento e a prosperidade se encontram indissoluvelmente ligados na filosofia tradicional chinesa, aqui interpretada e reconstruída.
Em Visitações, um texto poético que tive a felicidade de publicar na Editora Labirinto, em 2022, dediquei a última parte da obra à Adivinhação, tendo escrito a seguinte estrofe de um poema completmentar inspirado no hexagrama Tai (2022: 140):

Invertem-se as posições
Na união entre o Céu e a Terra,
Haverá finalmente paz,
De dentro vem a força,
A luz submete os parceiros.
O Céu desce à Terra com grande alegria,
É gozar a oportunidade na grandeza e fantasia,
O tempo é propício para casar a jovem princesa,
Entregue em bodas humildes e sem valentia,
O destino tomará as rédeas à monarquia.

A propósito da paz, não seria correto se fosse olvidado o papel desta noção em alguns dos mais distintos pensadores ocidentais, nomeadamente no pai da filosofia contemporânea europeia, Immanuel Kant (1724-1804), que virá a tematizar a paz, especificamente, em A Paz Perpétua, Um Projecto filosófico, opúsculo datado de 1795/96. Kant assume posições muito semelhantes às que encontramos nas filosofia chinesa tradicional e, e como adiante veremos, também contemporânea. Neste pensador, o estado natural de guerrra relaciona-se com o mal que é impossível de extirpar da condição humana, prendendo-se com o egoísmo de uma humanidade ainda não domada pela lei. Para este filósofo, essencialmente legalista, só o estado de direito, e melhor uma comunidade republicana, pode pôr termo à luta incessante que as gentes, de acordo com os seus instintos e interesses, travam entre si. E ainda que Kant seja absolutamente contra a guerra, no ponto 2 da primeira secção do seu tratado deixa bem claro que nenhum estado, seja ele grande ou pequeno, pode ser adquirido por outro por troca, compra ou doação, acrescentando perentóriamente no ponto 5 que “Nenhum estado deve imiscuir-se pela força na constituição e no governo de outro Estado (Kant, 1989:123)”. O ideal será então reflectir filosoficamente nas condições de possibilidade de uma paz perpétua, embora se reconheça que a tendência para a guerra na natureza humana e a vontade de poder dos governantes serão o maior dos obstáculos a este projecto que poderá ser aconselhado e esclarecido por filósofos. O plano de paz futura e perpétua não excluirá exércitos constituídos por cidadãos voluntários com o objetivo de “defender a Pátria” (Kant, 1989: 122), mas excluirá estratagemas desonrosos como, entre outros, empregar assassinos e envenenadores nas forças militares (Kant, 1989: 124). O conflito armado é sempre inferior à paz e tentar vencer através de uma “guerra de extermínio” conduziria a “uma paz perpétua sobre o grande cemitério do género humano” (Ibidem). Pelo que defende no primeiro artigo para a paz perpétua, que a melhor consituição civil de cada estado deverá ser republicana por se basear nos princípios da liberdade e da igualdade dos cidadãos perante a lei, constituindo-se no segundo artigo definitivo para a paz perpétua o direito das gentes numa federação de estados livres, uma república mundial, regida pelo sistema representativo, que assenta na separação do poder legislativo e executivo. Sendo que o poder legislativo irá conseguir travar “a maldade da natureza humana, que pode ver-se às claras na livre relação dos povos (ao passo que no Estado legal-civil se oculta através da coacção do governo )” (Kant, 1989: 133).
Na verdade, a visão que Kant tem da natureza humana no estado natural é bastante pessimista, mas não difere de outras filosofias legalistas da tradição chinesa, como a de Hanfeizi (韩非子, ?280 -?222 a.C) ou a do confucionista Xunzi (荀子, 316-?238 a.C ). E apesar de se distanciar da posição de neutralidade de Confúcio (孔子 551- 479 a.C ), o fundador do Confucionismo, em relação à natureza humana, ou da claramente positiva de Mâncio (孟子, 372-289 a.C), mantém um grande otimismo nas capacidades da lei para criar “um Estado de povos (civitas gentium) , que (sempre, é claro, em aumento) englobaria por fim todos os povos da Terra.” (Kant, 1989: 136), seria, nas suas próprias palavras, uma república mundial, ou seja, uma federação antagónica à guerra. (Ibidem). Os estados deixavam-se assim guiar por leis com o único objetivo de fomentar a paz nos seus domínios e também do ponto de vista internacional. E, finalmente, todos viveriam bem de acordo com este direito cosmopolita, onde floresceria a prosperidade dos povos assente no “espírito comercial que não pode coexistir com a guerra.” (Kant, 1989: 148), numa federação, onde os filósofos teriam um importante papel como conselheiros dos governantes, orientando-os para uma política moral, em estados que reconheceriam como princípios máximos a liberdade e a igualdade, bem como um direito público que regesse as gentes verdadeiramente publicitado, isto é , confessado em voz alta ou publicamente.
Na minha perspetiva, os pilares deste projecto de paz perpétua proposto por Immanuel Kant à beira do século XIX são muito semelhantes às linhas filosóficas assinadas pelo presidente Xi Jinping (习近平) no Relatório para o 20º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, datado de 16 de Outubro de 2022, com o seguinte eixo temático “Manter Erguida a Grande Bandeira do Socialismo com Características Chinesas e Lutar com União pela Construção Integral de um País Socialista Moderno. ” Depois de definidas no ponto 3 a missão e as tarefas do Partido Comunista Chinês na Nova Era, que são: fomentar a prosperidade do povo, o seu progresso material, cultural e ético, bem como auxiliar à convivência harmoniosa do ser humano com a natureza, percebe-se que um importante vector desta modernização recairá, segundo o Presidente, sobre o “desenvolvimento pacífico. Não repetimos o antigo caminho de alguns países de realizar a modernização através de guerra, colonização e saqueio.” (Xi, 2022: 20). Encontramos o mesmo tipo de negação do caminho do conflito armado em Kant e em Xi para sustentar o progresso dos povos. Este último é absolutamente legítimo, não podendo o progresso ético e cultural ser cindido do material, e deve ser conduzido de forma pacífica, de modo a não prejudicar uns para o bem de outros. Também em Xi, à semelhança do que já havia proposto Kant, se nota uma preocupação constante, nomeadamente no ponto 7, com o desenvolvimento do estado de direito na China, o país deve ser integralmente administrado pela lei, pois só esta pode “assegurar a felicidade e o bem-estar do povo, a paz e a estabilidade duradouras do Partido e do Estado” (Xi, 2022: 37).
É, no entanto, no ponto 14, intitulado “Promover a paz e o desenvolvimento mundiais e a criação de uma comunidade de futuro compartilhado para a humanidade” que as afinidades entre ambas as propostas filosóficas se tornam completamente visíveis, quando Xi Jinping defende uma comunidade de futuro compartilhado, viabilizada, antes de mais pela paz, logo seguida de desenvolvimento, cooperação e benefício mútuo entre os estados. Ora nada mais pernicioso, como vimos em Kant, ao espírito comercial do que a guerra. E recorda o presidente Xi: “A China adere sempre ao propósito da política diplomática de defender a paz mundial e promover o desenvolvimento comum e dedica-se à criação de uma comunidade de futuro” (2022: 57). Só a paz, recordemos o hexagrama Tai do Clássico das Mutações, pela união do Céu da Terra, que é duma fertilidade imensa, conduz à comunhão de todos os seres, que seguem com vontade o exemplo deste primeiro casal primordial, viabilizando, pela harmonia gerada, a riqueza material e espiritual, e a prosperidade dos dez mil seres (万物 wànwù) ou tudo o que existe debaixo do Céu. Por fim, e à luz da felicidade e do bem-estar que a comunidade compartilhada e a coexistência pacífica prometem ao País do Meio, não surpreende que o presidente chinês repetidamente frise a sua crença na paz: “A China adota a política de defesa nacional de natureza defensiva, o desenvolvimento chinês representa um engrandecimento das forças pela paz no mundo, e o país jamais buscará a hegemonia nem praticará o expansionismo, não importa qual nível o seu desenvolvimento alcance.” (Xi, 2022: 57)
Em conclusão, a paz não é apenas um princípio ideal, nem um valor moral, mas um caminho que na filosofia chinesa se tem vindo a desenvolver existencialmente, activamente construído pelos governantes, doa a quem doer, desde a mais remota antiguidade. E quando a guerra vinda do exterior, na história, bateu à porta dos chineses, os seus governantes tiveram tendência a fechar-se, construindo muralhas para afastar o mal radical, que morava ao lado, a Norte, nas hordas guerreiras de mongóis, manchus, japoneses, ou que ameaçava do Oeste Europeu e de outros povos ocidentais. O futuro promete ser diferente, porque é construído em tempos de paz, já que a China insiste em manter-se neutra, sempre que a procuram aliar à guerra, por acreditar ser esta a melhor forma de trazer o bem-estar material e espiritual a 1.4 biliões de chineses e à comunidade humana.

Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2022. Visitações. Fafe: Editora Labirinto.
Kant, Immanuel. 1989. A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70.
Xi Jinping (习近平). 2022. Relatório para o 20º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, 16 de Outubro. 中央广播电视总台欧拉中心葡萄牙语部译 (Trad. pelo departamento de Português do Centro EuroLatino da Rádio e Televisão Chinesa).
Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of changes. London: Arkana, Penguin Books.
Yin Lujun. 1997: “The Crisis of Hermeneutical Consciousness”. New Essays in Chinese Philosophy. Editor Hsueh-li Cheng. Asian Thought and Culture. General Editor Wei-hsun Fu. Peter Lang. Vol. 28, pp. 233-249.
張中鐸(編)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores.
https://www.cccm.gov.pt/

10 Nov 2022

A fotografia de Yao Feng e a impossibilidade do humano

Num mundo impermanente, em que a realidade constantemente se transforma sob os nossos olhos, é ofício dos homens fixar instantes e dos poetas dotá-los de algo que, eventualmente, se assemelhe à eternidade. Fazem-no através da beleza, é certo, mas também do riso, das lágrimas, do trabalho e do inusitado. Fazem-no também através da sua sensibilidade particular e da sua privada mestria no arranjo das palavras, que assim recompõem o mundo e constroem uma humanidade, aparentemente pessoal, mas que no limite remete para a universalidade. E aí pouco importa a língua como pouco importa a linguagem.
Yao Feng revela-nos constantemente a insatisfação do seu olhar, a desadequação do mundo à sensibilidade e à razão, na sua poesia escrita e agora na poesia que emerge das fotografias com que edifica instantes reveladores e sábios. Tal como o verso nasce da intuição, tornada verbo, de um instante, também a fotografia nos espelha a realidade do tempo, que não é mais que essa sucessão emaranhada e confusa de momentos, em que passado e futuro proclamam a sua inexistência em prol de um presente tão materialmente possível de agarrar como a espuma que o mar nos oferece nas praias solitárias da memória. Há uma irrealidade fascinante em cada imagem de Yao Feng, alimentada pelas palavras breves dos títulos que, ao invés de limitarem a interpretação, pelo contrário, abrem portas múltiplas e avenidas arejadas a um sensível entendimento do real.
É quando o coração altera o seu ritmo, ainda que metaforicamente, que o tempo perde o seu carácter linear e no instante se escavam múltiplas eternidades. E é esse outro ritmo que se evola das imagens de Yao Feng. Não estamos perante uma suspensão, uma descrição paisagística, mas em narrativas plenas de significados, intervenientes, de algum modo revolucionárias. As suas fotografias não contam ou recontam uma história: remetem-nos para infinitas narrativas que cada espectador terá de reconstruir, também de acordo com a falsidade da sua memória e a veracidade das suas paixões. São por isso desafios moventes, consistentes como as nuvens que interiormente transformamos em montanhas, trovões capazes de se repercutir pelos vales de cada particular solidão. Assim, produtos forjados pelo olhar de um sujeito que interpreta e recria o mundo, por vezes irónico e triste, doutras tomado pelo espanto, pelo desejo ou pelo medo, estas imagens não se limitam a si próprias em arremedos estéticos: elas e os seus títulos encetam uma demanda inesgotável em cada um de nós e em nós despertam uma reflexão moral e política, que questiona os fundamentos mais profundos do que chamamos liberdade.
Como aqueles peixes que dentro de um aquário respiram a ilusão de viver no mar; como aqueles cães que, numa troca de olhares, exprimem o desejo de habitar um futuro sem trela; como aquele poderoso leão que aspira ao movimento e a ser mais que mera, rígida e fugaz sombra; como aquela fragilidade do bebé que, ainda inocente, se sonha seguro no sorriso de sua mãe; ou como aquele erotismo fácil que tem a capacidade de esboroar a rigidez das palavras de ordem — todos os impossíveis, que nos desvelam esta estranha condição de ser humano, estão ali plasmados nesta surpreendente e imperdível exposição.

SEE – Works by Yao Feng
Armazém do Boi até dia 27 de Novembro

9 Nov 2022

Li Qingzhao – Poemas do erotismo suave

Li Qingzhao李清照 (leia-se Li Chin-tsao) é a grande dama da poesia chinesa. Nasceu em 1084 em Jinan, hoje capital da província de Shandong e é, por certo, a maior poetisa da China. Aos dezassete anos casou com Zhao Mingsheng, um ilustre letrado e mandarim como ela amante das belas-artes, da poesia, da cultura. Viúva, após trinta anos de vida feliz em comum, Li Qingzhao dedicou-se por inteiro à poesia, tendo escrito alguns dos poemas de amor mais famosos e sentidos de toda a poesia chinesa. A sua obra – conhecem-se apenas sessenta e dois poemas – costuma ser dividida em três períodos, primeiro, os anos felizes de casamento e juventude; segundo, o tempo em que viveu separada do marido por causa das guerras que assolaram o império, com versos melancólicos e tristes, na esperança do reencontro com o homem amado; e o terceiro, os anos de viuvez, com poemas de profunda saudade pelo companheiro que partira. Faleceu em 1155. No mundo chinês ninguém mais a esqueceu.
Em Li Qingzhao, a extraordinária sensibilidade feminina mesclando a sublime natureza com o indefinível pulsar de um grande coração. Assim:

采桑子

晚来一阵风兼雨
洗尽炎光
理罢笙簧
却对菱花淡淡妆
绛绡缕薄冰肌莹
雪腻酥香
笑语檀郎
今夜纱幮枕簟凉

Colher fruta madura

A noite, o vento arrasta a chuva,
apaga o fogo sufocante do sol.
Fui buscar a flauta de bambu,
diante do espelho, retoco o meu rosto.
A minha carne,
sob o robe de seda púrpura,
como jade ou neve, liso e perfumado.
Sorrio e digo: “Meu amor, esta noite,
por detrás das cortinas de gaze,
na frescura do nosso leito.”

Ou:

如梦令

常记溪亭日暮
沉醉不知归路
兴尽晚回舟
误入藕花深处
争渡
争渡
惊起一滩鸥鹭

Como um sonho

Recordo o pavilhão junto às águas, ao entardecer,
e nós, embriagados, incapazes de encontrar o caminho de regresso.
Longe de tudo, encharcados em prazer,
remávamos ao acaso, entre tufos de lótus verdes.
Mais depressa, mais depressa…
Na margem, assustadas, garças e gaivotas levantavam voo.

