CHINOISERIES Dez ficções luso-chinesas

Lili, cantador de fado
Existe, para os lados de Belém, um painel de azulejos não muito antigo que reproduz a figura de um chinês. O homem reproduzido existiu realmente nas ruas da Lisboa das primeiras décadas do século XX, e chamava-se Li. Os lisboetas de então, com a sua habitual verve, chamavam-no Lili. Tratava-se de um chinês vendedor de rua, natural da província de Zhejiang. Como é sabido, na Lisboa antiga, a Lisboa dos pregões, dos galegos aguadeiros, das varinas e saloios, das mulheres da fava-rica e dos pretos caiadores, havia ainda um outro tipo de vendedor – os chineses das gravatas. O Lili pertencia a esse grupo, pouco numeroso, mas sempre alvo de muita curiosidade por parte dos transeuntes, que pasmavam para eles, desabituados ainda de extravagâncias. O Lili, porém, destacava-se, pois jamais abandonou os trajes tipicamente chineses que trouxera de Zhejiang. Era uma galhofa por essas ruelas abaixo sempre que surgia nas suas cabaias coloridas, caixa de madeira a tiracolo com gravatas para mercar. Excepto quanto à intransigente recusa em envergar vestes ocidentais o Lili era então, e de longe, o chinês mais bem adaptado à vida portuguesa. Por isso, e porque tinha um temperamento alegre e suportava a troça com jovialidade, com resposta pronta para tudo, foi ganhando o respeito e a estima do povo de Lisboa. Pela manhã, podia topar-se com ele a sorver o seu café de lepes e, em a noite caindo, não dispensava o pratinho de iscas com elas, repugnante para qualquer outro chinês. Amantizado com a dona de um café de camareiras, diz-se que frequentava as meias portas, onde agarrava na banza e soltava o fado com espírito, sempre vestido à chinesa e trocando os erres pelos eles, o que lhe valeu a alcunha de “faia amarelo”.
Quando se encomendou o referido painel de azulejos, o artista julgou de gosto exótico, à moda da época, pintar um mandarim. Lembrou-se logo do Lili para fazer de modelo. O chinês aceitou posar com as suas melhores vestes em troca de umas moedas.
O Lili ainda galgaria as calçadas de Lisboa com as suas gravatas durante mais alguns anos mas, após dura rixa numa viela da Mouraria, acabou por fugir para Moçambique, onde terá eventualmente findado os seus dias. Foi visto pela última vez, numa idade já bastante avançada, a dançar o merengue em grupo numa rua esconsa da então Lourenço Marques.
O chinês Lili, tal como a famosa preta Fernanda – que serviu de modelo para a figura feminina em bronze que simboliza a África no pedestal da estátua ao Marquês de Sá da Bandeira -, é uma das duas personagens populares de origem estrangeira da cidade de Lisboa reproduzidas numa obra artística.

Lao Tse e o “Verdadeiro Clássico do Inominável”
Na cave do edifício da Reitoria da Universidade Clássica de Lisboa existe uma biblioteca sinológica da maior importância, que permanece todavia desconhecida do público devido à inexistência no país de especialistas na área. A maioria das obras foi doada pelo Instituto Cultural de Macau. Lá se podem consultar, entre outros tesouros, as obras completas de Ouyang Xiu, a poesia de Li Bai, Du Fu e Bai Ju Yi, os principais romancistas contemporâneos e o Sutra do Diamante.
Nessa biblioteca encontra-se também o único manuscrito existente em todo o mundo da obra atribuída a Lao Tse (Lao Zi), o “Verdadeiro Clássico do Inominável” (無名真經Wu Ming Zheng Jing). Para além do famoso Dao De Jing (道德經Tao Te King), o Wu Ming Zheng Jing é a sua única obra conhecida. Alguns sinólogos estrangeiros opinam que o recentemente descoberto Wu Ming Zheng Jing (abreviado em geral para Wu Jing) é ainda superior ao Dao De Jing.
O manuscrito foi descoberto no túmulo do sábio, no templo de Lou Guan Tai, província de Shanxi. O túmulo foi violado em 1994 durante um ritual secreto praticado por uma seita esotérica de alquimistas taoístas. A seita defende que Lao Tse continua vivo, tal como sua mãe, cujo túmulo se encontra ao lado, uma vez que ambos se dedicaram à prática de lian dan 煉丹, isto é, ao fabrico de pílulas da imortalidade. De facto, mais nada, a não ser o Wu Jing, foi encontrado no túmulo. A obra, mais breve ainda e mais densa do que o Dao De Jing foi caligrafada sobre tiras de bambu, mas desfez-se à medida que um dos iniciados taoístas a copiava apressadamente para um caderno.
No cap. XX do Wu Jing pode ler-se: “Apenas em mim nada é mortal / tesouro do inominável / mistério do grande Dao!” (我獨無死地也 / 無名之寶 / 大道之玄。Wo du wu si di ye / wu ming zhi bao / da dao zhi xuan). Segundo os alquimistas, trata-se, com efeito, de uma obra composta por Lao Tse já depois de se ter tornado um Imortal.
Três meses após a sua inesperada descoberta, o caderno foi vendido ao governo chinês para divulgação, decepado embora num terço das suas páginas. Segundo consta, nessas páginas, Lao Tse descreveria minuciosamente a receita infalível para alcançar a longevidade e a imortalidade, em cuja demanda se aplicaram gerações e gerações de seguidores do taoísmo. O grupo de alquimistas mantém absoluto segredo sobre o seu conteúdo e a pressão do governo para resgatar as folhas tem sido vã. A obra foi publicada incompleta pela Editora Xinhua em 1995. Quanto ao manuscrito truncado, foi roubado em 1998 do depósito da Biblioteca de Pequim, onde se encontrava, para ressurgir posteriormente num leilão da Sotheby’s. Stanley Ho adquiriu-o então a peso de ouro após acérrima disputa com o Instituto Ricci. Como foi parar à cave da Biblioteca da Reitoria da Universidade Clássica de Lisboa, ninguém o sabe explicar. Os descendentes de Stanley Ho encontram-se neste momento em negociações com a dita Reitoria no sentido de reaver o precioso manuscrito.

O incêndio do pavilhão
A cidade de Macau esteve representada na Exposição do Mundo Português em Belém quando decorria o ano de 1940. Construiu-se a Rua de Macau, cujo maior atractivo era um colossal paquiderme de pedra, de tromba erguida e carregando no dorso um pavilhão de dois andares em estilo chinês. O portal que dava acesso a essa rua pode ainda hoje ser visitado entre a folhagem do Jardim Botânico Tropical de Lisboa. No entanto, o elefante com o seu pavilhão desapareceu misteriosamente. O processo relativo ao desaparecimento foi abafado pelo regime de Salazar. Encontra-se na Torre do Tombo e, ainda hoje, não pode ser consultado pelo público em geral.
Segundo consta, a Seita do Dragão Azul, uma seita nacionalista chinesa, mantinha entre os estudantes macaenses residentes em Portugal uma pequena ramificação. Formada ainda sob influência, pelo menos indirecta, do Dr. Sun Yat-sen enquanto este vivia em Macau nos primeiros anos do século XX, a seita encontrava-se então activamente empenhada na luta contra o invasor japonês que ocupava toda a China do leste e, por extrapolação, contra qualquer poder colonizador. Os estudantes macaenses em Portugal receberam ordens para queimar toda a área colonial da Exposição na noite seguinte à da sua abertura oficial. Algo terá, porém, corrido mal e Salazar foi informado a tempo. A vigilância apertou-se em torno da área colonial e os asiáticos, goeses incluídos, passaram a ser discretamente revistados e identificados antes de nela poderem penetrar.
Os planos da Seita do Dragão Azul saíram gorados pela máquina salazarista e os portugueses puderam regozijar-se com a vastidão do seu império. No entanto, na última noite da Exposição, um estudante macaense, de nome Xavier Cheong, conseguiu deitar fogo ao símbolo de Macau. No flanco do elefante de pedra pincelou insultos a Portugal em português e chinês. Foi posteriormente capturado pela PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), a antecessora da PIDE.
Na manhã seguinte à do fecho da Exposição, do pavilhão em madeira restavam apenas cinzas. Salazar ordenou que fossem rapidamente removidas e que lançassem ao Tejo o elefante de pedra, onde ainda hoje provavelmente jaz, sob as mesmas águas que as caravelas sulcaram outrora em demanda do Oriente.

A Pedra das Mutações
Como é comummente sabido, o Jardim da Fundação Gulbenkian contém, na sua arquitectura, elementos de influência sino-japonesa. Um dos mais curiosos é a pedra colocada sobre o relvado que desce para o lago dos nenúfares. A pedra foi transportada para Portugal nos princípios do séc. XVII por um fidalgo aventureiro nascido em Lisboa, Nuno Gouveia de Faria. Julgando-a altamente decorativa, Gouveia de Faria tê-la-ia usurpado de um jardim que existia então em Liampó (Ningbo), como o comprovam fontes inglesas coevas (veja-se a obra de Sir Colin Ormsby-Gore, The Portuguese Trade and Atrocities at the Port of Macao and Southern China, London, 1602, New Delhi, 1971, reprint.). De facto, a pedra foi outrora profusamente gravada e pintada com os 60 hexagramas do Clássico das Mutações (易經Yi Jing).
A pedra adornou o parque da mansão da família do fidalgo Nuno Gouveia de Faria até à sua demolição, nos finais do séc. XIX. Durante a construção do jardim da Gulbenkian, nos anos 1960, o sinólogo espanhol Pe. Lorenzo Benito Muralles, SJ, que veraneava então por cá, descobriu-a por acaso num descampado, tendo sido ele próprio a sugerir ao arquitecto Ruy Jervis D’Athouguia nova morada para a pedra. Muralles conhecera os pais do arquitecto em Macau, a cidade onde D’Athouguia nascera. Este mencionou o assunto ao seu colega Ribeiro Telles, encarregado do plano dos jardins do museu. Ribeiro Telles aprovou a ideia.
Muralles julgava mesmo distinguir ainda, no canto direito superior da pedra, a gravação – naturalmente muito desgastada pelo tempo – dos traços contínuos e descontínuos do décimo segundo hexagrama, o hexagrama pi 否: em cima, o Céu, em baixo, a Terra.

O Pátio das Flores Rubras
Pouca gente terá conhecimento da história assaz pícara por trás da construção da casa típica de Macau do Portugal dos Pequenitos, em Coimbra. Durante a concepção desse projecto do Antigo Regime, ficou encarregado do plano da casa de Macau um arquitecto que nunca pusera pé na Ásia. Para levar a cabo a tarefa, e na impossibilidade de até lá se deslocar, consultou afanosamente arquivos fotográficos respeitantes àquele longínquo território português. A sua escolha, no entanto, foi infeliz. Tomou como inspiração para reproduzir em pedra certa fotografia que mostrava um edifício de estilo acentuadamente chinês. O pobre arquitecto ignorava que se tratava de um famoso lupanar da zona mais libertina da Cidade do Santo Nome de Deus: o Pátio das Flores Rubras (紅花園Hong Hua Yuan). Este lupanar, que deliciou gerações de chineses e portugueses, foi incendiado em 1947, como consequência de uma intrincada história de vingança política, mulheres e ópio entre duas seitas rivais, a afamada Qing Bang e a Wo Shing Wo. Dos seus escombros resta apenas, na rua onde se situara, a pedra fronteira gravada com três caracteres chineses sobre a tradução portuguesa, ainda em grafia antiga: “Páteo das Flores Rubras”. No entanto, por ironias do destino, e para que fossem iniciadas de bem cedo as crianças portuguesas nos inefáveis mistérios do Oriente, a reprodução da sua fachada iria sobreviver, fiel, muito longe dali, em Portugal, no Portugal dos Pequenitos.

