Três prosas avulsas

O ORIENTALISTA ACIDENTAL

Em ouvidos europeus o termo Ásia desperta uma série infindável de ressonâncias que, geralmente, remetem para o âmbito de um imaginário impregnado de fantasmas cujas características vão do terrível ao sedutor. Afinal, a Ásia, o Oriente, são, antes de mais, invenções de uma Europa que necessita da diferença para afirmar a sua identidade.

É algo fruste limitar a sua compreensão à questão geográfica: Ásia como continente, massa de terra imensa, na medida em que as distinções culturais são radicais. O que tem em comum o asiático do Líbano com o asiático japonês? Poderemos falar numa unidade cultural asiática? É claro que não. A adoptarmos a mera definição geográfica, a Europa seria então uma mera península asiática.

O termo Ásia é muito antigo e a sua origem tem sido explicada de variadas formas. Os Gregos utilizavam-no para designar as terras que ficavam a Leste da sua própria terra, num momento do saber Europeu em que a maior parte daquilo a que hoje chamamos Ásia era completamente desconhecida. É também possível que o termo tenha chegado ao grego a partir do Assírio «asu» que também quer dizer Leste. Seja qual for, na realidade a sua origem, a verdade é que se trata de um termo Ocidental para designar algo de não-Ocidental e nenhum povo dos que hoje consideramos asiáticos o criou e reconheceu nele a sua identidade. Não existe nenhum termo equivalente em nenhuma língua asiática, nem sequer no domínio do discurso geográfico.

É que, ao contrário da Europa onde é clara a existência de uma identidade claramente homogénea, baseada em idênticas características raciais, religião, hábitos e ex- pressões artísticas, a Ásia não é de todo homogénea em nenhum destes pontos de vista e no seu seio existe uma enorme diversidade racial, étnica, religiosa e comporta- mental, que a Europa esqueceu, na medida em que em jogo estava a afirmação da sua própria identidade pelo confronto com a diferença. Se esta diferença englobava em si diferenças talvez ainda mais radicais, isto não foi tomado em conta, nem determinante para que se verificasse uma exclusão do conceito. Para os Europeus não importava se os asiáticos se reconheciam enquanto tal porque eles eram essencialmente não-Europeus. Basta recuarmos até ao século XVII, quando a Ásia era pouco mais que a Turquia, na qual se pensava quando foi forjado o conceito de “luxo asiático”, estando muito distante, então, da imaginação europeia a existência de um “luxo extremo-oriental”.

Assim, como diz Edward Said, o Oriente é praticamente uma invenção europeia e foi, desde a Antiguidade, um lugar de romance, de seres exóticos, de experiências estranhas e bizarras. Este facto aparece registado em milhares de páginas de literatura ocidental , especialmente em certos períodos como por exemplo o romântico século XIX. O Oriente terá sido produzido pela Europa, através de discursos que se alargam às mais variadas áreas: política, sociologia, etnologia, ideologia, literatura, etc.. A ideia do Oriente reveste-se assim de uma história e de uma tradição própria, com um vocabulário próprio, e que constitui parte do corpus teórico ocidental. De certo modo, com a propagação das colónias europeias pela a Ásia do século XIX, o Oriente foi orientalizado pela própria Europa que aí aplicou as suas categorias do que era suposto esse Oriente ser.

Mas há mais. Ainda segundo Said, a questão acaba também por ancorar, por se basear, numa relação de poder e de domínio, com variadas formas de hegemonia. O Oriente terá sido orientalizado não porque se descobriu ser «oriental», tal qual era concebido e imaginado por um europeu do século XIX, mas porque podia de facto ser tornado «Oriental» através agora de uma aplicação concreta das categorias ocidentais do orientalismo às colónias do Oriente.

O caso mais flagrante é a imagem da mulher oriental na sua relação com o homem do Ocidente. A oriental não fala do homem, não comenta a sua virilidade, não exprime as suas emoções, não tem história pessoal, é submissa. O homem ocidental descreve essa mulher, cria-lhe atributos, de certo modo fala por ela. Este imaginário revela muito mais uma projecção do desejo europeu de domínio óbvio dos povos asiáticos, do que propriamente uma realidade factual.

No entanto, por muito que isso custe a Said, o discurso sobre o Oriente não deve ser encarado como uma amálgama de mitos e mentiras. A verdade é que ele se instituiu como um corpo teórico e prático, tornado consistente ao longo de várias gerações do pensamento ocidental e cuja importância é crucial, sobretudo para compreender esse próprio pensamento e práticas, mais do que o que elegeu como objecto.

Mas foi também este discurso que, durante o século XX, na sua auto-crítica, introduziu a Razão como categoria para a análise da História e do Poder, algo que muito surpreendeu e atemorizou os regimes orientais, por um lado, e por outro lhes permitiu enfrentar decisivamente o século XXI.

OS OSSOS

O livro da dinastia Ming “A Criação dos Deuses” narra episódios interessantes. Um deles – na verdade em dois parágrafos – conta o seguinte:

Dera o príncipe Wen ordens para que fosse construí- da uma piscina num dos terraços do seu palácio. Passava o monarca pelas obras quando reparou num estranho volume transportado por dois servos.

– O que é isso, que levais aí?, perguntou o príncipe.

Eram os ossos, já meio desirmanados, de um esqueleto antigo, anónimo, encontrado durante as escavações. Iam ser deitados fora.

– Tragam aqui os ossos – disse o soberano – , coloquem-nos numa pequena urna e enterrem-na na encosta. Seria um crime deixá-los assim expostos só porque resolvi construir uma piscina.

Estas foram as ordens do príncipe que muito maravilharam as suas gentes:

– Que divina virtude – comentaram – A bondade do nosso senhor estende-se até aos ossos dos mortos. A sua benevolência em toda a parte é sentida e cada uma das suas acções está de acordo com a vontade do Céu.

“A bondade do nosso senhor estende-se até aos ossos dos mortos.” Na verdade, foi esta frase que me chamou a atenção. É que o governante não deve estar em demasia alheado do que não é de hoje se quiser tomar boas decisões para o amanhã. Deve ter em consideração “os ossos dos mortos”, respeitá-los, pois quem respeita será respeitado.

Isto é verdade na China, como é verdade nesta sua pequena parte chamada Macau. Wen e Wu foram dois grandes soberanos (c. 1000 a.C.); neles se incarnaram algumas das principais virtudes que devem assistir quem detém o poder.

DEZ MIL GERAÇÕES

“Enriquecer é glorioso”, terá dito Deng Xiaoping e muitos atribuem a esta frase o despontar do capitalismo na China contemporânea. Mas, ao que parece, enriquecer aqui significa enriquecer em conjunto, colectivamente, e não o enriquecimento individual, de acordo com o modelo das sociedades ocidentais.

Se for esse o significado pretendido por Deng, mais não fez que repetir Confúcio pois o Mestre afirmou que para se crescer é preciso que ao lado os outros também cresçam.

Para caçar o rato, ou seja enriquecer, não importa a cor do gato, disse também o Grande Arquitecto. Por isso, a China enveredou pela existência de empresas privadas capazes satisfazer o mercado interno e mesmo de rivalizar com as suas congéneres mundiais.

E este gato preto foi ganhando cada vez mais poder, mais espaço, mais influência, enquanto o gato branco definhava sem, no entanto, perder o controlo da nação. Entretanto, gatos cinzentos surgiram um pouco por toda a parte e a China enriqueceu.

Segundo Xi Jinping, não o fez de forma harmoniosa pois abriu-se um fosso entre os pobres e os muito ricos, alimentando a corrupção, que urgia eliminar. Assim se fez. E é uma China mais harmoniosa que prepara a sua entrada numa Nova Era em que o sonho chinês se irá realizar.

Algures, neste reino maravilhoso, Deng Xiaoping joga go com Confúcio e, ao terceiro copo de vinho de arroz, confessa-lhe a sua admiração: “Mestre, estou preocupado com a persistência da sua sabedoria. Devíamos limitar a sua influência a dez mil gerações.”

18 Mai 2023

Três ensaios de prosa chinesa

Tradução de André Bueno
Inscrição de uma humilde morada

As montanhas não obtêm fama por sua altura, mas porque nelas vivem algum imortal. Os rios não adquirem seu renome por sua correntes, mas sim porque algum dragão torna mágicas as suas águas.

Esta humilde morada só tem o perfume da minha virtude.

O musgo esmeralda cobre seus alpendres, e o verdor da erva invade suas cortinas. Mas aqui, são os grandes letrados que conversam e riem, não vem nenhuma pessoa que não tenha alguma importância.

Podemos tocar a sensível cítara, podemos estudar os valiosos sutras. Não há orquestra alguma que estrague o ouvido, nem documentos oficiais que importunem a nós.

Confúcio disse: que há de mal nisso?

Liu Yuxi (772-842)

Elogio da virtude do vinho

Há um homem superior que considera a eternidade como uma manhã, dez mil anos como um abrir e fechar de olhos; o sol e a lua como suas janelas, os oito confins do mundo como seu pátio e ruas. Caminha sem seguir rotas nem deixa pegadas; vive sem casa e sem abrigo; o céu o serve de tenda, a terra o serve de esteira; onde quer que vá, seu desejo é seu guia. Quando pára, pega um copo e uma garrafa; quando se vai, leva uma jarra e um vaso. Só se ocupa de vinho, não conhece outra coisa.

Um jovem nobre e um letrado de renome ouviram falar de sua maneira de viver e o criticaram. Agitaram suas mangas, balançaram suas túnicas, rangeram os dentes e ficaram de olhos injetados. Falaram longamente dos ritos e das leis, e o bem e o mal povoam seus discursos como um enxame de abelhas.

Enquanto isso, o mestre dispôs uma bandeja e sustentava um jarro de vinho com as duas mãos. Levou a bandeja para a boca e derramou todo o vinho pela garganta. Despojou-se, e sentou cruzando as pernas. Sua cabeça descansava na terra, seu corpo jazia no pó. Já não tinha mais pensamentos nem sentimentos, sua felicidade era infinita. Assim permaneceu, ébrio e privado de sensações, até que recobrou por si mesmo os sentidos.

Por mais que escutasse, não ouvia o fragor da conversa; por mais que buscasse, não via as montanhas. Não sentia nem frio nem calor atacar seu corpo. Não o incomodava nem a alegria nem o desejo. Contemplava o mundo das alturas, como uma tumultuada confusão de seres, como algas boiando ao sabor da correnteza de um rio. Os dois homens que falavam com ele eram como abelhas, ou parasitas de uma amoreira.

Liu Ling (século 3 d.C.)

Prefácio da Antologia do Pavilhão das Orquídeas

Instalamo-nos junto ao um canto do arroio para lavar nossos copos, e todos nos sentamos em ordem. Nos faltava o deleite de uma orquestra, mas um copo de vinho e uma canção eram suficientes para dar rédea solta aos nossos sentimentos poéticos.

O céu era luminoso e o ar puro; uma suave brisa soprava leve. Acima contemplávamos a imensidão do céu, abaixo examinávamos a riqueza da natureza. O espetáculo que se abria ante nossos olhos causava sensações bastantes para levar ao extremo a alegria de ver e ouvir. Era, na verdade, prazeroso.

Quando os homens debatem acerca do tempo, alguns expressam o que trazem consigo e falam de sua casa; outros seguindo suas peregrinações, discorrem livremente sobre os acontecimentos externos. Mas, ainda que ambas as atitudes sejam opostas, ainda que alguns se agitem e outros permaneçam tranqüilos, todos se alegram em reencontrar-se e durante alguns instantes ficamos em paz, felizes, e esquecemos que a velhice nos acerca. Uma vez que conseguimos o que buscamos, nos cansamos dele; os sentimentos mudam de acordo com os acontecimentos; então vem a decepção. O que nos atraía num instante se converte em vestígio do passado; no entanto, não podemos impedir que nos assalte a emoção de pensar nisso por um momento. O que dura e o que é breve, tudo muda e tudo chega ao fim no nada. Os antigos diziam: a vida e a morte são grandes questões. Isso não é triste?

Cada vez que penso nas causas que comoveram os homens de antigamente, encontro exatamente as mesmas que as nossas. Nunca li uma obra antiga sem suspirar com pesar, sem entender esta profunda emoção. No fundo, sei que a igualdade da vida e da morte, da longevidade ou da morte prematura, não são mais do que discursos mentirosos. E a posteridade considerará nosso tempo como nós consideramos os tempos passados! Que desgraça!

Por isso ordenei que as obras de meus contemporâneos fossem copiadas. Ainda que variem as épocas e condições, as coisas que suscitam a emoção humana são as mesmas sempre. E sei que os leitores dos séculos que virão sentirão ante estes escritos estas mesmas emoções.

Wang Xizhi (312 – 379)

18 Mai 2023

Livro VI – Yong

6.1. O Mestre disse: “Yong? Poderia sentar-se voltado para sul.”99

6.2. Zhong Gong inquiriu acerca de Zisang Bozi. O Mestre disse: “É a sua simplicidade que o recomenda.” Zhong Gong objectou: “No governo do povo comum, não seria melhor agir com simplicidade mas manter, ao mesmo tempo, uma atitude digna? Na verdade, agir com simplicidade e manter uma atitude simples não equivaleria a um excesso de simplicidade?” O Mestre respondeu: “Yong, é como dizes.”100

6.3. O Duque Ai perguntou: “Qual dos teus discípulos ama verdadeiramente o estudo? Confúcio respondeu: “Havia um tal Yan Hui que verdadeiramente amava o estudo. Nunca soltava a sua ira sobre os outros; nunca cometia o mesmo erro duas vezes. Infelizmente, morreu jovem. Hoje, não existe nenhum – pelo menos, ainda não encontrei nenhum – que ame verdadeiramente o estudo.”101

6.4. Quando Zihua foi recomendado por Confúcio para servir no reino de Qi, Mestre Ranyou pediu que a mãe de Zihua fosse aprovisionada com cereal. O Mestre disse: “Dêem-lhe um fu ¸ª.” Ranyou pediu que lhe fosse dado mais. O Mestre disse: “Então, dêem-lhe um yuâ×.” Ranyou enviou-lhe cinco bing±ü. O Mestre disse: “Ao viajar para Qi, Zihua levou excelentes cavalos e roupas das melhores. Ouvi dizer que as pessoas exemplares ajudam os necessitados, não que ajudam os ricos a ficar mais ricos.”102

6.5. Quando Yuansi servia como mordomo na casa do Mestre, foram-lhe oferecidas novecentas medidas de cereal. Yuansi não queria aceitar tanto. “Não deves recusar”, disse o Mestre. “São para dares à tua família, amigos e vizinhos.”103

6.6. O Mestre, fazendo notar as origens humildes de Zhong Gong, disse: “Se o bezerro de um boi de arar tiver o pêlo todo vermelho e os cornos bem formados, mesmo que haja quem não o queira utilizar num sacrifício, julgam que os espíritos das montanhas e rios o recusariam?”104

6.7. O Mestre disse: “O coração de Yan Hui conseguia por três meses manter a benevolência. Quanto aos outros só o conseguem por um dia ou um mês, quando muito.”

6.8. Ji Kangzi perguntou: “Julgas que Zilu podia servir num posto político?” O Mestre respondeu: “Zilu tem poder de decisão. Que problema teria em servir num tal posto?” Ji Kangzi perguntou: “E Zigong?” O Mestre respondeu: “Zigong é sensato. Que problema teria em servir num tal posto?” Kangzi continuou: “E Ranyou?” O Mestre respondeu: “Ranyou é culto e refinado. Que problema teria em servir num tal posto?”105

6.9. A Casa de Ji queria fazer Min Ziqian governante da cidade de Bi. Min Ziqian respondeu: “Por favor, faz o teu melhor para recusar a oferta deles por mim. Se vierem de novo perguntar por mim, eu estarei já na margem norte do rio Wen.”106

6.10. Boniu estava muito doente e o Mestre foi visitá-lo. Segurando-lhe a mão através da janela disse: “Estamos a perdê-lo. É o destino! Um homem como ele, como contraiu esta doença?! Por que está ele com esta doença?!”107

6. 11. O Mestre disse: “Como é digno (賢xian) Yan Hui! Tem uma taça de bambu com arroz para comer, uma cabaça com água para beber e uma pequena barraca suja onde viver. Outros não seria capazes de suportar as suas dificuldades, mas, no caso de Hui, tal não afecta o prazer que tem nas coisas. Como é digno Yan Hui!”108

6.12. Ran Qiu disse: “Não é que eu não goste da vossa Via, mas a minha força é insuficiente”. O Mestre disse: “Aqueles cuja força é insuficiente cedem a meio do caminho, mas no teu caso, traçaste uma linha ainda antes de começares”.109

6.13. O Mestre disse a Zi Xia: “Deves tornar-te num letrado (Èåru) que seja uma pessoa exemplar (¾©×Ójunzi) e não num letrado que seja uma pessoa menor (СÈËxiaoren)”.110

6.14. Sendo Ziyou governador de Wucheng, o Mestre perguntou-lhe: “Tens lá bons homens?” Ele respondeu:

“Ali está Dantai Mieming, que nunca usa atalhos e, além dos negócios públicos, nunca vem a minha casa”.

6.15. O Mestre disse: “Meng Zhifan não se vangloria do seu mérito. Estando o exército a bater em retirada e tendo ficado atrás para proteger a rectaguarda, quando estava prestes a entrar nas portas da cidade, chicoteou o seu cavalo, dizendo: “Não é que eu me atreva a ser o último. O meu cavalo é que não avançava”.111

6.16. O Mestre disse: “Sem juntar a eloquência do monge Tuo à beleza do príncipe Zhao de Song, será difícil escapar incólume nesta na era actual”. 112

6.17. O Mestre disse: “Quem pode sair do quarto sem ser pela porta? Então porque é que ninguém segue a minha Via?”113

6.18. O Mestre disse: “Onde o natural se impõe ao refinamento, temos um rústico; onde o refinamento se impõe ao natural, temos um pedante. O equíbrio do natural e do refinamento é próprio da pessoa exemplar”.

6.19. O Mestre disse: “O homem nasce para ser recto. Se um homem perde a sua rectidão e sobrevive, tal não passa de mera sorte.”

6.20. O Mestre disse: “Saber alguma coisa não é tão bom quanto amá-la; amar alguma coisa não é tão bom quanto ser feliz com ela”.114

6.21. O Mestre disse: “Com aqueles cujo talento está acima da mediania, podes falar de temas elevados. Com aqueles cujo talento está abaixo da mediania, não podes falar de temas elevados”.115

6. 22. Fan Chi perguntou o que é a sabedoria (zhi). O Mestre disse: “Devotar-se a tratar o povo com rectidão (yi) e respeitar fantasmas e espíritos, deles mantendo a distância, isso pode ser chamado sabedoria”. Ele perguntou sobre a benevolência (ren). O Mestre disse: “O homem benevolente faz suas as dificuldades para o bem alheio. Isto pode ser chamado de benevolência”.

6. 23. O Mestre disse: “Os sábios encontram prazer na água; os benevolentes encontram prazer nas montanhas. Os sábios são activos; os benevolentes são tranquilos. Os sábios são felizes; os benevolentes vivem longamente”.117

6.24. O Mestre disse: “O reino de Qi, se mudasse, seria como o reino de Lu. Lu, se mudasse, alcançaria a Via.”118

6.25. O Mestre disse: “Um gu que não é um gu. Será mesmo um gu?”119

6.26. Zai Wo perguntou: “A um homem benevolente diz-se: ‘há benevolência naquele poço’. Saltaria atrás dela?” O Mestre disse: “Por que o faria ele? Uma pessoa exemplar pode ir até ao poço, mas não saltará. Ela pode ser ludibriada, mas não cairá na armadilha.”120

6.27. O Mestre disse: “A pessoa exemplar estuda extensivamente a cultura (ÎÄwen) e regula esta aprendizagem através dos ritos (禮li). Assim não irá além do que é correcto.”121

6.28. Tendo o Mestre visitado Nanzi, Zilu ficou descontente. O Mestre jurou-lhe um voto, dizendo: “Se eu fiz mal, que o Céu me reprove! Que o Céu me reprove!”122

6.29. O Mestre disse: “Perfeita é a virtude que está de acordo com a Prática do Meio! Há muito tempo que tem sido rara entre o povo”.

6.30. Zi Gong disse: “Suponhamos o caso de um homem que confere benefícios extensivos ao povo e é capaz de ajudar todos, o que diria dele? Poderia ser chamado de benevolente?” O Mestre disse: “Por quê falar apenas de benevolência? Não terá ele as qualidades de um sábio? Até Yao e Shun achariam essa tarefa um desafio. Um homem benevolente procura a sua realização para permitir a realização dos outros; procura ilustrar-se para se permitir ilustrar os outros. Ser capaz de servir de exemplo aos outros — isto pode ser chamada a arte da benevolência”.123

Notas

99. Sentar-se voltado para Sul, de costas para Norte, é a posição atribuída a um governante. Provavelmente, o Mestre elogia o facto do seu discípulo Ran Yong ter sido nomeado para um cargo de poder, assinalando que ele o merece.

100. Zhong Gong é o nome de cortesia de Ran Yong. Zisang Bozi, apesar de existir um debate sobre a sua identidade, é aqui apresentado como um homem que preza e pratica a simplicidade. Numa primeira fase, o Mestre elogia a sua postura. Mas Ran Yong não concorda porque entende que o governante deve agir e falar com simplicidade para que o povo possa compreender, mas a sua postura deve ser sempre refinada, cortês, cultivada, mantendo sempre alguma distância em relação ao povo que governa. Portanto, Zisang Bozi erra ao tomar a simplicidade como o seu único guia, não dando importância a outros atributos do governante como o refinamento cultural, a pose culta, etc. Em português, “dar-se ao respeito”, ou seja, elaborar uma imagem digna de si próprio, significa que se tem respeito por quem nos deve respeitar.

101. O Duque Ai foi o governante de Lu de 494-468 a.E.C.. Yan Hui era bastante mais novo que Confúcio e a sua morte prematura causou uma enorme tristeza no Mestre (9.21, 11.9-11.10). Devemos notar que o amor de Yan Hui pelo estudo é manifestado em termos de acção virtuosa, em vez de conhecimento teórico. Zhu Xi comenta: “Se Yan Hui estivesse zangado com X, nunca mudaria essa raiva para Y, e se cometesse um erro no passado nunca o repetiria no futuro. O facto da realização do Mestre Yan, ao ultrapassar-se a si próprio, ter atingido este nível é a razão pela qual podemos dizer que ele amou genuinamente o estudo… Ao dizer que, “Agora não há ninguém que realmente ame estudar – pelo menos, ainda não ouvi falar de nenhum”, o Mestre está provavelmente a dar expressão à sua profunda tristeza por perder Yan Hui, ao mesmo tempo que deixa claro como é difícil encontrar alguém que ama genuinamente o estudo. Huang Kan entende que esta passagem também serve para Confúcio criticar o Duque Ai que, repetidamente, expandia a sua cólera e cometia os mesmos erros.

102. Um fu seria a medida de cereal que alimentaria uma pessoa durante um mês. Um yu alimentaria uma família durante um mês, mas cinco bing seria suficiente para dezenas de famílias durante um mês. A quantidade dada por Ranyou está muito além do que a família inteira poderia consumir durante a ausência de Zihua. Aos olhos de Confúcio, isto constitui um iníquo abuso, duplamente questionável à luz da considerável riqueza de Zihua. A pessoa exemplar deve preocupar-se com ajudar os mais necessitados e não proporcionar mais riquezas aos que já são ricos. Esta preocupação sócio-política de Confúcio pode ser entendida como uma condição essencial para a manutenção da harmonia, ou seja, não fazer os pobres mais pobres, nem os ricos mais ricos, criando um maior fosso social e económico entre as pessoas, o que certamente leva a revoltas e convulsões.

103. O discípulo Yuan Si esperava com certeza ser elogiado pelo Mestre por ter recusado o seu salário. Mas para Confúcio a acção adequada não pode ser determinado a priori, mas deve ser o resultado de uma cuidadosa reflexão e da consideração das necessidades dos outros. Yuan Si parece ter sido excessivamente rigoroso, o que o impede de compreender realmente o que o rodeia e nesse sentido viver alheado das realidades sociais. Para praticar o Meio, a pessoa exemplar deve a cada momento aquilatar a situação e não usar fórmulas feitas. A pessoa exemplar não deve ostentar riqueza. Se a obtém em excesso deve distribui-la. Mas aqui Confúcio entende que o deve fazer aos que lhe são mais próximos. A ordem é importante: família, amigos, vizinhos, e demonstra bem a importância que o Mestre deposita nas relações de parentesco e de proximidade, ao invés de privilegiar, por exemplo, as classes mais desfavorecidas da cidade. Claro que quando alguém oferece algo, cria no receptor uma dívida que poderá ser mais tarde paga em favores políticos, por exemplo.

104. As origens humildes de Ranyou não devem ser óbice para que assuma postos elevados. O mérito pessoal é mais importante que as origens sociais.

105. Resolução, sensatez e cultura, parecem ser três aspectos que o Mestre quer ver num governante, ainda que não coexistam. Deve-se aproveitar o melhor que cada um tem para dar e reduzir a importância dos seus defeitos.

106. O rio Wen marcava a fronteira entre Lu, a sul, e Qi, a norte. A maioria dos comentadores atribui a relutância de Min Ziqian ao facto de o anterior governante de Bi, um homem digno chamado Gongshan Furao, ter ficado indignado com o comportamento de Ji Kangzi e se ter rebelado contra ele.

107. O discípulo Boniu contraíra uma doença que o desfigurava e por isso não queria ser visto. Essa é a razão pela qual o Mestre lhe dá a mão pela janela. Confúcio impreca o destino, algo raro de acontecer. Como Huan Maoyong explica, “quer sejamos bem ou mal sucedidos na vida, quer vivamos até uma idade avançada ou morramos prematuramente, são coisas que consignamos ao espaço entre o que podemos saber e o que não podemos saber. A pessoa exemplar simplesmente cultiva aquilo pode controlar, e depois alinha-se com tudo o resto, vendo-o como destino, e isso é tudo. O destino é algo que nem mesmo o sábio pode mudar ou evitar… e é por isso que a técnica dos antigos para proteger as suas vidas consistia apenas em ser cauteloso quando se tratava do seu discurso e mostrar contenção na alimentação e na bebida.”

108. 賢xian, que aqui traduzimos por “digno”, é um adjectivo geralmente usado para pessoas da mesma idade ou mais novos, como é o caso de Yan Hui em relação ao Mestre. Pode também ser traduzido por “sábio”, “virtuoso”, “respeitável”, etc.. Nesta passagem a ideia é valorizar a frugalidade, que deve ser apanágio da pessoa exemplar (junzi). A dignidade não advém do consumo de excelsa comida ou bebida, nem do local onde se habita. A tudo isto o junzi deve ser indiferente e extrair felicidade da vida, sem se importar com as condições materiais da sua existência. Zhou Dunyi comenta: “Mestre Yan focou-se simplesmente no que era importante e esqueceu-se do que era trivial. Quando se concentra no que é importante, o coração está em paz; quando o coração está em paz, encontra satisfação em todas as coisas”.

109. Ran Qiu já decidiu que não quer andar na Via do Mestre e, por isso, nem sequer o tenta realmente. Mas não há ninguém que realmente não tenha força para palmilhar a Via (4.6.). À maioria dos contemporâneos de Confúcio falta é amor genuíno pela Via, como o que tem Yan Hui, para aguentar as dificuldades do cultivo de si. Hu Anguo (1074~1138) comenta: “O Mestre elogiou Yan Hui pela sua alegria imperturbável. Ran Qiu ouviu e é por isso que ele fala assim. No entanto, se Ran Qiu se deleitasse realmente com a Via do Mestre, seria como o paladar se deleita com a carne de animais alimentados com cereais (citação de Mêncio), ele certamente esgotaria as suas forças na busca, e como poderia ele preocupar-se com o facto de a sua força ser insuficiente?”. Ou seja, para o junzi, mesmo as dificuldades da Via são fonte de alegria e prazer.