Ou:

武陵春

风住尘香花已尽,
日晚倦梳头。
物是人非事事休,
欲语泪先流。
闻说双溪春尚好,
也拟泛轻舟。
只恐双溪舴艋舟,
载不动许多愁。

Primavera em Wuling

Cessou o vento, a terra exala o perfume das flores caídas,
cai a noite, para quê pentear os meus cabelos?
Sua roupa está lá, mas ele não. Nada mais faz sentido.
Queria falar-lhe e desfaço-me em lágrimas.
Dizem-me, nas margens do lago é esplendorosa a Primavera.
Eu também gostava de passear de barco,
mas receio que uma barca tão frágil
não aguente o peso de tanto sofrimento.

Ou, recreando a fala de uma cortesã, ou prostituta:

点绛唇
 
蹴罢秋千,
起来慵整纤纤手。
露浓花瘦,
薄汗轻衣透。

见有人来,
袜铲金钗溜,
和羞走。
倚门回首,
却把青梅嗅。

Pintar os lábios de vermelho

Após os muitos jogos do baloiço,
levanta-se, cansada, pinta outra vez o rosto.
Foi o orvalho pesado numa frágil flor,
pérolas de suor humedecem a sua roupa fina.
Chega um novo cliente,
volta a tirar as meias,
caem os alfinetes dourados.
Provocante, encosta-se à porta do quarto,
respirando o aroma de uma maçã verde.

traduções de António Graça de Abreu, Outubro 2022

8 Nov 2022

Xunzi – Desfazendo Fixações, Parte I

Tradução de Rui Cascais

Na maioria dos casos, o problema das pessoas é ficarem fixadas em pormenores e permanecerem na ilusão relativamente à grande ordem das coisas. Se forem controladas, regressarão aos padrões correctos. Privadas de certeza, serão hesitantes e confusas. Não existem dois Caminhos para o mundo e o sábio não padece de incertea. Nos dias de hoje, os senhores feudais têm governos diferentes e as cem escolas têm ensinamentos diferentes, de forma que algumas estão certas e outras erradas, e que uns conduzem à ordem e outros ao caos. Os lordes de estados caóticos e os seguidores de escolas perniciosas buscam sinceramente aquilo que consideram correcto e empenham-se em consegui-lo. Melindram-se com aquilo que consideram ser visões erróneas do Caminho e há aqueles que se deixam seduzir pelo que propõem. Favorecem com egoísmo a abordagem em que colocaram o seu esforço e temem vê-la desbaratada. Privilegiam-na e temem que outras abordagens sejam louvadas. Assim, afastam-se cada vez mais da possibilidade de controlo e pensam estar certos ao continuar. Não será por se terem concentrado num pormenor, perdendo de vista o verdadeiro objecto da sua busca? Se o coração não atender aos olhos, podemos estar perante o preto e o branco e estes não os verão. Se o coração não atender aos ouvidos, podemos estar ao lado de tambores e trovões e estes não os ouvirão. Isto para nada dizer daquilo que, desde logo, o coração atende, que é a si próprio. A partir de cima, a pessoa de virtude e o verdadeiro Caminho são denunciados pelos lordes de estados caóticos; a partir de baixo, são denunciados pelos seguidores das escolas perniciosas. Não será isto lamentável?
Assim, entre os casos de fixação, há quem se fixe em desejos e quem se fixe em aversões. Podemos fixar-nos nas origens, ou podemos fixar-nos nos fins. Podemos fixar-nos naquilo que está longe, ou podemos fixar-nos naquilo que está perto. Podemos fixar-nos numa aprendizagem ampla, ou podemos fixar-nos naquilo que é estreito. Podemos fixar-nos no passado longínquo, ou podemos fixar-nos no presente. Apesar da natureza diversa da miríade de coisas, cada uma pode ser um objecto de fixação a despeito de todas as outras. Este é o problema comum dos caminhos do coração.
No passado, houve senhores de homens que foram fixados, tal como Jie da dinastia Xia e Zhòu da dinastia Yin. Jie era fixado em Mo Xi e Si Guan , e, como tal, não reconhecia o valor de Guan Longfeng. Por isso, o seu coração era confuso e a sua conduta caótica. Zhòu era fixado em Dan Ji e Fei Lian , e, como tal, não reconhecia o valor de Weizi Qi. Por isso, o seu coração era confuso e a sua conduta caótica. Assim, a totalidade dos seus ministros esqueceram a lealdade e trabalharam para seu próprio proveito. O povo comum sentia rancor pelos seus líderes e os acusava, sendo, por isso, de pouco préstimo. Os homens bons e meritórios retiraram-se para viver em reclusão e escolheram escapar para a obscuridade. Foi deste modo que Jie e Zhòu perderam as terras das Nove Pastagens e destruíram os seus próprios estados ancestrais. Jie morreu no Monte Ting e Zhòu foi enforcado num estandarte vermelho. Nem eles conseguiram antecipar estas coisas, mas também ninguém os advertiu. E este é o desastre de se estar fixado e barricado nos seus próprios pensamentos.

8 Nov 2022

CHINOISERIES Dez ficções luso-chinesas

Lili, cantador de fado
Existe, para os lados de Belém, um painel de azulejos não muito antigo que reproduz a figura de um chinês. O homem reproduzido existiu realmente nas ruas da Lisboa das primeiras décadas do século XX, e chamava-se Li. Os lisboetas de então, com a sua habitual verve, chamavam-no Lili. Tratava-se de um chinês vendedor de rua, natural da província de Zhejiang. Como é sabido, na Lisboa antiga, a Lisboa dos pregões, dos galegos aguadeiros, das varinas e saloios, das mulheres da fava-rica e dos pretos caiadores, havia ainda um outro tipo de vendedor – os chineses das gravatas. O Lili pertencia a esse grupo, pouco numeroso, mas sempre alvo de muita curiosidade por parte dos transeuntes, que pasmavam para eles, desabituados ainda de extravagâncias. O Lili, porém, destacava-se, pois jamais abandonou os trajes tipicamente chineses que trouxera de Zhejiang. Era uma galhofa por essas ruelas abaixo sempre que surgia nas suas cabaias coloridas, caixa de madeira a tiracolo com gravatas para mercar. Excepto quanto à intransigente recusa em envergar vestes ocidentais o Lili era então, e de longe, o chinês mais bem adaptado à vida portuguesa. Por isso, e porque tinha um temperamento alegre e suportava a troça com jovialidade, com resposta pronta para tudo, foi ganhando o respeito e a estima do povo de Lisboa. Pela manhã, podia topar-se com ele a sorver o seu café de lepes e, em a noite caindo, não dispensava o pratinho de iscas com elas, repugnante para qualquer outro chinês. Amantizado com a dona de um café de camareiras, diz-se que frequentava as meias portas, onde agarrava na banza e soltava o fado com espírito, sempre vestido à chinesa e trocando os erres pelos eles, o que lhe valeu a alcunha de “faia amarelo”.
Quando se encomendou o referido painel de azulejos, o artista julgou de gosto exótico, à moda da época, pintar um mandarim. Lembrou-se logo do Lili para fazer de modelo. O chinês aceitou posar com as suas melhores vestes em troca de umas moedas.
O Lili ainda galgaria as calçadas de Lisboa com as suas gravatas durante mais alguns anos mas, após dura rixa numa viela da Mouraria, acabou por fugir para Moçambique, onde terá eventualmente findado os seus dias. Foi visto pela última vez, numa idade já bastante avançada, a dançar o merengue em grupo numa rua esconsa da então Lourenço Marques.
O chinês Lili, tal como a famosa preta Fernanda – que serviu de modelo para a figura feminina em bronze que simboliza a África no pedestal da estátua ao Marquês de Sá da Bandeira -, é uma das duas personagens populares de origem estrangeira da cidade de Lisboa reproduzidas numa obra artística.

Lao Tse e o “Verdadeiro Clássico do Inominável”
Na cave do edifício da Reitoria da Universidade Clássica de Lisboa existe uma biblioteca sinológica da maior importância, que permanece todavia desconhecida do público devido à inexistência no país de especialistas na área. A maioria das obras foi doada pelo Instituto Cultural de Macau. Lá se podem consultar, entre outros tesouros, as obras completas de Ouyang Xiu, a poesia de Li Bai, Du Fu e Bai Ju Yi, os principais romancistas contemporâneos e o Sutra do Diamante.
Nessa biblioteca encontra-se também o único manuscrito existente em todo o mundo da obra atribuída a Lao Tse (Lao Zi), o “Verdadeiro Clássico do Inominável” (無名真經Wu Ming Zheng Jing). Para além do famoso Dao De Jing (道德經Tao Te King), o Wu Ming Zheng Jing é a sua única obra conhecida. Alguns sinólogos estrangeiros opinam que o recentemente descoberto Wu Ming Zheng Jing (abreviado em geral para Wu Jing) é ainda superior ao Dao De Jing.
O manuscrito foi descoberto no túmulo do sábio, no templo de Lou Guan Tai, província de Shanxi. O túmulo foi violado em 1994 durante um ritual secreto praticado por uma seita esotérica de alquimistas taoístas. A seita defende que Lao Tse continua vivo, tal como sua mãe, cujo túmulo se encontra ao lado, uma vez que ambos se dedicaram à prática de lian dan 煉丹, isto é, ao fabrico de pílulas da imortalidade. De facto, mais nada, a não ser o Wu Jing, foi encontrado no túmulo. A obra, mais breve ainda e mais densa do que o Dao De Jing foi caligrafada sobre tiras de bambu, mas desfez-se à medida que um dos iniciados taoístas a copiava apressadamente para um caderno.
No cap. XX do Wu Jing pode ler-se: “Apenas em mim nada é mortal / tesouro do inominável / mistério do grande Dao!” (我獨無死地也 / 無名之寶 / 大道之玄。Wo du wu si di ye / wu ming zhi bao / da dao zhi xuan). Segundo os alquimistas, trata-se, com efeito, de uma obra composta por Lao Tse já depois de se ter tornado um Imortal.
Três meses após a sua inesperada descoberta, o caderno foi vendido ao governo chinês para divulgação, decepado embora num terço das suas páginas. Segundo consta, nessas páginas, Lao Tse descreveria minuciosamente a receita infalível para alcançar a longevidade e a imortalidade, em cuja demanda se aplicaram gerações e gerações de seguidores do taoísmo. O grupo de alquimistas mantém absoluto segredo sobre o seu conteúdo e a pressão do governo para resgatar as folhas tem sido vã. A obra foi publicada incompleta pela Editora Xinhua em 1995. Quanto ao manuscrito truncado, foi roubado em 1998 do depósito da Biblioteca de Pequim, onde se encontrava, para ressurgir posteriormente num leilão da Sotheby’s. Stanley Ho adquiriu-o então a peso de ouro após acérrima disputa com o Instituto Ricci. Como foi parar à cave da Biblioteca da Reitoria da Universidade Clássica de Lisboa, ninguém o sabe explicar. Os descendentes de Stanley Ho encontram-se neste momento em negociações com a dita Reitoria no sentido de reaver o precioso manuscrito.

O incêndio do pavilhão
A cidade de Macau esteve representada na Exposição do Mundo Português em Belém quando decorria o ano de 1940. Construiu-se a Rua de Macau, cujo maior atractivo era um colossal paquiderme de pedra, de tromba erguida e carregando no dorso um pavilhão de dois andares em estilo chinês. O portal que dava acesso a essa rua pode ainda hoje ser visitado entre a folhagem do Jardim Botânico Tropical de Lisboa. No entanto, o elefante com o seu pavilhão desapareceu misteriosamente. O processo relativo ao desaparecimento foi abafado pelo regime de Salazar. Encontra-se na Torre do Tombo e, ainda hoje, não pode ser consultado pelo público em geral.
Segundo consta, a Seita do Dragão Azul, uma seita nacionalista chinesa, mantinha entre os estudantes macaenses residentes em Portugal uma pequena ramificação. Formada ainda sob influência, pelo menos indirecta, do Dr. Sun Yat-sen enquanto este vivia em Macau nos primeiros anos do século XX, a seita encontrava-se então activamente empenhada na luta contra o invasor japonês que ocupava toda a China do leste e, por extrapolação, contra qualquer poder colonizador. Os estudantes macaenses em Portugal receberam ordens para queimar toda a área colonial da Exposição na noite seguinte à da sua abertura oficial. Algo terá, porém, corrido mal e Salazar foi informado a tempo. A vigilância apertou-se em torno da área colonial e os asiáticos, goeses incluídos, passaram a ser discretamente revistados e identificados antes de nela poderem penetrar.
Os planos da Seita do Dragão Azul saíram gorados pela máquina salazarista e os portugueses puderam regozijar-se com a vastidão do seu império. No entanto, na última noite da Exposição, um estudante macaense, de nome Xavier Cheong, conseguiu deitar fogo ao símbolo de Macau. No flanco do elefante de pedra pincelou insultos a Portugal em português e chinês. Foi posteriormente capturado pela PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), a antecessora da PIDE.
Na manhã seguinte à do fecho da Exposição, do pavilhão em madeira restavam apenas cinzas. Salazar ordenou que fossem rapidamente removidas e que lançassem ao Tejo o elefante de pedra, onde ainda hoje provavelmente jaz, sob as mesmas águas que as caravelas sulcaram outrora em demanda do Oriente.

A Pedra das Mutações
Como é comummente sabido, o Jardim da Fundação Gulbenkian contém, na sua arquitectura, elementos de influência sino-japonesa. Um dos mais curiosos é a pedra colocada sobre o relvado que desce para o lago dos nenúfares. A pedra foi transportada para Portugal nos princípios do séc. XVII por um fidalgo aventureiro nascido em Lisboa, Nuno Gouveia de Faria. Julgando-a altamente decorativa, Gouveia de Faria tê-la-ia usurpado de um jardim que existia então em Liampó (Ningbo), como o comprovam fontes inglesas coevas (veja-se a obra de Sir Colin Ormsby-Gore, The Portuguese Trade and Atrocities at the Port of Macao and Southern China, London, 1602, New Delhi, 1971, reprint.). De facto, a pedra foi outrora profusamente gravada e pintada com os 60 hexagramas do Clássico das Mutações (易經Yi Jing).
A pedra adornou o parque da mansão da família do fidalgo Nuno Gouveia de Faria até à sua demolição, nos finais do séc. XIX. Durante a construção do jardim da Gulbenkian, nos anos 1960, o sinólogo espanhol Pe. Lorenzo Benito Muralles, SJ, que veraneava então por cá, descobriu-a por acaso num descampado, tendo sido ele próprio a sugerir ao arquitecto Ruy Jervis D’Athouguia nova morada para a pedra. Muralles conhecera os pais do arquitecto em Macau, a cidade onde D’Athouguia nascera. Este mencionou o assunto ao seu colega Ribeiro Telles, encarregado do plano dos jardins do museu. Ribeiro Telles aprovou a ideia.
Muralles julgava mesmo distinguir ainda, no canto direito superior da pedra, a gravação – naturalmente muito desgastada pelo tempo – dos traços contínuos e descontínuos do décimo segundo hexagrama, o hexagrama pi 否: em cima, o Céu, em baixo, a Terra.