Retrato da Senhora Jacinta Wok
A Senhora Jacinta Wok (1884~1945), nada e criada na cidade do Porto, foi protagonista de um dos maiores escândalos que alguma vez abalaram Macau. Deveu-se o escândalo ao facto de ter vivido trinta e nove anos em regime de concubinato com um rico negociante chinês, Wok Mei Lo, estabelecido no território desde os finais do séc. XIX. Wok Mei Lo tomou-a como sexta concubina no final da dinastia Qing, quando a dona Jacinta, cujo apelido era ainda Santos da Cruz, servia como ama em casa da família Mendes Couceiro.
Juram versões que a ama terá trocado essa família pela casa Wok por se ter tomado de amores pelo negociante; outras explicam-no por um desejo irreprimível de ascensão social ou desilusões com a comunidade portuguesa. O certo é que se submeteu às exigências do negociante a ponto de chegar a enfaixar os pés. Sofreu, por isso, dores atrozes durante o resto da vida, uma vez que tal operação, em princípio, se destinava a meninas com cerca de cinco anos de idade. Além disso, teve de suportar as torturas e vexames que lhe infligiam as outras concubinas do negociante, não só devido à sua insignificante posição na casa – concubina número seis – como devido ao facto de ser estrangeira, pior, estrangeira traidora à sua própria comunidade. Rejeitada por ambas as raças, também no negociante Jacinta não encontrou qualquer apoio, pois Wok Mei Lo nunca a conseguiu apreciar, nem mesmo com os pés enfaixados. Segundo consta, servia-se dela nos seus negócios, cedendo-a a outros chineses ricos e curiosos, e exibia-a perante os portugueses como um troféu humilhante.

As tartarugas wenjia
As tartarugas wenjia (文甲, à letra, “carapaça escrita”) são uma espécie autóctone que se encontra apenas em território chinês. Os exemplares desta espécie caracterizam-se por uma particularidade notável: apresentam caracteres chineses gravados na sua carapaça, alguns deles muito antigos.
A única explicação para a existência destas carapaças baseia-se na teoria da selecção artificial, num processo em tudo semelhante ao que sucedeu com os caranguejos Heike de Danno-ura, no mar do Japão, que exibem nas suas couraças rostos de samurai. Assim, os cientistas supõem que, de início, as tartarugas wenjia seriam semelhantes a todas as outras espécies comuns na China. No entanto, como se sabe, há vários milhares de anos que os chineses praticam a adivinhação com carapaças de tartaruga e também há vários milhares que vêm apreciando a sua carne. Assim, os adivinhos teriam começado por poupar a vida dos antepassados das tartarugas wenjia cujas carapaças apresentavam sulcos que se assemelhavam a caracteres chineses. Os chineses acreditam que a origem dos seus caracteres é sagrada. Ao evitar-lhes a morte, e provavelmente sacralizando-as, as tartarugas encetaram um processo evolutivo. Apercebendo-se das vantagens de não apresentar uma carapaça vulgar – mais tempo para procriar e uma morte adiada – as tartarugas investiram nos caracteres das carapaças, marcas que são hereditárias. Com o fluir das gerações tanto de adivinhos como de tartarugas, aqueles animais cujas carapaças apresentavam caracteres sobreviveram.
Grandes coleccionadores de carapaças wenjia foram o poeta Camilo Pessanha e o advogado Silva Mendes quando residiam em Macau. Exibiram-se exemplares notáveis outrora pertencentes a ambos numa exposição temporária dedicada à sua faceta de coleccionadores de arte e brique-a-braque chineses no Museu Machado de Castro, em Coimbra, por ocasião da passagem da administração de Macau para a República Popular da China e que foi, infelizmente, muito pouco visitada pelo público português. Na loja do Museu, contudo, pode ainda encontrar-se à venda o magnífico catálogo.

O Templo Taoísta da Serra da Estrela (星山觀Xing Shan Guan)
O Templo Taoísta da Serra da Estrela (星山觀Xing Shan Guan) é o único templo taoísta existente em toda a Europa e um motivo de orgulho para Portugal. Foi inteiramente concebido segundo as normas arquitectónicas dos templos taoístas chineses. A sua estatuária, por exemplo, os Oito Imortais no pavilhão do mesmo nome, veio directamente da China. A valiosa figura em folha de ouro do Imperador Amarelo foi oferta do Templo Taoísta Zhongyue Miao (中嶽廟) que se ergue na montanha sagrada Song.
De Cantão deslocou-se um célebre especialista em geomancia chinesa (fengshui), Luk Ku Lou, a fim de escolher a localização ideal do templo no cenário da Serra da Estrela. Do Templo Taoísta da Nuvem Branca (白雲觀Bai Yun Guan), em Pequim, chegaram os monges que presidiram à cerimónia religiosa que teve lugar aquando da inauguração. Alguns permaneceram por ali até se terem formado os acólitos portugueses.
A localização exacta do templo, contudo, é apenas revelada aos iniciados. Diz-se que lhes é ensinada então uma dança oculta destinada a transformar o yang em yin. A dança decorre em cima de um mapa secreto da montanha, cujo reflexo num antigo espelho de bronze aponta o local do templo.
O espelho terá pertencido ao próprio Zhang Daoling que, na dinastia Han (202 a.C.– 9 d.C., 25–220 d.C), fundou e se tornou no primeiro patriarca da Via dos Mestres Celestes (天师道tianshidao) taoísta. Mas como poderá o espelho mágico de Zhang Daoling ter vindo parar a Portugal?
Zhang Daoling nasceu no primeiro ou segundo século da nossa era sobre a Montanha do Tigre-Dragão, no Jiangxi. Certo dia, Lao Zi (Lao-Tse) apareceu-lhe sob uma forma espiritual e encarregou-o de encontrar a fórmula para compor o elixir da imortalidade. Zhang Daoling foi bem sucedido nesse empreendimento. Aos cento e trinta e três anos, subiu aos céus montado no dorso de um tigre e, de seguida, preservou a sua identidade reincarnando sucessivamente num após outro dos seus próprios descendentes. Cada um daqueles a quem coube este privilégio retomou, assim, o nome de Zhang Daoling. Tais reencarnações continuaram pelo séc. XX adiante.
No séc. VIII, um decreto do imperador Xuan Zong deu jurisdição ao Mestre Celeste Zhang Daoling “sobre todos os templos taoístas no mundo”. Isto inclui, obviamente, o Templo Taoísta da Serra da Estrela.
Importa ainda chamar a atenção para uma curiosa passagem da obra Living Taoism, de John Blofeld. Embora muitos creiam no contrário, Blofeld declara ser altamente improvável que toda uma linhagem de pontífices que se conseguiu perpetuar por quase dois mil anos tenha desaparecido nos nossos dias sem deixar rasto. E refere que alguns estudiosos defendem que foi no governo de Chang Kai-chek que a última reencarnação do Mestre Celeste foi banida do país. Revela ainda que um autor chinês sustém que Zhang Daoling tem vivido desde então em Macau “como um dragão, entre as volutas de espessas nuvens – o ópio!” Isto explicaria a sua ligação a Portugal e a sua possível implicação na construção e funcionamento do Templo Taoísta da Serra da Estrela. Quanto ao ópio, é bem sabido ser um dos componentes essenciais no fabrico das pílulas da imortalidade.

As curandeiras
Terão reparado numa pequena estatueta portuguesa do princípio do século XX que retrata duas mulheres chinesas a segurar frasquinhos de unguentos, exposta num dos armários da primeira sala do bar-museu “Pavilhão Chinês”, no nº 89 da Rua D. Pedro V, em Lisboa? O “Pavilhão Chinês” foi outrora uma farmácia e a estatueta fazia parte do seu espólio, algum do qual foi depois adquirido pelo novo dono do espaço.
Essa tosca estatueta é uma humilde homenagem a duas curandeiras chinesas que protagonizaram, em Novembro de 1911, um escândalo de contornos bizarros que abalou a então jovem república portuguesa.
Ajus e Joé, assim as chamavam os jornais da época, numa grafia aportuguesada dos seus nomes originais, eram naturais de Xangai e apresentavam-se como especialistas em devolver a vista a cegos. Os ceguinhos de Lisboa, mais as suas caixinhas de esmolas, guitarras e acordeões, acorreram aos magotes ao humilde hotel onde as chinesas se hospedaram. Naqueles tempos conturbados, o povo sucumbia facilmente à crendice e floresciam as bruxarias.
Todavia, os republicanos, adeptos do positivismo, resolveram tomar as chinesas como caso exemplar, devido talvez à sua exótica proveniência. Afirmando almejar tornar a capital num paradigma do progresso, encheram-se de brio racionalista e mandaram prender as duas arautas do obscurantismo.
A Polícia, porém, deparou com tal resistência por parte da populaça em geral e, sobretudo, dos ceguinhos, que não hesitavam em quebrar as guitarras nas cabeças dos agentes, que se tornou impossível evitar um confronto. Rebentou um motim. Contaram-se mortos. Estouraram bombas. Redacções de imprensa foram assaltadas. Machado Santos escapou por pouco a ser linchado, ficando a dever a vida à pronta acção da cavalaria. O caso acabou por ascender ao Parlamento por iniciativa do ministro do Interior. A prisão das chinesas tornou-se tema obrigatório esgrimido nos comícios e no ataque a adversários políticos.
A estatueta do “Pavilhão Chinês” é obra de Zeferino Santos, que acompanhava o pai cego nas consultas às curandeiras. O dono da antiga farmácia resolveu adquiri-la para, por graça, a colocar ao lado do anúncio de um medicamento oftálmico.
Quanto a Ajus e Joé, foram libertadas poucos dias depois de terem sido presas. Recusaram a extradição para o seu país natal. Algumas semanas antes, a 26 de Outubro desse ano, Sun Yat-sen proclamara a República da China. Receavam ver-se envolvidas com mais republicanos, ainda que chineses. Deixaram Portugal num navio que iria atravessar o Atlântico e nunca mais ninguém delas soube. Tudo quanto resta é uma foto de Joshua Benoliel no Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa e a estatueta do “Pavilhão Chinês”.

Amália em Xangai
Decorria o ano de 1950 quando o jornal satírico “Os Ridículos” anunciou nestes termos jocosos de duvidoso gosto, só possíveis na época, a notícia sobre a actuação de Amália Rodrigues em Xangai, a realizar-se dali a pouco tempo: «(…) A Xangai, à China, achamos francamente fantástico! (…) A verdade, porém, é que achamos a China um país esquisito de mais para o fado (…) Vocês já pensaram, por momentos, no que será um auditório de chineses, todos sentados no chão, a comer arroz com dois pauzinhos e a Amália a cantar-lhes o “Tudo isto é fado” ou “Avé Maria Fadista”?»
Trata-se este do único registo português aludindo à actuação de Amália em Xangai. A notícia foi, de resto, completamente abafada. Nem os jornais da época, nem as biografias de Pavão dos Santos ou de Jean-Jacques Lafaye mencionam tal facto. Duas décadas volvidas e o contrário se passaria em relação ao Japão, quando o estrondoso êxito de Amália lá alcançado encontrou merecido eco em Portugal.
Todavia, Amália actuou de facto em Xangai, decorria o ano de 1950, acompanhada por Jaime Santos à guitarra e Santos Moreira à viola. A República Popular da China havia sido proclamada no ano anterior e Xangai fora o berço do Partido Comunista. Devido à sua notoriedade, mas sobretudo devido à modestíssima origem social da fadista, o governo chinês escolheu Amália para representar Portugal num espectáculo de folclore internacional em Xangai.
Ao contrário, porém, do que supunha o jornal “Os Ridículos“, Amália não cantou o “Tudo isto é fado” nem o “Avé Maria Fadista”. Achou mais graça, estando na China, a cantar o “Grão de Arroz”, de Belo Marques (“O meu amor é pequenino como um grão de arroz/ é tão discreto que ninguém sabe onde mora…)
Acresce que, com a sua proverbial facilidade para aprender línguas estrangeiras, Amália fez questão de cantar a versão em chinês, concebida de propósito para a ocasião: 我心上的人兒 / 是多麼小小的, / 他像一粒米似的。 / 他多麼謹慎 / 沒有人知道他住的地方。 Wo xin shang de ren er shi duome xiaoxiao de/ ta xiang yili mi side/ ta duome jinshen, mei you ren zhidao ta zhu de difang…)
Até aqui, a audiência entusiasmou-se com tal voz e tal mestria do chinês. Mas quando os versos seguintes foram cantados (“Tem um palácio de ouro fino aonde Deus o pôs/ e onde eu vou falar de amor a toda a hora…”), um dos representantes dos camponeses presentes por entre o público indignou-se e berrou: “Se tem um palácio de ouro fino não foi Deus que lho deu, mas sim o sangue e o suor das classes trabalhadoras!”
Foi como um rastilho. A audiência aplaudiu o representante dos camponeses e começou a assobiar e a apupar a pobre Amália que, seguida pelos dois assustados instrumentistas, teve de abandonar o palco lavada em lágrimas. No dia seguinte, partiu precipitadamente para Berlim, onde conheceria um êxito monumental nos espectáculos do Plano Marshall.
Este breve e triste episódio na carreira da grande fadista foi abafado pela própria Amália, que negou sempre ter alguma vez posto os pés na China Popular. No entanto, foi relatado no dia seguinte pelo Diário de Xangai. Esse exemplar do jornal pode facilmente ser consultado na Biblioteca da cidade por quem dominar a leitura dos caracteres chineses. A notícia, de 21 de Setembro, intitula-se “Cantora burguesa é apupada pelo povo trabalhador no Espectáculo de Folclore Internacional”.