110. Um ru é um letrado que ensina as tradições, os textos e rituais dos Zhou, sendo mais tarde o nome dado a um letrado confucionista. Kong Anguo comenta: “Quando um junzi serve como ru, é para esclarecer a Via; quando uma pessoa menor serve como ru, é porque deseja fama”. Já Cheng Shude acrescenta: “Zixia estabelecia uma escola em Xihe para transmitir o Livro das Odes e o Livro dos Ritos, e destacou-se entre os discípulos do Mestre pela sua cultura refinada e estudo. Podemos descrevê-lo sinceramente como sendo um ru. No entanto, se concentrarmos as nossas energias exclusivamente em estudos filológicos e na explicação de passagens isoladas, tornar-nos-emos tacanhos, vulgares e superficiais, e as nossas realizações serão triviais. Ao aconselhar Zixia a ser um ru junzi, o Mestre está provavelmente a encorajá-lo a entrar no reino das preocupações de largo alcance e da compreensão sublime.”

111. Meng Zhifan era um ministro de Lu, cujas forças foram derrotadas pelo exército de Qi numa batalha em 485 a.E.C.. Como um verdadeiro junzi, ele era virtuoso na acção mas modesto perante os outros, chegando mesmo a depreciar-se, como neste caso, ao contrário de muitos que, no tempo de Confúcio, exageravam as suas parcas proezas e se vangloriavam de qualidades que não tinham.

112. Fan Ning (dinastia Jing do Leste 317-420) comenta: “O monge Tuo usou elogios para ganhar o favor do Duque Ling e Song Chao a sua beleza física para ganhar o afecto de Nanzi (uma concubina influente). Numa época em que a Via era desprezada, são estas duas qualidades que adquirem a aprovação. Confúcio detestava a corrupção e a confusão que caracterizavam as pessoas da sua era, que não valorizavam nada mais do que a retórica e a beleza sem aceitar ou aprovar homens genuinamente cumpridores e correctos.”

113. Confúcio exprime aqui o seu desespero face à péssima conduta dos seus contemporâneos. A expressão vem do Livro dos Ritos (Li Ji): “Alguns rituais são grandes, outros pequenos, alguns são manifestos e outros subtis. (…) Por conseguinte, os ritos primários são trezentos e os ritos diários três mil, mas o resultado a que conduzem é um e o mesmo. Nunca houve uma pessoa que tenha entrado numa sala sem usar a porta”. Livros do Ritos, Li Qi, 18.

114. Saber, amar, fruir. O Mestre revela aqui uma graduação de importância na existência de uma pessoa. A fruição de algo, ou seja, extrair prazer do que se faz é, para ele, o mais importante. Isto talvez porque tal implica sinceridade e autenticidade na conduta. Estudar sem prazer e devoção, amar sem fruir do que se ama, não é para Confúcio o mais importante. O junzi deverá estudar a Via porque a ama e porque nesse movimento encontra momentos de alta fruição. Remetemos para a nossa nota 3, na qual referimos o “perfume hedonista do confucionismo e a importância da satisfação e do prazer”, algo confirmado nesta passagem.

115. Temos aqui uma regra de pedagogia do educador Confúcio. Zhang Shi 張栻 (1133-1181) comenta: “Alterando os ensinamentos para se ajustarem ao nível de compreensão do próprio público é a forma pela qual se permite perguntar e pensar sobre questões que são relevantes para ele, e é também a forma como se conduz gradualmente para níveis mais elevados de compreensão”.

116. No fundo, o conselho é demonstrar justiça nas decisões e respeitar as superstições populares, sem lhes dar muita importância para manter o povo sossegado. No Livro dos Ritos (Li Yun, 18) diz: “O que se entende por ‘tratar o povo com rectidão’ (ÈËÒârenyi )? Bondade da parte dos pais, piedade filial da parte dos filhos, bondade da parte dos irmãos mais velhos, obediência da parte dos irmãos mais novos, rectidão da parte dos maridos, obediência da parte das esposas, benevolência da parte dos mais velhos, obediência da parte dos mais novos, bondade da parte do governante, obediência da parte do ministro – estas dez coisas são o que se entende por ‘tratar o povo com rectidão’.”

117. Normalmente, as duas categorias, sapiência (Öªzhi) e benevolência (ÈÊren), não seriam opostas. E assim devem ser interpretadas neste caso, tendo uma as características do yin e a outra do yang. Logo, são profundamente complementares e até indivisíveis.

118. O reino de Lu, fundado pelo duque de Zhou, um sábio pelo qual Confúcio tinha alta consideração, é onde eram mantidos os procedimentos rituais que o Mestre aconselhava. Já Qi, mais poderoso em termos militares, porque era governado de forma mais utilitária havia-se afastado desses mesmos procedimentos.

119. Um gu era um recipiente de bebida ritual. Alguns comentadores acreditam que o desagrado de Confúcio foi provocado pelo facto do tipo de gu feito pelos seus contemporâneos não ser um gu de acordo com as normas antigas, embora haja desacordo sobre a questão. Mao Qiling, por exemplo, afirma que o gu feito pelos contemporâneos de Confúcio era maior que o tradicional e vê esta passagem como uma queixa contra os excessos da era de Confúcio – neste caso, o consumo excessivo de álcool. A sua interpretação é apoiada por muitos dos primeiros comentários. Wang Su, por exemplo, comenta que “as pessoas daquela era estavam apaixonadas pelo vinho”; Cai Mo acrescenta: “O poder do vinho para perturbar a virtude tem sido uma preocupação desde os tempos antigos”. Outros comentadores – como He Yan ou Zhu Zhongdu vêem o problema relacionado com a forma do gu ou o modo como foi fabricado, caso em que a passagem é igualmente entendida como uma ilustração da adesão estrita de Confúcio às práticas antigas.

120. A pessoa exemplar, na sua incansável demanda pela perfeição, corre o risco de ser enganada pelos outros mas, no limite, avaliará a situação e evitará os perigos. Por exemplo, Shun, o rei-sábio, foi iludido e enganado pelos seus parentes mal intencionados, mas acabou por escapar e continuou a esperar o melhor deles. Esta fé nos outros pode parecer ingenuidade, mas é a Via da pessoa exemplar (Mêncio, 5.A.2.).

121. Zhu Xi comenta: “Quando se trata de estudar, uma pessoa exemplar deseja uma grande amplitude e, por isso, não haverá nenhum elemento de cultura que ele não examine. Quando se trata de se controlar, deseja contenção, pelo que cada movimento deve estar de acordo com o ritual. Tendo sido disciplinado desta forma, ele não irá contra a Via”.

122. Nanzi, uma mulher de má reputação, era a consorte do duque Ling de Wei. Zilu não está satisfeito por Confúcio ter procurado uma audiência com tal pessoa. Contudo, é provável que o ritual tenha ditado que ao chegar a um reino se solicitasse uma audiência com a esposa ou consorte do governante local. Ao ter uma audiência com Nanzi ao chegar a Wei, Confúcio superava a má opinião que tinha dela, a desaprovação dos seus discípulos, e arriscava uma condenação geral, tudo para não deixar de cumprir um ditame dos ritos. Zilu é aqui apresentado como demasiado rígido, ficando aquém da benevolência e da propriedade ritual. Em Ìì厭Ö® (Tian yan zhi) yan também é traduzido por “rejeite” ou “desteste”, mas além destes sentidos alguns comentadores traduzem por “obrigar”, o que mudaria a frase para “Foi o Céu que me obrigou!”, no sentido em que teria sido forçado a cumprir o rito.

123. Conferir extensos benefícios ao povo e ser capaz de ajudar todos, talvez devido à sua dificuldade, senão impossibilidade, seria bem mais que benevolência. Confúcio considera que até para os reis-sábios Yao e Shun seria uma tarefa difícil.

15 Mai 2023

Três ensaios de prosa chinesa

Tradução de André Bueno

Inscrição de uma humilde morada

As montanhas não obtêm fama por sua altura, mas porque nelas vivem algum imortal. Os rios não adquirem seu renome por sua correntes, mas sim porque algum dragão torna mágicas as suas águas.

Esta humilde morada só tem o perfume da minha virtude.

O musgo esmeralda cobre seus alpendres, e o verdor da erva invade suas cortinas. Mas aqui, são os grandes letrados que conversam e riem, não vem nenhuma pessoa que não tenha alguma importância.

Podemos tocar a sensível cítara, podemos estudar os valiosos sutras. Não há orquestra alguma que estrague o ouvido, nem documentos oficiais que importunem a nós.

Confúcio disse: que há de mal nisso?

Liu Yuxi (772-842)

Elogio da virtude do vinho

Há um homem superior que considera a eternidade como uma manhã, dez mil anos como um abrir e fechar de olhos; o sol e a lua como suas janelas, os oito confins do mundo como seu pátio e ruas. Caminha sem seguir rotas nem deixa pegadas; vive sem casa e sem abrigo; o céu o serve de tenda, a terra o serve de esteira; onde quer que vá, seu desejo é seu guia. Quando pára, pega um copo e uma garrafa; quando se vai, leva uma jarra e um vaso. Só se ocupa de vinho, não conhece outra coisa.

Um jovem nobre e um letrado de renome ouviram falar de sua maneira de viver e o criticaram. Agitaram suas mangas, balançaram suas túnicas, rangeram os dentes e ficaram de olhos injetados. Falaram longamente dos ritos e das leis, e o bem e o mal povoam seus discursos como um enxame de abelhas.

Enquanto isso, o mestre dispôs uma bandeja e sustentava um jarro de vinho com as duas mãos. Levou a bandeja para a boca e derramou todo o vinho pela garganta. Despojou-se, e sentou cruzando as pernas. Sua cabeça descansava na terra, seu corpo jazia no pó. Já não tinha mais pensamentos nem sentimentos, sua felicidade era infinita. Assim permaneceu, ébrio e privado de sensações, até que recobrou por si mesmo os sentidos.

Por mais que escutasse, não ouvia o fragor da conversa; por mais que buscasse, não via as montanhas. Não sentia nem frio nem calor atacar seu corpo. Não o incomodava nem a alegria nem o desejo. Contemplava o mundo das alturas, como uma tumultuada confusão de seres, como algas boiando ao sabor da correnteza de um rio. Os dois homens que falavam com ele eram como abelhas, ou parasitas de uma amoreira.

Liu Ling (século 3 d.C.)

Prefácio da Antologia do Pavilhão das Orquídeas

Instalamo-nos junto ao um canto do arroio para lavar nossos copos, e todos nos sentamos em ordem. Nos faltava o deleite de uma orquestra, mas um copo de vinho e uma canção eram suficientes para dar rédea solta aos nossos sentimentos poéticos.

O céu era luminoso e o ar puro; uma suave brisa soprava leve. Acima contemplávamos a imensidão do céu, abaixo examinávamos a riqueza da natureza. O espetáculo que se abria ante nossos olhos causava sensações bastantes para levar ao extremo a alegria de ver e ouvir. Era, na verdade, prazeroso.

Quando os homens debatem acerca do tempo, alguns expressam o que trazem consigo e falam de sua casa; outros seguindo suas peregrinações, discorrem livremente sobre os acontecimentos externos. Mas, ainda que ambas as atitudes sejam opostas, ainda que alguns se agitem e outros permaneçam tranqüilos, todos se alegram em reencontrar-se e durante alguns instantes ficamos em paz, felizes, e esquecemos que a velhice nos acerca. Uma vez que conseguimos o que buscamos, nos cansamos dele; os sentimentos mudam de acordo com os acontecimentos; então vem a decepção. O que nos atraía num instante se converte em vestígio do passado; no entanto, não podemos impedir que nos assalte a emoção de pensar nisso por um momento. O que dura e o que é breve, tudo muda e tudo chega ao fim no nada. Os antigos diziam: a vida e a morte são grandes questões. Isso não é triste?

Cada vez que penso nas causas que comoveram os homens de antigamente, encontro exatamente as mesmas que as nossas. Nunca li uma obra antiga sem suspirar com pesar, sem entender esta profunda emoção. No fundo, sei que a igualdade da vida e da morte, da longevidade ou da morte prematura, não são mais do que discursos mentirosos. E a posteridade considerará nosso tempo como nós consideramos os tempos passados! Que desgraça!

Por isso ordenei que as obras de meus contemporâneos fossem copiadas. Ainda que variem as épocas e condições, as coisas que suscitam a emoção humana são as mesmas sempre. E sei que os leitores dos séculos que virão sentirão ante estes escritos estas mesmas emoções.

Wang Xizhi (312 – 379)

15 Mai 2023

A cadência das flores e dos pássaros de Jiang Tingxi

Xiao Baojuan, imperador (r. 498-501) da dinastia Qi e que seria despromovido a marquês Donghun, terá mandado espalhar folhas douradas de lotos pelo chão de um salão para que a sua concubina Pan dançasse sobre elas. Encantado com a expressividade do movimento, teria exclamado: «A cada passo desponta uma flor de loto» (bubu shenglian).

A associação da conhecida flor do Budismo à pura expressividade do movimento era só mais um, original, ligame das flores a metáforas culturais numa altura em que chegava do Ocidente o monge Damo (Bodhidharma) na transição dos séculos cinco para o seis, com a mensagem do Chan fazendo florescer de novo as palavras do Buda.

Na dinastia Tang (618-907), o loto e outras flores, seriam cantadas por poetas e recriadas em pinturas ao lado de pássaros, produzindo uma míriade de significados, desde a simples enunciação da beleza até a associação a histórias de fenómenos misteriosos como a imortalidade, e um género de pintura novo, huaniao hua, que podia incluir muitos outros elementos como insectos, peixes ou frutos.

Eminentes pintores de todas as seguintes dinastas a praticaram. Um homem sábio da dinastia Qing que convivia com o imperador e cujo saber era tão reconhecido que foi chamado para terminar uma monumental enciclopédia, distinguir-se-ia pela delicadeza na pintura das flores. Jiang Tingxi (1669-1732), de Changshu (Jiangsu), será sempre associado a Chen Menglei (1650-1741) como os dois directores da Colecção completa de ilustrações e escritos desde os antigos aos actuais, Gujintushu jicheng, publicada em 1726. Mas as suas pinturas, como Hibiscos e garça (rolo vertical emoldurado, tinta e cor sobre seda,113 x 60,3 cm, no Metmuseum) mereceriam poéticos elogios como o que nela escreveu Jiang Wuyang:

«Folhas de loto flutuando

na água parecem tão puras,

Flores de hibiscos nas margens

do entardecer fazem-me sorrir.

O espírito entra directamente

na morada de Zhao (Mengfu).»

Jiang Tingxi faria pinturas para álbuns que acompanham poemas dos três imperadores que conheceu: Kangxi, Yongzheng e Qianlong, cujos reinos possuem tal unidade que são habitualmente referidos como «o avô, o pai e o filho». Essa continuidade manifesta-se também na vontade de coleccionar; rever, comparar, enumerar. O pintor junta-se a essa determinação em Cem pássaros (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 304,8 x 30,48 cm) no Museu de Arte de Indianapolis. Ele terá conhecido a arte da pintura com o seu conterrâneo Yun Shouping (1633-90) e a «escola de Piling», nome antigo da terra dos dois, cujas pinturas se observam hoje em mosteiros budistas do Japão. Na inter-relação das formas que ocupam os espaços na sua pintura vê-se o objectivo expresso na primeira lei da pintura de Xie He (act. c. 500-35) Qiyun, o «movimento do espírito», comparável ao persuasivo dinamismo rítmico da dança.

15 Mai 2023

Mapas e a Carta Náutica de Zheng He (XIV-2)

Nas viagens marítimas partia-se com a rota pré-estabelecida numa infinita estrada de água definida por marcas nos mapas e os pilotos (hua zhang) usavam principalmente três meios para cuidar da navegação, a bússola, o geng e o tuo.

Serviam-se das ‘cartas de rotas de agulha’, realizadas desde a dinastia Song para o Oceano Pacífico e no Índico, sobretudo durante a quarta viagem de Zheng He, e com essas marcadas direcções, os pilotos dos juncos guiavam-se através da bússola marítima, registando os rumos e fazendo cálculos de estimativa da distância navegada no período de Tempo de um Geng (更), que andava entre 40 a 60 li [1 li ±. 0,5 km].

Além da bússola e do geng, existia o tuo (庹) a medir a profundidade das águas assinaladas também nas cartas e daí se escolhia o rumo da navegação da armada. Segundo o livro Hong Xue Yin Yuan Tu Ji 鸿雪因缘图记, escrito na dinastia Ming por Wang Chun Quan 汪春泉, 1 tuo correspondia a 5 chi (尺) igual a 1,6 metros, pois 1 chi nas dinastias Ming e Qing era igual a cerca de 32 cm.

Já no período nocturno, com céu limpo a técnica de orientação pelas estrelas era realizada num instrumento de observação chamado ‘Tábua de levar as estrelas’, a calcular latitudes através da distância angular, equivalendo 1 Zhi (dividido em 4 Jiao) a 1,9° desde as dinastia Qin e Han, sabendo-se ainda ser de 5 Zhi a maior distância angular entre Vénus e a Lua.

Com a aplicação destas técnicas de navegação forneceram-se os elementos às quatro Cartas Anexas e à Carta Náutica de Zheng He, guardadas no livro militar Wu Bei Zhi (Livro das Armadas, ou Documento oficial de armamento tecnológico) compilado por Mao Yuanyi em 1621 durante a dinastia Ming.

HISTÓRIA DOS MAPAS

Os mapas, registados na China em muitos dos Clássicos compilados na dinastia Zhou (1046 a 256 a.n.E.), estavam nas memórias mencionados sem prova nos desenhos realizados durante a dinastia Xia (2070 a 1600 a.n.E.) em nove caldeirões de bronze. Estes tinham já representados mapas das várias regiões do país, suas montanhas, rios, plantas e animais.

No Período dos Reinos Combatentes (475 a 221 a.n.E.) ganharam uma outra maior importância para planear tácticas e estratégicas manobras militares, na escolha dos caminhos seguros para as tropas marcharem e locais a evitar, ou realizar as batalhas. Daí a necessidade de ser reproduzido tudo o existente no terreno, orientações, distâncias, localização das montanhas, rios e locais para os atravessar, assinalando florestas onde o inimigo se poderia esconder e mesmo as condições do solo a fim de se perceber o número e meio de transporte a usar.

Da dinastia Han (206 a.n.E. a 220), no túmulo em Mawangdui do Marquês de Dai [Li Cang, primeiro-ministro de Changsha] e sua família, datado de 168 a.n.E., foram desenterrados três mapas em panos pintados de seda. Um com 96 cm² era um mapa topográfico da área de Changsha, numa escala aproximada de 1 para 180 mil, onde representadas estavam todas as montanhas, rios, centros populacionais e as estradas claramente localizadas. Outro mapa topográfico posicionava o aquartelamento das tropas e tinha 98 cm de comprimento e 76 de largura. O terceiro mapa assinalava as cidades e vilas de algumas regiões.

Todos os três tinham o Sul representado na parte superior e neles não existiam títulos, nem especificavam as escalas e datas de quando foram feitos, no entanto apresentavam um aprimorado método com correctas proporções nas distâncias.

No ano de 116 o astrónomo Zhang Heng “inventou a cartografia quantitativa ao desenhar grelhas em mapas para obter localizações, distâncias e itinerários precisos”, sendo a projecção semelhante à desenvolvida no século XVI por o cartógrafo flamengo Gerardus Mercator.

Na dinastia Jin do Oeste (265 a 316), Pei Xiu (223-271), apontado como Ministro das Obras por o Imperador Wu Di (Sima Yan, 265-290), logo se encarregou de compilar o Yu Gong Di Yu Tu (Mapas regionais de Yu Gong), onde no prefácio sumarizou as experiências dos iniciais cartógrafos e formulou seis regras para se fazer mapas. A primeira refere a obrigatoriedade de os mapas conterem desenhada uma escala graduada.

A segunda, o dever de mostrar a correcta relação direcional entre as várias partes do mapa e a terceira, as distâncias entre dois importantes lugares terem de ser medidas por o caminhar de quem os regista. Quarto, quinto e sexto, em caso desses dois locais não estarem ao mesmo nível, primeiro terá de se ajustar para ficarem no plano.

Continuando nas informações de Cao Wanru, retiradas do artigo ‘Mapas de há 2000 Anos e Regulamentos da Cartografia Antiga’, quem usou essas regras foi Jia Dan (730-805) ao compilar os mapas das prefeituras de Longyou e Shannan e realizar o Hai Nei Hua Yi Tu (Mapa dos Chineses e do Povo Bárbaro dos quatro mares), com 10 metros de comprimento e 11 de altura. A escala era de 1 cun (2,94 cm) para 100 li (sendo um li=18.000 cun) e representava uma área de 30.000 li de Leste a Oeste e 33.000 li do Norte até ao Sul, onde se apresentava a China e muitos outros Estados.

As informações provinham dos enviados estrangeiros em visita à China e nesse mapa estavam anotados os nomes históricos desses Estados, províncias, prefeituras (zhou) e concelhos (xiàn), assim como as mudanças ocorridas nas áreas dessas jurisdições, marcando a negro as abolidas e em vermelhão os correntes nomes.

Na dinastia Song do Sul (1127 a 1279) os cartógrafos e astrónomos chineses fizeram Di Li Tu, um planisfério em pedra com um dispositivo que apresentava um mapa dos céus para qualquer data e hora definidas e em 1136 um mapa, o Yu Ji Tu usando grelhas cuja escala era 100 li para cada lado do pequeno quadrado.

CARTA NÁUTICA DE ZHENG HE

Regressando ao livro Wu Bei Zi, nele se encontraram vinte mapas para a navegação de diferentes regiões e quatro cartas astronómicas, provavelmente concluídas em 1430 e realizadas nas viagens marítimas de Zheng He e daí conhecida como Carta Náutica de Zheng He.

“Essas cartas de ‘levar as estrelas a atravessar os oceanos’ eram rectangulares, com o Norte em cima, o Sul em baixo, o Oeste à esquerda e o Leste à direita, desenhadas de forma muito aproximada às actuais. As 4 cartas continham, cada uma, o seu próprio título reportado à respectiva rota, legendas, anotações concisas sobre a sua utilização ao longo do percurso e os nomes dos astros e respectivas medidas em Zhi e Jiao, [para o cálculo angular da latitude dos lugares].

Registavam ainda textos com indicações úteis sobre as constelações desenhadas e as legendas complementavam-se. As estrelas ‘levadas’ apareciam ligadas por segmentos de recta nas margens da carta; tratando-se de duas estrelas ‘levadas’ o segmento de recta intersectava a linha que as ligava entre si. As medidas das estrelas ‘levadas’ registavam-se ao lado das respectivas ilustrações. O interior da carta era decorado com um navio de três mastros.

O desenho das velas do navio correspondia à direcção dos ventos favoráveis às rotas de ida e regresso”, segundo Zheng Yi Jun.

Nanjing era o ponto de partida nesses mapas, que assinalavam 56 rotas distintas a facilitar a navegação às embarcações de diferentes calados. Outras informações aí disponibilizadas eram, a duração do percurso de cada uma das rotas, a profundidade dos cursos de água e os obstáculos subaquáticos existentes.

As viagens de Zheng He contribuíram muito para o desenvolvimento da ciência náutica astronómica, aumentando o rigor na definição da posição das embarcações num caminho abstrato entre a água e Tian, o Céu.

11 Mai 2023

A Lua sobre a água e os retratos em pares de Yan Hui

Li Tieguai, «Li, o da bengala de ferro», um dos Oito imortais (Baxian) da cultura popular, possuía o aspecto andrajoso de um mendigo, que foi o corpo onde reencarnou depois do seu assistente ter queimado o seu corpo inicial julgando que tinha morrido ao encontrá-lo inanimado. Na verdade, ele tinha feito o espírito abandonar a sua forma visível, indo passear junto dos seus campanheiros imortais. A anedota — que pode ser vista como um mecanismo da memória aludindo à célebre lição do Sutra do Coração: «A forma é vazia, o vazio é a forma» — foi adoptada em populares representações que decoravam paredes de mosteiros, no processo de abraçar o Budismo no quotidiano dos dias.

Na dinastia Yuan, um pintor profissional originário de Luling (actual Jian, Jiangxi) representou Li Tieguai soprando a alma para fora do seu corpo, numa pintura no Museu de Quioto (rolo vertical, cor sobre seda, 161,3 x 79,7 cm) que faz par com outra de iguais dimensões, mostrando o imortal Liu Haichan. Lado a lado eles parecem conversar. As suas feições exageradas visam provocar o espanto, um efeito emocional que se opõe às pinturas depuradas da dinastia anterior.

Esse pintor, Yan Hui (activo c. 1270-1310) faria um outro impressivo retrato de Li Tieguai que está no Museu do Palácio, em Pequim (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 131,8 x 67 cm) onde avulta o olhar sombrio, extravagante e directo ao observador do imortal sentado numa rocha; uma cascata no canto superior esquerdo faz ondular as águas à sua frente. Outra pintura do mesmo autor (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 111,1 x 76,2 cm, no Museu Nelson-Atkins, na cidade do Kansas) reproduz o mesmo cenário mas agora é retratada Guanyin, a bodhisattva da compaixão, no modelo de Guanyin shuiyue. Envolta num grande halo, os olhos fechados na face serena, junto dela, um ramo de salgueiro imerso no orvalho da imortalidade repousa num vaso azul.

Yan Hui também conhecido pelo nome Qiuyue, «o luar do Outono», foi como Zhao Mengfu (1254-1322) e outros seus contemporâneos, fascinado pelo «espírito dos Antigos», guyi, em especial os da dinastia Tang (619-960) de tal modo que a sua Guanyin shuiyue que medita diante da lua reflectida na água, parece ilustrar o poema de Bai Juyi (772-846) Apreciando pinturas:

«Sobre a água pura,

entre a luz branca

os meus olhos pousam

sobre a figura

e tudo se esvazia.

O teu discípulo Juyi

determinado à conversão:

cruzando vitórias e fracassos

tu serás o meu mestre.»

A atenção de Yan Hui à poesia nota-se também nos retratos idênticos dos poetas Hanshan e Shide no Museu de Tóquio (rolo vertical, tinta, cor sobre seda, 127,6 x 41,8 cm) sorrindo confiantes como quem sabe um segredo e de cuja existência histórica alguns duvidam, julgando tratar-se da mera compilação de ecos da alma humana, instáveis como o reflexo da lua sobre a água.

11 Mai 2023

Astronomia e Calendários (XIV-1)

Após a fundação da dinastia Ming (1368-1644) foi promulgado o Calendário Da Tong (大统历), que apenas era uma simples revisão do Calendário Shou Shi (授时历, Narração do Tempo) formulado por o astrónomo Guo Shoujing (郭守敬, 1231-1316) e o matemático Wang Xun (王恂, 1235-1291) durante a dinastia Yuan (1279-1368).

A série de observatórios astronómicos criados a partir do século VII na Ásia Central, Índia e na China, colocou em contacto astrónomos de diferentes culturas e filosofias, a trocar conhecimentos e leituras das observações, corrigindo ou confirmando os dados e na procura de um datum para os seus calendários.

Já uma anterior grande reforma nos calendários da China ocorrera a partir do importante legado dado no ano 85 por Jia Kui (贾逵, 30-101) ao anunciar estar o ponto do solstício de Inverno distanciado 20,25° de φ (fi) Sagittarii. Pegou no diagrama das “Nove Passagens da Lua” de Lui Xiang e atribuiu-o à excentricidade do curso da Lua, dizendo o apogeu avançar 3° pelo mês anomalístico (tempo gasto por a Terra entre duas passagens sucessivas pelo mesmo ponto da sua órbita). Este datum significa serem necessários 9,18 anos para se percorrer um ciclo completo e o mês anomalístico ser de 27,55081 dias. Técnica a permitir uma exactidão sem precedentes.

Zhang Heng (张衡, 78-140), servindo na corte da dinastia Han do Leste, ficou encarregue de fazer observações meteorológicas e astronómicas para aperfeiçoar o sistema no Si Fen Li (四分历, Calendário do Quarto que Sobra), calendário feito por Jia Kui e em uso desde o ano 85 até 263. Tinha esse nome pois baseado na duração de um ano solar de 365 dias e ¼ e inseria sete meses extra em cada dezanove anos. Continha cálculos precisos no período sinódico de Vénus, Júpiter, Mercúrio, Marte e Saturno, sendo a precisão para o de Mercúrio próxima à de hoje.

Zhang Heng corrigiu em 123 o Calendário Si Fen para que coincidisse com as estações e sobre Astronomia escreveu o Ling Xian (A Constituição do Espírito). Acreditava ser o Universo infinito e os corpos celestes terem uma regularidade no seu movimento, a Lua reflectir a luz do Sol e o eclipse lunar ocorrer quando a Terra obstruía a luz do Sol.