O Pátio das Flores Rubras
Pouca gente terá conhecimento da história assaz pícara por trás da construção da casa típica de Macau do Portugal dos Pequenitos, em Coimbra. Durante a concepção desse projecto do Antigo Regime, ficou encarregado do plano da casa de Macau um arquitecto que nunca pusera pé na Ásia. Para levar a cabo a tarefa, e na impossibilidade de até lá se deslocar, consultou afanosamente arquivos fotográficos respeitantes àquele longínquo território português. A sua escolha, no entanto, foi infeliz. Tomou como inspiração para reproduzir em pedra certa fotografia que mostrava um edifício de estilo acentuadamente chinês. O pobre arquitecto ignorava que se tratava de um famoso lupanar da zona mais libertina da Cidade do Santo Nome de Deus: o Pátio das Flores Rubras (紅花園Hong Hua Yuan). Este lupanar, que deliciou gerações de chineses e portugueses, foi incendiado em 1947, como consequência de uma intrincada história de vingança política, mulheres e ópio entre duas seitas rivais, a afamada Qing Bang e a Wo Shing Wo. Dos seus escombros resta apenas, na rua onde se situara, a pedra fronteira gravada com três caracteres chineses sobre a tradução portuguesa, ainda em grafia antiga: “Páteo das Flores Rubras”. No entanto, por ironias do destino, e para que fossem iniciadas de bem cedo as crianças portuguesas nos inefáveis mistérios do Oriente, a reprodução da sua fachada iria sobreviver, fiel, muito longe dali, em Portugal, no Portugal dos Pequenitos.

Retrato da Senhora Jacinta Wok
A Senhora Jacinta Wok (1884~1945), nada e criada na cidade do Porto, foi protagonista de um dos maiores escândalos que alguma vez abalaram Macau. Deveu-se o escândalo ao facto de ter vivido trinta e nove anos em regime de concubinato com um rico negociante chinês, Wok Mei Lo, estabelecido no território desde os finais do séc. XIX. Wok Mei Lo tomou-a como sexta concubina no final da dinastia Qing, quando a dona Jacinta, cujo apelido era ainda Santos da Cruz, servia como ama em casa da família Mendes Couceiro.
Juram versões que a ama terá trocado essa família pela casa Wok por se ter tomado de amores pelo negociante; outras explicam-no por um desejo irreprimível de ascensão social ou desilusões com a comunidade portuguesa. O certo é que se submeteu às exigências do negociante a ponto de chegar a enfaixar os pés. Sofreu, por isso, dores atrozes durante o resto da vida, uma vez que tal operação, em princípio, se destinava a meninas com cerca de cinco anos de idade. Além disso, teve de suportar as torturas e vexames que lhe infligiam as outras concubinas do negociante, não só devido à sua insignificante posição na casa – concubina número seis – como devido ao facto de ser estrangeira, pior, estrangeira traidora à sua própria comunidade. Rejeitada por ambas as raças, também no negociante Jacinta não encontrou qualquer apoio, pois Wok Mei Lo nunca a conseguiu apreciar, nem mesmo com os pés enfaixados. Segundo consta, servia-se dela nos seus negócios, cedendo-a a outros chineses ricos e curiosos, e exibia-a perante os portugueses como um troféu humilhante.

As tartarugas wenjia
As tartarugas wenjia (文甲, à letra, “carapaça escrita”) são uma espécie autóctone que se encontra apenas em território chinês. Os exemplares desta espécie caracterizam-se por uma particularidade notável: apresentam caracteres chineses gravados na sua carapaça, alguns deles muito antigos.
A única explicação para a existência destas carapaças baseia-se na teoria da selecção artificial, num processo em tudo semelhante ao que sucedeu com os caranguejos Heike de Danno-ura, no mar do Japão, que exibem nas suas couraças rostos de samurai. Assim, os cientistas supõem que, de início, as tartarugas wenjia seriam semelhantes a todas as outras espécies comuns na China. No entanto, como se sabe, há vários milhares de anos que os chineses praticam a adivinhação com carapaças de tartaruga e também há vários milhares que vêm apreciando a sua carne. Assim, os adivinhos teriam começado por poupar a vida dos antepassados das tartarugas wenjia cujas carapaças apresentavam sulcos que se assemelhavam a caracteres chineses. Os chineses acreditam que a origem dos seus caracteres é sagrada. Ao evitar-lhes a morte, e provavelmente sacralizando-as, as tartarugas encetaram um processo evolutivo. Apercebendo-se das vantagens de não apresentar uma carapaça vulgar – mais tempo para procriar e uma morte adiada – as tartarugas investiram nos caracteres das carapaças, marcas que são hereditárias. Com o fluir das gerações tanto de adivinhos como de tartarugas, aqueles animais cujas carapaças apresentavam caracteres sobreviveram.
Grandes coleccionadores de carapaças wenjia foram o poeta Camilo Pessanha e o advogado Silva Mendes quando residiam em Macau. Exibiram-se exemplares notáveis outrora pertencentes a ambos numa exposição temporária dedicada à sua faceta de coleccionadores de arte e brique-a-braque chineses no Museu Machado de Castro, em Coimbra, por ocasião da passagem da administração de Macau para a República Popular da China e que foi, infelizmente, muito pouco visitada pelo público português. Na loja do Museu, contudo, pode ainda encontrar-se à venda o magnífico catálogo.

O Templo Taoísta da Serra da Estrela (星山觀Xing Shan Guan)
O Templo Taoísta da Serra da Estrela (星山觀Xing Shan Guan) é o único templo taoísta existente em toda a Europa e um motivo de orgulho para Portugal. Foi inteiramente concebido segundo as normas arquitectónicas dos templos taoístas chineses. A sua estatuária, por exemplo, os Oito Imortais no pavilhão do mesmo nome, veio directamente da China. A valiosa figura em folha de ouro do Imperador Amarelo foi oferta do Templo Taoísta Zhongyue Miao (中嶽廟) que se ergue na montanha sagrada Song.
De Cantão deslocou-se um célebre especialista em geomancia chinesa (fengshui), Luk Ku Lou, a fim de escolher a localização ideal do templo no cenário da Serra da Estrela. Do Templo Taoísta da Nuvem Branca (白雲觀Bai Yun Guan), em Pequim, chegaram os monges que presidiram à cerimónia religiosa que teve lugar aquando da inauguração. Alguns permaneceram por ali até se terem formado os acólitos portugueses.
A localização exacta do templo, contudo, é apenas revelada aos iniciados. Diz-se que lhes é ensinada então uma dança oculta destinada a transformar o yang em yin. A dança decorre em cima de um mapa secreto da montanha, cujo reflexo num antigo espelho de bronze aponta o local do templo.
O espelho terá pertencido ao próprio Zhang Daoling que, na dinastia Han (202 a.C.– 9 d.C., 25–220 d.C), fundou e se tornou no primeiro patriarca da Via dos Mestres Celestes (天师道tianshidao) taoísta. Mas como poderá o espelho mágico de Zhang Daoling ter vindo parar a Portugal?
Zhang Daoling nasceu no primeiro ou segundo século da nossa era sobre a Montanha do Tigre-Dragão, no Jiangxi. Certo dia, Lao Zi (Lao-Tse) apareceu-lhe sob uma forma espiritual e encarregou-o de encontrar a fórmula para compor o elixir da imortalidade. Zhang Daoling foi bem sucedido nesse empreendimento. Aos cento e trinta e três anos, subiu aos céus montado no dorso de um tigre e, de seguida, preservou a sua identidade reincarnando sucessivamente num após outro dos seus próprios descendentes. Cada um daqueles a quem coube este privilégio retomou, assim, o nome de Zhang Daoling. Tais reencarnações continuaram pelo séc. XX adiante.
No séc. VIII, um decreto do imperador Xuan Zong deu jurisdição ao Mestre Celeste Zhang Daoling “sobre todos os templos taoístas no mundo”. Isto inclui, obviamente, o Templo Taoísta da Serra da Estrela.
Importa ainda chamar a atenção para uma curiosa passagem da obra Living Taoism, de John Blofeld. Embora muitos creiam no contrário, Blofeld declara ser altamente improvável que toda uma linhagem de pontífices que se conseguiu perpetuar por quase dois mil anos tenha desaparecido nos nossos dias sem deixar rasto. E refere que alguns estudiosos defendem que foi no governo de Chang Kai-chek que a última reencarnação do Mestre Celeste foi banida do país. Revela ainda que um autor chinês sustém que Zhang Daoling tem vivido desde então em Macau “como um dragão, entre as volutas de espessas nuvens – o ópio!” Isto explicaria a sua ligação a Portugal e a sua possível implicação na construção e funcionamento do Templo Taoísta da Serra da Estrela. Quanto ao ópio, é bem sabido ser um dos componentes essenciais no fabrico das pílulas da imortalidade.

As curandeiras
Terão reparado numa pequena estatueta portuguesa do princípio do século XX que retrata duas mulheres chinesas a segurar frasquinhos de unguentos, exposta num dos armários da primeira sala do bar-museu “Pavilhão Chinês”, no nº 89 da Rua D. Pedro V, em Lisboa? O “Pavilhão Chinês” foi outrora uma farmácia e a estatueta fazia parte do seu espólio, algum do qual foi depois adquirido pelo novo dono do espaço.
Essa tosca estatueta é uma humilde homenagem a duas curandeiras chinesas que protagonizaram, em Novembro de 1911, um escândalo de contornos bizarros que abalou a então jovem república portuguesa.
Ajus e Joé, assim as chamavam os jornais da época, numa grafia aportuguesada dos seus nomes originais, eram naturais de Xangai e apresentavam-se como especialistas em devolver a vista a cegos. Os ceguinhos de Lisboa, mais as suas caixinhas de esmolas, guitarras e acordeões, acorreram aos magotes ao humilde hotel onde as chinesas se hospedaram. Naqueles tempos conturbados, o povo sucumbia facilmente à crendice e floresciam as bruxarias.
Todavia, os republicanos, adeptos do positivismo, resolveram tomar as chinesas como caso exemplar, devido talvez à sua exótica proveniência. Afirmando almejar tornar a capital num paradigma do progresso, encheram-se de brio racionalista e mandaram prender as duas arautas do obscurantismo.
A Polícia, porém, deparou com tal resistência por parte da populaça em geral e, sobretudo, dos ceguinhos, que não hesitavam em quebrar as guitarras nas cabeças dos agentes, que se tornou impossível evitar um confronto. Rebentou um motim. Contaram-se mortos. Estouraram bombas. Redacções de imprensa foram assaltadas. Machado Santos escapou por pouco a ser linchado, ficando a dever a vida à pronta acção da cavalaria. O caso acabou por ascender ao Parlamento por iniciativa do ministro do Interior. A prisão das chinesas tornou-se tema obrigatório esgrimido nos comícios e no ataque a adversários políticos.
A estatueta do “Pavilhão Chinês” é obra de Zeferino Santos, que acompanhava o pai cego nas consultas às curandeiras. O dono da antiga farmácia resolveu adquiri-la para, por graça, a colocar ao lado do anúncio de um medicamento oftálmico.
Quanto a Ajus e Joé, foram libertadas poucos dias depois de terem sido presas. Recusaram a extradição para o seu país natal. Algumas semanas antes, a 26 de Outubro desse ano, Sun Yat-sen proclamara a República da China. Receavam ver-se envolvidas com mais republicanos, ainda que chineses. Deixaram Portugal num navio que iria atravessar o Atlântico e nunca mais ninguém delas soube. Tudo quanto resta é uma foto de Joshua Benoliel no Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa e a estatueta do “Pavilhão Chinês”.

Amália em Xangai
Decorria o ano de 1950 quando o jornal satírico “Os Ridículos” anunciou nestes termos jocosos de duvidoso gosto, só possíveis na época, a notícia sobre a actuação de Amália Rodrigues em Xangai, a realizar-se dali a pouco tempo: «(…) A Xangai, à China, achamos francamente fantástico! (…) A verdade, porém, é que achamos a China um país esquisito de mais para o fado (…) Vocês já pensaram, por momentos, no que será um auditório de chineses, todos sentados no chão, a comer arroz com dois pauzinhos e a Amália a cantar-lhes o “Tudo isto é fado” ou “Avé Maria Fadista”?»
Trata-se este do único registo português aludindo à actuação de Amália em Xangai. A notícia foi, de resto, completamente abafada. Nem os jornais da época, nem as biografias de Pavão dos Santos ou de Jean-Jacques Lafaye mencionam tal facto. Duas décadas volvidas e o contrário se passaria em relação ao Japão, quando o estrondoso êxito de Amália lá alcançado encontrou merecido eco em Portugal.
Todavia, Amália actuou de facto em Xangai, decorria o ano de 1950, acompanhada por Jaime Santos à guitarra e Santos Moreira à viola. A República Popular da China havia sido proclamada no ano anterior e Xangai fora o berço do Partido Comunista. Devido à sua notoriedade, mas sobretudo devido à modestíssima origem social da fadista, o governo chinês escolheu Amália para representar Portugal num espectáculo de folclore internacional em Xangai.
Ao contrário, porém, do que supunha o jornal “Os Ridículos“, Amália não cantou o “Tudo isto é fado” nem o “Avé Maria Fadista”. Achou mais graça, estando na China, a cantar o “Grão de Arroz”, de Belo Marques (“O meu amor é pequenino como um grão de arroz/ é tão discreto que ninguém sabe onde mora…)
Acresce que, com a sua proverbial facilidade para aprender línguas estrangeiras, Amália fez questão de cantar a versão em chinês, concebida de propósito para a ocasião: 我心上的人兒 / 是多麼小小的, / 他像一粒米似的。 / 他多麼謹慎 / 沒有人知道他住的地方。 Wo xin shang de ren er shi duome xiaoxiao de/ ta xiang yili mi side/ ta duome jinshen, mei you ren zhidao ta zhu de difang…)
Até aqui, a audiência entusiasmou-se com tal voz e tal mestria do chinês. Mas quando os versos seguintes foram cantados (“Tem um palácio de ouro fino aonde Deus o pôs/ e onde eu vou falar de amor a toda a hora…”), um dos representantes dos camponeses presentes por entre o público indignou-se e berrou: “Se tem um palácio de ouro fino não foi Deus que lho deu, mas sim o sangue e o suor das classes trabalhadoras!”
Foi como um rastilho. A audiência aplaudiu o representante dos camponeses e começou a assobiar e a apupar a pobre Amália que, seguida pelos dois assustados instrumentistas, teve de abandonar o palco lavada em lágrimas. No dia seguinte, partiu precipitadamente para Berlim, onde conheceria um êxito monumental nos espectáculos do Plano Marshall.
Este breve e triste episódio na carreira da grande fadista foi abafado pela própria Amália, que negou sempre ter alguma vez posto os pés na China Popular. No entanto, foi relatado no dia seguinte pelo Diário de Xangai. Esse exemplar do jornal pode facilmente ser consultado na Biblioteca da cidade por quem dominar a leitura dos caracteres chineses. A notícia, de 21 de Setembro, intitula-se “Cantora burguesa é apupada pelo povo trabalhador no Espectáculo de Folclore Internacional”.

(Escrito entre 1997 e 2000).