(Escrito entre 1997 e 2000).

8 Nov 2022

O mito do ideograma

Ao redor do mundo, consideradas todas as eras desde que a humanidade passou a se comunicar, determinadas sociedades desenvolveram o que podemos chamar de culturas de escrita. Para nós, falantes do português, bem como para os demais neolatinos, indoeuropeus, modernos ocidentais, essas culturas carregaram consigo formas historicamente valorizadas de conhecimento: escritas, alfabéticas, ortográficas. A expansão de tais tradições, quer no interior da própria Europa, quer em seu avanço colonial por outras partes do globo, carregaram consigo tais valorizações no bojo do encontro com outros povos: é famoso o relato de um cronista português que, no século XVI, teria encontrado povos originários das Américas, especificamente do Brasil, em cujas línguas “não se acham F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei”. Etnocentrismo, decerto: desejo de que toda a humanidade corresponda a uma experiência pontual e limitada, tida, à época, como ápice do desenvolvimento do intelecto e do gênero humano.
Mas nesses mesmos 1500, século mais, século menos, uma civilização sem F, sem L e sem R já contava três mil anos de idade. Pelo menos. E contava, também, com uma cultura escrita de enorme relevância, prestígio e sofisticação. Não alfabética, contudo. E essa diferença talvez tenha significado uma abordagem tão etnocêntrica quanto aquela destinada aos povos ameríndios, mas com o sinal trocado: porque se povos sem letras não poderiam ser mais que “bárbaros”, o que seria o povo sem letras, mas com caracteres mais antigos que o próprio Ocidente? Iluminados, talvez? Mais que humanos?
Em Ideogramas na China, Henri Michaux descreve, de modo poético, o desenvolvimento da escrita caligráfica, que considera “ideogrâmica”. Para o poeta, a escrita chinesa teria evoluído de uma materialidade pictórica, cujo referente designaria diretamente o objeto representado, sem maiores mediações linguísticas, até um sistema complexo e elitizado de traços cujo conhecimento se restringia apenas aos eruditos e letrados. Ao passo que 山 representaria pictograficamente uma montanha — donde 山 = montanha —, desdobramentos posteriores do sistema de escrita chinês teriam distanciado essa quase iluminação instantânea:
“Levados pela arrebatadora impudência da pesquisa, os inventores — os de uma segunda fase — aprenderam a desligar o sinal do seu modelo (deformando-o às apalpadelas, sem ousar ainda cortar decididamente o que liga a forma ao ser, o cordão umbilical da semelhança) e assim se desligaram eles próprios, havendo rejeitado o sagrado da primeira relação ‘escrito-objecto’.”
A primeira relação escrito-objecto de que nos fala Michaux é a associação pictográfica imediata, a montanha transposta ao papel — ou a qualquer outra superfície. Quaisquer que fossem seus desdobramentos, não mais haveria o vínculo com que o poeta sonha: da coisa à compreensão, sem passar pelo trato da linguagem. Chegando ao pico da montanha, 峰, não mais teríamos a primeira relação, e apenas aos iniciados essa trilha ao monte estaria aberta.
Michaux lamenta a elaboração da escrita que a desvincula do mundo, e nisso não está sozinho: para mais de um leitor ocidental da escrita chinesa, “ideograma” se mostrou o melhor termo para descrever algo tão diferente de nossos sistemas alfabéticos, fonéticos, de nossas línguas cuja expressão sonora da fala é condutriz da escritura. Para tais leitores, a China teria seguido algum princípio misterioso que a teria posto à parte de toda a raça humana — como sugeriu Boodberg há quase cem anos —, para quem os sistemas de escrita se desenvolvem a partir das experiências linguísticas da fala, e não o contrário — nem separadamente, como o mito do ideograma nos faz supor.
Em 1984, John DeFrancis publicou O mito ideográfico, historicizando a ideia segundo a qual seria possível um sistema ideogrâmico, ou ideográfico, no qual uma língua fosse capaz de incluir todos os objetos, conceitos e ideias do universo sem apelo à fala, ao som, à base material da língua. Um mito, diz DeFrancis, pois mesmo em sistemas de escrita com elementos pictográficos, como na China, no antigo Egito ou na Suméria, não se pode encontrar uma escrita inteiramente semântica. A escrita é projeção da língua, e a língua é sempre falada.
Henri Michaux via na evolução da escrita chinesa um distanciamento do mundo dado, da experiência mística, esotérica e religiosa com o mundo, um distanciamento da experiência imediata. Por isso afirma que “Na escrita, a religião recuava. A irreligião da escrita começava”. Em outras palavras: perde-se o mundo-pelo-mundo — 山 = montanha, supostamente evidente para qualquer pessoa, mesmo iletrada — e passa-se a viver o mundo-pela-escrita — 峰 = pico da montanha, compreensível apenas para quem tenha escalado montes e montes de livros e exercícios complexos, pouco afeitos à “ideogramicidade” do objeto pico-da-montanha.
Mas é aqui que o mito se mostra às claras. Para Michaux, como para outros, ideogramas seriam representações gráficas de objetos e/ou ideias, conceitos. Já o som dos objetos e das ideias, o som da fala que fala sobre eles, desempenharia pouco ou nenhum papel em sua grafia. Se povos sem escrita alfabética eram sem lei, sem rei e sem fé, um povo sem escrita fonética talvez fosse — assim diz o mito, nisso acreditaram os primeiros missionários europeus — rebuscado e complexo a um nível que os distanciaria de todos os demais povos da terra. Um povo, no mínimo, de memória estupenda, capaz de conhecer um símbolo para cada coisa existente:
“símbolos e imagens [que], não tendo qualquer som, podem ser lidos em todas as línguas, formando uma espécie de pintura intelectual, uma álgebra metafísica e ideal, que transmite pensamentos por analogia, por relação, por convenção, e assim por diante.”
O mito do ideograma abstrato abre caminho para a ideia de uma escrita inefável, sem atentar para o fato de que 峰, o pico da montanha, não é apenas resistir à montanha ou, ainda, chifrar o monte — 山 + 夆 —, dentre outras variações semânticas que pudéssemos atribuir às puras imagens pictográficas de 峰 — e à decomposição de suas partes. Antes, a pronúncia de 峰 é feng, e por isso à montanha se anexou o segundo grupo de caracteres, à direita: 夆. Não por lógica abstrata, não porque resistir ou chifrar a montanha signifique atingir seu cume, mas porque feng é o modo de nomear o topo do monte, e o modo de nomear, sua sonoridade, traz o elemento fonético à escrita. Por isso, nada de ideogrâmica — ou não somente ideogrâmica, e quase nunca inteiramente ideogrâmica —, mas sonora. Logográfica. Ou morfossilábica, como sugeriu DeFrancis.

4 Nov 2022

O Dao da Filosofia Chinesa

Uma das noções transversais a todas as escolas filosóficas chinesas é a de Tao (道 Dào), ainda que esta seja perspectivada de maneira diferente, numa leitura superficial, consoante essas mesmas filosofias, recaindo o acento tónico na vida, para os taoistas, para os confucionistas na moralidade e na espiritualidade para os budistas. No entanto, quando tentamos aprofundar o sentido das mesmas deparamos com a ideia de percurso existencial, seja ele mais pessoal, social ou político, mas é sempre o que se faz na e com a vida que está em causa, como bem viram Michael Puett e Christine Gross-Loth (2016) num conjunto de lições práticas do curso de filosofia chinesa de Harvard, intitulado “道 o Caminho da Vida. O que os Filósofos Chineses nos Podem Ensinar sobre a Arte de Viver”.
Isto significa que um bom filósofo deve poder orientar bem a sua existência, e não apenas do ponto de vista teórico, porque o ideal é que consiga conciliar harmoniosamente intenções e actos, de modo a impregnar a sua existência de sentido, por isso todas as filosofias chinesas se preocupam com o quotidiano, tentando responder, como notam Puett e Gross-Lotu, à seguinte questão: “Como estás a viver a tua vida no dia a dia” (2016: 43), pois se cada um desempenhar conscientemente o seu papel neste imensa teia de relações telúricas, celestiais e universais, estará a proceder filosoficamente, gerando as condições para caminhar no sentido da existência e não no da morte. Ora manter acesa a dinâmica vital parece ser mais difícil do que parece, porque diz-nos o fundador do taoismo, Laozi (老子) no Livro da Via e da Virtude 《道德经》 no capítulo 50:

Sair para a vida, entrar para a morte,
Três em cada dez terão longa vida,
Três em cada dez conhecerão cedo a morte,
Três em cada dez morrerão com ânsia de viver.

出生入死
生之徒
十有三
死之徒
人之生
动之死地
亦十有三
(Graça de Abreu, 2013: 126-127)