CALENDÁRIOS DA DINASTIA YUAN

Na dinastia Yuan o território chinês expandiu-se para Oeste, abarcando as conquistas mongóis muitos territórios muçulmanos e além de muçulmanos trazidos do Médio Oriente, com eles chegou a cultura árabe, assimilada pela China mongol.

O sistema do calendário árabe foi estudado pelos astrónomos chineses, quando em 1220 Yelu Chucai recompilara o Calendário “Hui Hui” (回回, povo muçulmano a viver na China) através dos estudos feitos no Observatório de Samarcanda e após revistos, passou a Calendário “Ma Ta Ba”, adoptado em 1236 pelos muçulmanos do Norte da China. Com intervenção preciosa na feitura desse calendário, o astrónomo persa Jamal al-Din ibn Mahammad al Najjari veio em 1267 para a China e ofereceu o “Calendário dos Dez Mil Anos” a Kublai Khan (1260-94), imperador mongol da dinastia Yuan entre 1279 e 1294, passando a ser este também calendário oficial.

Guo Shoujing (郭守敬, 1231-1316) fundara no interior do Palácio Imperial em 1279 o Observatório Astronómico de Dadu (Beijing), e em 1283 tornou-se seu Director, tendo aperfeiçoado os relógios de água provenientes dos criados por Yi Xing e o engenheiro Liang Lingzan, assim como por Su Song.

O monge budista, astrónomo e matemático Yi Xing (一行, 683-727) em 727 criara o Calendário Da Yan Li (大衍历) baseado no ciclo lunar-solar, a dar a duração de 88,89 dias para os seis termos do solstício de Inverno até ao equinócio da Primavera e 91,73 dias para o Sol percorrer o quadrante seguinte ao longo da eclíptica. Yi Xing em conjunto como o engenheiro Liang Lingzan (梁令瓒) “construíram no ano 725 o primeiro relógio mecânico do mundo, um relógio de água regulado por uma roda motriz que o punha em funcionamento.

A roda motriz abria e fechava uma válvula fazendo com que o fluxo de água vazasse de modo constante. Este relógio de bronze apresentava um mapa celeste, mostrava as horas, a localização do Sol e da Lua e representava o movimento das constelações equatoriais.

Já na dinastia Song, em 1088, Su Song (苏颂, 1020-1101) fizera um relógio de água e com ele construiu o Império Cósmico, o antepassado do computador, numa fusão de relógio de água, planetário e esfera armilar, iniciado em 1088 e concluído no ano de 1092. “Mecanismo com dez metros de altura, onde as rodas de escape, através de um fluxo de água constantes, giravam de modo a alimentar o relógio e o planetário, uma representação mecânica dos céus, enquanto a esfera armilar permitia calibrá-los através da observação do Sol e dos planetas.” Estava então o dia dividido em 12 shichen (时辰) e cada shichen tinha duas partes: a primeira chu (初) e a segunda zheng (正), passando assim o dia a ter 24 partes.

A criação de um novo calendário foi entregue a Guo Shoujing e a Wang Xun, pois o cálculo das órbitas planetárias e a aplicação da astronomia esférica continuava a conter muitos erros. Serviram-se da Tabela Astronómica Il-Khanate, escrita em persa e terminada em 1272 pelo Observatório Astronómico de Malag, resultante da compilação dos estudos provenientes da antiga Grécia, Arábia, Pérsia e China. Esta foi a base para Wang Xun resolver os problemas matemáticos do novo Calendário “Shou Shi” feito em 1280, que adaptando no cálculo astronómico a fórmula trigonométrica da esfera do Calendário Hui Hui, juntou-a ao cálculo dos movimentos diários do sistema solar, referindo ser a duração do ano trópico de 365,2425 dias, um erro de 26 segundos para o actual.

Guo Shoujing inventou um novo gnomo, chamando-lhe um definidor de sombra, pois facilitava a leitura da linha da sombra do Sol, confirmando estarem correctos os cálculos de Yi Xing sobre o movimento da eclíptica do Sol e a flutuação da sua velocidade aparente. Assim se fez a quarta grande reforma na história do sistema do calendário chinês.

Os instrumentos astronómicos do Observatório Astronómico Zijin, num dos montes a Oeste da Montanha Púrpura (Zijinshan) em Nanjing, foram feitos na dinastia Yuan por Guo Shoujing e Wang Xun para o Observatório da capital Dadu (Beijing). Após a tomada do poder em 1368 por os Ming, foram eles transferidos para a nova capital, Nanjing.

Em 1421, o terceiro imperador da dinastia Ming, Yongle (1402-24) retornou a capital (jing) para Norte (Bei), mas os instrumentos não regressaram, temendo-se trazer má sorte uma nova mudança. Daí serem feitos novos para o observatório construído em 1442 em Beijing.

Em Nanjing encontram-se vários instrumentos astronómicos fundidos em bronze, entre os quais um gnomo e uma esfera armilar de 1437, mas inventada para determinar a posição dos corpos celestes por Luo Xia-hong à volta do ano de 104 a.n.E.. Numa placa, diz-se terem os instrumentos sido levados para Berlim pelas tropas dos Oito Aliados (britânicos, franceses, japoneses, americanos, russos, alemães, austríacos e italianos), após o fim da revolta dos Boxers e só retornaram à China passados vinte anos, em 1921, com a assinatura do Tratado de Versalhes.

5 Mai 2023

Três ensaios de prosa chinesa

Tradução de André Bueno

 

Nota sobre o Pavilhão Yueyang

Considero que a beleza de um lugar consiste por completo no lago Dongting. Este lago, bordeado ao longe pelas montanhas que envolvem o rio azul, estende suas águas sem limite nem obstáculo. Refulgente pela manhã, sombrio a noite, mil são suas facetas mutáveis. Assim é a paisagem do Pavilhão Yueyang, tal como descreveram os antigos. Viajantes e poetas, que se reúnem aqui com freqüência, podem permanecer indiferentes ao encanto da natureza?

Quando chove sem cessar e o céu leva meses sem despejar-se, quando um vento lúgubre uiva furioso, criando ondas turbulentas, quando o sol e as estrelas têm seu brilho velado, quando as colinas e montanhas se desvanecem, quando viajantes e comerciantes deixam de circular, quando os mastros se rompem e os remos se quebram, quando está escuro já ao entardecer, quando os tigres rugem e os macacos urram, os que estão longe de sua terra natal e a levam no coração, os que sofrem calúnias e injustiças, ao subir neste pavilhão e testemunharem tal espetáculo de desolação, sentem exacerbar-se suas emoções e dores.

Mas, quando a primavera é aprazível e a paisagem luminosa, quando a água esta límpida e não se distingue do céu, quando o lago é uma imensa turquesa, quando as gaivotas voam soltamente e se reúnem em bando, quando os peixes saltam, quando nas margens as íris e as orquídeas exalam seu perfume; ou quando um véu negro oculta o céu, quando brilha a lua a mil léguas, quando seu brilho se derrama como ouro liquido através de seu reflexo imóvel semelhante a um disco de jade a flor d’água, quando o canto dos pescadores se responde por todas as partes, o gozo que se sente então é imenso, o coração fica despojado e a alma exultante. Se esquecem as honras e os ultrajes, e com um copo de vinho na mão, respira-se a brisa. A felicidade então não tem limites.

Se a reação dos sábios de outros tempos não foi essa como acabei de descrevê-la, qual seria a razão? Esses homens não tomavam o externo como motivo de alegria e nem o pessoal ou o interno como motivo de pena. Se ocupavam altos cargos na corte, sua preocupação era o povo; se estavam exilados, entre rios e lagos, o objeto de sua solicitude era o príncipe.

Esses homens viviam na inquietude tanto quando serviam como quando caiam em desgraça. Quando desfrutavam, então? Para isso só há uma resposta: se preocupavam antes com o que se preocupava o mundo, e se alegravam depois que o mundo tivesse se alegrado. Se não forem estes homens, quem eu tomarei por guia?

Fan Zhongyan (989-1052)

O Pavilhão do Velho Bêbado

Uma multidão de montanhas rodeia Chu. No sudoeste se encontram os picos, os bosques e os vales mais belos. O que se vê, ao longe, imponente, verde e exuberante é o monte Iangya. Caminhando seis ou sete léguas para o monte, se começa a ouvir o rumor de uma torrente que flui borbotando por um desfiladeiro; é a cascata quente. E no lugar em que o desfiladeiro forma um reentrância, o pavilhão do velho bêbado se alça nas alturas junto a cascata. Quem o construiu? Foi o ermitão budista Zhixian. Quem deu esse nome? Foi o governador.

O governador vem com seus amigos para beber no pavilhão. Apenas começa a beber e se embriaga. Com sua idade avançada, se fez chamar de velho bêbado.

A embriaguez do velho bêbado não vem do vinho, senão de sua estada entre os montes e os rios. O gozo da paisagem penetra em seu coração e se manifesta por meio do vinho. Quando sai o sol, as névoas do bosque se dissipam; quando as nuvens regressam para a montanha, as rocas se escurecem. Essa sucessão de luz e sombra são o que dão o amanhecer e o anoitecer ao monte.

Os campos florescem, exalando suaves aromas; as arvores, em seu esplendor, estendem suas frondosas sombras. O vento sopra lúgubre, trazendo o sereno; o céu é alto e límpido, o caudal dos rios baixa, e afloram as pedras do leito. Assim são as estações na montanha. Se alguém sobe à alba e regressa ao acaso, ao longo das quatro estações, os aspectos da paisagem vão mudando, proporcionando ao caminhante um prazer infinito.

Cantam os trabalhadores do vale; os passantes descansam debaixo das árvores; os que encabeçam as marchas gritam com os que estão mais para trás; homens curvados pelo peso de suas cargas vão e vem e cessar. Era uma excursão das gentes de Chu.

Vão pescar na cascata: as águas são profundas, os peixes são grandes. Adicionam água da torrente ao vinho, a água é deliciosa e deixa o vinho picante.

Os manjares do monte, as verduras do campo dispostas em abundancia são o festim do governador. O deleite do festim não procede da música que o acompanha. Alguns desfrutam do tiro com arco, outros jogando xadrez, cartas ou go. Sentados ou em pé, os convidados cantam e conversam em grande algazarra; o homem de rosto violáceo e cabelo calvo e enevoado no meio de todos os outros é o governador bêbado.

Pouco a pouco, o sol do entardecer se põe atrás das montanhas, as silhuetas das pessoas se dispersam e se agitam: o governador e seu séqüito começam a voltar. O bosque escurece, o canto dos pássaros se espalha para quem quiser ouvir; os passantes se vão, e as aves se alegram.

As aves sabem desfrutar os montes e rios, mas não entendem o gozo que estes produzem nos homens. Os homens sabem desfrutar dos passeios, mas não entendem o gozo que este produzem no governador.

O bêbado que pode experimentar este gozo e, uma vez desanuviado, contá-lo por escrito, é o governador. E quem é o governador? Ouyang Xiu, de Liuling.

Ouyang Xiu (1007-1072)

Discurso de amor sobre os Lotos

Das flores que crescem entre as ervas e as árvores, no solo ou na água, muitas são as que podem agradar.

Tao Yuanming, o grande escritor, adorava os crisântemos. A partir da dinastia Tang, as pessoas começaram a gostar das peônias. Somente eu, porém, gosto dos lotos. Brota sem mácula do lodo, se banha em água turva. Não é sofisticado nem chamativo; seu talo é oco e erguido, não tem ramos nem galhos. Seu perfume é puro a distância, distinto, sem máculas. Pode ser visto de longe, mas podemos chegar perto dele e ficar brincando com sua flor por puro divertimento.

Enquanto isso, o crisântemo é, entre as flores, a que mais se oculta deste mundo. A peônia vermelha é, entre as flores, a que mais representa a riqueza e a nobreza. O lótus, no entanto, representa o sábio.

Desgraçadamente, desde Tao Yuanming, poucos são os que apreciam o crisântemo; quanto ao lótus, acho que sou o único, e mais ninguém além de mim. No entanto, todos os outros parecem apreciar as peônias…

Zhou Dunyi (1017-1073)

In Dez Ensaios de Prosa Chinesa, tradução de André Bueno, Agbook, 2011

André Bueno escreve em português do Brasil.

3 Mai 2023

Um tesouro da colecção de Xiang Yuanbian

Huaisu (activo 730-80), o monge budista e poeta que partilhava o gosto de Li Bai de beber o vinho como veículo de inspiração e facilitador da confraternização, teria, segundo a lenda, plantado um bananal na sua terra natal para aproveitar as suas grandes folhas na ausência de papel para escrever. O seu carácter rebelde, engenhoso e excessivo seria figurado em pinturas, como no leque montado como folha de álbum de Gu Yun (tinta e cor sobre papel, 17,1 x 51,1 cm, no Metmuseum) onde ele está com ar displicente, de olhos fechados com um afastador de moscas na mão, semi-deitado nesse bananal que ele chamou Lutian an, «templo do céu verde» em que as folhas ocupam o espaço do céu e abanando com o vento tornam sensível pelo som o sopro do espírito.

A Autobiografia que escreveu em 777, quando tinha quarenta anos, de que existe uma cópia modelar no Museu do Palácio, em Taipé (tinta sobre papel, 28,3 x 755 cm), tornar-se-ia numa das mais estimadas obras da arte da caligrafia no estilo cursivo (caoshu) espontâneo, dito «selvagem». No início do relato, ele refere a dificuldade que teve para satisfazer o desejo de conhecer aquelas obras de arte com que sentia afinidade e «infelizmente lamentava não ter oportunidade de olhar para as maravilhosas obras-primas escritas pelos antigos mestres» (linha 3) então decide ir até à capital num esforço e dedicação que compensou: «Então, achava amiúde textos raros e livros preciosos. O meu espírito abriu-se e iluminou-se nessa altura e senti-me livre e sem constrangimentos.» (linhas 8,9)

Mas o seu próprio texto entraria nesse patamar exemplar e a sua posse cobiçada. Na dinastia Ming encontrava-se numa colecção excepcional cuja grandeza se pode deduzir da afirmação orgulhosa do erudito e influente teórico e pintor Dong Qichang (1555-1636): «Tive oportunidade de observar todas as obras originais das dinastias Jin (1115-1234) e Tang (618-906) na colecção do erudito universal Xiang Zijing.»

Xiang Yuanbian (1525-90), referido pelo seu nome literário Zijing, «Filho ou mestre da capital», nascera em Jiaxing (Zhejiang) mas seria à sua casa em Suzhou que afluiriam pintores e outros visitantes curiosos de estudar pinturas e caligrafias raras. Alguns, como Qiu Ying (1494-1552), lá viveriam durante anos. Wen Jia (1501-83) dedicou-lhe uma Paisagem em 1578, como um presente (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 117,5 x 39,8 cm, no Metmuseum) quando Xiang fazia cinquenta e quatro anos. A pintura foi muito bem recebida como provam os quinze carimbos de Xiang Yuanbian. Nela estão representados entre altas montanhas dois literatos sentados no chão, conversando, e um terceiro vem chegando numa ponte. Entender-se-á; o autor da obra de arte, o coleccionador e o visitante observador e a razão da colecção: dar a ver o que o coleccionador valorizava, como a «escrita selvagem» de Huaisu.

2 Mai 2023

Filosofias orientais, filosofias indígenas

Em um recanto do centro do Brasil, em meio à Chapada dos Veadeiros, no estado de Goiás, ocorreu nos dias 21 e 22 de abril de 2023 um seminário assim intitulado: “Existencialidade e Direito: diálogos entre filosofias orientais e indígenas.”

A iniciativa, fruto de uma rede de debates em filosofia intercultural coordenada pelo professor Antônio Florentino Neto (Unicamp/Brasil), se deu como etapa preparatória ao Colóquio Internacional sobre Filosofia Oriental dessa mesma Universidade de Campinas, a ocorrer em novembro próximo, e que costuma reunir pesquisadores do Brasil, da Europa, Estados Unidos, China e Japão.

O encontro na Chapada dos Veadeiros foi realizado na Aldeia Multiétnica, um centro de atividades em pleno cerrado brasileiro, e reuniu pesquisadores de diferentes matrizes e especialidades: em pauta, algumas filosofias da Ásia e outras tantas originárias deste território que hoje é chamado de Brasil.

Com tal seminário, debatíamos a pertinência de conceitos universais — e internacionais — como os Direitos Humanos, e isso em uma perspectiva intencionalmente não-ocidental. Os pensadores indígenas que ali estavam pontuaram, sob diferentes prismas, os modos pelos quais o avanço colonial do assim chamado Ocidente impacta diretamente nas vidas de suas comunidades; falaram sobre as possibilidades de existência de seus territórios, e com isso também vieram pôr em xeque a possibilidade de se pensarem filosofias — quer ocidentais, quer orientais, quer mesmo indígenas — sem ter em conta a dimensão fundamental, para o próprio conhecimento, da experiência concreta do mundo; mundo sempre muito povoado, por humanos e outras tantas entidades que compõem o entendimento de cada povo com relação ao que existe e ao que pode existir. Estavam presentes Gersem Baniwa, Edson Kayapó, Álvaro de Azevedo Gonzaga e Almires Martins Machado, os dois últimos pertencentes a comunidades Guarani. Além deles, mais indígenas compunham o encontro: gente dos povos Guarani Mbyá, Fulni-ô, Yawalapiti. Um público também não-indígena participava do evento como assistência, e os professores Lucas Machado, Amâncio Friaça e Vanessa Louise atuavam como debatedores.

Da Índia, o professor Dilip Loundo apresentou tradições filosóficas que muito contribuíam para relativizar a pretensa universalidade do Ocidente; eu, de minha parte, debatia dimensões pragmáticas e cotidianas das cosmologias budistas da Terra Pura, tomando o pensamento de alguns mestres dessa tradição como condução e guia: àquele público de pesquisadores indígenas, indianos e brasileiros, apresentava o pensamento de uma Terra Pura como elaborado por tantos nomes asiáticos, como Taixu e Yinshun; nomes para quem a Terra Pura não se configura apenas como uma realidade soteriológica, metafísica e futura, mas também como a possibilidade — e mesmo a necessidade — de uma Terra da Purificação nesta mesma terra presente, na qual todos vivemos. Debatendo existencialidades e direito, pensando em éticas e filosofias políticas, em modos de organização social e modos de viver a vida neste mundo, a Terra Pura — como eu a apresentava aos colegas — surgia ali como uma possibilidade de se pensar a criação de vínculos comunitários, políticos e cotidianos, como tantas vezes ocorreu na Ásia, da China ao Japão.

Assim diz Yinshun, explicando a tradição Terra Pura chinesa:

“O Mahayana não se limita a buscar a pureza dos seres sencientes, exigindo também a purificação do país. Onde existe um ser senciente, existe o seu ambiente; da mesma forma que um pássaro ou um bicho da seda possuem seus ambientes todos os seres sencientes também possuem seu local de atividade. Os seres sencientes são a ‘retribuição correta’ (Carma individual), o mundo é a ‘retribuição dependente’ (Carma coletivo). Essa retribuição dependente se constitui no local de sua ação.” (Novo tratado da Terra Pura, Palestra realizada no Shinshan Ching Yee em Hong Kong no inverno do quadragésimo ano da república chinesa [1951]. Tradução de Joaquim Antônio Bernardes Carneiro Monteiro.)

Qual seria, para a existencialidade de uma Terra Pura, para a vida cotidiana sob os auspícios do Dharma do Buda, um “local de ação” a compreender a construção ética de uma comunidade política guiada por tradições vindas do budismo? Por que dizer, como dissemos pouco acima, de uma “Terra da Purificação” a par de uma “Terra Pura”? O Reverendo Ricardo Mario Gonçalves, grande mestre e professor de estudos budistas e orientais da Universidade de São Paulo (Brasil), saudoso irmão no Dharma, por vezes explicava essa variação. Dizia ele que o Prof. Sussumu Yamaguchi, da Universidade Otani, que estudou na França quando jovem, traduzia “Jôdo” [forma japonesa de 淨土, jìngtǔ] não como “Terra Pura”, como se faz comumente, mas sim como “Terre de Purification”, tradução que justificava por resgatar o dinamismo da ação dos Bodhisattvas. Dizia o Reverendo Ricardo Mario Gonçalves: “Meus mestres japoneses da Ordem Otani eu mesmo concordamos todos com isso.”

O lugar da ação da Terra Pura, o dinamismo da ação dos Bodhisattvas, a possibilidade de uma Terra da Purificação a ser criada, constantemente criada neste mundo, por fim encontra a possibilidade de diálogo com diferentes filosofias indígenas, como algumas que ali estavam presentes na Chapada dos Veadeiros.

Pois para os povos indígenas, há séculos pressionados, há séculos oprimidos pelos poderes coloniais, pela expansão de uma racionalidade predatória, pelo avanço sempre violento sobre suas terras, territórios, modos de vida, as condições para a construção de uma terra pura, para a asseguração de um Bem Viver, como muitas vezes chamam, mostram-se como um desafio constante. Desafio ético, político, de direitos, mas também filosófico, ao passo que exige das forças indígenas que, a todo instante, lutem contra o avanço de uma lógica única, ocidental, que nada purifica.

Leandro Durazzo escreve em português do Brasil.

2 Mai 2023

Livro V 公冶長 – (Gongye Chang)

GONGYE CHANG

5.1. O Mestre comentou: “Gongye Chang será um bom marido. Mesmo tendo passado tempo na prisão, não foi por sua culpa.” Em seguida, o Mestre deu-lhe a sua filha em casamento.73

5.2. O Mestre comentou: “Quanto a Narong, quando a Via prevalece pelo reino, ele encontra emprego, mas quando a Via não prevalece, ele evita os castigos e a execução.” Em seguida, o Mestre deu-lhe a sua sobrinha em casamento.74

5.3. O Mestre comentou acerca de Zijian: “Trata-se verdadeiramente de uma pessoa exemplar (君子junzi). Se o reino de Lu não tinha quaisquer pessoas exemplares, onde foi ele obter o seu carácter?”75

4. Zizong perguntou: “E o que pensais de mim?” O Mestre respondeu: “Tu és um utensílio.” E Zizong perguntou: “Que espécie de utensílio?” E o Mestre respondeu: “És um utensílio hu lian (瑚璉).”76

5. Alguém afirmou: “Quanto a Yong, trata-se de uma pessoa benevolente, mas não eloquente.” O Mestre disse: “Qual é a utilidade da eloquência? Alguém que discute com argúcia ganha, frequentemente, a inimizade dos outros. Se ele é ou não uma pessoa benevolente, não o posso dizer, mas posso questionar qual a utilidade da eloquência.”

5.6. O Mestre recomendou que Qidiao Kai fosse procurar um posto. Mas ele replicou: “Não estou certo de que esteja à altura dele.” O Mestre ficou muito agradado.

5.7. O Mestre disse: “A Via não prevalece sobre a terra. Vou navegar em alto mar a bordo de uma jangada. O único a seguir-me será Zilu.” Zilu, ao escutar isto, ficou contente. O Mestre disse: “No caso de Zilu é certo que a sua coragem suplanta a minha, apesar de ele nada trazer consigo com o qual se possa construir a jangada.”77

5.8. Meng Wubo perguntou a Confúcio: “Será Zilu uma pessoa benevolente?” O Mestre respondeu: “Não estou certo de que o seja.” Wubo perguntou de novo e o Mestre respondeu: “Seria possível colocar Zilu à frente da administração dos impostos militares de um vasto reino de mil carros de combate, mas não estou certo de que seja uma pessoa benevolente.” “E quanto a Ranyou?”, perguntou Meng. O Mestre respondeu: “Seria possível colocar Ranyou à frente de uma cidade de mil famílias ou de um estado com cem carros de combate, mas não estou certo de que seja uma pessoa benevolente.” “E quanto a Zihua?”, perguntou. O Mestre respondeu:

“Usando o seu cinto de seda e tomando o seu lugar na corte, Zihua pode ser enviado a parlamentar com convidados e visitantes, mas não estou certo de que seja uma pessoa benevolente.”78

5.9. O Mestre inquiriu a Zigong: “Se te comparares com Yan Hui, quem julgas ser melhor pessoa? Este respondeu: “Como poderia atrever-me a sequer considerar tais expectativas? Yan Hui, aprendendo uma coisa conhece dez, enquanto eu, aprendendo uma coisa conheço duas.” O Mestre disse: “Não estás à sua altura, nem tu nem eu estamos à sua altura.”79

5.10. Zaiwo estava a dormir durante o dia. O Mestre disse: “Não se pode esculpir madeira podre, nem erguer uma parede de estrume. Quanto a Zaiwo, qual é o sentido de o admoestar?” E o Mestre acrescentou ainda: “Tempos houve em que ao lidar com os outros, ao ouvir o que tinham a dizer, acreditava que o honrassem. Hoje, ao lidar com os outros, ao ouvir o que têm a dizer, observo o que fazem de seguida. Foi Zaiwo quem me fez mudar de atitude.”80

5.11. O Mestre disse: “Ainda estou para conhecer uma pessoa verdadeiramente aplicada (剛 gang).” Alguém lhe perguntou: “E Shen Cheng?”, ao que o Mestre respondeu: “Shen Cheng tem demasiados desejos, como poderia ser aplicado?”81

5.12. Zizong disse: “O que não quero que os outros me façam, também não quero fazer aos outros.” O Mestre respondeu: “Ci, isso está fora do teu alcance.”82

5.13. 子貢曰:「夫子之文章,可得而聞也;夫子之言性與天道,不可得而聞也。」

5.13. Zigong disse: “Podemos aprender com o refinamento cultural do Mestre, mas não o ouvimos discursar sobre a nossa natureza moral (性 xing) e a Via do Céu (天道 tiandao).”83

5.14. Quando Zilu aprendia algo, o seu único medo era aprender mais, antes de conseguir agir de acordo com o que aprendera.84

5.15. Zizong inquiriu: “Porque foi que Kong Wenzi recebeu o título póstumo de ‘culto’ (文wen)?” O Mestre respondeu: “Era diligente e amigo de aprender e não tinha vergonha de fazer perguntas aos de condição mais baixa – por isso recebeu o cognome de ‘culto’.”85

5.16. O Mestre fez notar que Zichan era conforme à Via da pessoa exemplar em quatro aspectos: cortês quando agia, respeitador quando servia os superiores, generoso com o povo comum e recto (義 yi) quando o chefiava.86

17. O Mestre disse: “Yen Pingzhong é muito bom (善 shan) nas suas relações com os outros: mesmo aos amigos mais antigos trata com respeito.”87

18. O Mestre disse: “Zang Wenzhong, ao preparar uma divisão para guardar a sua gigantesca tartaruga cerimonial, mandou esculpir montanhas nas colunas e pintar ervas aquáticas nas traves. No que pensava?”88

5.19. Zizhang perguntou: “Nas três ocasiões em que o Ziwen foi nomeado primeiro-ministro, nenhuma felicidade lhe assomou ao rosto; das três ocasiões em que foi demitido, nenhum ressentimento se lhe revelou no rosto. Enquanto demissionário fez tudo ao seu alcance para informar o novo ministro acerca de todos os assuntos correntes do reino. Que pensais dele?” O Mestre respondeu: “Ele era leal (忠zhong)”. E Zizhang prosseguiu: “Será que foi um exemplo de benevolência?” “Não estou certo,” disse o Mestre. “Que foi que fez que possa ser visto como benevolente?” Zizhang perguntou: “Quando Cuizi matou o governante de Qi, Chen Wenzi, que tinha um feudo de dez carros de combate, deixou tudo e partiu. Chegado a outro reino, Chen Wenzi disse: ‘São todos como o nosso ministro Cuizi’ e partiu. Chegado a outro reino, de novo disse o mesmo e partiu. Que pensas dele?” O Mestre respondeu: “Era certamente incorruptível.” Zizhang insistiu: “Mas será que exemplificou benevolência?” “Não estou certo, “ disse o Mestre. “ Que fez ele que possa ser visto como benevolente?”89

5.20. Ji Wenzi agiu apenas depois de ter pensado três vezes. Ao ouvir isto, o Mestre disse: “Duas vezes é o bastante.”90

5. 21. O Mestre disse: “Quanto a Ning Wuzi, quando a Via prevalecia sobre a terra era sábio; quando a terra ficou privada da Via era estúpido. Outros haverá que possam chegar ao seu nível de sabedoria, mas nenhum que possa chegar ao seu nível de estupidez.”91

5.22. O Mestre encontrava-se no reino de Chen e disse: “Para casa! Para casa! Lá, os meus jovens amigos são agressivos e ambiciosos, mas descuidam a prática. Com a elevada elegância dos letrados demonstram a sua cultura, mas não sabem como manuseá-la e dar-lhe forma.”