8 Nov 2022

O mito do ideograma

Ao redor do mundo, consideradas todas as eras desde que a humanidade passou a se comunicar, determinadas sociedades desenvolveram o que podemos chamar de culturas de escrita. Para nós, falantes do português, bem como para os demais neolatinos, indoeuropeus, modernos ocidentais, essas culturas carregaram consigo formas historicamente valorizadas de conhecimento: escritas, alfabéticas, ortográficas. A expansão de tais tradições, quer no interior da própria Europa, quer em seu avanço colonial por outras partes do globo, carregaram consigo tais valorizações no bojo do encontro com outros povos: é famoso o relato de um cronista português que, no século XVI, teria encontrado povos originários das Américas, especificamente do Brasil, em cujas línguas “não se acham F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei”. Etnocentrismo, decerto: desejo de que toda a humanidade corresponda a uma experiência pontual e limitada, tida, à época, como ápice do desenvolvimento do intelecto e do gênero humano.
Mas nesses mesmos 1500, século mais, século menos, uma civilização sem F, sem L e sem R já contava três mil anos de idade. Pelo menos. E contava, também, com uma cultura escrita de enorme relevância, prestígio e sofisticação. Não alfabética, contudo. E essa diferença talvez tenha significado uma abordagem tão etnocêntrica quanto aquela destinada aos povos ameríndios, mas com o sinal trocado: porque se povos sem letras não poderiam ser mais que “bárbaros”, o que seria o povo sem letras, mas com caracteres mais antigos que o próprio Ocidente? Iluminados, talvez? Mais que humanos?
Em Ideogramas na China, Henri Michaux descreve, de modo poético, o desenvolvimento da escrita caligráfica, que considera “ideogrâmica”. Para o poeta, a escrita chinesa teria evoluído de uma materialidade pictórica, cujo referente designaria diretamente o objeto representado, sem maiores mediações linguísticas, até um sistema complexo e elitizado de traços cujo conhecimento se restringia apenas aos eruditos e letrados. Ao passo que 山 representaria pictograficamente uma montanha — donde 山 = montanha —, desdobramentos posteriores do sistema de escrita chinês teriam distanciado essa quase iluminação instantânea:
“Levados pela arrebatadora impudência da pesquisa, os inventores — os de uma segunda fase — aprenderam a desligar o sinal do seu modelo (deformando-o às apalpadelas, sem ousar ainda cortar decididamente o que liga a forma ao ser, o cordão umbilical da semelhança) e assim se desligaram eles próprios, havendo rejeitado o sagrado da primeira relação ‘escrito-objecto’.”
A primeira relação escrito-objecto de que nos fala Michaux é a associação pictográfica imediata, a montanha transposta ao papel — ou a qualquer outra superfície. Quaisquer que fossem seus desdobramentos, não mais haveria o vínculo com que o poeta sonha: da coisa à compreensão, sem passar pelo trato da linguagem. Chegando ao pico da montanha, 峰, não mais teríamos a primeira relação, e apenas aos iniciados essa trilha ao monte estaria aberta.
Michaux lamenta a elaboração da escrita que a desvincula do mundo, e nisso não está sozinho: para mais de um leitor ocidental da escrita chinesa, “ideograma” se mostrou o melhor termo para descrever algo tão diferente de nossos sistemas alfabéticos, fonéticos, de nossas línguas cuja expressão sonora da fala é condutriz da escritura. Para tais leitores, a China teria seguido algum princípio misterioso que a teria posto à parte de toda a raça humana — como sugeriu Boodberg há quase cem anos —, para quem os sistemas de escrita se desenvolvem a partir das experiências linguísticas da fala, e não o contrário — nem separadamente, como o mito do ideograma nos faz supor.
Em 1984, John DeFrancis publicou O mito ideográfico, historicizando a ideia segundo a qual seria possível um sistema ideogrâmico, ou ideográfico, no qual uma língua fosse capaz de incluir todos os objetos, conceitos e ideias do universo sem apelo à fala, ao som, à base material da língua. Um mito, diz DeFrancis, pois mesmo em sistemas de escrita com elementos pictográficos, como na China, no antigo Egito ou na Suméria, não se pode encontrar uma escrita inteiramente semântica. A escrita é projeção da língua, e a língua é sempre falada.
Henri Michaux via na evolução da escrita chinesa um distanciamento do mundo dado, da experiência mística, esotérica e religiosa com o mundo, um distanciamento da experiência imediata. Por isso afirma que “Na escrita, a religião recuava. A irreligião da escrita começava”. Em outras palavras: perde-se o mundo-pelo-mundo — 山 = montanha, supostamente evidente para qualquer pessoa, mesmo iletrada — e passa-se a viver o mundo-pela-escrita — 峰 = pico da montanha, compreensível apenas para quem tenha escalado montes e montes de livros e exercícios complexos, pouco afeitos à “ideogramicidade” do objeto pico-da-montanha.
Mas é aqui que o mito se mostra às claras. Para Michaux, como para outros, ideogramas seriam representações gráficas de objetos e/ou ideias, conceitos. Já o som dos objetos e das ideias, o som da fala que fala sobre eles, desempenharia pouco ou nenhum papel em sua grafia. Se povos sem escrita alfabética eram sem lei, sem rei e sem fé, um povo sem escrita fonética talvez fosse — assim diz o mito, nisso acreditaram os primeiros missionários europeus — rebuscado e complexo a um nível que os distanciaria de todos os demais povos da terra. Um povo, no mínimo, de memória estupenda, capaz de conhecer um símbolo para cada coisa existente:
“símbolos e imagens [que], não tendo qualquer som, podem ser lidos em todas as línguas, formando uma espécie de pintura intelectual, uma álgebra metafísica e ideal, que transmite pensamentos por analogia, por relação, por convenção, e assim por diante.”
O mito do ideograma abstrato abre caminho para a ideia de uma escrita inefável, sem atentar para o fato de que 峰, o pico da montanha, não é apenas resistir à montanha ou, ainda, chifrar o monte — 山 + 夆 —, dentre outras variações semânticas que pudéssemos atribuir às puras imagens pictográficas de 峰 — e à decomposição de suas partes. Antes, a pronúncia de 峰 é feng, e por isso à montanha se anexou o segundo grupo de caracteres, à direita: 夆. Não por lógica abstrata, não porque resistir ou chifrar a montanha signifique atingir seu cume, mas porque feng é o modo de nomear o topo do monte, e o modo de nomear, sua sonoridade, traz o elemento fonético à escrita. Por isso, nada de ideogrâmica — ou não somente ideogrâmica, e quase nunca inteiramente ideogrâmica —, mas sonora. Logográfica. Ou morfossilábica, como sugeriu DeFrancis.

4 Nov 2022

O Dao da Filosofia Chinesa

Uma das noções transversais a todas as escolas filosóficas chinesas é a de Tao (道 Dào), ainda que esta seja perspectivada de maneira diferente, numa leitura superficial, consoante essas mesmas filosofias, recaindo o acento tónico na vida, para os taoistas, para os confucionistas na moralidade e na espiritualidade para os budistas. No entanto, quando tentamos aprofundar o sentido das mesmas deparamos com a ideia de percurso existencial, seja ele mais pessoal, social ou político, mas é sempre o que se faz na e com a vida que está em causa, como bem viram Michael Puett e Christine Gross-Loth (2016) num conjunto de lições práticas do curso de filosofia chinesa de Harvard, intitulado “道 o Caminho da Vida. O que os Filósofos Chineses nos Podem Ensinar sobre a Arte de Viver”.
Isto significa que um bom filósofo deve poder orientar bem a sua existência, e não apenas do ponto de vista teórico, porque o ideal é que consiga conciliar harmoniosamente intenções e actos, de modo a impregnar a sua existência de sentido, por isso todas as filosofias chinesas se preocupam com o quotidiano, tentando responder, como notam Puett e Gross-Lotu, à seguinte questão: “Como estás a viver a tua vida no dia a dia” (2016: 43), pois se cada um desempenhar conscientemente o seu papel neste imensa teia de relações telúricas, celestiais e universais, estará a proceder filosoficamente, gerando as condições para caminhar no sentido da existência e não no da morte. Ora manter acesa a dinâmica vital parece ser mais difícil do que parece, porque diz-nos o fundador do taoismo, Laozi (老子) no Livro da Via e da Virtude 《道德经》 no capítulo 50:

Sair para a vida, entrar para a morte,
Três em cada dez terão longa vida,
Três em cada dez conhecerão cedo a morte,
Três em cada dez morrerão com ânsia de viver.

出生入死
生之徒
十有三
死之徒
人之生
动之死地
亦十有三
(Graça de Abreu, 2013: 126-127)

Ou seja, viver, e bem, o que significa nesta filosofia longamente, não é para qualquer um, implica o cultivo de um modo de vida com o qual o filósofo se vai familiarizando pelos métodos que coloca em prática, estes dependem da meditação, ginástica, acima de tudo, respiratória, de uma dieta adequada, etc. Logo, um filósofo chinês da linha taoista, empenha-se na sua filosofia de corpo inteiro, cultivando uma postura ética que o conduzirá ao desejado prolongamento da vida, através do cultivo incansável do tao do quotidiano.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, o tao da vida é essencial para os confucionistas, ainda que ao praticá-lo não se inclinem para a longevidade. A estes interessa a existência com vista à moralidade, a vida será o chão para as nossas transformações morais, estando em causa tornar-nos melhores, benevolentes ou mais humanas, a fim de se contribuir para alcançar comunitariamente um mundo melhor. Por isso, Confúcio explica aos seus discípulos nos Analectos 《論語》, no capítulo relativo à benevolência (1994, IV-8): “Quem compreender o dao de manhã, não lastimará morrer nessa mesma noite” (《子曰:“朝聞道,夕死可矣”》), porque atingiu o propósito do seu percurso existencial, entendeu a moralidade, donde retirou a lição que a vida lhe ofereceu, cumpriu o seu destino, pelo que pode partir sem mágoas nem ressentimentos, alcançou a perfeição, ou seja o tao moral.
Assim caminhamos, em termos filosóficos, do tao ético taoista, para o tao moral e nos budistas chineses da linha Chan (禅 chan), ou do budismo da meditação, para a tao espiritual, mas até este se cultiva apenas no quotidiano. Há então a recordar que os princípios fundamentais do budismo da meditação, que viria a ser o budismo mais caracteristicamente chinês, remontando ao monge indiano ou iraniano Bodhidharma, que terá chegado à China no século VI, são os seguintes: “ (1) a verdade última é inexprimível; (2) a via espiritual não pode ser instruída ou ensinada; (3) nada se ganha com o que quer que seja; (4) não há nada de especial nos ensinamentos budistas; e (5) o Tao cultiva-se diariamente «transportando a água e cortando a lenha» (Alves, 2022: 49).
O caminho na e da filosofia chinesa foi-se desenrolando ao longo dos séculos, mas as noções primordiais têm-se mantido e, por isso, podemos encontrar no filósofo Wang Keping (王柯平, 1955 -), professor de filosofia e de estética com vasta obra publicada, uma tematização pormenorizada da noção de Tao na secção Estratégias de Pensamento da sua obra Ethos of Chinese Culture (2007), onde analisa a multidimensionalidade do Tao, recorrendo no texto ao registo do alfabeto fonético chinês (Dao), adotado na China em 1958. Assim, refere que existe um Dao do Universo; um Dao da Dialética; um Dao do Homem; um Dao da governação; um Dao da Guerra; um Dao da Paz, além de dois que interessam particularmente para a defesa de uma filosofia com características chinesas: um Dao da Vida Humana e um Dao do Cultivo Pessoal, sendo que o “Dao ou sabedoria da existência humana é fundamentalmente exemplificado pela atitude relativa à própria vida e ao seu fim natural – a morte” (Wang, 2007: 122). Esta atitude implica, e recordemos o fundador do Taoismo, pelo cultivo dos três tesouros, a saber, a bondade ou compaixão, a frugalidade e a humildade, como nos é recordado no capítulo 67 do Livro da Via e da Virtude. É, também, fundamental consciencializar que o modo de estar na vida depende uma certa filosofia perante a mesma, manifestada no Dao do Cultivo Pessoal, “que surge de dentro sobretudo orientado para a actualização do Dao De” (Wang, 2007: 126) , ou seja, da virtude.
Desengane-se quem imagina que esta atitude filosófica não possui consequências sociais e políticas fundamentais, decisivas para traçar o caminho a um país como a República Popular da China, guiado pela meritocracia, que alia a virtude ética indissociavelmente à política ou, ainda, às suas regiões administrativas especiais e, mais concretamente à Região Administrativa Especial de Macau. Recorde-se a Lei Básica de Macau, elaborada em 1993, em vigor desde 1999 até ao ano de 2049. No Primeiro Capítulo desta Lei, Artigo 5.º, lê-se:“ Na Região Administrativa Especial de Macau não se aplicam o sistema e as políticas socialistas, mantendo-se inalterados durante cinquenta anos o sistema capitalista e a maneira de viver anteriormente existentes.”
(澳門特別行政區不實行社會主義的制度和政策,保持原有的資本主義制度和生活方式,五十年不變。) (第一章,第五條)
O artigo 5.º da constituição de Macau, da sua lei fundamental, indica que uma filosofia política, seja ela socialista ou capitalista, vale pela dimensão prática que lhe está associada, esta não existe em separado, em qualquer mundo das ideias transcendente para contemplar longe da pele e do osso do contemplador, mas reconhece-se imediatamente na sua dimensão existencial pelo “modo de vida” (生活方式) que dita, facilmente identificável nas atitudes dos cidadãos. Por isso, durante 50 anos (e já passaram 23 anos), as gentes de Macau poderão manter as suas condutas existenciais em harmonia com os princípios e valores ocidentais, que lhes condicionam o Tao das suas vidas e um outro, que lhe está intimamente ligado, o Tao do seu cultivo pessoal, aquele que os atrai a misturarem hábitos gastronómicos (o chá, o café, o arroz e a batata…), crenças religiosas (budistas, taoistas, cristãs…), gostos estéticos (fados, música chinesa, world music…), entre muitas outras práticas existenciais que moldam, por um lado, e expressam, por outro os seus comportamentos.
Concluindo, o Tao específico da filosofia chinesa nunca existe em separado, mistura céu e terra num planeta de ideias visíveis, que só ganham sentido quando atualizadas, de modo a serem reconhecidas, aceites, assimiladas, recusadas ou harmoniosamente sintetizadas por seres humanos empenhados no seu cultivo pessoal e comprometidos na vida.