Ou seja, viver, e bem, o que significa nesta filosofia longamente, não é para qualquer um, implica o cultivo de um modo de vida com o qual o filósofo se vai familiarizando pelos métodos que coloca em prática, estes dependem da meditação, ginástica, acima de tudo, respiratória, de uma dieta adequada, etc. Logo, um filósofo chinês da linha taoista, empenha-se na sua filosofia de corpo inteiro, cultivando uma postura ética que o conduzirá ao desejado prolongamento da vida, através do cultivo incansável do tao do quotidiano.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, o tao da vida é essencial para os confucionistas, ainda que ao praticá-lo não se inclinem para a longevidade. A estes interessa a existência com vista à moralidade, a vida será o chão para as nossas transformações morais, estando em causa tornar-nos melhores, benevolentes ou mais humanas, a fim de se contribuir para alcançar comunitariamente um mundo melhor. Por isso, Confúcio explica aos seus discípulos nos Analectos 《論語》, no capítulo relativo à benevolência (1994, IV-8): “Quem compreender o dao de manhã, não lastimará morrer nessa mesma noite” (《子曰:“朝聞道,夕死可矣”》), porque atingiu o propósito do seu percurso existencial, entendeu a moralidade, donde retirou a lição que a vida lhe ofereceu, cumpriu o seu destino, pelo que pode partir sem mágoas nem ressentimentos, alcançou a perfeição, ou seja o tao moral.
Assim caminhamos, em termos filosóficos, do tao ético taoista, para o tao moral e nos budistas chineses da linha Chan (禅 chan), ou do budismo da meditação, para a tao espiritual, mas até este se cultiva apenas no quotidiano. Há então a recordar que os princípios fundamentais do budismo da meditação, que viria a ser o budismo mais caracteristicamente chinês, remontando ao monge indiano ou iraniano Bodhidharma, que terá chegado à China no século VI, são os seguintes: “ (1) a verdade última é inexprimível; (2) a via espiritual não pode ser instruída ou ensinada; (3) nada se ganha com o que quer que seja; (4) não há nada de especial nos ensinamentos budistas; e (5) o Tao cultiva-se diariamente «transportando a água e cortando a lenha» (Alves, 2022: 49).
O caminho na e da filosofia chinesa foi-se desenrolando ao longo dos séculos, mas as noções primordiais têm-se mantido e, por isso, podemos encontrar no filósofo Wang Keping (王柯平, 1955 -), professor de filosofia e de estética com vasta obra publicada, uma tematização pormenorizada da noção de Tao na secção Estratégias de Pensamento da sua obra Ethos of Chinese Culture (2007), onde analisa a multidimensionalidade do Tao, recorrendo no texto ao registo do alfabeto fonético chinês (Dao), adotado na China em 1958. Assim, refere que existe um Dao do Universo; um Dao da Dialética; um Dao do Homem; um Dao da governação; um Dao da Guerra; um Dao da Paz, além de dois que interessam particularmente para a defesa de uma filosofia com características chinesas: um Dao da Vida Humana e um Dao do Cultivo Pessoal, sendo que o “Dao ou sabedoria da existência humana é fundamentalmente exemplificado pela atitude relativa à própria vida e ao seu fim natural – a morte” (Wang, 2007: 122). Esta atitude implica, e recordemos o fundador do Taoismo, pelo cultivo dos três tesouros, a saber, a bondade ou compaixão, a frugalidade e a humildade, como nos é recordado no capítulo 67 do Livro da Via e da Virtude. É, também, fundamental consciencializar que o modo de estar na vida depende uma certa filosofia perante a mesma, manifestada no Dao do Cultivo Pessoal, “que surge de dentro sobretudo orientado para a actualização do Dao De” (Wang, 2007: 126) , ou seja, da virtude.
Desengane-se quem imagina que esta atitude filosófica não possui consequências sociais e políticas fundamentais, decisivas para traçar o caminho a um país como a República Popular da China, guiado pela meritocracia, que alia a virtude ética indissociavelmente à política ou, ainda, às suas regiões administrativas especiais e, mais concretamente à Região Administrativa Especial de Macau. Recorde-se a Lei Básica de Macau, elaborada em 1993, em vigor desde 1999 até ao ano de 2049. No Primeiro Capítulo desta Lei, Artigo 5.º, lê-se:“ Na Região Administrativa Especial de Macau não se aplicam o sistema e as políticas socialistas, mantendo-se inalterados durante cinquenta anos o sistema capitalista e a maneira de viver anteriormente existentes.”
(澳門特別行政區不實行社會主義的制度和政策,保持原有的資本主義制度和生活方式,五十年不變。) (第一章,第五條)
O artigo 5.º da constituição de Macau, da sua lei fundamental, indica que uma filosofia política, seja ela socialista ou capitalista, vale pela dimensão prática que lhe está associada, esta não existe em separado, em qualquer mundo das ideias transcendente para contemplar longe da pele e do osso do contemplador, mas reconhece-se imediatamente na sua dimensão existencial pelo “modo de vida” (生活方式) que dita, facilmente identificável nas atitudes dos cidadãos. Por isso, durante 50 anos (e já passaram 23 anos), as gentes de Macau poderão manter as suas condutas existenciais em harmonia com os princípios e valores ocidentais, que lhes condicionam o Tao das suas vidas e um outro, que lhe está intimamente ligado, o Tao do seu cultivo pessoal, aquele que os atrai a misturarem hábitos gastronómicos (o chá, o café, o arroz e a batata…), crenças religiosas (budistas, taoistas, cristãs…), gostos estéticos (fados, música chinesa, world music…), entre muitas outras práticas existenciais que moldam, por um lado, e expressam, por outro os seus comportamentos.
Concluindo, o Tao específico da filosofia chinesa nunca existe em separado, mistura céu e terra num planeta de ideias visíveis, que só ganham sentido quando atualizadas, de modo a serem reconhecidas, aceites, assimiladas, recusadas ou harmoniosamente sintetizadas por seres humanos empenhados no seu cultivo pessoal e comprometidos na vida.

Bibliografia
Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coimbra: Almedina e Centro Científico e Cultural de Macau.
Cai Xiqin (蔡希勤), Lai Bo (赖波), Xia Yuhe (夏玉和) (trad.) 1994. Analects of Confucius. 《論語》. 北京: 华语教学出版社.
Graça de Abreu, António. 2013 (trad.). Laozi. Tao Te Ching. 《道德经》. O Livro da Via e da Virtude. Edição Bilingue. Lisboa: Vega.
Lei Básica de Macau. Disponível em: https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/macau_leibasica.pdf, acedida a 22 de outubro de 2022.
澳門特別行政政府《中華人民共和國澳門特別行政區基本法》.印務局. https://bo.io.gov.mo/bo/i/1999/leibasica/index_cn.asp.
Puett, Michael, Christine Gross-Loh. 2016. intitulado 道 o Caminho da Vida. O que os Filósofos Chineses nos Podem Ensinar sobre a Arte de Viver. Alfragide: Lua de Papel.
Wang Keping. 2007. Ethos of Chinese Culture. Beijing: Foreign Languages Press.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores.
https://www.cccm.gov.pt/

4 Nov 2022

Versos de Du Fu na paisagem desolada de Luo Mu

Du Fu (712-770), o poeta que viveu a itinerância tantas vezes como um descontentamento, encontrou em tudo ocasiões para celebrar o deslumbramento. Uma delas ficou guardada num poema feito diante de uma pintura e que refere o nome de uma divindidade a que se deu o nome Xianwu, o «Obscuro guerreiro misterioso». No poema intitulado «Na parede dos aposentos do mestre do chan do templo de Xianwu», o poeta está diante de uma obra feita por um dos pintores mais reverenciados entre os que estão na origem da arte da pintura executada sobre rolos portáteis, o já então lendário Gu Kaizhi (c.345-c.406). E o templo de Xianwu nas montanhas Wudang (Hebei) foi o lugar escolhido para evocar uma outra figura lendária, associada a uma conversa que aconteceu no decurso de um passeio e tão entretida que ignorou uma ravina infestada de tigres, cuja história é conhecida como «as três gargalhadas», o monge Huiyuan (334-416):

«Quando é que o audacioso Gu Kaizhi
colocou aqui esta obra?
A parede está toda repleta de pinturas
do paraíso da montanha utópica Yingzhou.
Vapores quentes exalam
das rochas sob o sol inclemente,
Sobre as correntes de lagos
e rios, o céu azul.
Um monge mendicante voa
na bengala de latão perto dos grous,
Outro, cruza a água na taça de madeira
sem alarmar as gaivotas.
Parece que estou diante
de um caminho para o Monte Lu,
Ou estou na verdade vadiando
com o monge Huiyuan?»

Não foi a única ocasião em que o olhar do poeta se fixou diante de uma pintura, iluminando-a. Uma relação dinâmica entre o poeta e os pintores que se prolongou. Na dinastia Qing, um pintor de Ningdu (Jiangxi) mas que viveria quase sempre na capital da Província, Nanchang, lembrá-lo-ia numa estrofe extraída desse poema.
Luo Mu (1622-1706) escreveu na pintura de 1685, Paisagem com árvores e rochas (rolo vertical, tinta sobre papel, 175,2 x 73,6 cm, no Museu Ashmolean da Universidade de Oxford) os dois versos de Du Fu que aludem aos «Vapores quentes exalam das rochas sob o sol inclemente,/ Sobre as correntes de lagos e rios, o céu azul», numa escolha que exclui todas as circunstâncias do poema e contrasta de modo complementar com o carácter abstracto da pintura, que se concretiza nos poucos elementos descritos no título, criando uma nova cadeia de sentidos. No longo rolo horizontal de pintura de 1661, que lhe é atribuído no Metmuseum, Paisagem de rio no Outono (tinta sobre papel, 32,7 x 665,5 cm) essa sobriedade é reforçada pela figuração de um panorama ribeirinho em que a presença humana está apenas indiciada através das casas de telhados de colmo onde se não vêem pessoas, à excepção de um pescador com o seu chapéu largo. Um cenário onde o olhar do observador, tocado pelas palavras de Du Fu, podia habitar; quem sabe se o pescador não era Huiyuan, alguém com quem iniciar uma conversa que termina numa gargalhada?

4 Nov 2022

Ressonâncias entre Tao Yuanming e Camilo Pessanha

O Paraíso como fuga utópica

Camilo Pessanha nasceu em Coimbra em 1867, no mesmo ano em que Baudelaire morreu. Desde jovem, visitou várias regiões com o seu pai que, devido à sua carreira de magistrado, levava o seu filho a diferentes territórios, despertando a curiosidade de Camilo por outras nações. De volta a Coimbra em 1884, aos 16 anos de idade, Camilo frequentou a faculdade de Direito, seguindo os passos de seu pai, graduando-se em 1891. Aos 18 anos de idade, publicou o poema “Lúbrica”, com referências ao seu pensamento sobre o povo chinês:

Como os ébrios chineses delirantes
Aspiram, já dormindo, o fumo quieto
Que o seu longo cachimbo predilecto
No ambiente espalhava pouco antes…