5.23. O Mestre disse: “Bo Yi e Shu Qi não guardavam rancores, por isso pouco ódio despertavam.”92

5.24. O Mestre disse: “Quem disse que Weisheng Gao é verdadeiro? Quando alguém lhe esmolou vinagre, ele foi esmolá-lo a um vizinho e depois ofereceu-o à pessoa como se fosse dele.”93

5.25. O Mestre disse: “Um discurso torneado e um porte cheio de obséquio e excessiva solicitude era o tipo de conduta que Zuo Qiuming considerava vergonhosa e eu também. Procurar a amizade de alguém desejando-lhes mal era o tipo de conduta Zuo Qiuming considerava vergonhosa e eu também.”94

5.26. Yan Hui e Zilu estavam com Confúcio quando ouviram do Mestre: “Porque é que vocês não me dizem aquilo que gostariam verdadeiramente de fazer?” Zilu disse: “Gostaria de partilhar os meus cavalos e carruagens, as minhas roupas e peles, com os meus amigos e, se estes as estragarem, não lhes querer mal.” Yan Hui disse: “Eu gostaria de evitar gabar-me das minhas capacidades e não exagerar os meus feitos.” Zilu disse: “Nós gostaríamos de ouvir o que tu, Mestre, mais gostarias de fazer.” O Mestre disse: “Eu gostaria de trazer paz e satisfação aos idosos, partilhar relações de entrega e confiança com os meus amigos e amar e proteger os jovens.”95

5.27. O Mestre disse: “Desisto! Ainda estou para encontrar alguém que reconheça os seus erros e seja capaz de interiormente se emendar.”96

5.28. O Mestre disse: “Por certo existem, numa cidade de dez mil lares, pessoas tão leais (忠 zhong) e confiáveis (信 xin) como eu, mas não haverá ninguém que a mim se compare no amor do estudo (好學 haoxue).97

Notas

73. A origem e a vida de Gongye Chang permanecem envoltas em mistérios e lendas. Sima Qian refere que nasceu em Qi, mas Kong Anguo situa o seu berço em Lu e dá-o como discípulo do Mestre. A razão pela qual foi preso também não é clara. A lenda diz que Gongye sabia a linguagem dos pássaros e que terá ouvido duas aves falar sobre a localização do corpo de uma vítima de homicídio. A história acrescenta que terá sido libertado depois de mostrar as suas extraordinárias capacidades ao carcereiro. Lendas e mistérios aparte, esta passagem mostra, sobretudo, como Confúcio mantinha a sua independência em relação às convenções sociais, preterindo-as em relação à sua própria moral de pessoa exemplar. Na China da sua época, ser preso era um estigma fortíssimo, pois os prisioneiros eram, geralmente, marcados, tatuados ou mutilados. Ao dar a sua filha em casamento a um homem que saíra da prisão, o Mestre mostra a sua distância em relação aos julgamentos sociais da sua época. O estigma social ligado aos antigos criminosos no início da China era enorme e inescapável, uma vez que os criminosos eram marcados, tatuados ou fisicamente mutilados. Ao dar a sua filha em casamento a um antigo criminoso, Confúcio está a desrespeitar os costumes convencionais e a fazer uma forte declaração sobre a independência da verdadeira moralidade em relação aos julgamentos sociais convencionais. Como explica Fan Ning 范甯 (339- 401), “ao dar a sua filha em casamento a Gongye Chang, a intenção de Confúcio era deixar bem claro a forma corrupta e excessiva como as punições eram administradas na sua época decadente e prestar encorajamento futuro aos que se apegavam verdadeiramente à rectidão”. Fu Guang 輔廣, discípulo de Zhu Xi, acrescenta: “Se tenho dentro de mim a Via da inocência e, no entanto, infelizmente, impus a culpa sobre mim do exterior, de que tenho de ter vergonha? Se eu tiver dentro de mim a Via da culpa, como me posso considerar digno de honra, mesmo que, por sorte, consiga de alguma forma evitar ser castigado externamente? Portanto, quando a pessoa exemplar comete uma pequena ofensa à porta fechada, em total privacidade, no seu coração fica tão mortificado como se tivesse sido flagelado publicamente na praça do mercado. Se, por outro lado, ele tiver a infelicidade de enfrentar o desastre sem culpa sua, e de ser punido na praça do mercado ou exilado para as terras bárbaras, ele aceitará tudo sem a menor vergonha.”

74. Zhu Xi comentou sobre Nan Rong que “por ser cauteloso quando falava e quando agia, seria capaz de encontrar emprego numa corte bem ordenada e evitar o infortúnio durante uma era desordenada”. O irmão mais velho de Confúcio era aleijado, por isso recaía no Mestre o dever de encontrar um marido para a sua sobrinha.

75. Zijian 子蹇 nasceu no reino de Lu durante a era Primavera-Outono. Foi um dos discípulos proeminentes de Confúcio. Estimado pelo Mestre pela sua pureza e piedade filial, tornou-se governador de Shanfu. Esta passagem também é entendida como uma crítica ao senhor de Lu, por não aproveitar as pessoas de valor ali existentes.

76. Como já vimos em 2.12., “uma pessoa exemplar não é um utensílio”, mas muito mais do que um mero especialista. Segundo os comentadores, hu e lian eram preciosos vasos de oferta de comida em jade, os vasos rituais mais importantes dos templos das dinastias Xia e Shang, respectivamente. Os comentadores salientam que “elaboração de Confúcio é de dois gumes: reconfortante, na medida em que Zigong não é vulgar utensílio, mas talvez ainda mais crítico porque os vasos hu e lian (瑚璉) eram ambos curiosidades antigas (já não utilizadas nos ritos de Zhou) e extremamente especializados (portanto raramente usados, mesmo durante os tempos de Xia e Shang). Zigong foi um estadista de grande sucesso, orador hábil e um bom negociante, mas Confúcio parece ter sentido que lhe faltava a flexibilidade e simpatia para com os outros, característica da benevolência. Zigong parece ser o discípulo designado ao longo dos Analectos para ilustrar falta de indulgência. Aqui, a sua adesão fastidiosa aos ritos leva Confúcio a chamar-lhe “vaso de sacrifício” de capacidade limitada. Em geral, ele é criticado por Confúcio por ser demasiado rigoroso com os outros.

76. Como já vimos em 2.12., “uma pessoa exemplar não é um utensílio”, mas muito mais do que um mero especialista. Segundo os comentadores, hu e lian eram preciosos vasos de oferta de comida em jade, os vasos rituais mais importantes dos templos das dinastias Xia e Shang, respectivamente. Os comentadores salientam que “elaboração de Confúcio é de dois gumes: reconfortante, na medida em que Zigong não é vulgar utensílio, mas talvez ainda mais crítico porque os vasos hu e lian (瑚璉) eram ambos curiosidades antigas (já não utilizadas nos ritos de Zhou) e extremamente especializados (portanto raramente usados, mesmo durante os tempos de Xia e Shang). Zigong foi um estadista de grande sucesso, orador hábil e um bom negociante, mas Confúcio parece ter sentido que lhe faltava a flexibilidade e simpatia para com os outros, característica da benevolência. Zigong parece ser o discípulo designado ao longo dos Analectos para ilustrar falta de indulgência. Aqui, a sua adesão fastidiosa aos ritos leva Confúcio a chamar-lhe “vaso de sacrifício” de capacidade limitada. Em geral, ele é criticado por Confúcio por ser demasiado rigoroso com os outros.

78. Ser realmente benevolente é um fim nunca atingível, um horizonte para o qual se deve caminhar, o trabalho sempre incompleto de uma vida. Por isso, Confúcio admite que Zilou, Ranyou e Zihua tenham capacidades específicas para exercer os cargos referidos, ainda que, tal como todos, não possam ser considerados pessoas totalmente benevolentes. Cheng Yaotian 程瑤田 (1725-1814) comenta: “Benevolência é tanto a coisa mais importante do mundo como a mais difícil de alcançar. É por isso que se diz que deve ser transportada pelo próprio, que é um fardo pesado, que só depois da morte se encontrará descanso, e que a Via é longa. Se uma pessoa pensar que ele próprio já atingiu este objectivo e poderia, portanto, descansar antes de ter atingido o fim da sua vida, este é certamente um sentimento do qual o Sábio não aprovaria”.

79. Zigong reconhece o valor de Yan Hui, o discípulo favorito, e o próprio Confúcio o considera “naturalmente” benevolente e, talvez para ser indulgente para com Zigong, considera Yan Hui superior a si próprio.

80. Fala-se aqui de aprendizagem, distinguindo dois aspectos: as capacidades inatas e a capacidade retórica. Usando duas comparações, Confúcio reconhece-se impotente, enquanto professor, de ensinar quem não tem à partida uma estrutura capaz de receber os seus ensinamentos. Por outro lado, graças a Zaiwo, um homem meramente palavroso mas que na prática não seguia o que pregava (qual o nosso Frei Tomás: “Faz o que ele diz, não faças o que ele faz”), o Mestre prescreve verificar com atenção se a prática corresponde às palavras antes de acreditar na pessoa que as profere. Wang Fuzhi comenta: “Quando se trata de aprendizagem, nada é mais crucial do que o esforço real e prático. Não vale a pena prestar atenção ao que se diz. Por sua vez, para conseguir aprender através do esforço e da prática, depende apenas de se ser diligente ou de se ser preguiçoso. Uma pessoa que é capaz de falar bem e, subsequentemente, se diz ser capaz de compreender, e que depois considera já ter compreendido e, portanto, já não é diligente quando se trata de exercer e praticar – tal pessoa deverá ser profundamente desprezada pela pessoa exemplar.”

81. O problema de Shen Cheng é que deseja coisas exteriores como fama, dinheiro, sexo, etc., ao invés de se concentrar e aplicar na sua rectificação interior. Huang Kan comenta: “Uma pessoa com uma vontade de ferro não é por natureza ambiciosa, mas Shen Cheng estava, pela sua natureza, cheio de emoções e desejos. Ora quando se está cheio de emoções e desejos, és levado a exigir ou procurar coisas de outras pessoas, e quando se é levado a exigir ou a procurar coisas de outras pessoas não se pode ser aplicado.”

82. Aqui temos um dos momentos em que é expressa a Regra de Ouro pela negativa. Zhu Xi comenta: “Este é o tipo de coisa com a qual uma pessoa genuinamente benevolente se preocupa e que não tem de ser instada ou forçada a fazer. É por isso que o Mestre considera que é algo que está fora do alcance de Zigong”.

83. Zigong parece querer dizer que Confúcio não se preocupa com questões demasiado abstractas, como a natureza moral (xing) que, segundo os neo-confucionistas nos é dada pelo Céu, ou por temas que não são deste mundo e sobre os quais não é possível realmente conhecer, como a Via do Céu, expressão por vezes tomada como “destino” ou “fado”. Para o Mestre, o fundamental é a rectificação moral e a aquisição de refinamento cultural, que nos permite sermos pessoas exemplares e não o que afasta o pensamento desse caminho e, simplesmente, não leva a lado nenhum senão a discussões vazias e sem alcance prático.

84. Quando aprende algo, Zilu não passa a uma nova lição até que tenha posto em prática com sucesso o que tinha aprendido. O foco é colocado na prática real, por oposição ao mero conhecimento teórico. Wang Yangming aproveita esta passagem para criticar a sua época: “Os nossos contemporâneos nunca estão sem conhecimento. Eles andam por todo o lado, acumulando conhecimentos inúteis sem nunca os manifestar em acção. Mesmo quando conseguem pôr algo em prática, não demostram nenhuma urgência, como a de Zilu. Matam o seu tempo e cumprem os seus deveres de forma superficial; (…) e, mesmo quando se deparam com esta passagem na sua leitura, continuam inconscientes da sua vergonha.”

85. Kong Wenzi 孔文子 (Mestre Kong, o Culto) é o título póstumo de Kong Yu, ministro do reino de Wei (falecido em 480 a.E.C.). Zigong está intrigado com o título póstumo de Kong Yu porque Kong era uma pessoa pouco virtuosa, conhecida pela deslealdade e luxúria. A resposta de Confúcio serve um duplo propósito. Por um lado, como uma declaração sobre o que constitui a virtude de ser culto — diligente, amigo de aprender e capaz de o fazer sem se importar de questionar os que lhe eram socialmente inferiores (diz-se que terá dirigido algumas perguntas a Confúcio) — e , por outro, diz-nos que o sábio se concentra nas qualidades positivas e não negativas das pessoas. Xue Xuan 薛瑄 (1389-1464) comenta: “O facto de o Mestre sublinhar a sua benevolência, em vez da sua óbvia maldade, ilustra a grandeza da Via do sábio e a majestade da Virtude do sábio. Confiando apenas nos relatos de pessoas posteriores, seria levado a pensar que Kong Yu era um homem indigno de ser discutido, e assim perderia esta oportunidade de aprender sobre a sua benevolência.”

86. Zichan 子產 é o nome de cortesia de Gongsun Qiao († 521 a.E.C.), um ministro no reino de Zheng. Com ele, podemos aprender algumas das características de uma verdadeira pessoa exemplar. Ainda jovem, destacou-se pela sua virtude, apesar de ir contra a opinião do seu pai. Assim reza no Comentário de Zuo: “Zichan disse: ‘Não há maior calamidade que um pequeno reino ter falta de virtudes cultas (wende), mas ter poderio militar [na sequência de um vitória de Zheng sobre Cai]. Se Chu nos invadir, seremos capazes de resistir? E se nos submetermos por certo o exército de Jin também virá. Se Jin e Chu invadirem Zheng, a partir daí não haverá paz por quatro ou cinco anos.’ Zi Guo, seu pai, zangou-se com ele e disse: ‘O nosso reino está em guerra e tem excelentes oficiais. Por essas palavras infantis, merecias que te cortassem a cabeça.’” (Duque Xiang, 8ºano). A história daria razão a Zichan. Mais tarde, no leito de morte, aconselhou o seu filho e sucessor a manter o equilíbrio entre clemência e severidade do seguinte modo: “Quando eu morrer, com certeza serás o meu sucessor. Só um homem de virtude pode levar o povo comum a submeter-se através da clemência. Depois, o melhor é a severidade. Quando um incêndio livremente se espalha, o povo contempla-o com medo. Logo, poucos morrerão nele. A água parece fraca e então o povo encara-a com ligeireza e muitos nela perecem. Por isso, um governo mole não se mantém’. (…) Sabendo que Zichan morrera, com lágrimas nos olhos, Confúcio disse: ‘Ele era um homem bom e gentil — um sucessor do estilo tradicional dos reis sábios de outrora!’.” (Comentário de Zuo,Duque Zhao, 20º ano)

87. No fundo, trata-se aqui de um aviso: quando as relações de amizade perduram por muito tempo, por vezes, perde-se o respeito devido aos amigos, por com eles se criar demasiada intimidade. Confúcio aconselha, portanto, a que se mantenha alguma distância e sobriedade nas relações de amizade.

88. Zang Wenzhong é o título póstumo do ministro de Lu Zang Sunchen († séc. VII a.E.C.). Os comentadores da dinastia Han afirmam que a posse das tartarugas sagradas por Zang era uma usurpação das prerrogativas de um lorde feudal. No entanto, Zhu Xi e outros argumentam que a posse das tartarugas sagradas fazia parte dos deveres ministeriais de Zang, e que o seu único erro foi decorar a sala com motivos que eram prerrogativa ritual do Filho do Céu. As críticas de Confúcio parecem ter menos a ver com as violações rituais de Zang do que com a sua falta de senso. As tartarugas gigantes eram usadas na adivinhação: a tartaruga era sacr ificada, perguntas aos espíritos eram gravadas na carapaça, onde depois se aplicava um ferro quente. O resultante padrão de fendas revelava as respostas dos espíritos. Zang aparentemente sentiu que decorações luxuosas no salão de adivinhação impressionariam os espíritos – uma tentativa de bajulação que Confúcio rejeita como sendo simultaneamente tola e inapropriada.

89. Determinados comportamentos, por mais virtuosos que sejam, não querem dizer que essa pessoa seja realmente benevolente. Nesta passagem descrevem-se duas virtudes importantes, mas a resposta do Mestre só indica quão difícil é atingir uma verdadeira perfeição moral. Zhu Xi comenta: Hoje em dia, as pessoas ficam logo de cabeça quente e vermelhas no rosto com a menor perda ou ganho. Ziwen recebeu a posição oficial, foi-lhe retirada três vezes e, ainda assim, não mostrou o menor sinal de prazer ou de ressentimento. Hoje em dia, as pessoas, mesmo que ocupem cargos menores, não estão dispostas perder tempo com resumos rápidos as suas acções oficiais aos seus sucessores, enquanto que Ziwen, não obstante ocupar uma posição tão destacada, dava um relato exaustivo e detalhado do estado das coisas oficiais ao novo primeiro-ministro. Hoje em dia, ainda que as pessoas tenham o mínimo de ligações a coisas materiais, não conseguem libertar-se delas. Wenzi, por seu lado, possuía um imenso domínio de dez juntas de cavalos e mesmo assim abandonou-o sem pensar duas vezes, como se fosse um velho par de sapatos… Temos de pensar na razão pela qual o sábio não endossou como benevolente o comportamento destes dois Mestres – tão elevado e excepcional como era – e a razão pela qual o seu comportamento não foi visto como esgotando completamente a virtude da benevolência. Se considerarmos isto cuidadosamente, e pensarmos também em como raramente se encontram os iguais a estes dois Mestres, impressionar-nos-á quão raro é ver o princípio da benevolência realmente realizado.

90. Nada deve ser excessivo, nem sequer a necessária prudência na condução da coisa pública, sob pena de não se conseguir agir quando tal é necessário ou só se agir quando é tarde demais.

91. A “estupidez” de Ning Wuzi é, obviamente, fingida. Ning Wuzi era um ministro no reino de Wei, que serviu durante os reinados dos duques Wen e Cheng. Sob as ordens do primeiro, o país era bem governado e gozou de um período de paz, no qual Ning se comnportava como um funcionário normal, mas com Cheng tudo se alterou. Então, Ning fingia não perceber as coisas e até uma certa dose de loucura para escapar às suas obrigações políticas como apoiar esta ou aquela facção. Isto é algo de relativamente comum ao longo da história da China e o Mestre elogia a sagacidade de Ning Wuzi. Sun Chuo comenta: “Apenas um estudioso profundamente realizado é capaz de esconder a sua sabedoria e esconder a sua reputação para se manter inteiro e para evitar danos. É fácil realçar a sua própria sabedoria para ganhar reputação, mas é difícil dispensá-la a fim de se proteger.”

92. Bo Yi e Shu Qi são personagens semi-lendários que se diz terem vivido no final da dinastia Shang. Ambos eram príncipes no reino Shang de Guzhu, filhos do governante Mo Yi. Quando o seu pai morreu, porque nem um nem outro desejava tirar o trono ao irmão, o lugar permaneceu vago. Quando a dinastia Shang caiu e veio a dinastia Zhou, foram para um exílio voluntário e alegadamente mataram-se à fome, recusando-se, por lealdade ao seu antigo rei, a comer o grão de Zhou. Os seus nomes são assim símbolos de rectidão, dever e, especialmente, de pureza. Mestre Cheng comenta: “Não guardar ressentimentos é a verdadeira medida da pureza”.

93. É nos pequenos actos do quotidiano que a virtude se revela. Para fazer um obséquio e ganhar fama, Weishang Gao mostra-se simpático mas comete uma mentira. Fan Ziyu comenta: “Dizer que algo está certo se estiver certo; dizer que algo está errado se estiver errado, dizer que se tem algo se o tem e dizer que não o tem se não o tem – isto é rectidão. Quando o sábio observa uma pessoa, concentra-se em como se comporta quando se trata de uma ninharia, a fim de prever como irá lidar com milhares de juntas de cavalos.”

94. Zuo Quiming 左丘明 (502-422 a.E.C.) é, geralmente, identificado como o autor do Zuo Chuan (Comentário de Zuo), uma obra que narra acontecimentos históricos e morais da era Primavera-Outono, sendo um dos clássicos confucianos, riquíssimo em adágios e situações que inspiram a mais alta moral. Esta passagem insurge-se contra a falsidade entre as pessoas e o fingimento que exclui a autenticidade (cheng) e, certamente, impede a benevolência, na medida em que é usado para proveito próprio. O fingimento e a falsidade são motivados pelos desejos egoístas que impedem a recuperação da natureza moral (xing) original com que o Céu a todos dota.

95. Zilu fala em se desfazer dos seus bens pessoais e Yan Hui em evitar a vaidade, ou seja, pensamentos virtuosos porque se trata em ambos os casos de dominar ou mesmo expurgar os desejos egoístas. Já a resposta de Confúcio é considerada, por alguns comentadores, como o zênite da mais alta virtude. Huang Kan comenta, através de um ditado: “Se confortas os idosos é porque certamente és filial e respeitoso. Se tens a confiança dos amigos é porque certamente não os enganas. Se os jovens te estimam, é porque certamente és compassivo e benevolente”.

96. A capacidade de reconhecer os seus erros e, além disso, empreender uma introspecção suficientemente íntegra que os altere parece ser, na opinião de Confúcio, muito difícil de encontrar nas pessoas. Zhu Xi comenta: “Raros são aqueles que, quando cometem um erro, são capazes de o perceber. Mais raros ainda são aqueles que, conscientes de que cometeram um erro, são capazes de os corrigir interiormente. Se alguém for capaz de se corrigir interiormente, então o seu sentido de arrependimento será profundo e urgente – uma necessidade para quem se quer mudar a si próprio. O Mestre lamenta porque receia nunca vir a conhecer tal pessoa, e isto deve ser visto como um aviso sério aos seus alunos”.

97. Lida de forma literal, esta passagem reafirma a necessidade de um contínuo estudo, eventualmente livresco. Assim a lê Zhu Xi, que comenta: “Apesar do Mestre ter nascido sábio [sheng zhi], permaneceu para sempre afeiçoado ao estudo. Ele diz isto, portanto, para motivar os outros. A passagem diz que uma constituição excelente é fácil de adquirir, mas a Via na sua perfeição é difícil de ouvir. Através da sua aprendizagem perfeita, pode-se tornar um sábio. Se não se empenhar na aprendizagem, não se pode evitar tornar-se nada mais do que um homem comum. Como não estar ser motivado?” No entanto, outros comentadores entendem que o amor ao estudo referido por Confúcio, na medida em que será superior às outras duas virtudes descritas como de algum modo fáceis de alcançar, se trata de um constante aperfeiçoamento moral no sentido de apurar interiormente a benevolência, uma constante correcção interna do seu próprio coração, obtida através do cultivo de si, algo que os livros por si só não proporcionam.

Tradução – Rui Cascais

Revisão e Notas – Carlos Morais José

2 Mai 2023

A Bússola Marítima (XIII)

Criada a partir da bússola magnética, originária do século IV a.n.E., também a bússola marítima foi, na dinastia Song, uma invenção chinesa do século XI. Era uma bússola feita num vaso de madeira com água onde se encontrava a boiar um caniço atravessado por uma agulha magnética a apontar sempre a direcção Sul.

Gravados no bordo superior do vaso encontravam-se num círculo as 24 direcções, determinadas segundo a ordem de Tian Gan (天干) (10 Caules Celestes), Di Zhi (地支) (12 Ramos (12 Ramos Terrestres), Ba Gua (八卦) (8 Trigramas), Wu Xing (五行) (5 Elementos) e entre os 12 Zhi (Ramos Terrestres) intercalam-se 8 Gan e 4 Gua. Assim se determinavam as posições das 24 direcções, cada uma separada por 15°. Explicação de Zheng Yi Jun dada n’ “As técnicas de navegação nas armadas de Zheng He e a sua contribuição para a ciência náutica”, de onde nos socorremos para este artigo.

A teoria dos Cinco Elementos ((Wu Xing, 五行): Madeira (木, Mu), Fogo (火, Huo), Terra (土, Tu), Metal (金, Jin) e Água (水, Shui)) partiu da ideia das cinco direcções (Leste (东, Dong); Sul (南, Nan); Centro/Meio (中, Zhong); Oeste (西, Xi); e Norte (北, Bei)), que conjugados são a base da composição de todas as coisas.

Os dez Caules Celestes (Tian Gan, 天干), combinação do yin e yang nos Cinco Elementos, dão: Jia (甲) Madeira, Leste – yang; Yi (乙), Madeira, Leste – yin; Bing (丙) Fogo, Sul – yang; Ding (丁) Fogo, Sul – yin; Wu (戊), Terra, Centro – yang; Ji (己) Terra, Centro – yin; Geng (庚) Metal, Oeste – yang; Xin (辛), Metal, Oeste – yin; Ren (壬), Água, Norte – yang; Gui (癸), Água, Norte – yin. Zheng Yi Jun refere, “Como Wu e Ji pertencem ao elemento Terra e a sua situação é, portanto, no centro, não indicando qualquer posição de direcção, desprezam-se, e daí serem utilizados apenas oito Gan (干) em vez dos dez.”

Os doze Ramos Terrestres (Di Zhi, 地支): o rato Zi (子), Água, Norte, yang; o boi Chou (丑), Terra, Centro/NorteNordeste, yin; o tigre Yin (寅), Madeira, Leste/LesteNordeste, yang; o coelho Mao (卯), Madeira, Leste, yin; o dragão Chen (辰), Terra, Leste/LesteSudeste, yang; a serpente Si (巳), Fogo, Sul/SulSudeste, yin; o cavalo Wu (午), Fogo, Sul, yang; o carneiro Wei (未), Terra, Centro/SulSudoeste, yin; o macaco Shen (申), Metal, Centro/OesteSudoeste, yang; o galo You (酉), Metal, Oeste, yin; o cão Xu (戌), Terra, Centro/OesteNoroeste, yang; e o porco Hai (亥), Água, Norte/Nortenoroeste, yin; correspondem a 12 posições de direcção do círculo no Feng Shui, usando-se aqui o nome dos animais apenas a sintonizar o leitor ao reconhecê-los nos anos do calendário chinês.

Serviam estes caracteres também para a marcação da duração do tempo que o Sol levava para dar uma volta à Terra. Quando o Sol se encontrava a Sul (180°) era a posição Wu, pelo contrário, quando se encontrava na posição 0/360°, era a posição Zi. Os caracteres ordenavam-se a partir de Zi, segundo o movimento dos ponteiros do relógio.

Entre os 12 Zhi intercalavam-se 8 Gan (干) e 4 Gua (卦). “Para completar as 24 direcções, faltam as correspondentes aos quatro pontos colaterais (Noroeste, Nordeste, Sudeste e Sudoeste) designados com quatro posições de direcção de entre os 8 Gua (八卦): Qian (乾, simboliza o Céu), Gen (艮, montanha), Xun (巽, vento) e Kun (坤, Terra). As outras posições de direcção dos restantes 8 Gua são, Kan (坎, água), Li (离, o fogo), Zhen (震, o trovão) e Dui (兑, lago), a corresponder às posições de direcção Zi (Norte), Wu (Sul), Mao (Leste) e You (Oeste). Esta combinação deu as 24 direcções.

AS 24 DIRECÇÕES

Quando o Sol se encontrava na direcção Norte (0/360°) é a posição Zi (子, Água, Norte, yang), correspondendo também ao gua Kan (坎, água). Já na direcção Leste (90°) está Mao (卯, Madeira, Leste, yin), onde ainda se posiciona o gua Zhen (震, trovão). Com o Sol a Sul (180°) está a posição Wu (午, Fogo, Sul, yang) ocupada também por o gua Li (离, fogo). Na direcção Oeste (270°) está You (酉, Metal, Oeste, yin), posição de Dui (兑, lago) do baguá.