Bibliografia
Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coimbra: Almedina e Centro Científico e Cultural de Macau.
Cai Xiqin (蔡希勤), Lai Bo (赖波), Xia Yuhe (夏玉和) (trad.) 1994. Analects of Confucius. 《論語》. 北京: 华语教学出版社.
Graça de Abreu, António. 2013 (trad.). Laozi. Tao Te Ching. 《道德经》. O Livro da Via e da Virtude. Edição Bilingue. Lisboa: Vega.
Lei Básica de Macau. Disponível em: https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/macau_leibasica.pdf, acedida a 22 de outubro de 2022.
澳門特別行政政府《中華人民共和國澳門特別行政區基本法》.印務局. https://bo.io.gov.mo/bo/i/1999/leibasica/index_cn.asp.
Puett, Michael, Christine Gross-Loh. 2016. intitulado 道 o Caminho da Vida. O que os Filósofos Chineses nos Podem Ensinar sobre a Arte de Viver. Alfragide: Lua de Papel.
Wang Keping. 2007. Ethos of Chinese Culture. Beijing: Foreign Languages Press.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores.
https://www.cccm.gov.pt/

4 Nov 2022

Versos de Du Fu na paisagem desolada de Luo Mu

Du Fu (712-770), o poeta que viveu a itinerância tantas vezes como um descontentamento, encontrou em tudo ocasiões para celebrar o deslumbramento. Uma delas ficou guardada num poema feito diante de uma pintura e que refere o nome de uma divindidade a que se deu o nome Xianwu, o «Obscuro guerreiro misterioso». No poema intitulado «Na parede dos aposentos do mestre do chan do templo de Xianwu», o poeta está diante de uma obra feita por um dos pintores mais reverenciados entre os que estão na origem da arte da pintura executada sobre rolos portáteis, o já então lendário Gu Kaizhi (c.345-c.406). E o templo de Xianwu nas montanhas Wudang (Hebei) foi o lugar escolhido para evocar uma outra figura lendária, associada a uma conversa que aconteceu no decurso de um passeio e tão entretida que ignorou uma ravina infestada de tigres, cuja história é conhecida como «as três gargalhadas», o monge Huiyuan (334-416):

«Quando é que o audacioso Gu Kaizhi
colocou aqui esta obra?
A parede está toda repleta de pinturas
do paraíso da montanha utópica Yingzhou.
Vapores quentes exalam
das rochas sob o sol inclemente,
Sobre as correntes de lagos
e rios, o céu azul.
Um monge mendicante voa
na bengala de latão perto dos grous,
Outro, cruza a água na taça de madeira
sem alarmar as gaivotas.
Parece que estou diante
de um caminho para o Monte Lu,
Ou estou na verdade vadiando
com o monge Huiyuan?»

Não foi a única ocasião em que o olhar do poeta se fixou diante de uma pintura, iluminando-a. Uma relação dinâmica entre o poeta e os pintores que se prolongou. Na dinastia Qing, um pintor de Ningdu (Jiangxi) mas que viveria quase sempre na capital da Província, Nanchang, lembrá-lo-ia numa estrofe extraída desse poema.
Luo Mu (1622-1706) escreveu na pintura de 1685, Paisagem com árvores e rochas (rolo vertical, tinta sobre papel, 175,2 x 73,6 cm, no Museu Ashmolean da Universidade de Oxford) os dois versos de Du Fu que aludem aos «Vapores quentes exalam das rochas sob o sol inclemente,/ Sobre as correntes de lagos e rios, o céu azul», numa escolha que exclui todas as circunstâncias do poema e contrasta de modo complementar com o carácter abstracto da pintura, que se concretiza nos poucos elementos descritos no título, criando uma nova cadeia de sentidos. No longo rolo horizontal de pintura de 1661, que lhe é atribuído no Metmuseum, Paisagem de rio no Outono (tinta sobre papel, 32,7 x 665,5 cm) essa sobriedade é reforçada pela figuração de um panorama ribeirinho em que a presença humana está apenas indiciada através das casas de telhados de colmo onde se não vêem pessoas, à excepção de um pescador com o seu chapéu largo. Um cenário onde o olhar do observador, tocado pelas palavras de Du Fu, podia habitar; quem sabe se o pescador não era Huiyuan, alguém com quem iniciar uma conversa que termina numa gargalhada?

4 Nov 2022

Ressonâncias entre Tao Yuanming e Camilo Pessanha

O Paraíso como fuga utópica

Camilo Pessanha nasceu em Coimbra em 1867, no mesmo ano em que Baudelaire morreu. Desde jovem, visitou várias regiões com o seu pai que, devido à sua carreira de magistrado, levava o seu filho a diferentes territórios, despertando a curiosidade de Camilo por outras nações. De volta a Coimbra em 1884, aos 16 anos de idade, Camilo frequentou a faculdade de Direito, seguindo os passos de seu pai, graduando-se em 1891. Aos 18 anos de idade, publicou o poema “Lúbrica”, com referências ao seu pensamento sobre o povo chinês:

Como os ébrios chineses delirantes
Aspiram, já dormindo, o fumo quieto
Que o seu longo cachimbo predilecto
No ambiente espalhava pouco antes…

De facto, a sua cidade natal também lhe proporcionou a oportunidade de conhecer colecções de arte asiáticas através das decorativas porcelanas chinesas existentes na Biblioteca Joanina da Universidade e no Museu de História Natural. Compreender os princípios das civilizações exóticas era, então, na cidade da mais antiga e prestigiada Universidade lusitana, um sinal de distintiva elegância. Os Vedas, o Mahabarata, o Zend-Avesta, os Eddas e os Nibelungos são exemplos de livros lidos pelo meio literário, numa tendência chamada “Renascença Oriental”. Seguindo essa tendência intelectual, manuscritos de Pessanha como “Legenda Budista” e “Vozes do Outono – Tradução do chinês, reflexões filosóficas de um autor desconhecido da dinastia Tang”, actualmente na Biblioteca Nacional, referem o povo e a cultura Sínica.
Em 1894, Pessanha foi nomeado professor no Liceu de Macau, o mesmo ano em que este estabelecimento fora inaugurado. Recentemente chegado à colónia portuguesa na China, começa a escrever sobre a cultura chinesa de um ponto de vista intuitivo. À medida que os seus conhecimentos da língua chinesa aumentavam, mergulha no estudo da civilização sínica. Dá palestras e escreve ensaios sobre literatura e estética chinesa. Durante esses anos, a China sofria convulsões políticas e sociais. O colapso da dinastia Qing criara as condições para a revolução de 1911, que gerou um êxodo de refugiados para Macau e para Hong Kong, incluindo importantes dignitários do antigo regime imperial que tentaram encontrar refúgio da rebelião nestas cidades portuárias. Consequentemente, Macau e Hong Kong eram portas de entrada para aqueles que procuravam ganhar dinheiro com os seus artefactos mais valiosos. Como resultado, nos anos que se seguiram às revoltas, um próspero comércio de arte e mesmo uma loucura por colecções de arte chinesa floresceram nas referidas cidades. Pessanha, que poderia lucrar com este próspero mercado de arte, começou a coleccionar antiguidades e extravagantes artefactos.
Camilo Pessanha é um dos mais importantes poetas portugueses modernos, uma referência na poesia simbolista contemporânea. Ao longo da sua vida, interessou-se progressivamente pela cultura chinesa. Foi chamado por Luís Sá Cunha “o mais chinês dos poetas ocidentais, antes de Ezra Pound”2. O seu livro de poemas, “Clepsydra”, ressoa a poesia clássica chinesa que descobriu na altura – como outros poetas ocidentais também o fizeram -, contribuindo para a criação de um novo tipo de rima. É importante mencionar ainda um aspecto do Confucionismo que fascina os intelectuais portugueses em Macau: o entendimento de que esta “religião” existia como uma “escola de intelectuais” (儒家) (rujia). De facto, os textos atribuídos a Confúcio reflectem sobre justiça, valores humanos, ética, e a importância dos rituais para uma sociedade harmoniosa. Não é surpresa que o admirador destas obras – sendo poeta, advogado e filósofo, e vivendo numa época de caos político (o derrube da dinastia Manchu e a proclamação da República em 1912) – tenha tido em alta estima os valores confucionistas e taoístas de paz e harmonia. Os textos de Confúcio também atribuíam um significado imenso à poesia e à música. Os músicos, tocando em grupo, constituiriam uma das várias metáforas utilizadas para uma sociedade harmoniosa.
Seguindo esta mesma linha de raciocínio, a poesia e a arte assumiram importância filosófica para os coleccionadores portugueses que tentavam compreender e absorver os valores chineses. A poesia teve uma relação particularmente duradoura com a música na China, já que as duas primeiras antologias de poesia na literatura chinesa, o “Livro das Odes” (詩經 Shijing) e as “Canções de Chu” (楚辭 Chu Ci), eram ambas colecções de canções, a primeira de origem secular e a segunda litúrgica (derivando o seu imaginário do ritual xamânico). Mesmo depois da dinastia Han (202 a.C. – 220 d.C.), quando a poesia adquiriu uma certa autonomia, a tradição dos cânticos populares (樂府 yue-fu) nunca foi interrompida. Todas as formas de poesia compostas por escritores, independentemente do estilo, eram entoadas. Quando pelos finais da dinastia Tang, por volta do século IX, o florescimento da poesia rimada (辭 ci) trouxe de novo a simbiose entre a poesia e a música.
Contudo, se por um lado, Pessanha é famoso pela sua escrita poética e criativa, a sua contribuição como coleccionador de arte e sinólogo tem sido frequentemente ignorada. Um estudo de alguns dos objectos da sua colecção de arte privada visa esclarecer a história dos artefactos que integram o património cultural da Ásia Oriental, alojado pelo Museu Nacional de Machado de Castro em Coimbra e pelo Museu do Oriente em Lisboa. A carreira de Pessanha como advogado e professor de filosofia em Macau colidiu com a sua propensão para a solidão e a auto-absorção, tornando-se um recluso excêntrico à maneira chinesa e um alvo de crítica para muitos dos seus pares na administração portuguesa de Macau. Como poeta português, nota-se a sua voz única, comparável à dos literatos chineses, pela sua projecção de tristeza, nostalgia, humanidade e vulnerabilidade pessoal nos seus textos, de forma semelhante às quadras chinesas “Jueju” (絕句). Como é que o seu interesse poético se relaciona com as obras de arte que reuniu em Macau? Neste artigo, analisaremos a forma como Pessanha, em acto de identificação biográfica, selecciona o seguinte quadro intitulado ” Flores de Pêssego na Primavera”, que exibe um poema de uma das personalidades mais proeminentes da literatura chinesa, Tao Yuanming (陶渊明) (365- 427), também conhecido por Tao Qian).
Esta obra de arte retrata a aventura de um simples pescador que acidentalmente entra num vale de pessegueiros separado do mundo terreno. Os seus habitantes vivem numa espécie de paraíso. De acordo com a narrativa, os aldeões explicam que os seus ascendentes se refugiaram neste lugar idílico durante as convulsões civis da dinastia Qin (221-206 a.C.)2 e, desde então, não haviam tido qualquer contacto com ninguém de fora do seu refúgio ou tomado conhecimento dos governos posteriores3. O autor é o famoso poeta chinês Tao Yuanming, que permaneceu para sempre como arquétipo do estudioso cujos talentos nunca foram bem empregues na administração governamental. Os seus versos reflectem o mal-estar e a ansiedade que assolava a sociedade chinesa na altura, já que viveu durante as Seis Dinastias (304-439), quando o norte da China estava ocupado por líderes estrangeiros e o sul da China, onde Tao viveu, assistia a uma sucessão de dinastias, fracas e breves, com a sua capital em Jiankang (hoje Nanjing); e ilustra o lamento pela rápida extinção de restos materiais da história e da cultura. A vida de Tao inspirou muitas obras literárias e ilustrações, e o período das Seis Dinastias foi um período vital na história da poesia chinesa, pois o poema original é sobre o ideal de encontrar um mundo perfeito onde as pessoas vivam em harmonia com a natureza.
Segundo Jacques Pimpaneau (2004, 274-297), Tao vem de uma família de literatos, tendo prosseguido uma carreira como funcionário público. O seu bisavô, Tao Kan, ocupou o cargo de ministro. O avô materno, o avô paterno, e o seu pai foram todos governadores locais. A sua família, porém, não era uma das mais influentes na aristocracia da época, o que talvez explique porque não teve uma carreira realmente próspera. Tao Yuanming era apenas um empregado subalterno, e a sua ocupação começou tarde, em 393, com um cargo menor na prefeitura de Jiangzhou (agora Jiujiang). Em 400, ocupou um cargo auxiliar com Huan Xuan (桓玄) (369 -404), um general que derrubou o Imperador Jin Andì (晉安帝) (382-419) em 403. Tao regressou à sua carreira após o luto pela morte da sua mãe em 404-405, servindo de elogio a Liu Yu (劉裕) (363-422). O seu último cargo foi o de responsável pela cidade de Pengze, por um período de oitenta dias, em 406. Depois retirou-se definitivamente. A sua residência foi queimada, o que o obrigou a regressar à sua aldeia natal. A sua vida no país não foi a de um ascético; manteve várias relações amistosas com indivíduos com quem costumava beber vinho, tornando-se assim famoso pela sua série de vinte poemas que celebravam os prazeres da bebida alcoólica.
Tao simpatizou com a pobreza e a fome dos camponeses e era bem formado nos clássicos do confucionismo e do taoísmo. Mais tarde na vida, poderá ter feito amizade com uma figura budista local, muito antes do budismo ser significativo na China. Há uma lenda sobre um encontro entre o monge Huiyuan (慧遠) (334 – 416,), Tao Yuanming, e Lu Xiujing (陸修靜; 406-477), que se tornou um conto popular. Talvez esta lenda tenha sido criada porque o sacerdote Huiyuan é considerado como o primeiro patriarca do “Budismo da Terra Pura” chinês, segundo o qual ao espírito de cada um poderia ser oferecida uma morada feliz no Paraíso Ocidental após a morte. Do mesmo modo, o céu ocupa uma ideia central na obra literária de Tao, mesmo que a intenção velada seja dar voz a um período de transição e de reclusão.
Estes poemas idílicos falam metaforicamente da retirada das funções burocráticas. Cédric Laurent explica que o tema criado por Tao interessa uma grande parte dos literati de Jiangnan (região sul em torno de três centros Suzhou, Nanjing e Hangzhou), incluindo comerciantes e empregados instruídos. Tao tornou-se num exemplo de quem que resiste em vez de cumprir as exigências de uma administração corrupta ou de quem arriscava envolver-se em disputas entre eunucos e literati na corte. Portanto, o renascimento das pinturas que ilustram da história de Tao está relacionado com os movimentos de protesto entre as classes de elite, expressos tanto a nível literário como filosófico.
Escrevendo no século V, o gosto de Tao pela natureza aumentou, após a sua desilusão com a vida pública, durante o período de invasão da China por clãs alienígenas do norte e a divisão, pela dissensão civil e corrupção política, do governo do sul. Coincidentemente, na viragem do século XIX para o século XX, Pessanha utilizou a filosofia chinesa e refugiou-se na solidão, transcrevendo nos seus poemas a sua euforia pela natureza durante os anos de turbulência política que precederam a proclamação da República na China. O ideal de um homem transportado de um mundo mundano para um reino raro de beleza e tranquilidade reflecte uma utopia comum na mente de ambos os poetas.
Tal como no poema de Tao, a presença do motivo “Paraísos Artificiais” é evidente na poesia de Camilo Pessanha. Em vez de um lugar, este “paraíso” está mais próximo de um estado de espírito, comparável às tradições budista e hinduísta. O tema do paraíso na sua voz poética liga-se aos temas da retirada e do nirvana, ligando o seu sentimento individual de insatisfação com o mundo existente, considerado uma causa de sofrimento. Por exemplo, a melancolia contida nos versos de “Clepsydra” – aparentemente reminiscente do pessimismo de Arthur Schopenhauer6 – parece reflectir uma criação artística que permite ao leitor aceder a imagens internas vistas por alguém durante uma profunda auto-reflexão. Aqui está um poema que sugere saudades de casa, um tema constante na tradição poética chinesa. Nos versos transcritos, Pessanha concentra-se na descrição de uma paisagem da Primavera, transmitindo assim os seus sentimentos de saudade da estação que infelizmente se foi. Trata-se de uma técnica frequentemente utilizada pelos poetas chineses. Em vez de falar directamente sobre sentimentos pessoais, o poeta chinês prefere personificar a natureza, ou, alternativamente, interiorizar o cosmos natural, transformando cada palavra num código carregado de significado metafórico ou simbólico. Devido à influência dos poemas chineses que Pessanha lia enquanto habitava em Macau, tinha uma visão intelectual pouco ortodoxa da métrica e da composição, se comparada com outros poetas portugueses, quando escrevia sobre o sofrimento e a ilusão inerentes ao processo de vida:

Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!…

ou

Quando voltei encontrei os meus passos
Ainda frescos sobre a húmida areia,
A fugitiva hora reevoquei-a,
Tão rediviva!, nos meus olhos baços…

De facto, os olhos são uma imagem recorrente em “Clepsydra”. Em vez de contemplarem qualquer imagem fixa, estão centrados na ideia budista de impermanência (“Anitya”) (“A hora fugaz”, escreve Pessanha). De acordo com a tradição Mahayana, a fé budista seria adaptada na China da forma mais apropriada para expandir a religião. Por exemplo, o monge Hui Yuan usa a filosofia taoista para explicar as concepções budistas esotéricas. Digno de nota que um dos termos chineses para “budismo” (像 教 “xiang jiao”) traduz-se literalmente como “Doutrina das Imagens”. Como sinólogo e escritor de estética e literatura, Pessanha estava ciente de que o caracter para “imagem” em Chinês像 (xiang) é composto pelo radical ‘人’ para “pessoa” e o composto fonético ‘象’ para “elefante” ou “aparência”, implicando que a imagem se torna uma figura ou pintura perceptível através do raciocínio subjectivo individual. Além disso, o livro considerado o mais importante sobre a estética literária chinesa, “Literatura e Escultura do Coração do Dragão” (文心雕龍, Wen Xin Diao Long), escrito por Liu Xie cerca de 500, define “imagem” (像) como uma ideia abstracta internalizada pelo poeta através da forma artística.
Não obstante, a história do pensamento chinês não foi a única fonte de inspiração para Pessanha. Os críticos literários assumiram que o termo “Clepsydra”, título do seu único livro de poemas, teve provavelmente origem no versículo de Charles Baudelaire (1821-1867) “O abismo tem sempre sede; a clepsidra esvazia-se”. No entanto, vale a pena mencionar que o leitmotiv do relógio de água é também comum à poesia clássica chinesa – e o próprio Baudelaire poderia ter reutilizado este termo devido ao seu interesse oriental. Na verdade, o movimento Simbolista, iniciado em França e influenciado por estes novos valores originários do Oriente, reagiu contra o Naturalismo e o Realismo em favor da espiritualidade, imaginação e devaneios. A relação de Pessanha com o movimento Simbolista poderia doravante explicar a presença de um motivo oriental na sua poesia, mesmo antes de ter deixado Portugal para a China em 1893. De facto, os poemas publicados na primeira edição de “Clepsydra” são todos anteriores à sua estadia em Macau, embora os seus restantes manuscritos sugiram que ele possa ter reescrito grande parte da sua poesia depois de se ter mudado para esta colónia portuguesa na Ásia, onde o tema do relógio de água pode ter adquirido mais corpo sob a influência chinesa. À semelhança dos poetas chineses, os escritores europeus mencionados consideram a Natureza não apenas como um fenómeno físico, com qualidades sensualmente agradáveis, mas também como uma alma animada, que está em íntima correspondência com a própria vida.
Consequentemente, se Pessanha já estava a receber a inspiração de outros poetas do seu continente europeu, estes mesmos poetas tinham de facto aprendido com a filosofia asiática as qualidades estéticas que traduziram nos seus textos. É importante recordar a influência que Emanuel Swedenborg (1688-1772) exerceu na poesia simbolista. Não só Baudelaire, mas também Thomas Carlyle, Ralph Waldo Emerson, Balzac, Helen Keller e, mais recentemente, Jorge Luís Borges, fazem eco das suas obras. A doutrina de Swedenborg, baseada no conceito bíblico de que “Deus criou o homem à sua própria imagem” (Génesis 1:27), é explicada em pormenor no seu livro “Arcana Cœlestia”, escrito entre 1746 e 1747. Ele chama “correspondência” à relação entre aspectos do domínio material e do domínio espiritual. Tudo no mundo material teria a sua contraparte na esfera espiritual. As ideias da Swedenborg são semelhantes a alguns preceitos cristãos esotéricos, budistas e védicos. O escritor pioneiro a usar esta ideia de “correspondência” na poesia foi, de facto, Baudelaire, que, num dos poemas mais influentes da literatura moderna, afirma que “som, cor e visões respondem uns aos outros”, o que significa que estas três modalidades sensoriais provêm da mesma intuição. Ele menciona ainda uma fuga para um mundo distante, de natureza exótica e de paraísos artificiais. Evoca a realização que se faz durante certos estados de espírito em que se misturam as percepções sensoriais.
Na pintura chinesa, a paisagem adquire um estatuto especial, considerado a forma suprema da pintura. Por esta razão, a ilustração ” Flor de Pêssego na Primavera” retrata várias montanhas, uma vez que as terras altas são vistas como um lugar sagrado pela sua proximidade do céu, lar dos imortais, sendo assim um tema de excelência nas pinturas chinesas. Em conclusão, o interesse filosófico na doutrina taoista sobre a natureza contribuiu para transformar a paisagem numa fonte de valores espirituais, algo que tanto Tao como Pessanha absorvem e reutilizam na sua poesia simbolista. Nas rimas de Pessanha, a natureza assume o mesmo uso que no tropo pictórico da ilustração do poema de Tao. A renúncia ascética poderia ser transmitida em imagens de dissolução através da articulação da dor pelo estado distópico do mundo humano.

Notas
1.Num discurso proferido na cerimónia de homenagem a Camilo Pessanha, a 1 de Março de 1999, no cemitério onde se encontra o poeta.
2.Revolta de Dazexiang (Julho – Dezembro 209 AC) e Insurreição de Liu Bang (206 AC).
3.Esta cena também aparece no Palácio de Verão de Pequim e na pintura em forma de leque do pintor chinês Ding Yunpeng em 1582, a dinastia Ming.
4.PIMPANEAU, Jacques. “L’œuvre de Tao Yuanming (Tao Qian, 365-427)”, in “Anthologie de la littérature chinoise classique”, Arles, Éditions Philippe Picquier, 2004, pp. 274-297.
5.ZHANG, Yinde. “Histoire de la littérature chinoise”, Paris, Ellipses, coll. “Littérature des cinq continents”, 2004, p. 23.
6.Pode-se também descobrir tangências entre a concepção de arte de Shoppenhauer e as ideias que Pessanha expressou sobre a natureza e a função da arte. Ambas conceberam a arte como uma renúncia ao desejo e ao gozo dos sentidos.

28 Out 2022

A China e os chineses em Broken Blossoms

Broken Blossoms (Lírio Quebrado é o título português) é considerado pela crítica como um dos melhores filmes de Griffith, a par de O Nascimento de uma Nação e Intolerância. Estreou em Nova Iorque no dia 13 de maio de 1919, no George M Cohan Theater. O enredo desenvolve-se em torno de Lucy, uma rapariga de 15 anos do bairro de Limehouse em Londres. O pai, Battling Burrows, é um pugilista ébrio e violento que lhe torna a vida infernal. Certo dia, Lucy procura refúgio na loja de um jovem chinês, Cheng Huan. Este admirava em segredo a beleza da rapariga. Quando o pai de Lucy descobre, espanca a filha até à morte. Ao encontrá-la moribunda, Cheng Huan mata Battling Burrows e suicida-se. Lucy é interpretada por Lillian Gish numa época em que não tinha ainda atingido o auge do estrelato. A história, embora trágica, era simples e, como afirma Rotha, “confiou no cinema para ter sucesso” (1967, 172).
Broken Blossoms baseava-se no conto ‘The Chink and the Child’, parte da colectânea Limehouse Nights (1916) do escritor inglês Thomas Burke. Burke fora funcionário e jornalista na cidade e alcançara popularidade como cronista sensacionalista dos bairros sórdidos de Londres como Limehouse, retratando os seus habitantes como personagens pecaminosas entre o erotismo, a traição e a vingança (Kepley 1978, 41).
O filme foi rodado numa época em que vigorava um intenso preconceito anti-asiático na Europa e na América, fenómeno que começara no século XIX e se prolongaria pelas primeiras décadas do século XX. A animadversão contra os asiáticos podia ser encontrada nas políticas do governo britânico e dos EUA através de leis de imigração e de restrição de imigrantes, bem como em práticas imperialistas nas Caraíbas e na Ásia. Por exemplo, no caso do Supremo Tribunal da Califórnia People vs. Hall (1854), o tribunal descreveu os imigrantes asiáticos como
“uma raça de pessoas que a natureza marcou como inferiores e que são incapazes de progredir ou de desenvolvimento intelectual para além de um determinado ponto, como a sua história demonstra; com uma diferença na linguagem, nas opiniões, na cor e na constituição física; e entre quem e a nossa natureza colocou uma diferença intransponível”. (citado por Yang 2016, 10)
E a subsequente Lei Anti-Coolie dos EUA prosseguiu na mesma veia, pintando os asiáticos como “coolies, uma raça degradada de viciados em ópio, prostitutas e jogadores sem Deus” (citado por Yang 2016, 10).
A animadversão contra os asiáticos podia também ser encontrada nos meios de comunicação, na literatura, no teatro e no cinema. Os asiáticos, chineses e japoneses em especial, eram invariavelmente retratados como a encarnação viva de um mal insidioso. Tornaram-se figuras familiares na literatura e nas revistas populares através de romances e histórias de autores como o já referido Thomas Burke e o criador do conhecido Dr. Fu Manchu, Sax Rohmer, que sonhou com a China governando a Europa e a América.
Quando Broken Blossoms foi rodado, Hollywood tornara-se num centro catalisador de animadversão contra os asiáticos. Os filmes que produzia retratavam asiáticos indignos de confiança e que constituíam uma ameaça aos valores americanos, às mulheres americanas e à América enquanto país. Por exemplo, em The Yellow Menace (1916), os maléficos chineses unem forças com os mexicanos para erguer uma conspiração subversiva contra os EUA. O título do filme recorda o termo “Perigo Amarelo”, usado pelo Kaiser alemão Guilherme II para incentivar os impérios europeus a invadir e colonizar a China, a fim de impedir que uma hipotética aliança sino-japonesa conquistasse e subjugasse o mundo ocidental.
Não esqueçamos que o nascimento do cinema coincidiu com a proliferação de ideologias pseudo-científicas como o darwinismo social e a eugenia, que promoviam a noção de raça através de uma hierarquia natural das culturas humanas. O topo pertencia aos anglo-saxónicos, o nível seguinte aos restantes caucasianos e os mongólicos e negros eram colocados no fundo. Desde então
“O cinema americano tem construído consistentemente a brancura, a forma representativa e narrativa do Eurocentrismo, como a norma perante a qual todos os “Outros” falham por comparação. As pessoas de cor são geralmente representadas como ameaças desviantes à regra branca, exigindo assim punição civilizada ou brutal, ou como objectos fetiches de beleza exótica, ícones para uma escopofilia racista” (Bernardi 1996, 3).
Receando que a ausência de uma posição anti-asiática óbvia em Broken Blossoms irritasse ou desapontasse o público, Griffith decidiu manipular previamente a leitura que dele faria, promovendo com sucesso o filme como uma obra de arte séria. Devido à aura artística, a superação do preconceito racial talvez viesse a ser tolerada. Griffith concebeu um plano elaborado para a distribuição do filme nos EUA que se assemelhou a uma grande produção teatral. E assegurou-se de que a campanha publicitária não fazia referências claras ao tema do filme (Kepley 2009).
Broken Blossoms retrata a China como um lugar anacrónico de vida contemplativa onde as pessoas estão ligadas pela família, as amizades, a comunidade e a continuidade entre gerações, enquanto Londres é dinâmica, violenta e inóspita. Não obstante ter sido filmado em 17 dias, detecta-se por parte do realizador um certo esmero e exigência de autenticidade nas cenas passadas na China. Isso era muito raro na época e continuaria a ser raro durante largas décadas. É verdade que as duas principais personagens chinesas (Cheng Huan e Evil Eye) são interpretadas por caucasianos, como era então a norma, mas todos os outros chineses são chineses de facto. As roupas chinesas são roupas chinesas e os sapatos chineses são sapatos chineses. Além disso, e isto é ainda mais notável, os caracteres chineses são caracteres chineses reais e as frases que formam são frases plausíveis. Na maioria dos filmes ocidentais, os caracteres chineses ou eram rabiscos falsos ou apareciam de cabeça para baixo, como no close-up de uma carta em The Forbidden City (1918), de Sidney Franklin.
Para além disso, Broken Blossoms parecia ir deliberadamente contra a maneira de retratar os asiáticos então dominante nos meios de comunicação populares. Na história de Burke, Cheng Huan era retratado como “o inútil de um oriental” (citado por Yang 2016, 12). Griffith tentou distanciar-se do conto sensacionalista de Burke tornando o seu ‘homem amarelo’ numa personagem melhor, enfurecendo o escritor por não o ter consultado (Kepley 1978, 46).
Durante várias noites, Griffith levou Richard Barthelmess, o actor então desconhecido que interpretava Chen Huang, a passear pela Chinatown de Los Angeles para observar os chineses, como preparação para desempenhar o seu papel (Koshy 2001, 75).
Nas cenas passadas na China, Cheng Huan é retratado como uma personagem poética que sonha em ensinar o amor budista pela paz no Ocidente, um homem eloquente que abraça valores eternos, como a eternidade de Buda e a eternidade da civilização chinesa. Vestido com vestes ricamente ornamentadas, parece sereno, digno até.
Todavia, quando se muda para Londres, o seu sonho missionário soçobra. Não se mostra capaz de ultrapassar os obstáculos inerentes à tarefa de transplantar a espiritualidade asiática para o Ocidente. Torna-se paulatinamente apenas mais um ‘chinoca’ do bairro de Limehouse. A expressão facial é melancólica, pouco fala, usa roupas envelhecidas e adopta, como Lucy, uma postura encurvada. Conserva amiúde os olhos baixos, os braços enrolando-se sobre si próprio. Com os seus ideais despedaçados, Cheng Huan transforma-se num solitário viciado em ópio e num alienado desiludido incapaz de prosperar num ambiente hostil. Na verdade, as roupas de Cheng, a sua loja, a sua casa e o seu fumo de ópio parecem conservá-lo para sempre numa existência asiática. O filme alerta deste modo para os perigos das travessias culturais e para a degeneração daí resultante.
A dificuldade em ajustar-se a uma cultura diferente é sugerida logo no início do filme. “Os bárbaros anglo-saxónicos”, os britânicos, os marinheiros americanos, são encarnações de auto-confiança machista, mulherengos e bêbados que gostam de lutas. Mas “o sensível Homem Amarelo encolhe-se de horror” ao ver os marinheiros americanos a lutar. E embora a sua mensagem budista seja semelhante à cristã (“O que não queres que os outros te façam, não faças tu aos outros”) há um equívoco na percepção cultural. Cheng Huan interpreta como violência o que foi, de facto, segundo Griffith, “Apenas uma luta livre e sociável para os Jackies”. Em suma, provavelmente não se entendem.
Ainda assim, Cheng Huan irá apaixonar-se por uma rapariga branca. A ameaça de miscigenação é, portanto, um tema central do filme. A miscigenação era um tema popular, intrigante e repulsivo ao mesmo tempo. Um dos estereótipos em voga era que o homem asiático nutria um apetite voraz por mulheres brancas. Tal como em Broken Blossoms, a luxúria era unilateral, mas os homens asiáticos conseguiam impressionar as mulheres brancas através de uma gentileza calculista, embora nunca através de proezas físicas. The Cheat (1915) de De Mille servia como protótipo, ao retratar a história de um japonês rico e perigoso que prospera na sociedade branca e é uma ameaça para as mulheres, um violador (Kepley 1978, 39). Na sequência final, é claro, as mulheres eram invariavelmente salvas por um herói branco, de preferência americano.
Broken Blossoms foi uma inovação no sentido em que não há nenhum herói branco por quem Lucy se apaixone e que a vá salvar. O herói só podia ser branco e, portanto, Cheng Huan não a podia salvar.
Um aspecto representado na grande maioria destes filmes era a violência perpetrada contra um membro (e às vezes ambos) de um casal bi-racial, muitas vezes separando-os nesse processo. Assim, a miscigenação, mesmo que retratada de uma forma mais positiva, esteve quase sempre ligada à violência e era vista, em geral, como algo a abordar com cautela. (Hui 2010, 6)
As uniões bi-raciais estão condenadas a falhar e Cheng Huan não podia concretizar carnalmente o seu desejo pela rapariga branca. Abstém-se mesmo de beijar Lucy, pois esta parecia encolher-se de terror perante tal perspectiva. Tudo quanto podia fazer era demonstrar por ela uma espécie de amor maternal: “A falta de resposta infantil de Lucy à paixão de Cheng inicia uma transformação no papel deste como um potencial amante para o de mãe substituta.” (Koshy 2001, 65).
Cheng Huan, um misto de luxúria carnal e de espiritualidade, sublimou o desejo por Lucy em adoração pela sua brancura. O seu quarto torna-se num altar de adulação à Menina Branca, à Flor Branca. Esta, no entanto, só na aparência permite ser orientalizada, ao envergar vestes chinesas, “seda azul e amarela acariciando a pele branca”. Na verdade, está imobilizada entre a brutalidade do pai e o alienado Cheng Huan, entre o abuso e a miscigenação, entre a vida de escrava e a vida de prostituta. Sem herói branco à vista, para Lucy a única saída é a morte.
Ainda assim, na altura, Broken Blossoms foi recebido como uma forma de arte e como uma declaração contra a brutalidade masculina e os preconceitos raciais. Através de uma combinação ambígua de racismo e de antirracismo, surgiu como “uma das representações mais positivas de miscigenação entre asiáticos e brancos que a indústria cinematográfica americana apresentaria durante muitos anos.” (Hui 2010, 23).