De facto, a sua cidade natal também lhe proporcionou a oportunidade de conhecer colecções de arte asiáticas através das decorativas porcelanas chinesas existentes na Biblioteca Joanina da Universidade e no Museu de História Natural. Compreender os princípios das civilizações exóticas era, então, na cidade da mais antiga e prestigiada Universidade lusitana, um sinal de distintiva elegância. Os Vedas, o Mahabarata, o Zend-Avesta, os Eddas e os Nibelungos são exemplos de livros lidos pelo meio literário, numa tendência chamada “Renascença Oriental”. Seguindo essa tendência intelectual, manuscritos de Pessanha como “Legenda Budista” e “Vozes do Outono – Tradução do chinês, reflexões filosóficas de um autor desconhecido da dinastia Tang”, actualmente na Biblioteca Nacional, referem o povo e a cultura Sínica.
Em 1894, Pessanha foi nomeado professor no Liceu de Macau, o mesmo ano em que este estabelecimento fora inaugurado. Recentemente chegado à colónia portuguesa na China, começa a escrever sobre a cultura chinesa de um ponto de vista intuitivo. À medida que os seus conhecimentos da língua chinesa aumentavam, mergulha no estudo da civilização sínica. Dá palestras e escreve ensaios sobre literatura e estética chinesa. Durante esses anos, a China sofria convulsões políticas e sociais. O colapso da dinastia Qing criara as condições para a revolução de 1911, que gerou um êxodo de refugiados para Macau e para Hong Kong, incluindo importantes dignitários do antigo regime imperial que tentaram encontrar refúgio da rebelião nestas cidades portuárias. Consequentemente, Macau e Hong Kong eram portas de entrada para aqueles que procuravam ganhar dinheiro com os seus artefactos mais valiosos. Como resultado, nos anos que se seguiram às revoltas, um próspero comércio de arte e mesmo uma loucura por colecções de arte chinesa floresceram nas referidas cidades. Pessanha, que poderia lucrar com este próspero mercado de arte, começou a coleccionar antiguidades e extravagantes artefactos.
Camilo Pessanha é um dos mais importantes poetas portugueses modernos, uma referência na poesia simbolista contemporânea. Ao longo da sua vida, interessou-se progressivamente pela cultura chinesa. Foi chamado por Luís Sá Cunha “o mais chinês dos poetas ocidentais, antes de Ezra Pound”2. O seu livro de poemas, “Clepsydra”, ressoa a poesia clássica chinesa que descobriu na altura – como outros poetas ocidentais também o fizeram -, contribuindo para a criação de um novo tipo de rima. É importante mencionar ainda um aspecto do Confucionismo que fascina os intelectuais portugueses em Macau: o entendimento de que esta “religião” existia como uma “escola de intelectuais” (儒家) (rujia). De facto, os textos atribuídos a Confúcio reflectem sobre justiça, valores humanos, ética, e a importância dos rituais para uma sociedade harmoniosa. Não é surpresa que o admirador destas obras – sendo poeta, advogado e filósofo, e vivendo numa época de caos político (o derrube da dinastia Manchu e a proclamação da República em 1912) – tenha tido em alta estima os valores confucionistas e taoístas de paz e harmonia. Os textos de Confúcio também atribuíam um significado imenso à poesia e à música. Os músicos, tocando em grupo, constituiriam uma das várias metáforas utilizadas para uma sociedade harmoniosa.
Seguindo esta mesma linha de raciocínio, a poesia e a arte assumiram importância filosófica para os coleccionadores portugueses que tentavam compreender e absorver os valores chineses. A poesia teve uma relação particularmente duradoura com a música na China, já que as duas primeiras antologias de poesia na literatura chinesa, o “Livro das Odes” (詩經 Shijing) e as “Canções de Chu” (楚辭 Chu Ci), eram ambas colecções de canções, a primeira de origem secular e a segunda litúrgica (derivando o seu imaginário do ritual xamânico). Mesmo depois da dinastia Han (202 a.C. – 220 d.C.), quando a poesia adquiriu uma certa autonomia, a tradição dos cânticos populares (樂府 yue-fu) nunca foi interrompida. Todas as formas de poesia compostas por escritores, independentemente do estilo, eram entoadas. Quando pelos finais da dinastia Tang, por volta do século IX, o florescimento da poesia rimada (辭 ci) trouxe de novo a simbiose entre a poesia e a música.
Contudo, se por um lado, Pessanha é famoso pela sua escrita poética e criativa, a sua contribuição como coleccionador de arte e sinólogo tem sido frequentemente ignorada. Um estudo de alguns dos objectos da sua colecção de arte privada visa esclarecer a história dos artefactos que integram o património cultural da Ásia Oriental, alojado pelo Museu Nacional de Machado de Castro em Coimbra e pelo Museu do Oriente em Lisboa. A carreira de Pessanha como advogado e professor de filosofia em Macau colidiu com a sua propensão para a solidão e a auto-absorção, tornando-se um recluso excêntrico à maneira chinesa e um alvo de crítica para muitos dos seus pares na administração portuguesa de Macau. Como poeta português, nota-se a sua voz única, comparável à dos literatos chineses, pela sua projecção de tristeza, nostalgia, humanidade e vulnerabilidade pessoal nos seus textos, de forma semelhante às quadras chinesas “Jueju” (絕句). Como é que o seu interesse poético se relaciona com as obras de arte que reuniu em Macau? Neste artigo, analisaremos a forma como Pessanha, em acto de identificação biográfica, selecciona o seguinte quadro intitulado ” Flores de Pêssego na Primavera”, que exibe um poema de uma das personalidades mais proeminentes da literatura chinesa, Tao Yuanming (陶渊明) (365- 427), também conhecido por Tao Qian).
Esta obra de arte retrata a aventura de um simples pescador que acidentalmente entra num vale de pessegueiros separado do mundo terreno. Os seus habitantes vivem numa espécie de paraíso. De acordo com a narrativa, os aldeões explicam que os seus ascendentes se refugiaram neste lugar idílico durante as convulsões civis da dinastia Qin (221-206 a.C.)2 e, desde então, não haviam tido qualquer contacto com ninguém de fora do seu refúgio ou tomado conhecimento dos governos posteriores3. O autor é o famoso poeta chinês Tao Yuanming, que permaneceu para sempre como arquétipo do estudioso cujos talentos nunca foram bem empregues na administração governamental. Os seus versos reflectem o mal-estar e a ansiedade que assolava a sociedade chinesa na altura, já que viveu durante as Seis Dinastias (304-439), quando o norte da China estava ocupado por líderes estrangeiros e o sul da China, onde Tao viveu, assistia a uma sucessão de dinastias, fracas e breves, com a sua capital em Jiankang (hoje Nanjing); e ilustra o lamento pela rápida extinção de restos materiais da história e da cultura. A vida de Tao inspirou muitas obras literárias e ilustrações, e o período das Seis Dinastias foi um período vital na história da poesia chinesa, pois o poema original é sobre o ideal de encontrar um mundo perfeito onde as pessoas vivam em harmonia com a natureza.
Segundo Jacques Pimpaneau (2004, 274-297), Tao vem de uma família de literatos, tendo prosseguido uma carreira como funcionário público. O seu bisavô, Tao Kan, ocupou o cargo de ministro. O avô materno, o avô paterno, e o seu pai foram todos governadores locais. A sua família, porém, não era uma das mais influentes na aristocracia da época, o que talvez explique porque não teve uma carreira realmente próspera. Tao Yuanming era apenas um empregado subalterno, e a sua ocupação começou tarde, em 393, com um cargo menor na prefeitura de Jiangzhou (agora Jiujiang). Em 400, ocupou um cargo auxiliar com Huan Xuan (桓玄) (369 -404), um general que derrubou o Imperador Jin Andì (晉安帝) (382-419) em 403. Tao regressou à sua carreira após o luto pela morte da sua mãe em 404-405, servindo de elogio a Liu Yu (劉裕) (363-422). O seu último cargo foi o de responsável pela cidade de Pengze, por um período de oitenta dias, em 406. Depois retirou-se definitivamente. A sua residência foi queimada, o que o obrigou a regressar à sua aldeia natal. A sua vida no país não foi a de um ascético; manteve várias relações amistosas com indivíduos com quem costumava beber vinho, tornando-se assim famoso pela sua série de vinte poemas que celebravam os prazeres da bebida alcoólica.
Tao simpatizou com a pobreza e a fome dos camponeses e era bem formado nos clássicos do confucionismo e do taoísmo. Mais tarde na vida, poderá ter feito amizade com uma figura budista local, muito antes do budismo ser significativo na China. Há uma lenda sobre um encontro entre o monge Huiyuan (慧遠) (334 – 416,), Tao Yuanming, e Lu Xiujing (陸修靜; 406-477), que se tornou um conto popular. Talvez esta lenda tenha sido criada porque o sacerdote Huiyuan é considerado como o primeiro patriarca do “Budismo da Terra Pura” chinês, segundo o qual ao espírito de cada um poderia ser oferecida uma morada feliz no Paraíso Ocidental após a morte. Do mesmo modo, o céu ocupa uma ideia central na obra literária de Tao, mesmo que a intenção velada seja dar voz a um período de transição e de reclusão.
Estes poemas idílicos falam metaforicamente da retirada das funções burocráticas. Cédric Laurent explica que o tema criado por Tao interessa uma grande parte dos literati de Jiangnan (região sul em torno de três centros Suzhou, Nanjing e Hangzhou), incluindo comerciantes e empregados instruídos. Tao tornou-se num exemplo de quem que resiste em vez de cumprir as exigências de uma administração corrupta ou de quem arriscava envolver-se em disputas entre eunucos e literati na corte. Portanto, o renascimento das pinturas que ilustram da história de Tao está relacionado com os movimentos de protesto entre as classes de elite, expressos tanto a nível literário como filosófico.
Escrevendo no século V, o gosto de Tao pela natureza aumentou, após a sua desilusão com a vida pública, durante o período de invasão da China por clãs alienígenas do norte e a divisão, pela dissensão civil e corrupção política, do governo do sul. Coincidentemente, na viragem do século XIX para o século XX, Pessanha utilizou a filosofia chinesa e refugiou-se na solidão, transcrevendo nos seus poemas a sua euforia pela natureza durante os anos de turbulência política que precederam a proclamação da República na China. O ideal de um homem transportado de um mundo mundano para um reino raro de beleza e tranquilidade reflecte uma utopia comum na mente de ambos os poetas.
Tal como no poema de Tao, a presença do motivo “Paraísos Artificiais” é evidente na poesia de Camilo Pessanha. Em vez de um lugar, este “paraíso” está mais próximo de um estado de espírito, comparável às tradições budista e hinduísta. O tema do paraíso na sua voz poética liga-se aos temas da retirada e do nirvana, ligando o seu sentimento individual de insatisfação com o mundo existente, considerado uma causa de sofrimento. Por exemplo, a melancolia contida nos versos de “Clepsydra” – aparentemente reminiscente do pessimismo de Arthur Schopenhauer6 – parece reflectir uma criação artística que permite ao leitor aceder a imagens internas vistas por alguém durante uma profunda auto-reflexão. Aqui está um poema que sugere saudades de casa, um tema constante na tradição poética chinesa. Nos versos transcritos, Pessanha concentra-se na descrição de uma paisagem da Primavera, transmitindo assim os seus sentimentos de saudade da estação que infelizmente se foi. Trata-se de uma técnica frequentemente utilizada pelos poetas chineses. Em vez de falar directamente sobre sentimentos pessoais, o poeta chinês prefere personificar a natureza, ou, alternativamente, interiorizar o cosmos natural, transformando cada palavra num código carregado de significado metafórico ou simbólico. Devido à influência dos poemas chineses que Pessanha lia enquanto habitava em Macau, tinha uma visão intelectual pouco ortodoxa da métrica e da composição, se comparada com outros poetas portugueses, quando escrevia sobre o sofrimento e a ilusão inerentes ao processo de vida:

Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!…

ou

Quando voltei encontrei os meus passos
Ainda frescos sobre a húmida areia,
A fugitiva hora reevoquei-a,
Tão rediviva!, nos meus olhos baços…

De facto, os olhos são uma imagem recorrente em “Clepsydra”. Em vez de contemplarem qualquer imagem fixa, estão centrados na ideia budista de impermanência (“Anitya”) (“A hora fugaz”, escreve Pessanha). De acordo com a tradição Mahayana, a fé budista seria adaptada na China da forma mais apropriada para expandir a religião. Por exemplo, o monge Hui Yuan usa a filosofia taoista para explicar as concepções budistas esotéricas. Digno de nota que um dos termos chineses para “budismo” (像 教 “xiang jiao”) traduz-se literalmente como “Doutrina das Imagens”. Como sinólogo e escritor de estética e literatura, Pessanha estava ciente de que o caracter para “imagem” em Chinês像 (xiang) é composto pelo radical ‘人’ para “pessoa” e o composto fonético ‘象’ para “elefante” ou “aparência”, implicando que a imagem se torna uma figura ou pintura perceptível através do raciocínio subjectivo individual. Além disso, o livro considerado o mais importante sobre a estética literária chinesa, “Literatura e Escultura do Coração do Dragão” (文心雕龍, Wen Xin Diao Long), escrito por Liu Xie cerca de 500, define “imagem” (像) como uma ideia abstracta internalizada pelo poeta através da forma artística.
Não obstante, a história do pensamento chinês não foi a única fonte de inspiração para Pessanha. Os críticos literários assumiram que o termo “Clepsydra”, título do seu único livro de poemas, teve provavelmente origem no versículo de Charles Baudelaire (1821-1867) “O abismo tem sempre sede; a clepsidra esvazia-se”. No entanto, vale a pena mencionar que o leitmotiv do relógio de água é também comum à poesia clássica chinesa – e o próprio Baudelaire poderia ter reutilizado este termo devido ao seu interesse oriental. Na verdade, o movimento Simbolista, iniciado em França e influenciado por estes novos valores originários do Oriente, reagiu contra o Naturalismo e o Realismo em favor da espiritualidade, imaginação e devaneios. A relação de Pessanha com o movimento Simbolista poderia doravante explicar a presença de um motivo oriental na sua poesia, mesmo antes de ter deixado Portugal para a China em 1893. De facto, os poemas publicados na primeira edição de “Clepsydra” são todos anteriores à sua estadia em Macau, embora os seus restantes manuscritos sugiram que ele possa ter reescrito grande parte da sua poesia depois de se ter mudado para esta colónia portuguesa na Ásia, onde o tema do relógio de água pode ter adquirido mais corpo sob a influência chinesa. À semelhança dos poetas chineses, os escritores europeus mencionados consideram a Natureza não apenas como um fenómeno físico, com qualidades sensualmente agradáveis, mas também como uma alma animada, que está em íntima correspondência com a própria vida.
Consequentemente, se Pessanha já estava a receber a inspiração de outros poetas do seu continente europeu, estes mesmos poetas tinham de facto aprendido com a filosofia asiática as qualidades estéticas que traduziram nos seus textos. É importante recordar a influência que Emanuel Swedenborg (1688-1772) exerceu na poesia simbolista. Não só Baudelaire, mas também Thomas Carlyle, Ralph Waldo Emerson, Balzac, Helen Keller e, mais recentemente, Jorge Luís Borges, fazem eco das suas obras. A doutrina de Swedenborg, baseada no conceito bíblico de que “Deus criou o homem à sua própria imagem” (Génesis 1:27), é explicada em pormenor no seu livro “Arcana Cœlestia”, escrito entre 1746 e 1747. Ele chama “correspondência” à relação entre aspectos do domínio material e do domínio espiritual. Tudo no mundo material teria a sua contraparte na esfera espiritual. As ideias da Swedenborg são semelhantes a alguns preceitos cristãos esotéricos, budistas e védicos. O escritor pioneiro a usar esta ideia de “correspondência” na poesia foi, de facto, Baudelaire, que, num dos poemas mais influentes da literatura moderna, afirma que “som, cor e visões respondem uns aos outros”, o que significa que estas três modalidades sensoriais provêm da mesma intuição. Ele menciona ainda uma fuga para um mundo distante, de natureza exótica e de paraísos artificiais. Evoca a realização que se faz durante certos estados de espírito em que se misturam as percepções sensoriais.
Na pintura chinesa, a paisagem adquire um estatuto especial, considerado a forma suprema da pintura. Por esta razão, a ilustração ” Flor de Pêssego na Primavera” retrata várias montanhas, uma vez que as terras altas são vistas como um lugar sagrado pela sua proximidade do céu, lar dos imortais, sendo assim um tema de excelência nas pinturas chinesas. Em conclusão, o interesse filosófico na doutrina taoista sobre a natureza contribuiu para transformar a paisagem numa fonte de valores espirituais, algo que tanto Tao como Pessanha absorvem e reutilizam na sua poesia simbolista. Nas rimas de Pessanha, a natureza assume o mesmo uso que no tropo pictórico da ilustração do poema de Tao. A renúncia ascética poderia ser transmitida em imagens de dissolução através da articulação da dor pelo estado distópico do mundo humano.