Entre cada uma das quatro direcções cardinais estão registadas posições separadas por 15° e assim, após a direcção Norte nos 0° marcada por Zi (子), (Água, Norte, yang), aparecia nos 15° a posição de Gui (癸), (Água, Norte – yin), seguindo na posição 30° Chou (丑), (Terra, Centro NorteNordeste, yin). Vem depois a direcção do Nordeste, a 45° marcada por o gua Gen (艮, montanha). Aos 60° encontra-se Yin (寅), (Madeira, Leste/LesteNordeste, yang); aos 75° Jia (甲), (Madeira, Leste – yang); aos 90° na posição Leste, Mao (卯), (Madeira, Leste, yin), com o gua Zhen (震, trovão).

A marcar os 105° aparece Yi (乙) (Madeira, Leste – yin) e aos 120° Chen (辰), (Terra, Leste/LesteSudeste, yang). Estando Jia entre Mao e Yin; Yi entre Mao e Chen; Jia e Yi, assim colocados, significam Madeira do Leste.

A direcção Sudeste em 135° com o gua Qian (乾, Céu); na marca de 150° está Si (巳), (Fogo, Sul/SulSudeste, yin) e a 165°, Bing (丙), (Fogo, Sul – yang). A 180° Wu (午) (Fogo, Sul, yang) marca a direcção Sul, tal como o gua Li (离, fogo). Já Ding (丁), (Fogo, Sul – yin) está nos 195° e Wei (未), (Terra, Centro/SulSudoeste, yin) nos 210°. Bing situa-se entre Wu e Si; Ding encontra-se entre Wu e Wei. Bing e Ding, assim colocados, significam o Fogo do Sul.

A 225°, direcção Sudoeste o gua Kun (坤, Terra); a 240° está Shen (申), (Metal, Centro/OesteSudoeste, yang); a 255° Geng (庚), (Metal, Oeste – yang); na direcção Oeste a 270° está You (酉), (Metal, Oeste, yin) e ocupando a mesma posição Dui (兑, lago) do bagua; a 285° encontra-se Xin (辛), (Metal, Oeste – yin); e a 300° Xu (戌), (Terra, Centro/OesteNoroeste, yang). Estando Geng colocado entre You e Shen e Xin entre You e Xu indicam o Metal do Oeste.

A direcção Noroeste marcada nos 315° é conhecida por o gua Xun (巽, vento). Na seguinte posição, a 330° aparece Hai (亥), (Água, Norte/Nortenoroeste, yin); a 345° Ren (壬), (Água, Norte – yang); a 360° Zi (子) (Água, Norte, yang), que marca a posição Norte (0/360°); segue a 15° Gui (癸), (Água, Norte – yin) e a 30° Chou (丑), (Terra, Centro/NorteNordeste, yin). Ren colocado entre Zi e Hai, Gui, entre Zi e Chou, indicam a Água do Norte.

Este tipo de bússola, embora denominada de 24 direcções, na prática tinha 48 direcções, pois divididos a meio os 15° tinha-se as direcções nos 7,5°. Utilizada para estabelecer “os rumos, se estes coincidissem com uma das 24 direcções da bússola, dava-se-lhes o nome de ‘rumo exacto’ ou ‘directo’. Se o rumo fosse definido numa posição não coincidente com uma das 24 direcções dava-se o nome de ‘rumos remendados’, significando uma direcção entre duas das 24.”

A importância da bússola marítima ser lida com precisão e correctamente para manter inalterada a rota definida, exigia para as bússolas um quarto especial, denominado Zhen Fang, e um experiente marinheiro, o Huo Zhang, com a específica função de as observar e ver o rumo a seguir.

Na dinastia Song, segundo Yan Dunjie, já as cartas de navegação indicavam as direcções da bússola marítima para levar a vários lugares, e daí chamadas Guias de Agulha, a significar ser um guia de navegação feito a partir da agulha magnética da bússola. Tinham registadas as direcções a tomar desde a saída do porto chinês até ao destino final e seu retorno, os tempos de navegação em cada direcção e quando na rota mudar de direcção.

Assim, com céu limpo ou nevoeiro se conseguia ter sempre o posicionamento dos barcos através das cartas náuticas e a ajuda da bússola marítima ligada a um relógio de água.

28 Abr 2023

Eurásia, o universo do Pacífico e os anglófonos: do passado ao presente

(continuação)

IV. China, Eurásia e a geo-política americana

A China, é claro, não gosta dos recentes desenvolvimentos. Antigamente, o Governo de Pequim estabelecia as suas metas em termos de política externa com base no princípio de uma só China. Naturalmente, este propósito incluía o desejo de reintegrar Taiwan. Originalmente, os governantes do Kuomintang em Taipé tinham expressado ideias semelhantes. Sonhavam conquistar o continente, e também usavam como arma de propaganda o princípio “uma só China”, mas, claro, de uma perspectiva diferente. Hoje em dia, quase todos os dirigentes a nível mundial reconhecem Pequim como o único legítimo governante da China.

Além disso, Pequim declarou repetidas vezes, desde o início, que as ilhas no Mar da China Meridional são parte da China. Inúmeros estudos confirmam que os pescadores e marinheiros chineses iam para lá desde tempos imemoriais. Os registos pré-coloniais que mencionam estas regiões são todos chineses.

Não existem fontes escritas em malaio, tailandês ou noutras línguas, o que pode apontar para uma presença contínua de habitantes do Sudeste Asiático nestes arquipélagos. Igualmente digno de nota, é o facto de as obras publicadas durante o Governo do Kuomintang afirmarem que as ilhas de Nanhai 南海 devem pertencer à China. Não só isso: mapas do período republicano mostram que nessa altura a China também reclamava muitas zonas que ficavam muito para lá das suas fronteiras, especialmente a Norte.

O Governo de Pequim, podemos acrescentar, é modesto; já não faz exigências tão excessivas. Os académicos do universo anglófono raramente mencionam isto. Nem “culpam” Taiwan por controlar as Ilhas Dongsha 東沙群島, que constituem um dos arquipélagos do Mar da China Meridional. No entanto, criticam severamente as actividades de Pequim no Mar da China Meridional sempre que acham que isso faz sentido. Esta unilateralidade expõe claramente as atitudes imperialistas americanas e a duplicidade de critérios.

O chamado “Ocidente” também criticou as acções da China em Hong Kong, no Estreito de Taiwan e noutras partes da Ásia. A matriz destes comentários críticos é feita na América do Norte e os aliados de Washington seguem o protótipo. Quando Pequim iniciou o programa “Uma Faixa, Uma Rota” (Nova Rota da Seda)一帶一路, os investidores e os homens de negócio de muitos países, incluindo alguns Estados europeus, ficaram bastante satisfeitos. Contudo, com o passar do tempo, as impressões positivas desapareceram. Opiniões extremamente negativas começaram a substituir o entusiasmo inicial. Poucos destes críticos entenderam que Pequim, ao iniciar o programa, teve uma visão a longo prazo: a ideia não era apenas trazer riqueza para outros países, mas também ajudar a estabilizar o ambiente político em grande parte da Ásia Central e Ocidental.

Certamente, a estabilização dessas macro-regiões não era necessariamente do interesse Washington a longo prazo. Um sistema eurasiático forte e pacífico era incompatível com a ideia de supremacia anglófona. Os laços económicos que cresciam gradualmente entre certas partes da UE (especialmente a Alemanha) por um lado, e a Rússia, por outro, bem como entre a Europa e a China e a China e a Rússia causaram muita preocupação em Washington. Este pressuposto permite-nos chegar a uma conclusão muito desagradável.

A guerra na Ucrânia é um acontecimento trágico que nunca deveria ter sido iniciado mas, paradoxalmente, Washington parece lucrar com as perdas de vidas e com a destruição diária. As razões são óbvias: em termos territoriais, a iniciativa chinesa “Uma Faixa, uma Rota” está agora um pouco limitada. Partes das ligações continentais estão interrompidas.

A Europa ficou mais próxima da órbita de Washington. Parece provável que Washington ganhe dinheiro com a venda de armas e de matérias-primas à UE. A União Europeia tem de receber refugiados ucranianos. Além disso, do ponto de vista político, Washington poderá reforçar a sua posição na Polónia e na fronteira oriental da NATO. Deste modo, pode desvalorizar o papel da Europa Central e da França e pode encorajar Varsóvia a tornar-se um protagonista na política regional contra/com a Bielorrússia e a Ucrânia.

Além disso, Washington não precisa de intervir directamente na guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Envia armas, dinheiro, e isso faz com que Kiev fique dependente da “benevolência” americana durante as próximas décadas. Finalmente, fica à vontade para iniciar “exercícios militares” noutras regiões, especialmente no Extremo Oriente. Provocações contínuas e uma retórica agreste promovem a tensão no Estreito de Taiwan e no Mar da China Meridional, como podemos ler diariamente. Mas não só: as declarações oficiais de Washington dão a entender que os Estados Unidos podem ir para lá das acusações verbais e das sanções económicas.

Como foi mencionado, a guerra na Ucrânia parece ser um elemento importante na constelação actual. O raciocínio implícito é simples: Algumas pessoas consideram Zelensky uma marioneta da Casa Branca. A Rússia precisará de mobilizar mais homens e mais armas contra as suas tropas. Uma longa duração do conflito pode enfraquecer gravemente o Kremlin e é isso que Washington espera. No entanto, recentemente vários políticos do “Ocidente” argumentaram que é improvável que a Ucrânia vença a guerra, mesmo com o apoio continuado dos Estados Unidos e dos seus aliados. Afinal, a Rússia tem amigos e enormes recursos, e também tem armas nucleares.

Embora isto seja um facto indiscutível, alguns políticos “ocidentais”, entre eles, vários do leste europeu e muitos líderes ucranianos defendem que se deve continuar a guerra a qualquer preço para manter a Rússia “ocupada” e para impedir a sua recuperação. Temem que, a longo prazo, a Rússia possa vir a ameaçar os Estados Bálticos e outras regiões da Europa de Leste. Por isso, várias pessoas desejam que a Rússia se desmorone. Propõem aumentar a pressão económica, acreditando que isso provocará um esgotamento gradual dos recursos militares russos. Em termos mais simples, estes políticos pensam que uma “revolução” interna em Moscovo poderá pôr fim ao Governo de Putin.

Algumas pessoas até sonham com uma desintegração abrupta, esperando que líderes militares influentes e/ou grupos locais possam voltar s costas a Moscovo. No entanto, se uma situação tão extrema realmente ocorresse, novas questões se levantariam: Quem iria controlar o arsenal nuclear do Kremlin? Quem iria comandar os submarinos russos e outros navios que transportam ogivas nucleares?

Agora regressamos ao reino do “e se”. No caso de se estabelecer o caos em Moscovo, alguns dos estados da Ásia Central poderiam deixar de aceitar a autoridade da Rússia como uma espécie de garante de segurança. Isto poderia encorajar alguns líderes do antigo Xiyu a desencadear rebeliões e guerras regionais, o que se tornaria uma situação desconfortável para a China.

A China quer manter a paz, como ficou recentemente demonstrado pelo seu recente papel no processo diplomático entre o Irão e a Arábia Saudita. Existem muitos instrumentos institucionais que também servem para manter o equilíbrio regional na Ásia Central e nas áreas adjacentes, e um desses instrumentos é o grupo de Xangai.

Mas nada disto é do interesse de Washington. Em contrapartida, o caos na Rússia e o caos na Ásia Central seriam bons para Washington. Os refugiados deslocavam-se para o Irão, para a Turquia, para a UE e talvez para o Extremo Oriente; os países que os recebessem iam precisaram de despender mais verbas e de construir mais infra-estruturas para todos estes migrantes. Washington fica muito longe; em termos de discurso, iria continuar a insistir na defesa dos direitos humanos e a “aconselhar” todos a implementarem estruturas democráticas, mas manteria as suas portas fechadas (as políticas WASP* em relação ao universo latino-americano mostram-nos bem como é que isto funciona). Basicamente, acolheria apenas indivíduos ricos, qualificados e instruídos. E secretamente alegrava-se, ao ver os outros em apuros.

V. De volta à fronteira americana do Pacífico

Uma desintegração da Rússia ou uma perda da autoridade de Moscovo sobre algumas das suas regiões asiáticas poderiam provocar muitas mais mudanças: o Japão poderia sentir-se tentado a ocupar as Ilhas Curilas e talvez alguns americanos propusessem a ocupação da Península de Kamchatka e dos postos avançados da Rússia perto do estreito de Bering.

Além disso, há muita concorrência na região do Ártico. Poucas pessoas falam sobre isso, mas sabemos que a Rússia é um actor importante no gélido Norte. Se a Rússia deixar de poder desempenhar esse papel, Washington será o grande vencedor na região do Ártico. O Canadá, a Noruega e outros países poderiam ficar descontentes com a situação, mas não teriam forma de travar o processo. Aqui podemos recordar a proposta ridícula do antigo Governo dos EUA para comprar a Gronelândia. Revela a atitude arrogante de alguns líderes políticos em Washington.

Sem dúvida que uma situação caótica ou imprevisível dentro da Rússia levaria a China a aumentar os seus esforços diplomáticos em certas partes da Ásia Central, com ou sem a ajuda do Irão e/ou da Turquia. No entanto, num cenário confuso, podemos ter a certeza de que estes últimos iriam dar as mãos? O panorama da Ásia Central poderia tornar-se extremamente complicado. Como foi dito, a História tende a repetir-se. Pior ainda, se a atenção de Pequim fosse absorvida pelos acontecimentos na Ásia Central, então Washington poderia sentir-se à vontade para desafiar as posições marítimas da China. Actualmente, Washington tenta regressar às Filipinas. Uma das suas ideias neste sentido é trazer mais equipamento militar para este arquipélago. Também pode deslocar mais militares para as Ilhas Ryukyu e para a Coreia do Sul. É claro que não existe uma base legal para o envio de tropas para Taiwan, mas poderemos ter a certeza de que Washington vai respeitar essa regra?

Um confronto militar no Estreito de Taiwan, intencional ou involuntário, provocado pelas acções de Washington, poderia levar a uma forte reacção chinesa. Isto, por sua vez, poderia levar os Estados Unidos a atrair os seus principais aliados locais, nomeadamente o Japão e a Coreia do Sul, para o conflito. Instalações navais e outras em Okinawa e noutras zonas tornar-se-iam áreas-chave. É claro que não sabemos como é que Tóquio e Seul iriam responder, mas se seguissem as directrizes de Washington, poderia criar-se um estranho cenário.

A questão que se coloca é: Isto pode ser evitado? Será que os grupos dentro da Coreia do Sul e do Japão, que desejam manter a paz, teriam influência suficiente para impedir que seus Governos se subordinassem ao sabre agitador dos Estados Unidos? Actualmente, ainda há espaço para manobras diplomáticas e económicas, mas é claro que não se pode aumentar e acelerar a tensão ad infinitum. Então, até que ponto é que Washington pode ir?

No contexto da guerra na Ucrânia, os americanos retratam a Rússia como uma entidade maligna que poderia levar o mundo a uma “batalha final”. (Armagedão). Certamente, não podemos excluir totalmente um cenário nuclear, o uso de ogivas tácticas com componentes nucleares ou “simplesmente” o uso de munições com urânio empobrecido. No entanto, quando pensamos no Extremo Oriente, o mesmo não se aplica aos Estados Unidos? Não nos devemos esquecer, que os “anjos inocentes” da Califórnia usaram bastantes armas terríveis em várias guerras.

Infelizmente, as superpotências seguem as suas próprias regras. Procuram maximizar os ganhos e querem controlar tudo. Quando guiados por algum tipo de ideologia estranha, como o “destino manifesto” (e seus derivados), os altos dirigentes facilmente ficam cegos e prontos a correr grandes riscos. A política divide et impera é um fenómeno de longue durée nos Negócios Estrangeiros americanos. Muita dessa estratégica é puramente calculista. A ideologia “América em primeiro lugar” ajuda-nos a explicar dezenas de intervenções militares americanas do passado, e a retórica que acompanhava essas intervenções. No entanto, ao mesmo tempo, a percepção de Washington sobre o mundo não americano é limitada. Existem obstáculos mentais. Estas deficiências têm algo a ver com a “filosofia” subjacente ao sistema. a estrutura da liderança dos EUA, e a incapacidade de aceitar diferentes pontos de vista e tradições. Isto levou e erros de cálculo e a más decisões. A intervenção de Washington no Vietname foi um fracasso.

A segunda guerra do Iraque não conduziu a uma democracia florescente em Bagdade, mas sim ao caos. O Afeganistão foi o mais recente desastre dos Estados Unidos. Então, qual seria o resultado de um confronto no Estreito de Taiwan? Claro que ninguém consegue prever. Tudo o que podemos dizer neste momento é que Washington age como um adolescente teimoso. Ofuscado pelos seus próprios “valores”, não aprendeu a procurar soluções razoáveis. Isso deixa em muitos de nós uma sensação extremamente desconfortável.

VI. Observação final: a Europa e a China

O mundo atingiu uma fase de maturidade que proporciona uma grande mudança. Porque é que o orgulho nacionalista e a ganância devem continuar a ser as forças dominantes? Será que estamos mesmo a observar a competição entre sistemas? Até que ponto esta “teoria” é verdadeira? Não existem muitas notícias falsas dentro desta retórica? As pessoas em todo o mundo têm muito em comum. Podemos afirmar, que partilham “valores” essenciais.

Mas, em contrapartida, provavelmente existem poucas características (se é que existe alguma) que realmente justifiquem uma competição aguerrida ou debates acalorados entre “identidades” diferentes. Já em tempos remotos, encontrávamos frequentemente homens e mulheres inteligentes que encaravam o mundo de uma forma descontraída e que se manifestavam a favor da manutenção da paz. A ideia de adaptação promovida pelos Jesuítas na Índia e na China é um exemplo que se aproxima do “modelo” de tolerância. Houve um tempo em que filósofos europeus expressaram opiniões muito positivas sobre a cultura e a governação chinesa e sobre a ética confucionista.

Vários textos europeus do final do séc. XVI chegavam a sugerir que os monarcas europeus deveriam seguir o exemplo da China. A América do Norte, governada pelos descendentes dos beligerantes Vikings, não experienciou um nível comparável de consciencialização. Será que isso tem importância? Pode ajudar a explicar, pelo menos em parte, a imagem do “adolescente imaturo” que anteriormente citámos?

Quando o expansionismo americano começou no séc. XIX, a economia e a estrutura política chinesa eram frágeis. Sem dúvida, este facto desencadeou sentimentos de superioridade entre as elites comerciais dos Estados Unidos. A arrogância desse “sistema” sobreviveu e encontra-se muito vivida nos nossos dias. No entanto, muitas pessoas e muitos estados alimentam os seus comportamentos contraditórios desse sentimento, com um enorme aparato de mentiras e de avaliações unilaterais. Daí, num parágrafo anterior, ter defendido que podemos ver o sistema como a causa de muitos problemas globais.

Infelizmente, durante os últimos anos, alguns dirigentes da UE convenceram-se que deveriam aceitar a retórica missionária difundida pelos anglófonos. Mas, no mundo existem pessoas mais prudentes; sugerem que se deve procurar caminhos alternativos e adoptar visões mais equilibradas. Não gostam de ameaças e insistem numa diplomacia da paz. O Governo de Pequim está a par do problema e é muito paciente. Respeita a iniciativa da UE para ultrapassar os egoísmos nacionalistas dentro da Europa e deseja sinceramente que esse processo continue.

Os esforços americanos para enfraquecer o velho continente não são do interesse da China. Como foi afirmado, os livros de História estão cheios de exemplos de métodos divide et impera. A cooperação no mundo lusófono e entre alguns países de língua espanhola, tal como a cooperação dentro da UE, têm dado exemplos de como, pelo menos em teoria, podemos ultrapassar dificuldades. São as acções de protagonistas com maturidade e tolerância que Pequim respeita; não importante que venham da Europa, do Médio Oriente, ou de outro lado qualquer. As trocas comerciais ao longo do eixo da Nova Rota da Seda são dificultadas pelos desenvolvimentos actuais, mas a troca de ideias de quem sonha com a paz está a aumentar. A China, esperamos, há-de encontrar forma de serenar as mentes em ebulição dos líderes radicais. Claro que, os propagandistas da “América em primeiro lugar”, ofuscados pelo seu próprio sistema, hão-de ter dificuldade em aceitá-lo.

27 Abr 2023

O Preto e o Negro Chineses

No Ano do Coelho de Água, que dominará em 2023 e afectará particularmente nativos deste signo entre 22 de Janeiro de 2023 e 10 de Fevereiro de 2024, estamos sob o domínio do Coelho Yin ( 陰/阴兔Yīntù) do elemento Água, cuja cor é o preto.

Começando pelo sítio certo. Há uma ligação ao princípio feminino Yin (陰/阴 Yīn), que se sabe ser complementar do princípio masculino Yang (陽/阳 Yáng), representando o masculino, do ponto de vista caligráfico, o lado solar da encosta, e o feminino, a sua parte nebulosa ou sombria. O Yin, enquanto propiciador de uma tabela de categorias, é receptivo, pesado, escuro, opaco e lunar, sendo complementar do Yang Criativo, leve, claro, transparente e solar.

No Clássico das Mutações, se pensarmos em termos de cor, surge ligado ao hexagrama 2 do feminino e receptivo, à mãe Terra (坤 kūn), que tem como representante cromático o preto, mas uma vez que este animal se associa também à Água (水 shuǐ), carrega consigo as características do abissal e perigoso, que nos são transmitidas no hexagrama 29 (坎卦Kǎn Guà), numa conjugação dos dois trigramas da Água, na qual duas linhas Yin receptivas têm ao centro uma linha Yang criativa ou, numa outra leitura possível, são atravessadas por uma linha Yang, o que implica um mergulho nas profundezas escuras do oceano para nele conseguir captar a luz. Ou ainda, numa leitura antropológica, a linha Yang será a alma no interior do corpo, indicando o Juízo deste hexagrama: “O Abissal repetido. Se fores sincero, alcançarás o sucesso com o teu coração. E tudo o que fizeres, será bem-sucedido”/ 習坎,有孚,維心亨。行有尚。 (Wilhelm, 1989:115; 張 84: 127).

Neste hexagrama confronta-se o perigo com o bom exemplo da água, que flui encontrando o melhor caminho sem desafiar os obstáculos, por envolvimento, penetração e diluição. Quanto ao Coelho, regente deste ano, de acordo com a astrologia chinesa, é um animal sensível, pacífico, familiar, diplomático e, neste ciclo, sábio, advindo-lhe esta última virtude da ligação ao elemento Água. Ao indagar-se pelas características da Água, de acordo com a divisão dos cinco elementos, realizada na Medicina Tradicional Chinesa, obtemos que pertence à Noite; ao Inverno, enquanto estação do ano; ao Frio, como categoria climatérica; à Saliva, a título de fluído; aos Ossos, para os tecidos; aos Genitais, como orifício; aos Rins, na categoria de órgão; e ao Salgado na qualidade de sabor. É da água, portanto, o domínio da noite, das profundezas, da escuridão, intimamente ligadas, por um lado, ao preto, por outro, ao negro. Preto e negro não significam o mesmo, embora apontem para a mesma referência cromática.

Preto, diz-se em chinês hei (黑hēi), opõe-se à cor branca, bai ( 白bái). Do ponto de vista caligráfico, o preto é uma chama (炎 yán) sob uma janela ou chaminé, à qual vai escurecendo com o seu fumo ou fuligem. O preto é então o traço complementar do fogo, os vestígios e as marcas da chama nas paredes, a sua sombra. Está intimamente associado à existência concreta. Na língua chinesa, é empregue a título de oposto do branco em heibai (黑白 hēibái), “preto e branco” no sentido de contraste, do certo e errado, onde o positivo surge do lado do branco e o negativo do lado do preto, mas também para caracterizar as cores concretas, incluindo de pessoas e etnias, sendo os africanos apelidados heiren (黑人hēirén), tal como aos americanos e ingleses lhes chamam Black people.

O preto é, ainda, empregue para definir o lado sombrio e marginal da existência, por exemplo, em black market, aquele ao qual os portugueses catalogam de “mercado negro”, em chinês, heishi (黑市hēishì), sendo também pretas as sociedades criminosas, as heishehui (黑社会hēishèhuì), bem como pessoas extremamente ambiciosas, engenhosas e até maliciosas, dessas afirma-se no calão chinês que possuem “coração preto”黑 (心) (李、顏1998:90). Pelo que também as palavras enganosas se dizem “palavras pretas” ou heihua (黑話/话), seguindo a mesma lógica, há um “humor preto”, ao qual os portugueses chamariam “humor negro”, quer dizer, heise youmo (黑色幽默hēisè yōumò ).

No que se refere ao dia-a-dia da língua chinesa, vê-se então que o preto está frequentemente associado ao mundo marginal, o das seitas, da economia paralela, das pessoas extremamente ávidas, que não olham a meios para atingir os fins, desregradas e até das que manifestam as forças do mal heishili (黑势力 hēishìlì); mas não se pode esquecer o lado positivo, no qual surge a terra preta, denominada heitu (黑土hēitǔ) e a noite negra, em chinês, heiye (黑夜 hēiyè).

Chegou a altura de analisar a distinção entre o preto e o negro. Este último assume uma dimensão filosófica que não é atribuída à cor preta, telúrica e basilar. O negro, do ponto de vista elemental, projecta para uma zona misteriosa das profundezas oceânicas, ou ainda das alturas celestiais, quando se visualiza uma luminosa noite negra ou, em máxima complementaridade, um imenso e misterioso buraco negro.

A pérola negra é uma das metáforas preferidas dos taoistas, nomeadamente Zhuangzi (莊子/庄子), o segundo maior filósofo desta linha, que viveu durante o Período dos Reinos Combatentes entre c. 396-286 a.C. Na obra homónima, 《庄子》 procurou transmitir o núcleo dos seus princípios filosóficos recorrendo a metáforas e parábolas de grande valor artístico, da melhor literatura de todos os tempos. O filósofo emprega no Livro 12 a imagem da Pérola Perdida para se referir ao Tao (道 Dào) , sendo este descrito como uma pérola misteriosa, caso se prefira, mágica, que tudo pode transformar sem se perceba nem o seu saber, nem como o realiza e muito menos porque razão o faz tão espontaneamente, deixando todos surpreendidos, a começar pelo Imperador Amarelo (黄帝 Huángdì), o símbolo da sabedoria discursiva, clara, luminosa e disciplinada, a complementar, portanto, a mais enaltecida pelos taoistas, a lunar, difusa, aquática e intuitiva, enfim a verdadeira sabedoria que se encontra a um nível numenal e, por isso, escapa por completo ao entendimento humano. Conta Zhuangzi:

O Imperador Amarelo quando se dirigia para o Norte das Águas Vermelhas, subiu à Montanha Kunlun e olhou na direção Sul. Ao regressar a casa, percebeu que tinha perdido a sua pérola negra (玄珠 xuánzhū). Enviou então o conhecimento à procura dela, mas ele não a conseguiu descobrir; mandou de seguida a visão em seu encalço, que não a encontrou; ao que se seguiu o discurso que também não a achou. Por fim, encarregou o Nada desta missão, que a encontrou. Ao que o Imperador Amarelo exclamou: “Que estranho! Só o Nada descobriu a pérola cor-da-noite”.

(黄帝游乎赤水之北,登乎昆仑之丘而南望。还归,遺其玄珠。使知索之而不得,使离朱索之而不得,使喫诟索之而不得也;乃使象罔,象罔得之。黄帝曰:“异哉!象罔乃可以得之乎!“ ) (Zhuangzi, 1999, XII: 4)

Concluindo, o preto assume, tanto em chinês como em português, um sentido filosófico importante quando é elevado a negro, desapegando-se assim da realidade imediata, concreta e material. Adquire então uma forma profunda, misteriosa e mágica que o colocam em ligação espontânea e directa com o mundo numenal.

Liberta-se de toda a carga fenomenal de que é investido no mundo que nos rodeia, também conhecido em algumas filosofias como mundo das ilusões e da aparência. Há portanto para o preto duas dimensões distintas, uma em que é uma cor vulgar ao mesmo nível das outras, partilhando das acepções positivas e negativas que lhe são atribuídas no mundo chinês, e não só; outra misteriosa, abissal em que tudo pode, como representante duma dimensão transcendente, na qual é portador das energias primordiais, sendo uma espécie de “cinturão negro” marcial, uma prodigiosa manifestação energética na vida, que se eleva aos céus ou mergulha nas profundezas misteriosas, para resolver dificuldades e transpor os obstáculos de um modo aparentemente fácil, munido da simplicidade modelar que lhe advém da sua ligação ao princípio Yin e à sabedoria da Água.