Referências:
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Barry, Iris (1940), D. W. Griffith, American film master, New York: The Museum of Modern Art, 1965, pp. 28-9.
Beach, Christopher (2015), A Hidden History of Film Style: Cinematographers, Directors, and the Collaborative Process, University of California Press, pp. 48-52.
Bernardi, Daniel (1996), “Introduction: Race and emergence of US Cinema”, The Birth of Whiteness: Race and the Emergence of US Cinema, Rutgers University Press, pp. 1-11.
Flitterman-Lewis, Sandy (1994), “The Blossom and the Bole: Narrative and Visual Spectacle in Early Film Melodrama Author(s)”, Cinema Journal, Vol. 33, No. 3 (Spring, 1994), pp. 3-15.
Hui, Arlene (2010), “Fantasies of the “Yellow Peril”: Miscegenation in The Cheat (1915) and Broken Blossoms (1919)”, Film Journal 1 https://www.ucl.ac.uk/filmjournal/content2011 (accessed July 3, 2018)
Kepley Jr., Vance (1978), “Griffith’s “broken blossoms” and the problem of historical specificity”, Quarterly Review of Film Studies, 3:1, pp. 37-47.
Koshy, Susan (2001), “American Nationhood as Eugenic Romance”, Differences: a Journal of Feminist Cultural Studies, 12 (1), pp. 50-78.
Rotha, Paul e Griffith, Richard (1967), Survey of World Cinema. The Film Till Now A Survey of World Cinema, New York: Twayne Publishers, pp. 169-79.
Torregrosa, Daniel C. Narváez (2008), “La Vision Cinematográfica de D. W. Griffith”, Frame: revista de cine de la Biblioteca de la Faculdad de Comunicación, Nº 3 2008, pp. 44-57.
Yang, Helen (2016), “White Washed Out: Asian American Representation in Media” https://sites.duke.edu/bakerscholars/files/2017/02/Yang_AsianAmericanMediaRepresentation.pdf (accessed June 29, 2018)

28 Out 2022

A Via do Meio em Zhuang Zi

De como ele fala da “Via do Meio” ou “linha do meio”, no início do Capítulo III (Nutrir a Vida).

A nossa vida flui dentro de margens,
mas o conhecimento não tem margens.
Perseguir o que não tem margens
usando o que tem margens, já é arriscado.
Se acreditarmos que temos conhecimento
para o fazer, o perigo está à espreita!

Fazendo bem sem nos avizinharmos da fama,
fazendo mal sem nos avizinharmos da punição,
e seguindo pela linha média,
consegue-se proteger o corpo,
manter intacta a vida,
dar apoio aos familiares
e esgotar os anos que nos cabem de vida.

Comentário
Este capítulo parece estar estruturado para ilustrar estas suas primeiras linhas que dizem que a nossa vida é como um rio, que não deve sair das margens. É perigoso usar o conhecimento como guia, porque ele consegue exceder todas as margens, querendo saber mais do que é possível sobre a realidade. Tentar saber o que fazer com a vida é fútil, porque ela não é norteada pela compreensão consciente. Para nutrirmos a vida, não devemos usar o conhecimento (ou devemos usá-lo de modo que ele se adapte a cada situação da vida e não o contrário) para podermos seguir dentro da linha média, sem nos aproximarmos da margem da fama nem da margem da punição. Se fizermos algo que as convenções consideram bom, devemos evitar a fama. Se fizermos algo que as convenções consideram mau, devemos evitar o castigo. Ou seja, embora não nos devamos deixar guiar pelas convenções sociais, quase sempre muito limitativas da ordem natural das coisas, devemos tê-las em conta nas nossas acções. Nem as devemos seguir inteiramente, nem as devemos ignorar. Teremos uma vida mais feliz se seguirmos pelo «caminho do meio». E as flutuações espontâneas do comportamento, entregues a si mesmas, têm tendência para nos fazer seguir por ele.

A primeira frase deste texto (吾生也有涯而知也無涯), que literalmente significa «a nossa vida tem margens, mas o conhecimento não tem margens», é um aforismo muito conhecido, usado na China para exprimir a ideia de que «a vida é curta, mas o que há para aprender é ilimitado». É a expressão usada para transcrever para o chinês o aforismo «Ars longa, vita brevis» (Ὁ βίος βραχύς, ἡ δὲ τέχνη μακρή) de Hipócrates, que viveu um século antes de Chuang Tse.

O caracter que traduzimos por «linha média» é 督 (dū), que significa «controlador» ou «supervisor» e é também um termo da acupunctura chinesa que designa o meridiano que percorre verticalmente o centro das costas. Os «meridianos» (經絡, jīng luò) são canais de energia, que percorrem o corpo e o protegem. Neles circula o ying chi (營氣, yíng qì), um sopro nutriente que, segundo a tradição chinesa, é capaz de produzir sangue. Uma tradução mais literal do que «seguindo pela linha média» seria: «circulando no meridiano supervisor».

Repare-se que o conhecimento de que se fala neste texto é essencialmente o que se relaciona com a definição do que é a conduta certa e a conduta errada. Parece uma rejeição da moralidade. No entanto, como se depreende do resto do capítulo, a conduta recomendada não corresponde a rejeitar os objectivos práticos da moral, como o bem-estar pessoal e a consideração pelos outros. O que se afirma é que, se queremos «nutrir a vida», em vez de orientarmos as nossas acções deliberadamente, tentando seguir as normas morais, devemos tomar por modelo o modo de agir dos artífices exímios e seguir espontaneamente o caminho que responde de uma forma mais ajustada, adequada, eficaz ou harmoniosa às circunstâncias de cada momento.

Este texto não deixa de nos chamar a atenção, como Nietzsche, na “Genealogia da moral”, para que a avaliação e a orientação da conduta humana em termos distintamente morais é uma prática cultural, adoptada em determinadas circunstâncias para certos fins, e que pode não ser nem necessária nem inevitável, nem a melhor para a preservação da nossa vida individual.

28 Out 2022

Su Dongpo – Carta ao amigo Qin Guan

蘇東坡 Su Dongpo (1037-1101), um dos grandes poetas da China e do mundo, conheceu o degredo e o exílio, mas sabia transformar as adversidades em tempos de pequenos e inesquecíveis prazeres. No ano de 1080, após 130 dias na prisão, por supostamente ter criticado o imperador, Su Dongbo foi despromovido e enviado como fiscal das águas e segundo comandante da guarda da insignificante vilazinha de Huangzhou, na margem norte do rio Yangtsé, a meio caminho entre os lagos Dongting e Poyang. A sua casa situava-se no lugarejo de Lingao e aqui Su Dongbo escreveu alguns dos seus mais belos poemas. Este é um excerto de uma carta então enviada ao seu amigo Qin Guan.

Quando cheguei a Huangzhou estava preocupado com o que iria encontrar. O meu salário havia sido cortado e a minha família era extensa. Contudo, fazendo poucas despesas, consegui não gastar mais de 150 sapecas por dia. No início do mês recebia 4.500 moedas e dividi-as em 30 sacos que pendurava nas vigas da casa. Todos os dias, de manhã, com uma cana pesco um saco de sapecas. Também penduro uns caniços de bambu onde guardo o dinheiro que sobra. É um método que me foi ensinado pelo meu amigo Xia Yunlao. Creio ter dinheiro suficiente para um ano ou mais, e depois aparecerão outras soluções. A água quando corre escava a terra, não vale a pena preocupar-me demasiado com o futuro. Entendes porque são tão poucas as inquietações na minha mente?
Nas margens do rio Yangtsé situa-se Wuchang. Em redor, a paisagem de montanhas e água é prodigiosa. A cidadezinha é habitada por um homem chamado Wang, natural de Sichuan. De quando em quando, o vento e as águas agitadas do rio impedem-me de regressar ao lar, então o meu amigo Wang mata um frango e cozinha uma panela com milho miúdo. Posso permanecer em sua casa durante vários dias, não é coisa que o aborreça. Tenho outro amigo, o Pan, dono de uma taberna no cais de Fankou. Bastam umas tantas remadas numa barca e chego à sua quitanda. O vinho da aldeia é encorpado, abundam tangerinas e dióspiros. Os inhames têm mais de um pé de comprimento e podem ser comparados aos das terras de Sichuan. O arroz vem de outras regiões, por via fluvial, e custa apenas vinte taéis por alqueire. A carne de carneiro é tão boa como a das províncias do norte, porco, vaca e cabra são muito baratos, os peixes e caranguejos não custam quase nada. Hu Tingshi, o inspector do Departamento Vinícola, trouxe dez mil livros com ele que tem prazer em emprestar aos amigos. Em Huangzhou existem vários pequenos funcionários estatais, todos amantes da boa cozinha que gostam de oferecer banquetes. Depois desta descrição podes aperceber-te de que a minha vida por aqui é mais do que agradável. Adorava conversar contigo sobre todas estas coisas, mas já não tenho papel, a folha está a acabar.
Imagino-te a leres esta carta, um sorriso de concordância, cofiando a barba.

1080

Viajando para Chi Ting

Na viagem para Chi Ting, Pan, Ku e Guo, três homens da região são meus companheiros. Vamos ao mosteiro da doutrina chan (zen), a leste da aldeia de Nu Wang.[1]

A Primavera fria,
não saio de casa há dez dias,
não me apercebi que rebentos de salgueiro
baloiçam já sobre os telhados da aldeia.
Oiço o estilhaçar do gelo,
o ruído espalhando-se pelo vale.
Manchas de erva verdejante
irrompem dos fogos de Inverno.
Talhões de terrenos baldios
pedem-me para eu ficar por aqui.
Aqueço meia botija de vinho turvo,
dia após dia avanço por estes caminhos.
A chuva fina, ameixieiras em flor
abalam-me a serenidade da alma.

1081

[1] Nu Wang fica a trinta léguas da vilazinha de Huangzhou. Pan é comerciante de vinhos, Ku vende ervas medicinais e Guo é um monge ermita.

26 Out 2022

A Paisagem Ressonante de Ma Wan

Yang Weizhen (1296-1370) dedicaria a sua vida às palavras que escreveu muitas vezes como uma homenagem ao cenário da área de Jiangnan, porém não seriam só as palavras enformadas pela nostalgia, que o haveriam de recordar após a sua eloquente passagem por essa paisagem. Song Lian (1310-81) um ministro e conselheiro de Taizu, o fundador da dinastia Ming, recordou-o na «Inscrição para o mestre Yang, o falecido supervisor da erudição confuciana em Jiangxi»: «A meio da dinastia Yuan um grande mestre da literatura surgiu na área de Zhejiang e ele era o mestre Tieyai.
A sua voz ressonante e o seu brilho luzente subiram ao alto e penetraram no céu. Jovens de Wu e Yue aproximavam-se dele em grande número, do mesmo modo que as montanhas prestam homenagem ao Monte Tai e todos os rios fluem para o mar. Uma situação que só terminou ao fim de mais de quarenta anos.» O sobrenome Tieyai «Penhasco de ferro» com que foi conhecido resulta de um episódio biográfico: o seu pai Yang Hong, vendo que ele não estudava, mandou encerrá-lo numa torre no cimo da colina do mesmo nome onde durante cinco anos viveu isolado a estudar os clássicos.
Quando fez o exame jinshi em 1327 provou como os conhecia, em particular os Anais das Primaveras e Outonos (Chunqiu) e os seus comentários. E apesar de ter exercido funções oficiais em Tiantai ou Qianqing (perto da actual Shaoxing) a sua vocação cumpriu-se na área da literatura. Song Lian: «Com um turbante de Huayang e um casaco de penas, Yang partia num barco-casa na Piscina do dragão ao longo da ilha da Fénix, segurando a fauta de ferro a seu lado e quando a tocava, o som subia a pique, penetrando as nuvens. Os que observavam suspeitavam estar perante um imortal exilado.» Ver-se-ia em pinturas a tradução visual do som da flauta de Yang.
Ma Wan (c.1310-78) o poeta e pintor da actual Nanquim, que terá aprendido a arte com Yang Weizhen, pintou paisagens que respondiam a essa animação dos sentidos em Jiangnan. Em Paisagem de Primavera (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 83,2 x 27,5 cm, no Smithonian) que lhe é atribuída, nota-se a caligrafia de Tieyai, celebrando a alegria de navegar no rio Changjiang. Dois eruditos a cavalo prestes a passar uma ponte de madeira ecoam dois barcos no meio do rio.
Em Intenção poética de nuvens ao entardecer (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 95,6 x 56,3 cm, no Museu de Xangai) quase se pode escutar a flauta de Yang. Song Lian: «Com a idade ele foi-se tornando cada vez mais descomedido. Construiu um jardim isolado e um «terraço de Penglai» a norte do rio Song e não passava um dia que não recebesse convidados e ficasse profundamente embriagado. Depois ordenava cantoras que cantassem a «Neve branca» acompanhando-as na pipa de fénix. Alguns convidados dançavam rodopiando livre e graciosamente. Parecia mesmo o porte dos nobres da dinastia Jin.»