Notas
1.Num discurso proferido na cerimónia de homenagem a Camilo Pessanha, a 1 de Março de 1999, no cemitério onde se encontra o poeta.
2.Revolta de Dazexiang (Julho – Dezembro 209 AC) e Insurreição de Liu Bang (206 AC).
3.Esta cena também aparece no Palácio de Verão de Pequim e na pintura em forma de leque do pintor chinês Ding Yunpeng em 1582, a dinastia Ming.
4.PIMPANEAU, Jacques. “L’œuvre de Tao Yuanming (Tao Qian, 365-427)”, in “Anthologie de la littérature chinoise classique”, Arles, Éditions Philippe Picquier, 2004, pp. 274-297.
5.ZHANG, Yinde. “Histoire de la littérature chinoise”, Paris, Ellipses, coll. “Littérature des cinq continents”, 2004, p. 23.
6.Pode-se também descobrir tangências entre a concepção de arte de Shoppenhauer e as ideias que Pessanha expressou sobre a natureza e a função da arte. Ambas conceberam a arte como uma renúncia ao desejo e ao gozo dos sentidos.

28 Out 2022

A China e os chineses em Broken Blossoms

Broken Blossoms (Lírio Quebrado é o título português) é considerado pela crítica como um dos melhores filmes de Griffith, a par de O Nascimento de uma Nação e Intolerância. Estreou em Nova Iorque no dia 13 de maio de 1919, no George M Cohan Theater. O enredo desenvolve-se em torno de Lucy, uma rapariga de 15 anos do bairro de Limehouse em Londres. O pai, Battling Burrows, é um pugilista ébrio e violento que lhe torna a vida infernal. Certo dia, Lucy procura refúgio na loja de um jovem chinês, Cheng Huan. Este admirava em segredo a beleza da rapariga. Quando o pai de Lucy descobre, espanca a filha até à morte. Ao encontrá-la moribunda, Cheng Huan mata Battling Burrows e suicida-se. Lucy é interpretada por Lillian Gish numa época em que não tinha ainda atingido o auge do estrelato. A história, embora trágica, era simples e, como afirma Rotha, “confiou no cinema para ter sucesso” (1967, 172).
Broken Blossoms baseava-se no conto ‘The Chink and the Child’, parte da colectânea Limehouse Nights (1916) do escritor inglês Thomas Burke. Burke fora funcionário e jornalista na cidade e alcançara popularidade como cronista sensacionalista dos bairros sórdidos de Londres como Limehouse, retratando os seus habitantes como personagens pecaminosas entre o erotismo, a traição e a vingança (Kepley 1978, 41).
O filme foi rodado numa época em que vigorava um intenso preconceito anti-asiático na Europa e na América, fenómeno que começara no século XIX e se prolongaria pelas primeiras décadas do século XX. A animadversão contra os asiáticos podia ser encontrada nas políticas do governo britânico e dos EUA através de leis de imigração e de restrição de imigrantes, bem como em práticas imperialistas nas Caraíbas e na Ásia. Por exemplo, no caso do Supremo Tribunal da Califórnia People vs. Hall (1854), o tribunal descreveu os imigrantes asiáticos como
“uma raça de pessoas que a natureza marcou como inferiores e que são incapazes de progredir ou de desenvolvimento intelectual para além de um determinado ponto, como a sua história demonstra; com uma diferença na linguagem, nas opiniões, na cor e na constituição física; e entre quem e a nossa natureza colocou uma diferença intransponível”. (citado por Yang 2016, 10)
E a subsequente Lei Anti-Coolie dos EUA prosseguiu na mesma veia, pintando os asiáticos como “coolies, uma raça degradada de viciados em ópio, prostitutas e jogadores sem Deus” (citado por Yang 2016, 10).
A animadversão contra os asiáticos podia também ser encontrada nos meios de comunicação, na literatura, no teatro e no cinema. Os asiáticos, chineses e japoneses em especial, eram invariavelmente retratados como a encarnação viva de um mal insidioso. Tornaram-se figuras familiares na literatura e nas revistas populares através de romances e histórias de autores como o já referido Thomas Burke e o criador do conhecido Dr. Fu Manchu, Sax Rohmer, que sonhou com a China governando a Europa e a América.
Quando Broken Blossoms foi rodado, Hollywood tornara-se num centro catalisador de animadversão contra os asiáticos. Os filmes que produzia retratavam asiáticos indignos de confiança e que constituíam uma ameaça aos valores americanos, às mulheres americanas e à América enquanto país. Por exemplo, em The Yellow Menace (1916), os maléficos chineses unem forças com os mexicanos para erguer uma conspiração subversiva contra os EUA. O título do filme recorda o termo “Perigo Amarelo”, usado pelo Kaiser alemão Guilherme II para incentivar os impérios europeus a invadir e colonizar a China, a fim de impedir que uma hipotética aliança sino-japonesa conquistasse e subjugasse o mundo ocidental.
Não esqueçamos que o nascimento do cinema coincidiu com a proliferação de ideologias pseudo-científicas como o darwinismo social e a eugenia, que promoviam a noção de raça através de uma hierarquia natural das culturas humanas. O topo pertencia aos anglo-saxónicos, o nível seguinte aos restantes caucasianos e os mongólicos e negros eram colocados no fundo. Desde então
“O cinema americano tem construído consistentemente a brancura, a forma representativa e narrativa do Eurocentrismo, como a norma perante a qual todos os “Outros” falham por comparação. As pessoas de cor são geralmente representadas como ameaças desviantes à regra branca, exigindo assim punição civilizada ou brutal, ou como objectos fetiches de beleza exótica, ícones para uma escopofilia racista” (Bernardi 1996, 3).
Receando que a ausência de uma posição anti-asiática óbvia em Broken Blossoms irritasse ou desapontasse o público, Griffith decidiu manipular previamente a leitura que dele faria, promovendo com sucesso o filme como uma obra de arte séria. Devido à aura artística, a superação do preconceito racial talvez viesse a ser tolerada. Griffith concebeu um plano elaborado para a distribuição do filme nos EUA que se assemelhou a uma grande produção teatral. E assegurou-se de que a campanha publicitária não fazia referências claras ao tema do filme (Kepley 2009).
Broken Blossoms retrata a China como um lugar anacrónico de vida contemplativa onde as pessoas estão ligadas pela família, as amizades, a comunidade e a continuidade entre gerações, enquanto Londres é dinâmica, violenta e inóspita. Não obstante ter sido filmado em 17 dias, detecta-se por parte do realizador um certo esmero e exigência de autenticidade nas cenas passadas na China. Isso era muito raro na época e continuaria a ser raro durante largas décadas. É verdade que as duas principais personagens chinesas (Cheng Huan e Evil Eye) são interpretadas por caucasianos, como era então a norma, mas todos os outros chineses são chineses de facto. As roupas chinesas são roupas chinesas e os sapatos chineses são sapatos chineses. Além disso, e isto é ainda mais notável, os caracteres chineses são caracteres chineses reais e as frases que formam são frases plausíveis. Na maioria dos filmes ocidentais, os caracteres chineses ou eram rabiscos falsos ou apareciam de cabeça para baixo, como no close-up de uma carta em The Forbidden City (1918), de Sidney Franklin.
Para além disso, Broken Blossoms parecia ir deliberadamente contra a maneira de retratar os asiáticos então dominante nos meios de comunicação populares. Na história de Burke, Cheng Huan era retratado como “o inútil de um oriental” (citado por Yang 2016, 12). Griffith tentou distanciar-se do conto sensacionalista de Burke tornando o seu ‘homem amarelo’ numa personagem melhor, enfurecendo o escritor por não o ter consultado (Kepley 1978, 46).
Durante várias noites, Griffith levou Richard Barthelmess, o actor então desconhecido que interpretava Chen Huang, a passear pela Chinatown de Los Angeles para observar os chineses, como preparação para desempenhar o seu papel (Koshy 2001, 75).
Nas cenas passadas na China, Cheng Huan é retratado como uma personagem poética que sonha em ensinar o amor budista pela paz no Ocidente, um homem eloquente que abraça valores eternos, como a eternidade de Buda e a eternidade da civilização chinesa. Vestido com vestes ricamente ornamentadas, parece sereno, digno até.
Todavia, quando se muda para Londres, o seu sonho missionário soçobra. Não se mostra capaz de ultrapassar os obstáculos inerentes à tarefa de transplantar a espiritualidade asiática para o Ocidente. Torna-se paulatinamente apenas mais um ‘chinoca’ do bairro de Limehouse. A expressão facial é melancólica, pouco fala, usa roupas envelhecidas e adopta, como Lucy, uma postura encurvada. Conserva amiúde os olhos baixos, os braços enrolando-se sobre si próprio. Com os seus ideais despedaçados, Cheng Huan transforma-se num solitário viciado em ópio e num alienado desiludido incapaz de prosperar num ambiente hostil. Na verdade, as roupas de Cheng, a sua loja, a sua casa e o seu fumo de ópio parecem conservá-lo para sempre numa existência asiática. O filme alerta deste modo para os perigos das travessias culturais e para a degeneração daí resultante.
A dificuldade em ajustar-se a uma cultura diferente é sugerida logo no início do filme. “Os bárbaros anglo-saxónicos”, os britânicos, os marinheiros americanos, são encarnações de auto-confiança machista, mulherengos e bêbados que gostam de lutas. Mas “o sensível Homem Amarelo encolhe-se de horror” ao ver os marinheiros americanos a lutar. E embora a sua mensagem budista seja semelhante à cristã (“O que não queres que os outros te façam, não faças tu aos outros”) há um equívoco na percepção cultural. Cheng Huan interpreta como violência o que foi, de facto, segundo Griffith, “Apenas uma luta livre e sociável para os Jackies”. Em suma, provavelmente não se entendem.
Ainda assim, Cheng Huan irá apaixonar-se por uma rapariga branca. A ameaça de miscigenação é, portanto, um tema central do filme. A miscigenação era um tema popular, intrigante e repulsivo ao mesmo tempo. Um dos estereótipos em voga era que o homem asiático nutria um apetite voraz por mulheres brancas. Tal como em Broken Blossoms, a luxúria era unilateral, mas os homens asiáticos conseguiam impressionar as mulheres brancas através de uma gentileza calculista, embora nunca através de proezas físicas. The Cheat (1915) de De Mille servia como protótipo, ao retratar a história de um japonês rico e perigoso que prospera na sociedade branca e é uma ameaça para as mulheres, um violador (Kepley 1978, 39). Na sequência final, é claro, as mulheres eram invariavelmente salvas por um herói branco, de preferência americano.
Broken Blossoms foi uma inovação no sentido em que não há nenhum herói branco por quem Lucy se apaixone e que a vá salvar. O herói só podia ser branco e, portanto, Cheng Huan não a podia salvar.
Um aspecto representado na grande maioria destes filmes era a violência perpetrada contra um membro (e às vezes ambos) de um casal bi-racial, muitas vezes separando-os nesse processo. Assim, a miscigenação, mesmo que retratada de uma forma mais positiva, esteve quase sempre ligada à violência e era vista, em geral, como algo a abordar com cautela. (Hui 2010, 6)
As uniões bi-raciais estão condenadas a falhar e Cheng Huan não podia concretizar carnalmente o seu desejo pela rapariga branca. Abstém-se mesmo de beijar Lucy, pois esta parecia encolher-se de terror perante tal perspectiva. Tudo quanto podia fazer era demonstrar por ela uma espécie de amor maternal: “A falta de resposta infantil de Lucy à paixão de Cheng inicia uma transformação no papel deste como um potencial amante para o de mãe substituta.” (Koshy 2001, 65).
Cheng Huan, um misto de luxúria carnal e de espiritualidade, sublimou o desejo por Lucy em adoração pela sua brancura. O seu quarto torna-se num altar de adulação à Menina Branca, à Flor Branca. Esta, no entanto, só na aparência permite ser orientalizada, ao envergar vestes chinesas, “seda azul e amarela acariciando a pele branca”. Na verdade, está imobilizada entre a brutalidade do pai e o alienado Cheng Huan, entre o abuso e a miscigenação, entre a vida de escrava e a vida de prostituta. Sem herói branco à vista, para Lucy a única saída é a morte.
Ainda assim, na altura, Broken Blossoms foi recebido como uma forma de arte e como uma declaração contra a brutalidade masculina e os preconceitos raciais. Através de uma combinação ambígua de racismo e de antirracismo, surgiu como “uma das representações mais positivas de miscigenação entre asiáticos e brancos que a indústria cinematográfica americana apresentaria durante muitos anos.” (Hui 2010, 23).