 

Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2005. Sabedoria Chinesa. Cruz Quebrada: Casa das Letras/ Editorial Notícias.
Jorge, Cecília, Beltrão Coelho. 1988. Medicina Chinesa. Em Busca do Equilíbrio Perdido. Macau: Instituto Cultural de Macau/ Ciclo dos Leitores.
Li Shujuan, Yan Ligang . Ed. (李淑娟, 颜力鋼). 1998. Chinese-English Dictionary of Modern Slang of China. 《漢英中國新俚語》. 香港:海峰出版社.
Merton, Thomas. 1999. A Via de Chuang Tzu. Petrópolis: Editora Vozes.
Shi Zhengyu. 1997. Picture Within a Picture. An Illustrated Guide to the Origens of Chinese Characters. Beijing: New World Press
Wilhelm, Richard. 1989. I Ching or Book of Changes, versão inglesa de Cary F. Baynes, Prefácio de C.G Jung, 4ª ed. London: Arkana Penguin Books.
張中鐸(編)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84.
Zhuangzi (《庄子》). 1999. Vol. I e II Tradução para Inglês de Wang Rongpei (汪榕培) e para Chinês moderno de Qin Xuqing e Sun Yongchang. (秦旭卿、孙雍长) .Hunan, Beijing: Hunan People’s Publishing House, Foreign Language Press

27 Abr 2023

Eurásia, o universo do Pacífico e os anglófonos: do passado ao presente

I. Notícias falsas e visões tendenciosas na história e nos textos modernos

Os historiadores escrevem sobre a História. A comunicação social apresenta-nos os acontecimentos recentes. Antigamente, os acontecimentos não eram registados pela imprensa. Nessa altura, a informação circulava oralmente, ou através de manuscritos, lidos por um reduzido número de pessoas que tinham aprendido a ler e a escrever.

Já não podemos avaliar a fiabilidade destes documentos, intencionalmente postos a circular por pessoas influentes e por organizações governamentais, portanto não sabemos até que ponto são fiéis à “verdade”. O trabalho dos historiadores depende destes documentos e das “fontes” que neles se baseiam. Analisam os documentos e, por vezes, percebem que existe alguma coisa de errado, porque os factos não correspondem, ou porque faltam informações importantes, ou porque são exacerbadas ou distorcidas.

Por regra, os historiadores querem descobrir o que aconteceu no passado. No entanto e, não raras vezes, são desonestos; mentem, intencionalmente ou involuntariamente. Em casos extremos, estão em causa fontes “primárias” totalmente questionáveis – e obras “secundárias” duvidosas e mesmo interpretações defeituosas de pesquisas anteriores. Pior ainda, ´por vezes, académicos “informados” alegam produzir relatos credenciados que resumem pesquisas anteriores, a partir de uma visão generalista. Publicações deste género podem aparecer em periódicos de renome, ou sob a forma de livros importantes distribuídos por editoras de prestígio, em suporte digital ou em papel.

Se o universo académico ou grandes audiências considerarem que os autores destas obras são famosos nas suas áreas de investigação, então existem boas hipóteses de visões falsas e tendenciosas passarem a ser factos aceites. Este é um dos principais aspectos da arte de “lavagem cerebral”.

Aqui chegados, podemos colocar uma questão interessante: Irão as coisas de mal a pior? O coeficiente “matemático” entre informação errada e falsa e informação correcta e verdadeira muda de um período para o período seguinte?

Será que o peso e a percentagem da parte falsa está a crescer? A impressão geral é que, sim, está a crescer. Este parece especialmente ser o caso dos “media” modernos. Existem várias explicações possíveis para essa suposição.:

Estamos a entrar, ou já entrámos mesmo, numa nova era caracterizada pela concorrência implacável entre nações e alianças políticas – uma era de encontros pouco amigáveis ou mesmo hostis. Quando tentamos entender a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, bem como outros conflitos, torna-se praticamente impossível confiar na informação que nos chega diariamente através dos “media” que lideram este sector a nível global. As imagens que nos apresentam são unilaterais. Muito daquilo que nos dizem constantemente não passa de propaganda. O mesmo se aplica ao sector financeiro, ao comércio internacional e a outros fenómenos. Mentir implica desacreditar alguém ou alguma coisa. Há mentiras por todo o lado e dados imprecisos em toda a parte.

Sendo assim, então em quem podemos confiar, se quisermos compreender os acontecimentos que ocorrem à nossa volta? Infelizmente, parece haver muito poucas coisas dignas de confiança. Os factos essenciais permanecem obscuros. O papel dos decisores e as suas intenções não são claros. Há camuflagem, contra-camuflagem, há teorias sobre quem se opõe a quem, sobre redes, planos secretos, truques, estratégias, atividades secretas, et cetera et cetera.

Os seres humanos, assim parece, entraram numa era de mentiras. É certo, que os Governos do passado e os seus dirigentes sempre mentiram, mas possivelmente a situação nunca terá sido tão má como agora. De facto, faz parte da cultura actual embrulhar elementos falsos em papéis coloridos para que possam ser bem vendidos.

Aqui poderíamos continuar a discutir o papel extraordinário das avaliações feitas pelos pares, os rankings, os chamados grupos de reflexão, as teorias, os sistemas de valores, etc. Fingem ser “objectivos”, ou, em alternativa, dizem-nos umas coisas sobre o caminho “certo” e sobre a “exatidão” das coisas. Ao fazê-lo, mostram uma característica comum: Distorcem a verdade de uma maneira ou de outra, involuntária ou deliberadamente.

No entanto, e muito estranhamente, os seres humanos continuam a inventar novos mecanismos e métodos para melhorar o grau de “objectividade”, esperando vir a distinguir as suposições falsas das verdadeiras, ou insistem abertamente num determinado método e ponto de vista, dizendo aos outros que o seu sistema é o melhor e como se deve agir para difundir as ideias que importam. Este tipo de honestidade é “lucrativa”: Há sempre multidões que se deixam levar pela propaganda.

De facto, os homens não se apercebem de um perigo bem simples: Quanto mais acreditam na propaganda, ou na chamada “verdade” e na capacidade de superar notícias falsas, quanto mais se afundam num universo de visões tendenciosas e de mentiras. Afinal de contas, não existe “objectividade” total; a questão do bem e do mal está sempre ligada a algum tipo de medida exterior. É certo que se trata de um problema filosófico. Aqueles, que insistem em compreender as coisas, e que estão convencidos de que seguem o caminho certo, são muitas vezes apanhados num estranho dilema: querem compreender a verdade das coisas, mas enganam-se a si próprios.

Existe alguma maneira de escapar à unilateralidade das notícias, das ondas de propaganda intermináveis e do carácter falso dos dados que consumimos? Nem por isso, mas talvez exista uma forma de, pelo menos, tentar evitar algumas das armadilhas escondidas no fluxo diário de informações falsas. Como foi mencionado, as interpretações actuais das turbulências políticas que nos rodeiam parecem basear-se numa mistura de factos exacerbados ou de factos desvalorizados.

Às vezes, quando consideramos tendências de longo prazo, por exemplo, os chamados elementos de longue durée, podemos ver através da actual selva de notícias políticas e das discussões em curso, e também podemos decifrar as possíveis intenções escondidas por trás de certas coisas que inundam os noticiários.

É claro que se pode dizer, que usar os elementos longue durée para entender o que está a acontecer, é mais uma forma de nos enganarmos a nós próprios, especialmente porque a definição destes elementos depende da percepção selectiva do passado, por exemplo, depende de algo que não podemos classificar como objectivo. No entanto, também podemos considerar o uso de elementos de longue durée como uma espécie de “contra-programa” – ou, uma simples achega que pode polo menos ajudar-nos a estabelecer uma segunda, e talvez diferente, opinião acerca dos assuntos acuais.

Um outro passo que pode ser útil em tais situações é o recurso à história “contra-factual”. Podemos fazer uma pergunta simples: O que teria ocorrido, se um ou outro evento não tivesse ocorrido, ou tivesse tomado um caminho diferente? Se virmos a história como uma cadeia complexa de eventos conectados entre si de várias maneiras, então ao colocarmos a questão “e se”, podemos de repente perceber que um determinado elemento numa longa sequência de actividades humanas foi muito importante, uma vez que constituiu a base de desenvolvimentos futuros – ou, em alternativa, que apenas desempenhou um papel de pouca importância.

Além disso, ao dissecar o passado, podemos ter uma palavra a dizer sobre o futuro. Existe uma razão muito simples para esta suposição: Geralmente, os fenómenos long durée não desaparecem de repente; podem manifestar-se num novo formato, agora e no futuro. Assim, ao tentar identificar fenómenos-chave do passado e ao perguntarmos “e se”, podemos evitar entrar no labirinto das notícias falsas.

II. Da Europa de Leste à Ásia Central: alteração de fronteiras e o papel da Grã-Bretanha

Comecemos pela Europa de Leste. Durante muitos séculos, senão milénios, as estepes intermináveis, as planícies e as zonas florestais que se estendiam desde o norte da Alemanha através da Polónia, Bielorrússia, Ucrânia, Rússia e por zonas da Ásia Central até à Mongólia e Vladivostok foram alvo de agitação política. Facções políticas subiam ao poder e eram destituídas numa rápida sucessão, as fronteiras entre as diferentes entidades políticas nunca foram estáveis.

A União Soviética durou cerca de setenta anos e depois desmoronou-se. Os habitantes da Estónia e da Letónia têm dependido geralmente de outros povos, apenas por poucas décadas desfrutaram de “independência”. A Polónia-Lituânia chegou a controlar uma enorme área que compreendia grande parte da Bielorrússia e da Ucrânia, estendendo-se a Sul até ao Mar Negro. Posteriormente, a Polónia foi dividida e desapareceu como Estado independente; depois voltou a erguer-se. A Bielorrússia, com o seu traçado actual, era um fenómeno raro.

As diferentes políticas da Ásia Central têm uma história igualmente “confusa”. Além disso, embora toda a região tenha registado crescimento económico, especialmente após o fim da Guerra Fria, podemos identificar muitos “pontos problemáticos”. O conflito fronteiriço entre o Quirguizistão e o Tajiquistão é disso um exemplo. Os problemas étnicos na parte ocidental do Usbequistão causam também muita preocupação.

Fontes históricas e arqueológicas dizem-nos que existiram ondas migratórias de um lado para o outro ao longo destes territórios. Entre as obras escritas, os anais dinásticos chineses são bastante importantes. Nestas obras, a Ásia Central e a Ásia Ocidental são designadas pelo nome de Xiyu 西域, ou “Regiões Ocidentais”. Claro que também existem muitas fontes escritas noutras línguas. No seu conjunto, estes textos fornecem imagens vívidas dos desenvolvimentos políticos e culturais na vasta região para lá da moderna Xinjiang.

Mas voltemos à nossa época. Já nos anos 70 do séc. XX, académicos perspicazes pensavam que um dia a União Soviética desapareceria como tal e que as fronteiras iam mudar. Tinham razão. Após a consolidação do poder em Moscovo, em Minsk e Kiev, tornou-se claro que os três, mais cedo ou mais tarde, tentariam formar uma nova união, ou, em alternativa, entrar em conflito. Sem dúvida, a rápida sucessão de políticas e a rápida mudança das fronteiras são elementos recorrentes na História da Europa de Leste. A Suécia, a Prússia, a Áustria-Hungria, a Polónia, o Império Otomano, e outros “protagonistas” estiveram frequentemente envolvidos nesse processo. Hoje em dia, assim parece, somos confrontados com mais uma variação do mesmo. A História repete-se, mas não podemos realmente prever os resultados precisos desse processo, nem num futuro próximo, nem a longo prazo.

Curiosamente, neste contexto, a comunicação social actual tende a ignorar dois aspectos: O foco está na guerra na Ucrânia. Raramente são tentados a levantar a questão sobre o que é provável que venha a acontecer na Bielorrússia, digamos, depois de Lukashenko. Irá a Rússia avançar? Será que um novo Governo manterá o actual rumo político?

Haverá uma revolução e um grande conflito interno? Como é que a Polónia vai reagir? Bruxelas não está satisfeita com algumas das características administrativas e estruturais do Estado polaco. Alguns órgãos de comunicação dizem-nos que o actual Governo da Polónia é muito nacionalista. A Polónia também anunciou que planeia expandir a sua força militar. Irá intervir na Bielorrússia e/ou na Ucrânia, se se tornar necessário? Quais seriam as consequências de tal medida para a UE e para a NATO? Será que isso agradaria à Grã-Bretanha e aos Estados Unidos?

Aqui entramos no domínio do “e se”. Poderíamos continuar a especular, por exemplo, sobre os Balcãs. Mas esse é um cenário muito complexo, e conduziria a debates intermináveis. Basta dizer que a segmentação política desta parte da Europa num conjunto de pequenos países complicou a situação desta zona enormemente e que a instabilidade regional pode vir a ocorrer num novo formato.

A segmentação destas e de outras zonas foi um dos resultados da Primeira Guerra Mundial. Serviu interesses britânicos e não só. Anteriormente, a Grã-Bretanha tinha confrontado a Rússia na Guerra da Crimeia: navios e tropas britânicas entraram em acção na região do Mar Negro e ao longo de algumas costas do norte da Europa. As tropas britânicas chegaram a integrar as forças que atacaram o principal colonato russo na península de Kamchatka, o que, no entanto, não foi bem-sucedido. Tudo isto aconteceu na década de 50 do séc. XIX.

Nessa altura, a Grã-Bretanha era a potência imperial mais agressiva. Planeava expandir-se até ao Sul da Ásia, ao Próximo Oriente, e a outros territórios. Assim, do ponto de vista de Londres, tornou-se necessário impedir que a Rússia tivesse mais possessões no Extremo Oriente, que se tornasse activa no Norte do Pacífico e que se expandisse através da Ásia Central em direcção ao actual Afeganistão e à Índia. Para atingir estes objectivos, a Grã-Bretanha adoptou uma espécie de política divide et impera, o que pode ajudar a explicar porque é que, no início do séc. XX, optou por dividir o universo turco, e porque é que defendia a redução do território russo.

Actualmente, a Grã-Bretanha, como parceiro júnior dos Estados Unidos, voltou a ter um forte discurso anti-Rússia. Ao que parece, as velhas atitudes não desapareceram. Claramente, a Grã-Bretanha já não tem poder para intervir militarmente, mas sentimo-nos tentados a argumentar que anseia a desintegração do império de Putin, na sequência das antigas políticas de Londres.

III. O Pacífico e os anglófonos

Agora voltemo-nos para o Extremo Oriente. A expansão dos Estados Unidos no Pacífico começou no século XIX. A cruel anexação do Havai, a aquisição do Alasca, a abertura forçada do Japão e os esforços bem-sucedidos de Washington para direccionar a atenção dos japoneses para a Coreia e para outras regiões próximas – tudo isso serviu, pelo menos, em parte, para construir um contrapeso à expansão da Rússia.

Naquela época, os Estados Unidos eram os parceiros juniores da Grã-Bretanha. Posições religiosas radicais, a crença na sua própria superioridade e a ideia de “destino manifesto” foram algumas das forças motrizes da expansão da América. Outro aspecto desse processo foi o racismo (que podemos comparar ao dos britânicos e ao seu comportamento). A diplomacia americana e as aventuras militares iam contra as populações indígenas. Também iam contra a esfera de influência hispânica. Enormes territórios ao Norte do que hoje é o México bem como as possessões de Espanha no Pacífico, incluindo as Filipinas, caíram nas mãos de Washington.

A ingerência de Washington também se manifestou na costa da China. Os americanos envolveram-se no negócio do ópio. Apoiaram a Grã-Bretanha em Hong Kong e estiveram intimamente envolvidos no chamado “tráfico de cules”. Milhares de migrantes chineses, tratados como escravos, eram enviados em navios através do Pacífico. Muitos morreram no caminho. Os sobreviventes tiveram de trabalhar na Califórnia e noutras regiões, onde eram continuamente explorados. Migrantes brancos, especialmente os descendentes dos que vieram das zonas “reformistas” do Noroeste europeu, tratavam os seus “colegas” chineses como seres inferiores.

Neste aspecto, Londres e Washington eram aliados. A Grã-Bretanha enviou milhares de chineses para as suas possessões do Sudeste Asiático e da África. Pode acrescentar-se, que as vítimas nunca receberam uma indemnização adequada. Os vencedores fazem o que querem, os vencedores escrevem a História à sua maneira.

Poderíamos encontrar alguns paralelismos com a nossa época, mas vamos continuar com o passado recente. A expansão americana através do Pacífico atingiu o seu clímax no século XX. A derrota do Japão levou a que as Ilhas Ryukyu, outrora um reino independente e um parceiro comercial pacífico da China, caíssem sob o controlo dos Estados Unidos. Na década de 50 do século passado, tropas americanas desembarcaram na península da Coreia. Esta foi a primeira grande intervenção americana no continente asiático. Seguiram-se o Vietname, algumas partes do Laos e do Camboja. No entanto, o Vietname tornou-se algo como um ponto de viragem na política americana no Pacífico.

Embora a força aérea dos EUA tenha lançado enormes quantidades de napalm e de bombas químicas, Washington perdeu esta guerra. Desde então, a sua “linha da frente do Pacífico” recuou, mas não para muito longe. A Coreia, Okinawa e outras zonas ainda fazem parte da cintura militar de Washington. Além disso, a ideia de “A América em primeiro lugar” está muito viva. Washington não integra algumas instituições das Nações Unidas, mas de tempos a tempos pressiona a ONU e insiste no princípio do “Excepcionalismo Americano”.

A duplicidade de critérios é mais um sintoma deste mal-estar: os líderes americanos pregam tolerância e democracia, mas as forças dos EUA intervêm, sempre que factores de ordem económica sugerem que a intervenção vai ser vantajosa para o capitalismo americano. Washington também apoiou vários Governos não democráticos e indivíduos duvidosos em todo o mundo. Parece que Washington aprendeu com Londres a manipular as coisas.

As superpotências não podem correr o risco de se retirar dos territórios conquistados. Não podem abrir mão da sua posição financeira, nem de outras posições. Se o fizerem, os outros podem vê-lo como um sinal de fraqueza. Washington sabe disso e mantem a sua dureza. No entanto, alguns especialistas continuam a dizer-nos que podemos estar muito perto de um acentuado movimento descendente do poder norte-americano, mas é claro que se deve ter cuidado com tais avaliações. Seguindo o exemplo britânico, os Estados Unidos investiram fortemente na construção de escolas, igrejas e de outras instituições culturais para lá das suas fronteiras. O uso alargado da língua inglesa cria ilusões nas mentes de muitos não-americanos, especialmente nalgumas partes da orla asiática do Pacífico, mas também entre as elites do Sul da Ásia. A classificação das instituições e os processos de avaliação servem como ferramenta adicional para realçar a “superioridade” cultural anglo-americana e a “exactidão” dos seus padrões. O império da mentira tem muitas facetas…

Para fortalecer a posição dos anglófonos, Washington promoveu o aparecimento de novas alianças, como a liga AUKUS. Esta parte da história está muito presente nos meios de comunicação modernos e dispensa mais comentários. Basta dizer que o sistema AUKUS não é uma parceria entre iguais. É um dos muitos instrumentos inventados por uma superpotência para defender a sua posição. Por outras palavras, a Austrália foi uma colónia britânica. Psicologicamente, pode agora transformar-se num satélite dos EUA.

Não há dúvida que o processo de pacificação global está em risco, talvez chegue ao fim num futuro fácil de prever. Actualmente, estamos a assistir à possível globalização das acções militares e, claro está, das notícias falsas e das mentiras. A globalização destas últimas funciona, pelo menos em parte, como um substituto dos confrontos militares. Este movimento acompanha o terror electrónico. Um aspecto destes tristes desenvolvimentos diz respeito à relação entre os Estados Unidos e a Rússia, após a desintegração da União Soviética.

Dito isto, podemos brevemente regressar à região da Eurásia. Inicialmente, o chamado “Ocidente” alimentou esperanças de que a Rússia se viesse a tornar uma democracia e que se juntasse à sua esfera de influência. Simultaneamente, vários pequenos países da Europa Oriental tornaram-se membros da NATO. Durante o período da Guerra Fria, a NATO era diferente do que é hoje em dia. Agora, transformou-se numa das muitas alianças, ou melhor, instrumentos, que servem principalmente as necessidades de Washington.

Claramente, dada a longa História da Rússia e as diferentes expectativas, Moscovo teve de reagir. De acordo com certa opinião, Washington sabia perfeitamente que a Rússia não iria apreciar as propostas sugeridas pela Casa Branca e que não estaria disposta a subordinar-se às suas regras e regulamentos (como muitos outros países, que têm as suas próprias tradições e não estão propriamente desejosos de aceitar a duplicidade de critérios associados à missão civilizacional de estilo britânico e americano).

No entanto, os actuais meios de comunicação “ocidentais” não partilham desta opinião; encaram-na como uma fabricação dos rivais dos americanos. Aparentemente, muitos destes media “esclarecidos” estão alinhados com as expectativas americanas. Na verdade, actualmente, muitos dos jornais europeus, que antigamente davam voz a diferentes opiniões, aderiram aos pontos de vista postos a circular pelos anglófilos.

Aqui podemos acrescentar uma última nota de rodapé, não totalmente fora de contexto. O chamado Brexit foi uma jogada inteligente. A Grã-Bretanha pode sofrer a nível económico mas, a nível diplomático, já não precisa de aceitar soluções de compromisso. Pode opor-se abertamente à Rússia, à China e a outros países que objectivamente se encontram entre os seus rivais. Podemos ir ainda mais longe: retrospectivamente, o Brexit parece ter servido para apoiar a hegemonia americana. Coincidência ou um plano bem arquitectado? Seja como for, Washington apreciou certamente a decisão do seu antigo professor. A Grã-Bretanha sublinhou a sua posição anti-continental. Pôde voltar a sonhar com os velhos tempos em que era uma grande potência no Mediterrâneo, nas Caraíbas, no Oceano Índico, no Sudeste Asiático e ao longo da costa da China. A História, como podemos ver, repete-se com um formato diferente.

(continua)

26 Abr 2023

Analectos – as conversas de Confúcio

Tradução de Rui Cascais
Revisão e notas de Carlos Morais José

LIVRO IV

里仁 – (Li Ren)

ESCOLHER A BENEVOLÊNCIA

4.1. O Mestre disse: “Ao fixar residência num local, a maior atracção deverá ser a presença de pessoas benevolentes. Como se pode chamar sábio a alguém que, tendo essa escolha, não faz questão de habitar entre pessoas benevolentes?”58
4.2. O Mestre disse: “Quem não é benevolente é incapaz de suportar as adversidades, nem a própria felicidade, por muito tempo. As pessoas benevolentes contentam-se em ser benevolentes: assim lucra o sábio.”59
4.3. O Mestre disse: “Só a pessoa benevolente – e apenas ela – sabe amar e sabe odiar.”60
4.4. O Mestre disse: “Se os objectivos de alguém forem baseados numa conduta benevolente, não incorrerá em erro.”

4.5. O Mestre disse: “Riqueza e honra são o que as pessoas desejam, mas se forem uma consequência de desvios da Via, não quero parte nelas. A pobreza e a desgraça são o que as pessoas deploram, mas se forem consequência de seguir a Via, não as evitarei. De onde obteriam o seu nome as pessoas exemplares (君子 junzi) se abandonassem a benevolência? As pessoas exemplares não a deixam de lado nem pela duração de uma refeição. Quaisquer que sejam as suas preocupações ou dificuldades, nunca deixam de agir de forma benevolente.”61

4.6. O Mestre disse: “Ainda não conheci ninguém que verdadeiramente ame a conduta benevolente e verdadeiramente deteste qualquer comportamento que se lhe oponha. Quem ama a benevolência, nada considera superior. A quem horrorizam os comportamentos contrários à benevolência, jamais permitirá que tal conduta desumana contamine a sua prática do bem. Haverá alguém capaz de se dedicar, pelo espaço de um só dia, a aplicar uma conduta benevolente? Eu, por exemplo, nunca conheci alguém sem força para o fazer! Quanto aos que não têm força para tal, suponho que existam tais pessoas – eu, por exemplo, também ainda não as conheci!”62
4.7. O Mestre disse: “Os erros das pessoas diferem de grupo para grupo. Através da observação destes erros, poder-se-á compreender a benevolência.”63
4.8. O Mestre disse: “Tendo pela manhã conhecido a Via, poderei morrer à noite.”64
4.9. O Mestre disse: “Os letrados (士shi) que, tendo estabelecido o objectivo de percorrer a Via, se envergonham das roupas e das comidas simples, não merecem que se lhes dirija a palavra.”
4.10. O Mestre disse: “As pessoas exemplares, caminhando pelo mundo, não são nem a favor nem contra nada, outrossim seguem o que é justo (義 yi).”
4.11. O Mestre disse: “As pessoas exemplares prezam a sua excelência; as pessoas menores prezam as suas terras. As pessoas exemplares prezam a justiça; as pessoas menores prezam o pensamento do lucro.”
4.12. O Mestre disse: “Agir com vista a ganho pessoal conduzirá a muito ressentimento.”
4.13. 子曰:「能以禮讓為國乎?何有?不能以禮讓為國,如禮何?」
4.13. O Mestre disse: “Se o soberano for capaz de ordenar o Estado através dos ritos e da deferência para com os outros, que mais será preciso? Mas, se não for capaz disto, de que servirá cumprir os ritos?”65
4.14. O Mestre disse: “Não te preocupes em não ter uma posição oficial, preocupa-te em ter as qualidades necessárias para a obter. Não te preocupes se ninguém te conhece, esforça-te para te tornares numa pessoa digna de ser conhecida.”
4.15. O Mestre disse: “Sheng, meu amigo! A minha Via é, do princípio ao fim, ligada por um único fio (貫guan).” Mestre Zeng replicou: “Assim é.” Quando o Mestre partiu, os discípulos perguntaram: “A que se referia ele?” E Mestre Zeng respondeu: “A via do nosso Mestre consiste unicamente em lealdade (忠zhong) e indulgência (恕shu).”66
4.16. O Mestre disse: “A pessoa exemplar compreendem aquilo que é justo; a pessoa menor compreende aquilo que lhes traz lucros.”
4.17. O Mestre disse: “Quando encontras pessoas de carácter excepcional deves tentar caminhar a seu lado; ao encontrar pessoas de baixo carácter, deves olhar para dentro e examinar-te.”67
4.18. O Mestre disse: “Ao servirem vossos pais e mães, falem gentilmente. Ao verem que não seguem as vossas sugestões, permaneçam em respeito e nada façam em contrário. Por mais que eles estejam errados, não exprimam qualquer ressentimento.”
4.19. O Mestre disse: “Enquanto o vosso pai e mãe viverem, evitem as viagens longínquas e, se o fizerem, assegurem-se de que o vosso destino é conhecido.”
4.20. O Mestre disse: “Uma pessoa que, por três anos, se abstém de alterar os modos de seu pai pode ser chamado filial.”
4.21. O Mestre disse: “Os filhos devem saber a idade do seu pai e sua mãe. Por um lado, trata-se de uma fonte de alegria, por outro de inquietude.” 68
4.22. O Mestre disse: “Os antigos detestavam falar por vergonha de não poderem pessoalmente honrar a sua palavra.”69
4.23. O Mestre disse: “É deveras muito raro que alguém cometa erros se mantiver sempre o controlo de si .”
4.24. O Mestre disse: “A pessoa exemplar deseja ser lenta a falar e rápida a agir.”70
4.25. O Mestre disse: “As pessoas virtuosas (德 de) não vivem sós: têm sempre vizinhos.”
26. Ziyou disse: “Se, no serviço do teu senhor, fores zeloso em demasia atrairás a desgraça; se, na tua amizade, fores zeloso em demasia serás ostracizado.”71