26 Out 2022

Guerra e paz: Mazu está atenta ao que se passa

I

A história de Macau está intimamente ligada à crença em Mazu 媽祖, a deusa chinesa dos Marinheiros e Navegadores. De acordo com a tradição, o culto teve origem na pequena ilha de Meizhou湄洲 (também 眉州), no início da dinastia Song: Em 960, sob circunstâncias auspiciosas e invulgares, nasceu uma rapariga na família Lin 林. Quando ela cresceu, tornou-se evidente que era capaz de realizar milagres e proteger pescadores e outros em alto-mar contra fortes ondas e tempestades. Alguns textos antigos chamavam-lhe wu 巫, ou xamã, o que provavelmente era.
Diz-se que ela ascendeu ao Céu no ano 987, aos vinte e sete anos, numa nuvem, acompanhada de música ou sons celestiais. Esta data marca o início da sua carreira póstuma. De imediato, as pessoas de Meizhou e da província vizinha de Fujian começaram a adorá-la. Registaram-se mais milagres e tornou-se claro que esta divindade não só protegeria navios e marinheiros, como também ofereceria ajuda de muitas outras formas. Em termos simples, ela tornou-se cada vez mais importante aos olhos da população costeira. Registos como o Tianfei xiansheng lu 天妃顯聖錄, um trabalho chave sobre o seu culto e carreira, diz-nos que ela protegeu diques, lutou contra doenças e ajudou soldados no combate contra maléficos inimigos – para mencionar apenas algumas das suas muitas funções.
Como ela apoiou firmemente eventos e assuntos no interesse do Estado, a Corte Imperial começou a promover oficialmente o seu culto. Recebeu títulos oficiais, foram-lhe construídos templos e realizadas cerimónias estatais em sua honra. Marinheiros e comerciantes, normalmente de Fujian, espalharam o seu culto pela costa da China e mesmo pelo Sudeste Asiático, Japão e Ilhas Ryukyu. Além disso, pelos textos antigos sabemos que já nos tempos mais remotos as pessoas a bordo de navios rezavam regularmente a esta deusa e ofereciam-lhe sacrifícios durante as viagens marítimas.
Quando os portugueses começaram a instalar-se na península de Macau nos anos 1550, o local da actual Ma-kok-miu / Templo da Barra já servia como um centro local para a sua veneração. Como é sabido, existem diferentes pontos de vista sobre a história inicial deste templo. Basta dizer que foi provavelmente fundado por marinheiros ou migrantes de ascendência fujianense. Outra possibilidade é que mercadores e marinheiros das Ryukyu tenham estado envolvidos na construção dos primeiros edifícios. Pelo menos, há referências a navios de Ryukyu vindos para o antigo distrito de Xiangshan 香山.
Hoje em dia, a deusa de que falamos é conhecida por diferentes nomes, alguns dos quais derivam de títulos honoríficos que lhe foram conferidos pela Corte Imperial. Isto aplica-se aos nomes Tianfei 天妃 e Tianhou 天后 (Tinhau em Cantonês). A aplicação de tais títulos seguiu frequentemente uma ordem hierárquica. Tianfei, um título antigo, significa “Consorte Celestial”, o título Tianhou, concedido pelos Qing, significa “Rainha Celestial”. Podemos dizer que o último título implica uma classificação muito elevada, de facto uma das mais altas jamais conferidas a uma divindade feminina.
Outros nomes – tais como as formas convencionais Mazu e Niangma 娘媽 – são menos fáceis de explicar. Podem ser considerados como designações gerais com um toque local. A versão Mazu é de longe a mais importante, mas o seu significado preciso não é claro. De acordo com uma versão, deriva do nome de uma estrela, escrito 馬祖; outra versão é que é um termo composto que denota simbolicamente várias gerações sucessivas de um clã ou família.
Mazu tornou-se na principal divindade protectora das costas marítimas de Fujian e Guangdong, em Hong Kong e Macau, em Taiwan e em certas partes de Hainan. Belos e ricamente ornamentados templos, a ela dedicados, tornaram-se atracções turísticas. Hoje sabemos que também existiam pequenos santuários de Mazu nas ilhas do Mar do Sul da China; estas estruturas apontam para a presença regular de marinheiros chineses nessa zona.
Mas há muito mais para contar. Em certa medida, pode-se comparar Mazu a diferentes versões da Virgem Maria, por exemplo, de Stella Maris ou de Nossa Senhora dos Navegantes. Mas também foi comparada com Guanyin 觀音. Budistas e taoístas têm defendido repetidamente que ela deveria pertencer aos seus respectivos panteões. Nas Filipinas, encontramos locais onde “se fundiu” com a Virgem Maria. Evidentemente, porque ambas as figuras representam virtudes semelhantes, demonstram benevolência e ajudam os crentes de muitas maneiras.
Tanto quanto podemos dizer, Mazu raramente ou nunca castigou alguém. Certamente, ela subjugaria inimigos e fantasmas maléficos, mas parece que não desejaria causar destruições devastadoras. Isto aplica-se também às suas “intervenções políticas”. Ela ajuda os que se encontram em perigo e aqueles cujo caso é justo.

II

Em 1661/62, há trezentos e sessenta anos, Mazu tomou o partido de Zheng Chenggong 鄭成功, quando este partiu para dispersar os holandeses de Taiwan. Para compreender o assunto, são necessárias algumas breves observações sobre os antecedentes históricos. Zheng Chenggong comandava uma grande frota comercial e muitos navios de guerra. Era um homem ambicioso, mas muito leal aos Ming, pelo que as suas forças lutaram contra os conquistadores Manchu, ou seja, os primeiros Qing. Por volta de 1660, Zheng controlava várias ilhas ao longo da costa da China. No entanto, para sua segurança, decidiu também adquirir algumas posições em Taiwan, que poderiam servir como um possível retiro, caso os Qing expulsassem as suas tropas dos locais costeiros ao longo do continente. Assim, iniciou-se um novo capítulo na história da China.
Mas voltemos aos holandeses. Eles não só tinham aterrorizado Macau na primeira metade do século XVII, como também tinham fugido para o Estreito de Taiwan, pilhando dezenas de embarcações comerciais chinesas e matando inocentes. Além disso, a partir do Forte Zeelandia – a sua principal base em Taiwan – e vários povoados embrionários naquela ilha, exploraram com rigor alguns dos recursos económicos locais. Em 1652, cometeram mesmo um massacre local, que deixou muitos chineses mortos. Podemos interrogar-nos sobre o estranho comportamento da Companhia Holandesa das Índias Orientais. Talvez as razões sejam muito simples: as ideias calvinistas e protestantes sugeriam que Deus estaria ao lado daqueles que tinham sucesso durante a vida. As pessoas teriam o “direito de negociar”. Os resultados eram óbvios: o comportamento da empresa era determinado pelo desejo ardente de maximizar os lucros; isso não a impediria de subjugar outros e anexar terras alheias.
Claramente, Zheng Chenggong e os seus homens não gostavam nada da violência causada por adeptos de tão dura linha. Eles sabiam que era impossível cooperar com eles. Portanto, muito naturalmente, a ideia de estabelecer uma base segura em Taiwan implicava que o Forte Zeelandia tinha de ser tomado e que a ilha tinha de se livrar de um inimigo impiedoso.
De acordo com a tradição, foi isto que aconteceu: em 1661, no 23º dia do 3º mês lunar – o dia em que Mazu nasceu na família Lin – uma frota de várias centenas de embarcações com vários milhares de homens partiu de Jinmen金門 e Xiamen 厦門 para Taiwan. A data foi cuidadosamente seleccionada: mostra que a família Zheng esperava a ajuda de Mazu. Sem dúvida, o caso era justo, o inimigo era verdadeiramente mau e perigoso. Contudo, quando a frota se aproximou do seu destino, verificou-se que os holandeses tinham barrado a área e que era impossível aos soldados de Zheng desembarcar no solo de Taiwan. O local, perto da moderna Tainan 臺南, é conhecido como Lu’ermen 鹿耳門.
Ao tomar conhecimento desta situação inesperada, Zheng Chenggong rezou a Mazu pedindo ajuda. No dia seguinte houve uma inundação, o mar subiu um zhang 丈 (dez pés) e a força de desembarque conseguiu mover-se suavemente através de todos os obstáculos nas águas costeiras pouco profundas e desembarcar na ilha. Em 1662, após um longo cerco, o Forte Zeelandia caiu nas mãos de Zheng. Esta foi uma vitória perfeita: os holandeses partiram de uma vez e para sempre. Foi também uma vitória decisiva, pois demonstrou pela primeira vez na história que a China foi militarmente capaz de derrotar um intruso “ocidental” ganancioso, caso tal fosse necessário.
A narração não termina aqui: de acordo com a tradição, Zheng Chenggong, para expressar a sua sincera gratidão a Mazu, encomendou madeiras e outros materiais de construção para o templo em Luer’men.

III

Zheng Chenggong morreu em 1662, mas o clã Zheng governou Taiwan até ao início da década de 1680. Entretanto, um novo imperador tinha acedido ao trono Manchu. Este era o famoso imperador Kangxi 康熙. O seu reinado começou em 1662, o ano em que Mazu ajudou Zheng Chenggong no seu justo caso, e terminou há três séculos, em 1722. O imperador Kangxi foi um dos governantes mais bem-sucedidos da China. Tinha a mente aberta, estava em contacto regular com homens brilhantes de todo o mundo e, especialmente, com os padres jesuítas em Pequim. Este era um caso de respeito mútuo, algo que os holandeses, cegos pelas aspirações materiais e pela crença na sua própria superioridade, não podiam oferecer.
Podemos ser tentados a comparar a “ideologia” por detrás da liderança holandesa com a ideia de “destino manifesto”, associada à história da América do Norte. Um tema relacionado é o do “excepcionalismo americano” e o slogan “América primeiro”. Ambos deixaram muitas cicatrizes em todo o globo. De facto, podemos ver nos holandeses, “excepcionais” como eram, os precursores da expansão britânica e americana no Extremo Oriente.
Nessa altura, no final do século XVII, Mazu ainda não tinha lidado com estes feios fenómenos, mas observou cuidadosamente o que se passava na China. Quando o imperador Kangxi optou pela conquista de Taiwan, ainda sob o domínio de Zheng, Mazu entrou de novo em palco. Desta vez, ajudou as forças de Shi Lang 施琅 (1621-1696), o comandante Qing. O Tianfei xiansheng lu, acima citado, regista alguns dos detalhes. Isto diz respeito principalmente à batalha dos Pescadores ou Ilhas Penghu 澎湖群島. Mazu esteve por perto durante a batalha, os soldados puderam vê-la, embora não muito claramente; é isso que aprendemos com este texto. Em suma, a marinha e as tropas de Shi tomaram as ilhas e, em 1683, ocuparam também Taiwan. A partir de então, Taiwan passou a fazer parte do império Qing. Mazu tinha permitido aos Qing uma grande vitória.
Teria Mazu mudado de lado? Da resistência Ming, incarnada por Zheng Chenggong, para os governantes estrangeiros manchus? Teria sido ela induzida em erro? Teria ela tomado uma decisão errada? Ou deveríamos atribuir a sua ajuda eficiente ao facto de se ter sentido satisfeita com o imperador Kangxi e o seu governo? É verdade que os políticos muitas vezes instrumentalizam as crenças religiosas. Isto aconteceu certamente naqueles tempos iniciais; poderíamos citar outros exemplos para substanciar tal suposição. No entanto, os crentes no poder e influência de Mazu encontrarão certamente respostas muito diferentes às tentadoras questões acima colocadas.
Seja como for, o controlo Qing sobre Taiwan implicou que, durante mais de cem anos, os mares que faziam fronteira com a China permanecessem pacíficos. Sim, houve algumas tensões e escaramuças, mas Taiwan serviu como uma ponte entre partes do Nordeste e do Sudeste Asiático e o continente. Visto através dos olhos de patriotas, Mazu tinha feito a coisa certa, quando apoiou Shi Lang e as suas tropas. Sem dúvida, os seus acólitos, Shunfeng’er 順風耳 (Ouvido potente) e Qianliyan 千里眼 (Vidente), habitualmente expostos em todos os templos de Mazu, tinham recolhido a informação relevante necessária para uma decisão de tão grande alcance. A “Rainha Celestial” podia sempre contar com a sua CIA celestial.
A história prossegue: Os templos de Mazu de ambos os lados do Estreito de Taiwan estão em contacto estreito uns com os outros. Há fundos, há grupos e associações, há pontes silenciosas e invisíveis, há laços familiares. Mazu observa pacientemente a situação. Os crentes depositam nela muitas esperanças.

25 Out 2022

Amor universal

O amor conceitualizado pelo filósofo chinês Mozi (Mo Tzu) 墨子 (c. 470 a.C. – c. 391 a.C.) representa uma experiência emocional precisa que não possui correspondente direto em nosso idioma português. O amor universal (兼愛, jian’ai) é a pedra angular do pensamento moísta, à qual recorrerá toda ação moral (Cheng, 2008:108). Quando a filosofia chinesa se tornou parte de um diálogo com o Ocidente nos tempos modernos, a lógica moísta, há muito esquecida, foi redescoberta para apoiar a afirmação de que as filosofias chinesas também demonstraram uma mentalidade analítica.
Anne Cheng, em sua “História do pensamento chinês” (2008: 108), prefere traduzir 兼愛 “jian’ai” como “solicitude por assimilação” (ou uniformização), pois “entra aqui muito mais equidade do que sentimento”, afirma a sinóloga. Ela relembra que “de maneira significativa, Mozi opta por realçar a diferença” entre o termo “兼, jian” (assimilar os outros a si mesmo, como demonstra a imagem abaixo, ilustrativa da etimologia do pictograma), em oposição a “bie” (administrar distinções). Assim, Mozi censura o sentido de amor diferenciado como piedade filial (孝, xiao) pregado por Confúcio, devido à ancoragem do mesmo em sentimentos e, portanto, à distinção entre o tratamento dos entes familiares em relação aos distantes. O amor ao que se refere Mozi seria pois racional, objetivo e imparcial.

A etimologia de兼 (jian): universal/ inclusivo/ abrangente/ imparcial), em 兼愛 (jian’ai) amor universal.

Mozi estava plenamente consciente da dificuldade em ensinar as pessoas a irem contra seus sentimentos naturais de amar aos entes próximos antes dos demais. Assim, sua estratégia foi apelar ao desejo natural dos humanos pelo benefício (fazer ver como seria benéfico se todos amassem uns aos outros universalmente). Ele ressaltou que “quem ama será amado pelos outros, e quem odeia será odiado pelos outros”. Em última análise, “nosso próprio interesse é melhor garantido quando podemos amar universalmente” (Mozi, “Amor Universal” Parte III, Capítulo XVI).

24 Out 2022