Referências:
Andrew, Dudley (1981), “Broken blossoms: The art and the Eros of a perverse text”, Quarterly Review of Film Studies, 6:1, pp. 81-90.
Barry, Iris (1940), D. W. Griffith, American film master, New York: The Museum of Modern Art, 1965, pp. 28-9.
Beach, Christopher (2015), A Hidden History of Film Style: Cinematographers, Directors, and the Collaborative Process, University of California Press, pp. 48-52.
Bernardi, Daniel (1996), “Introduction: Race and emergence of US Cinema”, The Birth of Whiteness: Race and the Emergence of US Cinema, Rutgers University Press, pp. 1-11.
Flitterman-Lewis, Sandy (1994), “The Blossom and the Bole: Narrative and Visual Spectacle in Early Film Melodrama Author(s)”, Cinema Journal, Vol. 33, No. 3 (Spring, 1994), pp. 3-15.
Hui, Arlene (2010), “Fantasies of the “Yellow Peril”: Miscegenation in The Cheat (1915) and Broken Blossoms (1919)”, Film Journal 1 https://www.ucl.ac.uk/filmjournal/content2011 (accessed July 3, 2018)
Kepley Jr., Vance (1978), “Griffith’s “broken blossoms” and the problem of historical specificity”, Quarterly Review of Film Studies, 3:1, pp. 37-47.
Koshy, Susan (2001), “American Nationhood as Eugenic Romance”, Differences: a Journal of Feminist Cultural Studies, 12 (1), pp. 50-78.
Rotha, Paul e Griffith, Richard (1967), Survey of World Cinema. The Film Till Now A Survey of World Cinema, New York: Twayne Publishers, pp. 169-79.
Torregrosa, Daniel C. Narváez (2008), “La Vision Cinematográfica de D. W. Griffith”, Frame: revista de cine de la Biblioteca de la Faculdad de Comunicación, Nº 3 2008, pp. 44-57.
Yang, Helen (2016), “White Washed Out: Asian American Representation in Media” https://sites.duke.edu/bakerscholars/files/2017/02/Yang_AsianAmericanMediaRepresentation.pdf (accessed June 29, 2018)

28 Out 2022

A Via do Meio em Zhuang Zi

De como ele fala da “Via do Meio” ou “linha do meio”, no início do Capítulo III (Nutrir a Vida).

A nossa vida flui dentro de margens,
mas o conhecimento não tem margens.
Perseguir o que não tem margens
usando o que tem margens, já é arriscado.
Se acreditarmos que temos conhecimento
para o fazer, o perigo está à espreita!

Fazendo bem sem nos avizinharmos da fama,
fazendo mal sem nos avizinharmos da punição,
e seguindo pela linha média,
consegue-se proteger o corpo,
manter intacta a vida,
dar apoio aos familiares
e esgotar os anos que nos cabem de vida.

Comentário
Este capítulo parece estar estruturado para ilustrar estas suas primeiras linhas que dizem que a nossa vida é como um rio, que não deve sair das margens. É perigoso usar o conhecimento como guia, porque ele consegue exceder todas as margens, querendo saber mais do que é possível sobre a realidade. Tentar saber o que fazer com a vida é fútil, porque ela não é norteada pela compreensão consciente. Para nutrirmos a vida, não devemos usar o conhecimento (ou devemos usá-lo de modo que ele se adapte a cada situação da vida e não o contrário) para podermos seguir dentro da linha média, sem nos aproximarmos da margem da fama nem da margem da punição. Se fizermos algo que as convenções consideram bom, devemos evitar a fama. Se fizermos algo que as convenções consideram mau, devemos evitar o castigo. Ou seja, embora não nos devamos deixar guiar pelas convenções sociais, quase sempre muito limitativas da ordem natural das coisas, devemos tê-las em conta nas nossas acções. Nem as devemos seguir inteiramente, nem as devemos ignorar. Teremos uma vida mais feliz se seguirmos pelo «caminho do meio». E as flutuações espontâneas do comportamento, entregues a si mesmas, têm tendência para nos fazer seguir por ele.

A primeira frase deste texto (吾生也有涯而知也無涯), que literalmente significa «a nossa vida tem margens, mas o conhecimento não tem margens», é um aforismo muito conhecido, usado na China para exprimir a ideia de que «a vida é curta, mas o que há para aprender é ilimitado». É a expressão usada para transcrever para o chinês o aforismo «Ars longa, vita brevis» (Ὁ βίος βραχύς, ἡ δὲ τέχνη μακρή) de Hipócrates, que viveu um século antes de Chuang Tse.

O caracter que traduzimos por «linha média» é 督 (dū), que significa «controlador» ou «supervisor» e é também um termo da acupunctura chinesa que designa o meridiano que percorre verticalmente o centro das costas. Os «meridianos» (經絡, jīng luò) são canais de energia, que percorrem o corpo e o protegem. Neles circula o ying chi (營氣, yíng qì), um sopro nutriente que, segundo a tradição chinesa, é capaz de produzir sangue. Uma tradução mais literal do que «seguindo pela linha média» seria: «circulando no meridiano supervisor».

Repare-se que o conhecimento de que se fala neste texto é essencialmente o que se relaciona com a definição do que é a conduta certa e a conduta errada. Parece uma rejeição da moralidade. No entanto, como se depreende do resto do capítulo, a conduta recomendada não corresponde a rejeitar os objectivos práticos da moral, como o bem-estar pessoal e a consideração pelos outros. O que se afirma é que, se queremos «nutrir a vida», em vez de orientarmos as nossas acções deliberadamente, tentando seguir as normas morais, devemos tomar por modelo o modo de agir dos artífices exímios e seguir espontaneamente o caminho que responde de uma forma mais ajustada, adequada, eficaz ou harmoniosa às circunstâncias de cada momento.

Este texto não deixa de nos chamar a atenção, como Nietzsche, na “Genealogia da moral”, para que a avaliação e a orientação da conduta humana em termos distintamente morais é uma prática cultural, adoptada em determinadas circunstâncias para certos fins, e que pode não ser nem necessária nem inevitável, nem a melhor para a preservação da nossa vida individual.

28 Out 2022

Su Dongpo – Carta ao amigo Qin Guan

蘇東坡 Su Dongpo (1037-1101), um dos grandes poetas da China e do mundo, conheceu o degredo e o exílio, mas sabia transformar as adversidades em tempos de pequenos e inesquecíveis prazeres. No ano de 1080, após 130 dias na prisão, por supostamente ter criticado o imperador, Su Dongbo foi despromovido e enviado como fiscal das águas e segundo comandante da guarda da insignificante vilazinha de Huangzhou, na margem norte do rio Yangtsé, a meio caminho entre os lagos Dongting e Poyang. A sua casa situava-se no lugarejo de Lingao e aqui Su Dongbo escreveu alguns dos seus mais belos poemas. Este é um excerto de uma carta então enviada ao seu amigo Qin Guan.

Quando cheguei a Huangzhou estava preocupado com o que iria encontrar. O meu salário havia sido cortado e a minha família era extensa. Contudo, fazendo poucas despesas, consegui não gastar mais de 150 sapecas por dia. No início do mês recebia 4.500 moedas e dividi-as em 30 sacos que pendurava nas vigas da casa. Todos os dias, de manhã, com uma cana pesco um saco de sapecas. Também penduro uns caniços de bambu onde guardo o dinheiro que sobra. É um método que me foi ensinado pelo meu amigo Xia Yunlao. Creio ter dinheiro suficiente para um ano ou mais, e depois aparecerão outras soluções. A água quando corre escava a terra, não vale a pena preocupar-me demasiado com o futuro. Entendes porque são tão poucas as inquietações na minha mente?
Nas margens do rio Yangtsé situa-se Wuchang. Em redor, a paisagem de montanhas e água é prodigiosa. A cidadezinha é habitada por um homem chamado Wang, natural de Sichuan. De quando em quando, o vento e as águas agitadas do rio impedem-me de regressar ao lar, então o meu amigo Wang mata um frango e cozinha uma panela com milho miúdo. Posso permanecer em sua casa durante vários dias, não é coisa que o aborreça. Tenho outro amigo, o Pan, dono de uma taberna no cais de Fankou. Bastam umas tantas remadas numa barca e chego à sua quitanda. O vinho da aldeia é encorpado, abundam tangerinas e dióspiros. Os inhames têm mais de um pé de comprimento e podem ser comparados aos das terras de Sichuan. O arroz vem de outras regiões, por via fluvial, e custa apenas vinte taéis por alqueire. A carne de carneiro é tão boa como a das províncias do norte, porco, vaca e cabra são muito baratos, os peixes e caranguejos não custam quase nada. Hu Tingshi, o inspector do Departamento Vinícola, trouxe dez mil livros com ele que tem prazer em emprestar aos amigos. Em Huangzhou existem vários pequenos funcionários estatais, todos amantes da boa cozinha que gostam de oferecer banquetes. Depois desta descrição podes aperceber-te de que a minha vida por aqui é mais do que agradável. Adorava conversar contigo sobre todas estas coisas, mas já não tenho papel, a folha está a acabar.
Imagino-te a leres esta carta, um sorriso de concordância, cofiando a barba.

1080

Viajando para Chi Ting

Na viagem para Chi Ting, Pan, Ku e Guo, três homens da região são meus companheiros. Vamos ao mosteiro da doutrina chan (zen), a leste da aldeia de Nu Wang.[1]

A Primavera fria,
não saio de casa há dez dias,
não me apercebi que rebentos de salgueiro
baloiçam já sobre os telhados da aldeia.
Oiço o estilhaçar do gelo,
o ruído espalhando-se pelo vale.
Manchas de erva verdejante
irrompem dos fogos de Inverno.
Talhões de terrenos baldios
pedem-me para eu ficar por aqui.
Aqueço meia botija de vinho turvo,
dia após dia avanço por estes caminhos.
A chuva fina, ameixieiras em flor
abalam-me a serenidade da alma.

1081

[1] Nu Wang fica a trinta léguas da vilazinha de Huangzhou. Pan é comerciante de vinhos, Ku vende ervas medicinais e Guo é um monge ermita.