Notas
58. Encontrámos duas interpretações para esta passagem. A primeira em Xunzi: “ A raiz da planta lan huai cheira a doce angélica, mas se a mergulhares em água fedorenta nem a pessoa exemplar se acercará dela, nem o vulgo a usará. Isto não acontece pela falta de fragrância do material original, mas por causa daquilo em que se encontra mergulhado. Como tal, a pessoa exemplar assegura-se de escolher cuidadosamente a povoação em que habita, assegurando-se também de que se associa a homens bem-criados ao viajar. Deste modo, evita a corrupção e se acerca do que é correcto.” A segunda em Mêncio, que explicitamente comenta esta passagem dos Analectos: “Será o fabricante de flechas menos benevolente do que o fabricante de armaduras? E, no entanto, o único medo do fabricante de flechas é que os homens não sejam feridos pelas suas flechas, e o único medo do fabricante de armaduras é que os homens não sejam protegidos pelas suas armaduras. (…) A escolha de uma profissão, portanto, é uma coisa em que é necessário ter muita cautela. A benevolência é a dignidade mais honrosa conferida pelo Céu e o lar tranquilo em que o homem se deve sentir bem. Uma vez que ninguém nos pode impedir de o ser, se ainda não somos benevolentes – isto não é ser sábio. Da falta de benevolência e da falta de sabedoria resultará toda a ausência de correcção e rectidão”. Embora aqui o “lugar de residência” seja a esfera de actividade, a ideia geral é semelhante: é preciso ter cuidado ao escolher o seu ambiente.
59. Kong Anguo comenta: “Alguns não podem permanecer constantes na adversidade porque a adversidade constante os motiva a fazer o mal, e não podem gozar de felicidade duradoura porque caem inevitavelmente na arrogância e preguiça”. A sentença de Confúcio parece querer dizer que a pessoa benevolente, tanto na adversidade como na felicidade, tem a sabedoria de se manter benevolente, ou seja, não se deixa tomar pela maldade nem pela indulgência, mantendo sempre um equilíbrio. Há um certo estoicismo nesta ideia que nos remete, por exemplo, para Marco Aurélio, quando afirma que deve a sua mãe “a piedade, a liberalidade, o hábito de me abster não apenas de fazer mal, mas de me ater a um mau pensamento. E ainda: a simplicidade de um regime de vida e a aversão pelo tipo de existência que levam os ricos” (Marco Aurélio, I.2).
60. A benevolência não é um “amor incondicional”, também porque na sua vertente de “humanidade” terá sempre de ter em conta o bem comum e não apenas o indivíduo. Por isso, a pessoa benevolente detesta o que ou quem é ou age contra a humanidade. Alguém que simplesmente tudo amasse seria certamente prejudicial e, de certo modo, egoísta pois, pelo seu amor, não teria em conta o mal que daí poderia advir contra os outros, ainda que para ele fosse suportável ou admissível se tomado por um amor a todos os seres e a todos os comportamentos. Como veremos, “a benevolência mata”.
Jiao Xun 焦循 (1763-1820) comenta: “A pessoa benevolente ama o que é realmente digno de admiração nos outros e odeia o que é genuinamente odiável neles. É por isso que se diz que uma tal pessoa é “capaz de amar outros e odiar os outros”. ” Apenas a pessoa benevolente é um juiz preciso e imparcial de carácter, capaz de amar a virtude nos outros sem inveja e odiar o vício nos outros sem malícia.”
61. Ser rico ou ser pobre, não implica ou impede uma conduta benevolente. A pessoa exemplar preocupa-se com o seu comportamento e a obtenção de riqueza não a deve fazer tergiversar. Do mesmo modo, se uma conduta benevolente, implicar cair na pobreza, uma pessoa exemplar não deve evitá-la. Xunzi vai mais longe: “Onde há benevolência não há pobreza ou dificuldades; onde falta a benevolência não há riqueza ou honra” (Xunzi, 23)
62. Zhu Xi comenta, sublinhando a importância da vontade:
“O Mestre admite que nunca viu alguém que verdadeiramente amasse a benevolência ou alguém que verdadeiramente odiasse o que não é benevolente. Parece que alguém que verdadeiramente amasse a benevolência apreciaria genuinamente o que é para ser verdadeiramente amado na benevolência e, assim, nada sob o céu punha à sua frente. Aquele que odiasse o que não é verdadeiramente benevolente genuinamente compreenderia o que é odioso no que não é verdadeiramente benevolente e, assim, ao sempre praticar a verdadeira benevolência seria capaz de se afastar do não é verdadeiramente benevolente, impedindo assim que sequer uma pequena quantidade alcançasse a sua própria pessoa. Ambos são assuntos de virtude perfeita e, por essa razão, difíceis de encontrar.
‘Haverá alguém capaz de se dedicar, pelo espaço de um só dia, a aplicar uma conduta benevolente? Eu, por exemplo, nunca conheci alguém sem força para o fazer!’
“Isto quer dizer que, enquanto aqueles que amam a verdadeira benevolência e odeiam o que não é verdadeiramente benevolente não podem ser encontrados, mesmo assim pode haver pessoas que são realmente capazes de se dedicar vigorosamente por um único dia ao verdadeiramente benevolente – porque ele próprio nunca viu uma pessoa cuja força não seja capaz de o fazer. Parece que fazer a verdadeira benevolência existe em cada um: deseja-a, e aí está ela, porque para onde a vontade vai o coração também vai [Mêncio 2A.2]. Assim, enquanto que é difícil ser verdadeiramente benevolente, chegar a este ponto é bastante fácil.
‘Quanto aos que não têm força para tal, suponho que existam tais pessoas – eu, por exemplo, também ainda não as conheci!’
“Suponho (蓋 gai)” expressa uma dúvida. “Existam tais pessoas” refere-se aos que a isso se devotam, mas cuja força não é capaz de o realizar. Na verdade, as capacidades do coração de cada pessoa variam. Por esta razão, ele suspeita que, de facto, podem ocasionalmente existir os que desejam seguir em frente, mas que, por confusão e fraqueza, não conseguem; e que apenas por acaso ele nunca conheceu tais pessoas. E parece que, embora não se atreva a considerar isso fácil, ao mesmo tempo que lamenta que as pessoas não estejam dispostas a dedicar-se à verdadeira benevolência.
“Aqui também se diz que embora a verdadeira benevolência, como virtude perfeita, é difícil para os homens, se um aprendiz for realmente capaz de se dedicar a ela, não existe razão para que não possa alcançá-la. Quanto aos que a ela se dedicam, mas não conseguem alcançá-la, nunca conheceu tais pessoas.”
63. Todos somos passíveis de errar, de exercer comportamentos reprováveis, aliás, é muito provável que erros sejam por todos nós cometidos. A frase de Confúcio parece querer dizer que os erros variam, mas não variam infinitamente e podem ser agrupados, quiçá atribuídos a um grupo, como se não se tratassem de erros individuais, mas decorrentes de uma pertença a um conjunto no qual se está inserido. Daí que se possa compreender melhor a benevolência, porque a análise de cada tipo de erro (e não serão assim tantos), dar-nos-á uma ideia do que os homens são capazes e compreender do que os homens são capazes ajudar-nos-á a escapar a esses erros e, portanto, exercer a benevolência. Kong Anguo comenta: “O facto das pessoas menores (xiaoren) não serem capazes de agir como pessoas exemplares (junzi) não é culpa delas, pelo que se deve ser compreensivo e não culpabilizá-las. Se observarmos os seus erros, podemos colocar tanto os dignitários como os tolos nos seus devidos lugares, e isto é o que significa ser benevolente”.
64. Apresentamos aqui a tradução mais literal possível. Contudo, os comentadores, com as suas explicações, complexificaram esta famosa frase, atribuindo-lhe diversos sentidos. Um deles é: “Tendo sabido pela manhã que a Via está a ser praticada, poderei morrer à noite sem remorsos”. Partindo desta leitura, Luan Zhao 欒肇 (act. 266– 285) comenta: “A Via é usada para salvar as pessoas. O sábio preserva-se para pôr a Via em prática. O objectivo é salvar as pessoas com a Via e não salvar-se a si mesmo com a Via. É por isso que lemos que se a Via fosse genuinamente ouvida pelo mundo de manhã, mesmo que se morresse nessa noite, estaria tudo bem. [Confúcio] sente-se magoado pela Via não estar a ser posta em prática, e além disso, deixa claro que está mais preocupado com o mundo do que com ele próprio.
Já para Zhu Xi a leitura deveria ser a seguinte: “Tendo pela manhã aprendido a Via, poderei morrer à noite sem remorsos.” E comenta: “Se alguém for capaz de ouvir a Via, a sua vida fluirá fácil e a sua morte chegará pacificamente, e não sentirá remorsos”.
65. No Comentário de Zuo é dito: “A deferência governa os ritos. (…) Numa época ordenada, a pessoa exemplar estima o talento e é deferente com os seus inferiores, enquanto as pessoas comuns cuidam dos trabalhos agrícolas para servir os seus superiores. Desta forma, o ritual prevalece, tanto em cima como em baixo; caluniadores e mal-intencionados são ostracizados e não há conflitos. A isto chama-se uma virtude excelente. Quando uma época declina em desordem, os senhores pavoneiam as suas realizações a fim de dominar o povo comum e as pessoas comuns gabam-se das suas aptidões a fim de usurparem os senhores. Assim, tanto os de cima como os de baixo, não cumprem a propriedade ritual, originando simultaneamente desordem e crueldade, porque surgem conflitos a propósito do que é bom. A isto chama-se virtude obscurecida. É um princípio constante que, desta situação, resulta inevitavelmente o colapso dos reinos.” (Duque Xiang, Ano XIII) Zhu Xi comenta: “A deferência é a substância do ritual. Esta passagem diz que se a própria substância do ritual for utilizada para governar o estado, então como poderá haver qualquer dificuldade? Mas se não for, então, embora o ritual possa ser ornamentalmente perfeito, de que serve para governar o estado?” Na governação, distingue-se entre a forma do ritual e a sua substância, a deferência (讓rang). Portanto, se o governante não for deferente para com os governados, qualquer ritual perderá a sua eficácia. Para Confúcio, ritualmente, ou seja, no seu comportamento, pois este é explanado no ritual, o governante terá de ser condescendente e ouvir os outros, as suas queixas e exigências, mostrando assim que lhes tem respeito. Não basta percorrer formalmente apenas os vários passos dos rituais, é preciso fazê-lo imbuído do seu espírito (substância), isto é, a deferência implícita nas suas regras. Se o Mestre insiste continuamente na relação entre governo e ritual, também percebe perfeitamente que o segundo não poderá ser algo destituído de autenticidade (誠 cheng), um mero teatro do poder, sem um conteúdo real e sincero, originário de um coração rectificado e íntegro. Só assim poderá estabelecer uma relação eficaz entre governante e governados.
66. Sheng é o nome próprio de Mestre Zeng (Zengzi). Lealdade (忠 zhong) e indulgência (恕 shu) aqui significam “exigência em relação a si mesmo” e “indulgência em relação aos outros”. O caracter zhong é composto de um “meio” (中 zhong) sobre um “coração” (心) e, por isso, remete para própria rectificação de si mesmo e para a prática do meio (中庸 zhongyong), ou seja, um comportamento justo e constante, uma procura incessante do equilíbrio nas suas acções e pensamentos, como um funâmbulo, nas palavras de Anne Cheng, que procura equilibrar-se e avançar no arame da rectidão. Este equilíbrio só existe num movimento em relação aos outros: é aqui que surge a necessidade de indulgência. Mais à frente (XV,24), Confúcio explica que shu se desdobra na famosa regra de ouro: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”. Esta palavra poderia igualmente ser traduzida por “consideração”, “compaixão” ou “compreensão”. Os comentadores sujeitaram a palavra 忠 zhong a diversas leituras. Wang Bi 王弼 (226-249), por exemplo, define zhong como “esgotar totalmente as próprias emoções”. Zhu Xi pertence a esta linha de pensamento que define zhong como “esgotar-se” ou “fazer o máximo”. Outros entendem que zhong envolve uma espécie de atenção aos deveres rituais de cada um, particularmente como subordinado político. Entendido desta forma, ser “leal” (忠 zhong) envolve o cumprimento dos deveres e obrigações próprios de um papel ritualmente definido. Esta virtude deve ser temperada pela virtude da “indulgência” (恕 shu): a capacidade de se colocar imaginariamente no lugar de outro. Resta saber, no caso de zhong, a quem ou a quê se deve lealdade pois poderá implicar opor-se a um governante que exerça o poder de forma imprópria, na medida em que a lealdade é devida a uma ideia e a uma prática e não a uma pessoa.
67. Ou seja, imitar as virtudes e evitar os vícios observados nos outros. A ênfase aqui é na acção: não só ver as qualidades dos outros, mas também usar esta percepção como uma oportunidade de auto-aperfeiçoamento. Como Jiao Yuanxi 焦袁熹 (1660-1725) explica, “O olhar mencionado nesta passagem refere-se àquilo que qualquer pessoa pode facilmente perceber… a dificuldade reside inteiramente em começar realmente a fazer algo a esse respeito. A intenção do Sábio ao estabelecer este ensino não era meramente criticar as pessoas por não terem um conhecimento verdadeiro, mas antes repreendê-las por falta de sinceridade de compromisso ou coragem para pôr em prática a sua vontade”.
68. De 4.18 a 4.21, trata-se de sentenças sobre a piedade filial em que se prescreve, entre outros aspectos, que o dever para com os seus pais ultrapassa qualquer outro e a tudo se sobrepõe.
69. Wang Yangming 王阳明 (1472-1529) comenta: “Os antigos valorizavam a acção e eram, portanto, tímidos com as suas palavras. Não se atreviam a falar de ânimo leve. Hoje em dia, as pessoas valorizam as palavras e, por isso, falam alto e tagarelam sem sentido à mais leve instigação”.
70. Wang Fuzhi 王夫之 (1619-1692) comenta: “Em relação às falhas que podem afligir o aluno, nenhuma é mais preocupante do que o descuido, e poucas tarefas são iniciadas ou completadas por aqueles que são casuais no seu comportamento. O descuido revela-se em linguagem que corre como água, que é tagarelado em todo o lado sem que se repare no que se diz. Comprovação de excesso de casualidade é encontrado no próprio comportamento – em comportamentos excessivamente avançados ou excessivamente retirado, que é errático e desrespeitoso, que é tímido e cobarde sem sequer um a realizá-lo. Só esta falta de propensão para ser lento a falar e rápido a agir é que impede a ambição estabelecida da pessoa exemplar de florescer.”
71. Não deverás, portanto, estar sempre a chamar atenção para as faltas e os erros, quer do teu superior, quer dos teus amigos. Algo que pode ser a tentação de um seguidor de Confúcio. De acordo com os pontos anteriores, é mais importante agir do que falar.

24 Abr 2023

Luo Qilan, a vida e a arte nos aposentos interiores

Cao Zhenxiu (1762-c.1822) recordou de modo admirável num conjunto de dezasseis poemas, que coligiu com a sua elegante caligrafia num álbum, acompanhados de pinturas de Gai Qi (tinta sobre papel, 24,8 x 16,8 cm, no Metmuseum), exemplos de mulheres inspiradoras.

Num desses poemas ela lembrou a extraordinária calígrafa Wu Cailuan (activa em 830-845) que cuidadosamente executou cópias do famoso Dicionário de Rimas, e cujo deslumbrante talento só poderia ser explicado pelo facto de ela ser uma imortal exilada na terra para ajudar um jovem estudante pobre, com quem partiria para um mundo frio onde passariam a habitar no orvalho.

O exemplo de Wu Cailuan era singularmente adequado ao tempo em que Cao Zhenxiu viveu e em que nos aposentos interiores dos palácios outras mulheres se descobriam, apesar das contrariedades do mundo dominado por homens, parte de uma insigne tradição. Uma dessas mulheres iluminadas pela arte no interior do gineceu descreveria com precisão esses obstáculos. Luo Qilan (1755-1813?), a poeta e pintora de Jiangnan, interrogou-se:

«Por que é assim? Escondidas nos seus aposentos, são muito poucas as pessoas que elas vêem e escutam. Não têm amigos com quem falar ou estudar para desenvolver os seus conhecimentos. Nem têm oportunidade de explorar as montanhas e os rios para observar a paisagem e assim inspirar o seu talento literário e virtuosidade. Sem um pai valoroso ou irmãos que as ajudem a encontrar as origens e a distinguir o verdadeiro do falso, elas não conseguem cumprir a sua vocação na vida. Depois de casadas, o tempo gasto em cuidar dos pais do marido e a tratar das insignificantes questões da lida da casa, deixam-nas tantas vezes sem oportunidades de escrever poesias.»

Luo Qilan, também conhecida pelo nome literário Qiu Ting (Um pavilhão no Outono», iria contrariar esse fado, tal como as carpas nadando contra a corrente até saltar a Porta de Jade e alcançando a promessa do Imperador de Jade, tornando-se ela mesma assinalável no seu mistério, como um dragão.

Viúva quando tinha cerca de trinta anos, editou em 1797 a antologia Tingqiuxuan guizhongtongren ji (Poemas para o Estúdio onde se escutam os sons do Outono das minhas companheiras nos aposentos das mulheres), que recolhe poemas de dezassete autoras. Cinco pinturas como Peónia lactifora (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 87, 5 x 39 cm) e um álbum feitos por ela estão no Museu do Palácio, em Pequim. Entre os retratos dela, feitos por quem a conheceu, nota-se o rolo horizontal de Ding Yicheng, Olhando o monte Ping na Primavera, onde ela está de pé, solícita ao gesto de uma jovem à sua frente, a mão direita pousada numa grande rocha de literatos, ela observa para ser vista:

«Não é fácil que os talentos
dos aposentos interiores sejam conhecidos,
Jogar com a tinta à luz das velas
é diversão suficiente.»

24 Abr 2023

Monções e instrumentos de navegação (XII)

A armada de Zheng He, ao atravessar os oceanos com a ajuda dos ventos das monções, conjugava Astronomia e o uso da bússola marítima combinando-as com as cartas de navegação aprimoradas ao longo das viagens. Deste modo conseguia-se definir com rigor a posição das embarcações e as direcções a seguir, e evitar os naturais obstáculos dos percursos.

Os mapas e cartas utilizados por Zheng He partiam de Nanjing e registavam também a Geografia Física de 56 rotas distintas, com instruções sobre profundidade das águas, correntes, localização de bancos de areia, penedos e ilhas recifes e a linha de costa desenhada com povoações, portos, rios e silhuetas das montanhas, paisagens reconhecidas em milénios de visualizações. Assim, com céu limpo ou em nevoeiro se conseguia ter o posicionamento dos barcos através das cartas náuticas e a ajuda da bússola marítima ligada a uma esfera armilar com o mapa do Céu a ser movido por um relógio de água. No entendimento das correntes e dos ventos sazonais específicos a cada zona dos mares e oceanos encontrava-se as melhores rotas marítimas para circular em cada época do ano.

Os ventos sazonais no hemisfério Norte, durante a monção de Verão sopram de Sudoeste entre Abril e Outubro, a permitir navegar desde os países do Sudeste Asiático para o subcontinente indiano, levando no Mar Arábico os barcos para Leste e no Mar Vermelho, para Sul.

Para se apanhar esses ventos da monção, partia-se da China nos finais de Outubro e navegando no Pacífico para Sul, chegava-se em cinco, seis semanas ao Sudeste Asiático, mais propriamente a Sumatra (actual Indonésia), quando aí terminava a monção, ou a Malaca (Tailândia), onde as duas monções se encontram. Nos portos do Estreito de Malaca esperava-se a Primavera para retomar a navegação para Oeste. Já na monção de Inverno, entre Outubro e Abril, os ventos trazem a direcção de Nordeste e retorna-se da Índia para o Sudeste Asiático, ou leva-se os juncos à costa africana, possibilitando também a subida do Mar Vermelho.

Na navegação usava-se relógios de água, ampulhetas com areia, ou a queima de paus de incenso, para medir o tempo e o dia estava dividido em 10 geng, conseguindo os barcos viajar 40 a 60 li [1 li ±. 0,5 km] por geng, isto é, 20 a 30 km em duas horas. Usual era medir-se o percorrido usando uma pessoa do barco e deitando à água uma fileira de tábuas, se a pessoa chegava primeiro era conhecido por ‘bu shang geng’, mas se o pedaço de madeira ganhava avanço era ‘guo geng’. A distância navegada podia ser determinada calculando a diferença entre essas medições e a estimativa do geng, segundo nos explica Zheng Yi Jun.

A direcção da navegação da armada era na viagem guiada por a bússola e o geng (instrumento e unidade de medida de tempo e distância de viagem). Com céu limpo usava-se também a técnica da observação das estrelas ao longo do oceano para discernir melhor a posição do barco. As Cartas de Navegação de Zheng He continham compreensivas informações sobre Astronomia Náutica e registavam um amplo conhecimento do Céu.

MEDIR ALTURA DOS ASTROS

Fundamental para a navegação era o estudo do Céu e aliando o conhecimento dos astros ganhava-se uma orientação para quem cruzava os oceanos. De uma maneira primária e útil, o Sol ergue-se de Leste ao fazer nascer o dia e seguindo a abóboda celeste poe-se a Oeste, terminando assim o dia solar. À noite media-se pela altura das estrelas as distâncias, conjugando-as com os rumos registados nas cartas e nessa navegação astronómica a armada de Zheng He viajou entre continentes.

O Mapa do Céu estava já bem desenvolvido no século IV a.n.E., quando Shi Shen (石申), que fixara 138 constelações e contara 810 estrelas e Gan De (甘德), que observara e fixara 118 estrelas e contara 511 estrelas em todo o Céu, registaram no livro Tianwen (天文, Astronomia, ou Modelo do Céu) a posição de 121 estrelas e as localizaram num anel armilar. Este foi aprimorado com outro anel no ano 84 por o astrónomo Jia Kui (贾逵, 30-101), a mostrar o movimento do Sol (a eclíptica) no Céu.

A esfera armilar apareceu após o astrónomo Zhang Heng (张衡, 78-140) em 117 ter construído em bronze o Globo Celeste para mostrar os fenómenos astronómicos e nele gravou com precisão e nas proporções o Equador, os polos Norte e Sul e as estrelas, segundo as suas observações astronómicas e o ligou a um relógio de água, num mecanismo conduzido de forma ao globo rodar à medida do correr da água contra ele. No ano 125 acrescentou um terceiro anel à esfera armilar (浑天仪, Hun Tian yi) e o movimento interligado de cada, relacionado com os outros anéis, dava a posição esperada das estrelas a aparecer nos locais do Céu por onde se ia navegando.

Assim se foram reconhecendo em diferentes localizações as estrelas e constelações, tal como as suas posições. A Estrela Polar guiava no hemisfério Norte, descendo no horizonte à medida da aproximação à linha do Equador e já no outro lado apareciam novas estrelas e constelações, onde dominava o Cruzeiro do Sul, a orientar os barcos no hemisfério Sul.

O método mais utilizado na navegação oceânica da armada capitaneada por Zheng He era a orientação pelos astros e consistia no observar a altura da Estrela Polar para definir a posição das embarcações. Segundo Zheng Yi Jun, “A técnica de orientação pelas estrelas realizava-se através dum instrumento de observação chamado ‘Tábua de levar as estrelas’. Composto por 12 peças de tamanhos diferentes e de pau-preto, eram quadradas, sendo a maior [chamada de 12 Zhi] com 24 cm de lado, tendo a seguinte 22 cm, decrescendo sucessivamente dois centímetros até à peça menor que media 2 cm, [denominada 1 Zhi], havendo ainda uma peça de marfim com 6,66 cm de lado a que faltavam os quatro cantos.” (…) “Para usar a tábua, a mão esquerda segurava-a a meio de um dos lados, com o braço estendido, de modo a ficar num plano perpendicular em relação à superfície da água. O bordo superior da tábua colocava-se virado para a estrela em observação e o bordo inferior paralelo à linha de superfície do mar.

Desta maneira, media-se a altura entre o astro e a superfície do mar. Conforme a altura do astro, escolhia-se de entre as tábuas até que uma delas tangesse o astro pelo bordo superior enquanto o inferior coincidia com a linha de superfície do mar. O número de Zhi da tábua utilizada equivalia à altura do astro. Se com uma tábua não se conseguisse a tangência, escolhia-se uma tábua maior. Observando-se através do seu bordo gravado em combinação com a utilização da peça de marfim [cujo comprimento dos seus lados era respectivamente ½, ⅛, ¼, ¾ do comprimento da peça com 1 Zhi do lado da ‘Tábua de levar da estrelas’] obtinha-se a medida angular (Jiao). Deste modo, conseguia-se o número Zhi e Jiao da altura do astro. [Um Zhi era dividido em 4 Jiao]. A utilização combinada das tábuas e da peça de marfim permitia a medição angular com precisão, até meio grau. Se o astro observado fosse a Estrela Polar, obtinha-se primeiro o número de Zhi que se convertia na medida angular. Deste modo se achava a latitude do lugar.”

Já a técnica para calcular a profundidade do oceano era designada por ‘da shui’ e existiam dois métodos: o ‘xia gou’ e ‘yi sheng jie zhi’. O equipamento de medição não só calculava a profundidade como as condições à superfície, a determinar se era propício ancorar num determinado lugar, assim como avaliar as condições do chão do oceano.

21 Abr 2023

Os Pictogramas e o Espelho da Natureza

Durante longo tempo houve animada esgrima nos campos da sinologia linguística. Uns defendiam que a escrita chinesa não deveria ser considerada essencialmente imagética, pois era tão convencional e arbitrária como qualquer outro sistema linguístico, outros como Bernhard Karlgren (1889-1978) em Sound and Symbol in Chinese (1990) procuravam realçar o carácter pictórico desta escrita.

Uma leitura atenta da referida obra de Karlgren é o suficiente para se compreender que o sinólogo não teve qualquer intenção de reduzir a escrita chinesa a pictogramas. Ele reconhece claramente que os pictogramas constituem um décimo deste tipo tão original de caligrafia, sendo a maioria dos caracteres compostos por uma parte ideográfica, e uma outra fonética. Diz-nos o autor que:

“os chineses descobriram um meio simples e conveniente de criar novos caracteres ad libitum no método de compor novos caracteres, por meio dum indicador de sentido, o radical, e um indicador de som, o elemento fonético: a esmagadora maioria dos caracteres chineses – cerca de nove décimos- é composta desta forma.” (Karlgren, 1990: 44)

O sinólogo defende que a escrita chinesa começou por ser imagética, procurando desenhar e reproduzir a natureza duma forma realista, tentava imitá-la para a referir, mas aos poucos foi evoluindo para um sistema linguístico bem mais abstracto e complexo, aproximando-se com os seus compostos dos tipos fonéticos de escrita. Veja-se como resume a evolução da escrita chinesa:

“a primeira fase foi a da escrita imagética, que continuou por longo tempo, até que o stock de caracteres foi alargado, primeiramente por compostos lógicos, mais tarde por compostos fonéticos.” (Karlgren, 1990: 47)

Como devemos denominar os caracteres chineses é, sem dúvida, uma questão pertinente no âmbito da Sinologia. Há quem lhes chame ideogramas, uma vez que cada caracter transmite uma ou várias ideias, há quem os considere, na esteira de Bussmann (Apud Peixoto, 2014: 19), semeogramas, pretendendo com o termo derivado da semiologia de Saussurre, enfatizar o aspecto semântico-visual da escrita como refere Bruna Peixoto no seu trabalho Chinês e Português, Distância Linguística e Sociocultural (Ibidem).

No que me diz respeito prefiro a nomenclatura escolhida por Alexandre Li Ching, o autor de A Estrutura da Língua Chinesa (Li 1994: 34), que, denomina as palavras chinesas caracteres ou ideogramas, dividindo-os em seis categorias:

• Pictogramas, que o autor define como tendo por origem objetos desenhados: sol(日 rì); cavalo(马mǎ); fogo(火huǒ); água(水 shuǐ), há cerca de seiscentos na língua chinesa;
• Ideogramas, ou seja, os compostos lógicos de Karlgren, que indicam esquematicamente as ideias: um (一 yī); dois(二èr); três(三sān); cima (上shàng); baixo (下xià), sendo cerca de 100;
• Ideogramas compostos, em que o sentido é obtido pela relação ou associação dos componentes claro (明míng), paz(安ān); bom(好 hǎo); homem(男nán), são cerca de 750;
• Ideofonogramas, caracteres constituídos por um elemento que transmite a ideia, o ideoclassificador, surgindo habitualmente associado ao radical, e um outro componente, a parte fonética, que indica a pronúncia, como: açúcar( 糖táng),machado(斧 fǔ), mãe (妈mā), pai(爸bà), estes constituem a maioria dos caracteres.
• Símbolos transferidos, caracteres em que se procede a uma extensão ou alargamento do sentido primitivo, sendo um dos caracteres mais utilizados para exemplificar esta classe, 网wǎng, que de rede para apanhar peixes alargou o seu sentido até à internet (网络wǎngluò、网上wǎngshàng、网站wǎngzhàn)
• Falsos empréstimos, caracteres utilizados pelo seu valor fonético, que representam na origem uma palavra apenas homófona, por exemplo 来lái, que era espiga duma espécie de grão, tendo passado a significar o verbo vir.

Entre os seis tipos de caracteres chineses, vamos então encontrar os pictogramas, aqueles caracteres que traduzem o espírito essencial, no sentido de primevo da escrita chinesa. Esta procurou na sua génese mimetizar a realidade, proporcionando à comunidade chinesa desenhos ou imagens fidedignas da mesma. Se não pretendessem sê-lo, o valor utilitário da comunicação teria diminuído. Porém, não é intenção com o afirmado reduzir a primeira escrita chinesa a um conjnto de símbolos utilitários, já que o ser humano revela, desde o seu aparecimento, uma forte tendência lúdica e artística.

A principal questão que se coloca a este tipo de escrita do ramo sino-tibetano, definida como ideográfica ou semântico-visual, é: se os pictogramas se podem definir exclusivamente como desenhos da realidade e o que tal significa?

Será que um desenho da realidade implica apenas uma cópia da mesma, realista, ou até segundo algumas tendências contemporâneas, hiper-realista, e, portanto, um olhar e um traço dominado pelo objeto? Ou desde o primeiro momento encontramos uma postura ativa do comunicador, do artista e do ser religioso que apresenta, oferece e nomeia a realidade que o interpela?

Defendo que os pictogramas já poderiam ser introduzidos na classificação de ideogramas, uma vez que tendem a ser esquemas da realidade, ou seja, interpretações do criador linguístico.

A este respeito, um exemplo notável é a introdução da escrita do Pequeno Selo (小篆Xiǎozhuàn), pelo primeiro-ministro de Qin Shihuang (秦始皇Qínshǐhuáng), Li Si (李斯Lǐsī), que, conforme relata Karlgren, se distinguiu na caligrafia, criando “um novo catálogo oficial de caracteres para orientação dos escribas. Ele fez o possível para preservar os antigos caracteres, mas simplificou-os, tendo substituído com frequência os velhos desenhos por algumas linhas sumárias.” (Kalgren, 1990:48)

A meu ver, desde cedo encontramos uma postura extremamente ativa da parte daquele que regista e nomeia a natureza circundante. A comunidade linguística chinesa revelou a tendência de fixar e preservar a realidade duma determinada maneira, mais próxima da natureza, menos abstracta, manifestando um notável espírito realista e atenção ao pormenor. Talvez estas características não sejam exclusivas da mente chinesa, já que encontramos na escrita hieroglífica, por exemplo, na egípcia, o mesmo tipo de tendência.

O que parece ser específico da mente chinesa é a incorporação e preservação dos seus pictogramas até à atualidade. Estes caracterizam-se por serem cópias deliberadas da natureza circundante, considerada perfeita para a transmissão das mensagens quotidianas, religiosas e artísticas.

Para exemplificar o tipo de espírito que creio ter estado na base dos registos pictóricos, perpetuados até à atualidade, relato a história proverbial conhecida pela grande maioria dos chineses: O Peito Transformou-se em Bambu, atribuída ao registo poético de Chao Buzhi (晁补之, 1053-1110) da Colectânea Costela de Galinha (鸡肋集 Jīlèi JÍ), um título humilde, indicando coisas sem valor. E, no entanto, daqui é extraída uma das mais interessantes histórias proverbiais chinesas, Xiōngyǒu-chéngzhú (胸有成竹)que pode ser traduzida por “O peito transformou-se em Bambu”

O Peito Transformou-se em Bambu

Nos tempos da dinastia Song, viveu Wen Yuke na província de Sichuan, ele pintava muito bem. Gostava especialmente de pintar bambu, por isso plantou um bambual nas traseiras de casa que podia observar com todo o rigor da sua janela na Primavera, no Verão, no Outono e no Inverno, de manhã ao anoitecer, fizesse chuva ou sol.

Seguia minuciosamente as mudanças e as formas dos ramos e das folhas do bambu ao longo das quatro estações, após o que procurava ser o mais fiel possível ao bambu nas suas pinturas.

Ao tempo vivia também um letrado chamado Chao Buzhi, que muito admirava o talento de Wen Yuke para pintar o bambu, tendo escrito um poema em seu louvor, onde se podia ler: “Wuke ao desenhar, já tem o peito transformado em bambu.” Tal significa que Wen Yuke ao pintar já possuía a imagem completa do bambu.

(胸有成竹)
宋朝的时候,四川有一个叫文与可的人,他很会做诗画画儿,特别喜欢画竹子。在他的窗前房后,种了很多竹子。从春夏到秋冬,从早晨到晚上,不论晴天雨天,他总是仔细地观察那些竹子。竹子的枝叶在不同的季节,不同的时间,不同的气候下是什么样子,有什么变化,他都观察得很仔细,他画的竹子跟真的一样。
那时候有一个文学家叫晁补之,非常佩服文与可画竹子的才能,而且写了一首诗来称赞他。其中有两句说: “与可画竹时,胸中有成竹。”意思是文与可画竹子的时候,胸中已经有了完整的竹子形象。) (北京语言学院,1984, 75-77).

Também a escrita e a caligrafia chinesas possuem imagens completas e profundas da realidade que pretendem retratar, esquematizar, idealizar ou recriar, gerando-se entre o que escreve a escrita uma identificação profunda, por osmose, porque de tanto contemplar se transforma o contemplador na coisa contemplada ou, como diria Luís de Camões, o amador na coisa amada.

Bibliografia

北京语言学院编(Instituto de Línguas de Beijing, ed.) 1984《基础汉语课本》阅读材料。Proverbes Chinois Annotes成语故事选.北京:外文出版社
Karlgren, Bernhard. 1990 [1962] Sound and Symbol in Chinese. Hong Kong: Hong Kong University Press.
Lai, T.C (赖恬昌)1980 Chinese Characters. Hong Kong: Swindon Book Company
Li Ching, Alexandre. 1994. A Estrutura da Língua Chinesa《汉语结构》Lisboa: Fundação Oriente.
Peixoto, Bruna. 2014. Chinês e Português, Distância Linguística e Sociocultural. Famalicão: Instituto Confúcio da Universidade do Minho, Húmus

20 Abr 2023

Xunzi 荀子 – Elementos de ética, visões do Caminho

Da Nomeação Correcta, Parte VII

E, assim, os ensinamentos do sábio são tais que, se neles ponderarmos, é fácil compreendê-los. Se os pusermos em prática, será fácil encontrar segurança. Se os afirmarmos será fácil manter a nossa posição. Se os seguirmos completamente, obteremos aquilo que desejamos e evitaremos aquilo que detestamos. Os ensinamentos do insensato são o oposto disto. As Odes dizem:

Se fosses um fantasma ou um yu
Seria impossível derrotar-te.
Mas tu tens infames rosto e olhos humanos
E mostras-te incorrecto com os outros.
Por isso criei esta canção que agora canto
Para te corrigir as maneiras impias e falsas.

Isto exprime o que quero dizer.

Todos aqueles que dizem que a boa ordem só se seguirá à eliminação dos desejos são pessoas a quem faltam os meios para conduzir o desejo e que são incapazes de lidar com o simples facto de terem desejos. Todos aqueles que dizem que a boa ordem deve aguardar a diminuição dos desejos são pessoas a quem faltam os meios para refrear o desejo e que são incapazes de lidar com a abundância de desejos. Ter desejos, ou não ter desejos, são coisas de dois tipos, tais como estar vivo ou estar morto, e nada tem a haver com ordem ou desordem. Ter muitos desejos, ou ter poucos desejos, também são coisas de tipo diferente e referem-se ao número de disposições das pessoas, mas nada tem a haver com ordem e desordem.

A ocorrência de desejos não aguarda permissão para que sejam satisfeitos, mas aqueles que os procuram satisfazer seguem aquilo que lhes parece adequado. O facto de a ocorrência de desejos não aguardar permissão para a sua satisfação é algo recebido do Céu. O facto de aqueles que os procuram satisfazer seguirem o que lhes parece adequado é algo recebido do coração. Quando um só desejo recebido do Céu é controlado por inúmeras coias recebidas do coração, será decerto difícil classificá-lo como algo verdadeiramente recebido do Céu.

Nota

Xunzi (荀子, Mestre Xun; de seu nome Xun Kuang, 荀況) viveu no século III Antes da Era Comum (circa 310 ACE – 238 ACE). Filósofo confucionista, é considerado, juntamente com o próprio Confúcio e Mencius, como o terceiro expoente mais importante daquela corrente fundadora do pensamento e ética chineses. Todavia, como vários autores assinalam, Xunzi só muito recentemente obteve o devido reconhecimento no contexto do pensamento chinês, o que talvez se deva à sua rejeição da perspectiva de Mencius relativamente aos ensinamentos e doutrina de Mestre Kong. A versão agora apresentada baseia-se na tradução de Eric L. Hutton publicada pela Princeton University Press em 2016.

18 Abr 2023

O rolo de You Qiu onde vai a bagagem de um imortal

Ge Hong, também conhecido como Ge Zhichuan (283-343), autor do dicionário Ziyuan “Jardim de caracteres”, é também autor de um conjunto de textos designados Baopuzi “Mestre que abraça a simplicidade”, divididos em duas partes que recolhem: de um lado, Capítulos exteriores, Weipian – entre outros os fundamentos do humanismo confuciano que designou como «o ramo» (mo); e do outro Capítulos interiores, Neipian – a filosofia e a incontida imaginação no relato de ocultas práticas daoístas que designou «o tronco» ou «origem» (ben) tal como circulavam no seu tempo, na região de Jiangnan. De si mesmo escreveu (Capítulos exteriores, 50):

«Sou uma pessoa simples, aborrecido por natureza e gaguejo. Minha aparência física é desagradável e nem sou suficientemente competente para me gabar ou polir os meus defeitos. Meus chapéus e sapatos andam sujos; e as roupas, por vezes ainda piores, nem podem ser remendadas. Mas isto nem sempre me incomoda. Estilos de roupas mudam muito depressa e muitas vezes. Num momento são largas no pescoço e o cinto é largo; noutra altura são ajustadas e com mangas largas; mas de novo compridas, varrem o chão ou tão curtas que nem cobrem os pés. Sendo um homem simples, o meu plano é preservar a regularidade e não seguir as modas do dia. O meu discurso é franco e sincero, não me entrego à galhofa. Se não encontrar o interlocutor certo, sou capaz de ficar o dia todo em silêncio. Esta é a razão por que os meus vizinhos me chamam ‘o que abraça a simplicidade’, Baopu, nome que uso como pseudónimo naquilo que escrevo.»

Demonstrava assim que os antigos imperadores, Qin Shihuang ou Han Wudi na sua aspiração à imortalidade – xian, se iludiam ao não cultivarem o Dao.

Wang Meng (1308-85) figurou-o a caminho de atingir esse objectivo (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 139 x 58 cm, no Museu do Palácio em Pequim). Diante de densas e agitadas montanhas, ele vai sobre uma ponte, ao lado mas ainda não sentado sobre um veado, conhecida montada de deuses. Também a sua esposa com um filho ao colo, vem sentada numa vaca e outros criados em redor transportam objectos da sua casa em mudança.

Mas a constante republicação do Cânone Daoísta (Daozang) de que os seus escritos faziam parte, inspiraram outros como You Qiu (c. 1525-80) que no rolo horizontal (tinta sobre papel, 533,4 x29,5 cm, no Museu Britânico) o mostra sentado numa mula, nesse trânsito a caminho do Monte Luofu (Guangdong), onde terá alcançado a imortalidade.

Seis criados acompaham-no, carregados de toda a espécie de objectos associados a um erudito funcionário, cujas vestes enverga sob um casaco de pêlo aos ombros. Como mestre do Dao é identificado por objectos como ceptros ruyi ou bastões em crú. De modo subtil toda a natureza se parece inclinar para trás à passagem da caravana que mostrava doméstica a vida do imortal.

18 Abr 2023

Bai Juyi – A Canção do Alaúde

Tradução de António Graça de Abreu

Esta Canção do Alaúde é um dos mais famosos poemas de toda a vastíssima poesia chinesa. Escrito por 白居易Bai Juyi (772-846), quando seu exílio em Jiujiang, no ano de 816, permanece como uma das obras-primas saída da pena, do entendimento, da sensibilidade e do engenho do grande Bai Juyi. Eis uma possível tradução do poema.

琵琶行并序

元和十年,予左遷九江郡司馬。明年秋,送客 湓浦口,聞船中夜彈琵琶者,聽其音,錚錚然 有京都聲;問其人,本長安倡女,嘗學琵琶於 穆曹二善才。年長色衰,委身為賈人婦。遂命酒,使快彈數曲,曲罷憫然。自敘少小時歡樂事,今漂淪憔悴,轉徙於江湖間。予出官二年恬然自安,感斯人言,是夕,始覺有遷謫意,因為長句歌以贈之,凡六百一十六言,命曰琵琶行。

潯言江頭夜送客
楓葉荻花秋瑟瑟
主人下馬客在船
舉酒欲飲無管絃
醉不成歡慘將別
別時茫茫江浸月
忽聞水上琵琶聲
主人忘歸客不發
尋聲暗問彈者誰
琵琶聲停欲語遲
移船相近邀相見
添酒回燈重開宴
千呼萬喚始出來
猶抱琵琶半遮面
轉軸撥絃三兩聲
未成曲調先有情
絃絃掩抑聲聲思
似訴平生不得志
低眉信手續續彈
說盡心中無限事
輕攏慢撚抹復挑
初為霓裳後六么
大絃嘈嘈如急雨
小絃切切如私語
嘈嘈切切錯雜彈
大珠小珠落玉盤
間官鶯語花底滑
幽咽泉流水下灘
水泉冷澀絃凝絕
凝絕不通聲漸歇
別有幽愁暗恨生
此時無聲勝有聲
銀瓶乍破水漿迸
鐵騎突出刀鎗鳴
曲終收撥當心畫
四絃一聲如裂帛
東船西舫悄無言
唯見江心秋月白
沈吟放撥插絃中
整頓衣裳起斂容
自言本是京城女
家在蝦蟆陵下住
十三學得琵琶成
名屬教坊第一部
曲罷曾教善才服
妝成每被秋娘妒
五陵年少爭纏頭
一曲紅綃不知數
鈿頭銀篦擊節碎
血色羅裙翻酒汙
今年歡笑復明年
秋月春風等閑度
弟走從軍阿姨死
暮去朝來顏色故
門前冷落車馬稀
老大嫁作商人婦
商人重利輕別離
前月浮梁買茶去
去來江口守空船
繞船月明江水寒
夜深忽夢少年事
夢啼妝淚紅闌干
我聞琵琶已嘆息
又聞此語重唧唧
同是天涯淪落人
相逢何必曾相識
我從去年辭帝京
謫居臥病潯陽城
潯陽地僻無音樂
終歲不聞絲竹聲
住近湓江地低濕
黃蘆苦竹繞宅生
其間旦暮聞何物
杜鵑啼血猿哀鳴
春江花朝秋月夜
往往取酒還獨傾
豈無山歌與村笛
嘔啞嘲哳難為聽
今夜聞君琵琶語
如聽仙樂耳暫明
莫辭更坐彈一曲
為君翻作琵琶行
感我此言良久立
卻坐促絃絃轉急
淒淒不似向前聲
滿座重聞皆掩泣
座中泣下誰最多
江州司馬青衫濕

Canção do alaúde1

No décimo ano do período Yuanhe 2 fui despromovido e afastado da corte, com o cargo de intendente militar em Jiujiang. No Outono do ano seguinte, em Penpu, quando me despedia de um amigo, ouvi ao longe o tanger de um alaúde, tocado da maneira utilizada na capital. Procurei a pessoa que descuidadamente dedilhava as cordas e encontrei uma antiga cantora de Chang’an que, esgotada a sua beleza, era agora companheira de um mercador. Mandei vir vinho e pedi à antiga cortesã que tocasse um pouco mais. Depois, ela falou-nos do tempo feliz da sua juventude e de como agora era obrigada a viajar, em terras distantes, por rios e lagos. Desde a minha partida da capital jamais me sentira tão triste e infeliz. Compreendi nessa noite o real significado da palavra exílio. Escrevi então este longo poema, com 616 caracteres3 e ofereci-o a essa mulher.

À noite, um adeus ao amigo nas margens do rio,
as folhas do ácer, o vento de Outono sussurrando nos juncais.
Desmontei do cavalo, meu amigo já na barca, prestes a partir,
bebemos taças de vinho, sem música para nos acompanhar.
Brindámos tristes, por cada taça, mais próxima a separação,
adeus, as águas do rio já humedecendo a lua.
Eis, de súbito, o som de um alaúde sobre as águas,
esqueço o regresso, meu amigo esquece a partida.
Ambos seguimos a música, em busca de quem toca,
a melodia extingue-se, diante de nós uma mulher em silêncio.
Aproximamos da sua a nossa barca, convidamo-la a mostrar-se,
vamos buscar mais vinho, avivamos a luz das lanternas, recomeçamos o banquete.
Mil vezes pedimos que venha até nós,
aparece por fim, o rosto meio escondido atrás do alaúde.
Afina a guitarra, dedilha as cordas ao acaso,
não toca ainda, eis-nos mergulhados em enlevo e magia.
Um repassar de emoções em cada som, em cada nota,
acordes manchados de tristeza e nostalgia.
De olhos baixos, os dedos acariciando as cordas de seda
transmitem a amargura que lhe vai no coração.
Melodias suaves, um canto vibrante, uma súbita paragem,
ouvimos o “Vestido de Arco-Íris”, a “Ronda dos Seis Tambores”.
As notas altas ressoam como chuva em noite de tempestade,
as notas baixas como um ciciar segredado de amantes.
Tons graves e agudos entrechocando-se, mesclando-se,
como pérolas grandes e pequenas tombando num prato de jade.
A música saltitante como um pintassilgo entre as flores,
gotejante como água das fontes caindo sobre areia.
Depois, acordes como cristais de gelo, as cordas parecem romper,
a música fria, sussurrante, extinguindo-se pouco a pouco.
Agora um silêncio mais eloquente que todos os arpejos,
melancolia, a água correndo após o quebrar do jarro de prata.
Outra vez o tinir de espadas e lanças, uma zoada de armaduras,
os acordes finais brotando do coração do alaúde,
quatro cordas emitindo um único som, o do rasgar da seda.
As barcas, a leste, a oeste, mergulhadas em silêncio,
apenas a lua de Outono prateando o leito do rio.
Suspirando, ela prende a varinha nas cordas do alaúde,
alisa o vestido, ajeita o rosto, levanta-se e fala.

“Nasci na capital, cresci junto à Colina das Rãs,
aos treze anos meus dedos brincavam sabiamente com o alaúde.
Era a aluna mais distinta na escola de música,
professores, mestres aplaudiam meu engenho e destreza.
As mais belas da cidade invejavam meu porte, minha formosura.
Os jovens de Wuling disputavam a honra de me ver,
depois de uma canção ofereciam-me incontáveis peças de seda.
Alfinetes, pentes de prata quebrados descuidadamente,
o vinho caindo ao acaso sobre minha saia cor de sangue.
Escoavam-se os anos entre festas, risos, alegria,
sucediam-se brisas de Primavera, luares de Outono.
Um dia meu irmão partiu para a guerra, minha mãe morreu,
mês após mês, ano após ano desvanecendo-se minha beleza,
diante da porta, carruagens e cavaleiros cada vez mais raros.
Para sempre perdida a mocidade, casei com um mercador,
que, em busca do lucro e do negócio, me deixa abandonada.
Partiu o mês passado para comprar chá em Fuliang,
desde então permaneço nesta barca vazia, na foz do rio,
vogando ao luar sobre águas geladas.
A meio da noite, em sonhos, recordo minha juventude,
vejam como as lágrimas avermelham meu rosto pintado.”

Ao ouvir esta mulher tocar o alaúde,
já os soluços se me prendiam na garganta.
Agora, escutando sua história, em mim uma emoção imensa,
nós dois, destroços encalhados nas margens do céu,
finalmente próximos através de um encontro fortuito.
O ano passado fui obrigado a abandonar a capital,
a viver exilado nesta cidade de Xunyang.
Doente por terras estranhas, sem guitarras nem flautas,
minha casa em Penjiang, ao lado do rio pantanoso,
rodeada de canaviais amarelecidos, de bambus amargos.
Nesse lugar, ao nascer o dia, ao entardecer, à noite
ouve-se apenas o guincho dos macacos, o piar triste dos cucos.
Em tempo de Primavera e de flores, de Outono e de luar,
ergo muitas vezes a minha taça e bebo solitário.
Sim, há cânticos camponeses e flautas aldeãs,
mas as notas estridentes magoam meus ouvidos.
Esta noite chegou até mim o harmonioso tanger de um alaúde,
música celestial retocada por mãos de fada.
Silenciosa, sentada, a mulher ouve minhas palavras,
digo-lhe que vou escrever um poema, a “Canção do Alaúde”.
Ela pega, de novo, na guitarra, acaricia tristemente as cordas
e vai arrancando notas intensa, saudosamente magoadas.
Eu escondo os olhos, o pranto mancha nossas faces.
Quem mais chorou?
A cabaia azul do intendente de Jiujiang inundada de lágrimas.

17 Abr 2023

Giorgio Sinedino: “O domínio do idioma e a experiência de vida na China são indispensáveis”

Por Alessandra S. Brites, da agência Xinhua

 

Nos últimos tempos, as relações entre China e Brasil têm sido desenvolvidas com foco na aproximação e entendimento mais aprofundado de ambas as partes, em diversas áreas. Mas, no que diz respeito ao sector cultural e, especificamente, o literário, muito ainda necessita ser explorado, melhorado e consolidado. O sinólogo, professor e tradutor brasileiro residente em Macau, Giorgio Sinedino, responsável pela tradução de clássicos directamente do chinês clássico para o português, como “Analectos” de Confúcio, “Dao De Jing” de Laozi e o “Imortal do Sul da China” de Zhuangzi, em entrevista exclusiva para a Xinhua, abordou alguns dos desafios que a literatura chinesa ainda enfrenta para ser mais conhecida no Brasil.

“Acredito que existe um mercado, de nicho, que cresce em função do aumento da influência chinesa e de sua paulatinamente maior visibilidade. No entanto, tal como em outros países ocidentais, o nosso interesse pela literatura chinesa ainda é motivado pelo quadro político e geopolítico. Julgo importante tentarmos dar um valor autónomo para a literatura chinesa, deixando de lado outros problemas que não sejam o de simplesmente compreender a China e a sua civilização em si”, afirmou.

Sinedino, que neste ano vai lançar uma tradução de “Grito”, de Lu Xun, pela Editora 34, e planeia uma tradução comentada da “Arte da Guerra” de Sunzi para o ano vindouro, pela Editora da Unesp, diz ainda que entre os empecilhos para a cooperação no sector literário está a tradição intelectual e artística da China que se destaca fundamentalmente do mundo ocidental, local onde também é incluída a literatura brasileira.

“Alguns dos obstáculos são estruturais, difíceis de ultrapassar. Por exemplo, o facto de que a língua chinesa pertence a uma outra família, a sino-tibetana, sem parentesco algum com o nosso português. Na realidade, o chinês é uma colecção de dialectos. É uma família linguística que cresceu milenarmente para dentro, sem estar relacionada a qualquer outro idioma de qualquer outro país vizinho no mundo moderno”, argumentou o professor que enfatiza ser a tradução de obras clássicas chinesas, ainda que com os desafios apresentados, uma boa aposta para o mercado no Brasil.

Uma lição da literatura coreana e japonesa

Actualmente uma série de obras japonesas e sul-coreanas estão disponíveis em maior número no mercado literário brasileiro do que títulos de obras chinesas. Para o sinólogo Giorgio Sinedino esta questão ocorre não apenas em razão da presença de um maior número de imigrantes, no caso do Japão, mas também porque as culturas japonesa e coreana utilizaram meios de massa, a criação de estilos e de modas, para dar mais visibilidade ao que têm de característico em termos literários.

“Ambos aproveitaram um mercado cultural internacional, mediado pelas indústrias dos EUA, para se enraizarem globalmente no sector cultural. Quanto à literatura, esta beneficia-se e cresce no empuxo da vanguarda da cultura de massa. Hoje em dia, o meio literário tem forças limitadas para se projetar independentemente das artes multimidiáticas, pelo menos no que se refere ao grande público”, salientou.

A capacitação de futuros tradutores no Brasil

De acordo com Sinedino, o Brasil necessita constituir uma base sólida na capacitação de profissionais que venham a trabalhar com literatura e artes chinesas. “O domínio do idioma chinês e a experiência de vida na China são indispensáveis, o que infelizmente se constitui numa barreira económica proibitiva para muitos. Esses profissionais de ponta teriam os meios para desenvolver o ‘nicho chinês’, não só oferecendo traduções de qualidade produzidas sem intermediários, mas, sobretudo, sendo qualificados para educar o público leitor.”

Segundo o professor, antes de julgar as obras escritas em chinês antigo, é preciso conhecê-las e fazer as referências adequadas à língua e cultura das quais originaram-se, o que presume um certo conhecimento sistemático da literatura chinesa e das regras e padrões que segue.

“À medida que aliviamos a influência desses gargalos, podemos pensar em como organizar equipes de tradutores. É preciso também destacar pontos de apoio em instituições de ensino ou associações civis para mantermos o momento dessas obras, quem sabe através de departamentos académicos especializados, de instituições de fomento, de iniciativas como prémios”, diz o académico.

“Esse é o ponto de partida para falarmos sobre os desafios do tradutor de língua portuguesa. Ele não pode, não deveria, começar a trabalhar antes de enfrentar certas questões sobre a natureza do texto que tem diante de si. Por exemplo, o que é literatura, na trajectória do pensamento chinês? Qual a sua função social? Quais os critérios que separaram esta obra que está traduzindo das outras, como representativa do que há de melhor na tradição chinesa? O que os leitores originais apreciaram e apreciam nesse texto e como esses valores literários podem (se for o caso) ser reproduzidos numa tradução? A partir de um tal diagnóstico, o tradutor é capaz de planejar melhor o seu esforço de mediação cultural, demanda tão mais exigente, quanto mais antigo for o texto”, conclui.

Quanto aos desafios de traduzir obras da literatura chinesa moderna, Sinedino acredita que a falta de experiência por parte do leitor de língua portuguesa sobre o que significa ser chinês, viver na China e escrever sobre ela é um obstáculo difícil ainda de ser superado. Porém, à medida que o conhecimento aprofundado sobre China vai sendo mais difundido ao longo dos anos no Brasil, tais dificuldades começam a ser menos preponderantes.

Primeira parte do século XX: o encontro possível entre a literatura brasileira e chinesa

Como explica Sinedino, a história literária de ambos os países diferencia-se e muito, pois a literatura brasileira é uma ramificação das literaturas em línguas românicas, provenientes da literatura em Latim, a qual conta cerca de 1500 anos de desenvolvimento. “Já a literatura chinesa cresceu em torno de um conjunto de obras, os ‘Jing’ – Clássicos Ortodoxos relacionados ao Confucionismo, escritos em chinês antigo, uma língua artificial muito diferente do idioma falado”, explicou.

Contudo, a política de Abertura e Reforma impulsionou na China um grande movimento de tradução de literatura estrangeira, principalmente durante os anos 1990 e 2000, relatou Sinedino. “É possível encontrarmos pontos em comum desde as referências mútuas que os autores e leitores contemporâneos, brasileiros e chineses, fazem de suas influências. Falando um pouco mais especificamente sobre estilo e forma literária, a prosa chinesa do século XX é predominantemente de esquerda. Por tal motivo, aos nossos olhos, é uma contínua reiteração do realismo social. Não vejo erro em afirmarmos que há alguma margem de comparação entre essa literatura chinesa, crítica, sobre a vida no campo e a situação do campesinato, e a nossa literatura modernista regionalista de 1930-1945. No entanto, é sempre importante estarmos atentos para as diferenças, porque são elas que ensinam melhor sobre o que é a China e o que é a sua cultura. Creio que a leitura mais interessante de uma obra literária é a que dá destaque às diferentes experiências culturais e diferentes formas de pensar.”

14 Abr 2023