26 Out 2022

A Paisagem Ressonante de Ma Wan

Yang Weizhen (1296-1370) dedicaria a sua vida às palavras que escreveu muitas vezes como uma homenagem ao cenário da área de Jiangnan, porém não seriam só as palavras enformadas pela nostalgia, que o haveriam de recordar após a sua eloquente passagem por essa paisagem. Song Lian (1310-81) um ministro e conselheiro de Taizu, o fundador da dinastia Ming, recordou-o na «Inscrição para o mestre Yang, o falecido supervisor da erudição confuciana em Jiangxi»: «A meio da dinastia Yuan um grande mestre da literatura surgiu na área de Zhejiang e ele era o mestre Tieyai.
A sua voz ressonante e o seu brilho luzente subiram ao alto e penetraram no céu. Jovens de Wu e Yue aproximavam-se dele em grande número, do mesmo modo que as montanhas prestam homenagem ao Monte Tai e todos os rios fluem para o mar. Uma situação que só terminou ao fim de mais de quarenta anos.» O sobrenome Tieyai «Penhasco de ferro» com que foi conhecido resulta de um episódio biográfico: o seu pai Yang Hong, vendo que ele não estudava, mandou encerrá-lo numa torre no cimo da colina do mesmo nome onde durante cinco anos viveu isolado a estudar os clássicos.
Quando fez o exame jinshi em 1327 provou como os conhecia, em particular os Anais das Primaveras e Outonos (Chunqiu) e os seus comentários. E apesar de ter exercido funções oficiais em Tiantai ou Qianqing (perto da actual Shaoxing) a sua vocação cumpriu-se na área da literatura. Song Lian: «Com um turbante de Huayang e um casaco de penas, Yang partia num barco-casa na Piscina do dragão ao longo da ilha da Fénix, segurando a fauta de ferro a seu lado e quando a tocava, o som subia a pique, penetrando as nuvens. Os que observavam suspeitavam estar perante um imortal exilado.» Ver-se-ia em pinturas a tradução visual do som da flauta de Yang.
Ma Wan (c.1310-78) o poeta e pintor da actual Nanquim, que terá aprendido a arte com Yang Weizhen, pintou paisagens que respondiam a essa animação dos sentidos em Jiangnan. Em Paisagem de Primavera (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 83,2 x 27,5 cm, no Smithonian) que lhe é atribuída, nota-se a caligrafia de Tieyai, celebrando a alegria de navegar no rio Changjiang. Dois eruditos a cavalo prestes a passar uma ponte de madeira ecoam dois barcos no meio do rio.
Em Intenção poética de nuvens ao entardecer (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 95,6 x 56,3 cm, no Museu de Xangai) quase se pode escutar a flauta de Yang. Song Lian: «Com a idade ele foi-se tornando cada vez mais descomedido. Construiu um jardim isolado e um «terraço de Penglai» a norte do rio Song e não passava um dia que não recebesse convidados e ficasse profundamente embriagado. Depois ordenava cantoras que cantassem a «Neve branca» acompanhando-as na pipa de fénix. Alguns convidados dançavam rodopiando livre e graciosamente. Parecia mesmo o porte dos nobres da dinastia Jin.»

26 Out 2022

Guerra e paz: Mazu está atenta ao que se passa

I

A história de Macau está intimamente ligada à crença em Mazu 媽祖, a deusa chinesa dos Marinheiros e Navegadores. De acordo com a tradição, o culto teve origem na pequena ilha de Meizhou湄洲 (também 眉州), no início da dinastia Song: Em 960, sob circunstâncias auspiciosas e invulgares, nasceu uma rapariga na família Lin 林. Quando ela cresceu, tornou-se evidente que era capaz de realizar milagres e proteger pescadores e outros em alto-mar contra fortes ondas e tempestades. Alguns textos antigos chamavam-lhe wu 巫, ou xamã, o que provavelmente era.
Diz-se que ela ascendeu ao Céu no ano 987, aos vinte e sete anos, numa nuvem, acompanhada de música ou sons celestiais. Esta data marca o início da sua carreira póstuma. De imediato, as pessoas de Meizhou e da província vizinha de Fujian começaram a adorá-la. Registaram-se mais milagres e tornou-se claro que esta divindade não só protegeria navios e marinheiros, como também ofereceria ajuda de muitas outras formas. Em termos simples, ela tornou-se cada vez mais importante aos olhos da população costeira. Registos como o Tianfei xiansheng lu 天妃顯聖錄, um trabalho chave sobre o seu culto e carreira, diz-nos que ela protegeu diques, lutou contra doenças e ajudou soldados no combate contra maléficos inimigos – para mencionar apenas algumas das suas muitas funções.
Como ela apoiou firmemente eventos e assuntos no interesse do Estado, a Corte Imperial começou a promover oficialmente o seu culto. Recebeu títulos oficiais, foram-lhe construídos templos e realizadas cerimónias estatais em sua honra. Marinheiros e comerciantes, normalmente de Fujian, espalharam o seu culto pela costa da China e mesmo pelo Sudeste Asiático, Japão e Ilhas Ryukyu. Além disso, pelos textos antigos sabemos que já nos tempos mais remotos as pessoas a bordo de navios rezavam regularmente a esta deusa e ofereciam-lhe sacrifícios durante as viagens marítimas.
Quando os portugueses começaram a instalar-se na península de Macau nos anos 1550, o local da actual Ma-kok-miu / Templo da Barra já servia como um centro local para a sua veneração. Como é sabido, existem diferentes pontos de vista sobre a história inicial deste templo. Basta dizer que foi provavelmente fundado por marinheiros ou migrantes de ascendência fujianense. Outra possibilidade é que mercadores e marinheiros das Ryukyu tenham estado envolvidos na construção dos primeiros edifícios. Pelo menos, há referências a navios de Ryukyu vindos para o antigo distrito de Xiangshan 香山.
Hoje em dia, a deusa de que falamos é conhecida por diferentes nomes, alguns dos quais derivam de títulos honoríficos que lhe foram conferidos pela Corte Imperial. Isto aplica-se aos nomes Tianfei 天妃 e Tianhou 天后 (Tinhau em Cantonês). A aplicação de tais títulos seguiu frequentemente uma ordem hierárquica. Tianfei, um título antigo, significa “Consorte Celestial”, o título Tianhou, concedido pelos Qing, significa “Rainha Celestial”. Podemos dizer que o último título implica uma classificação muito elevada, de facto uma das mais altas jamais conferidas a uma divindade feminina.
Outros nomes – tais como as formas convencionais Mazu e Niangma 娘媽 – são menos fáceis de explicar. Podem ser considerados como designações gerais com um toque local. A versão Mazu é de longe a mais importante, mas o seu significado preciso não é claro. De acordo com uma versão, deriva do nome de uma estrela, escrito 馬祖; outra versão é que é um termo composto que denota simbolicamente várias gerações sucessivas de um clã ou família.
Mazu tornou-se na principal divindade protectora das costas marítimas de Fujian e Guangdong, em Hong Kong e Macau, em Taiwan e em certas partes de Hainan. Belos e ricamente ornamentados templos, a ela dedicados, tornaram-se atracções turísticas. Hoje sabemos que também existiam pequenos santuários de Mazu nas ilhas do Mar do Sul da China; estas estruturas apontam para a presença regular de marinheiros chineses nessa zona.
Mas há muito mais para contar. Em certa medida, pode-se comparar Mazu a diferentes versões da Virgem Maria, por exemplo, de Stella Maris ou de Nossa Senhora dos Navegantes. Mas também foi comparada com Guanyin 觀音. Budistas e taoístas têm defendido repetidamente que ela deveria pertencer aos seus respectivos panteões. Nas Filipinas, encontramos locais onde “se fundiu” com a Virgem Maria. Evidentemente, porque ambas as figuras representam virtudes semelhantes, demonstram benevolência e ajudam os crentes de muitas maneiras.
Tanto quanto podemos dizer, Mazu raramente ou nunca castigou alguém. Certamente, ela subjugaria inimigos e fantasmas maléficos, mas parece que não desejaria causar destruições devastadoras. Isto aplica-se também às suas “intervenções políticas”. Ela ajuda os que se encontram em perigo e aqueles cujo caso é justo.

II

Em 1661/62, há trezentos e sessenta anos, Mazu tomou o partido de Zheng Chenggong 鄭成功, quando este partiu para dispersar os holandeses de Taiwan. Para compreender o assunto, são necessárias algumas breves observações sobre os antecedentes históricos. Zheng Chenggong comandava uma grande frota comercial e muitos navios de guerra. Era um homem ambicioso, mas muito leal aos Ming, pelo que as suas forças lutaram contra os conquistadores Manchu, ou seja, os primeiros Qing. Por volta de 1660, Zheng controlava várias ilhas ao longo da costa da China. No entanto, para sua segurança, decidiu também adquirir algumas posições em Taiwan, que poderiam servir como um possível retiro, caso os Qing expulsassem as suas tropas dos locais costeiros ao longo do continente. Assim, iniciou-se um novo capítulo na história da China.
Mas voltemos aos holandeses. Eles não só tinham aterrorizado Macau na primeira metade do século XVII, como também tinham fugido para o Estreito de Taiwan, pilhando dezenas de embarcações comerciais chinesas e matando inocentes. Além disso, a partir do Forte Zeelandia – a sua principal base em Taiwan – e vários povoados embrionários naquela ilha, exploraram com rigor alguns dos recursos económicos locais. Em 1652, cometeram mesmo um massacre local, que deixou muitos chineses mortos. Podemos interrogar-nos sobre o estranho comportamento da Companhia Holandesa das Índias Orientais. Talvez as razões sejam muito simples: as ideias calvinistas e protestantes sugeriam que Deus estaria ao lado daqueles que tinham sucesso durante a vida. As pessoas teriam o “direito de negociar”. Os resultados eram óbvios: o comportamento da empresa era determinado pelo desejo ardente de maximizar os lucros; isso não a impediria de subjugar outros e anexar terras alheias.
Claramente, Zheng Chenggong e os seus homens não gostavam nada da violência causada por adeptos de tão dura linha. Eles sabiam que era impossível cooperar com eles. Portanto, muito naturalmente, a ideia de estabelecer uma base segura em Taiwan implicava que o Forte Zeelandia tinha de ser tomado e que a ilha tinha de se livrar de um inimigo impiedoso.
De acordo com a tradição, foi isto que aconteceu: em 1661, no 23º dia do 3º mês lunar – o dia em que Mazu nasceu na família Lin – uma frota de várias centenas de embarcações com vários milhares de homens partiu de Jinmen金門 e Xiamen 厦門 para Taiwan. A data foi cuidadosamente seleccionada: mostra que a família Zheng esperava a ajuda de Mazu. Sem dúvida, o caso era justo, o inimigo era verdadeiramente mau e perigoso. Contudo, quando a frota se aproximou do seu destino, verificou-se que os holandeses tinham barrado a área e que era impossível aos soldados de Zheng desembarcar no solo de Taiwan. O local, perto da moderna Tainan 臺南, é conhecido como Lu’ermen 鹿耳門.
Ao tomar conhecimento desta situação inesperada, Zheng Chenggong rezou a Mazu pedindo ajuda. No dia seguinte houve uma inundação, o mar subiu um zhang 丈 (dez pés) e a força de desembarque conseguiu mover-se suavemente através de todos os obstáculos nas águas costeiras pouco profundas e desembarcar na ilha. Em 1662, após um longo cerco, o Forte Zeelandia caiu nas mãos de Zheng. Esta foi uma vitória perfeita: os holandeses partiram de uma vez e para sempre. Foi também uma vitória decisiva, pois demonstrou pela primeira vez na história que a China foi militarmente capaz de derrotar um intruso “ocidental” ganancioso, caso tal fosse necessário.
A narração não termina aqui: de acordo com a tradição, Zheng Chenggong, para expressar a sua sincera gratidão a Mazu, encomendou madeiras e outros materiais de construção para o templo em Luer’men.

III

Zheng Chenggong morreu em 1662, mas o clã Zheng governou Taiwan até ao início da década de 1680. Entretanto, um novo imperador tinha acedido ao trono Manchu. Este era o famoso imperador Kangxi 康熙. O seu reinado começou em 1662, o ano em que Mazu ajudou Zheng Chenggong no seu justo caso, e terminou há três séculos, em 1722. O imperador Kangxi foi um dos governantes mais bem-sucedidos da China. Tinha a mente aberta, estava em contacto regular com homens brilhantes de todo o mundo e, especialmente, com os padres jesuítas em Pequim. Este era um caso de respeito mútuo, algo que os holandeses, cegos pelas aspirações materiais e pela crença na sua própria superioridade, não podiam oferecer.
Podemos ser tentados a comparar a “ideologia” por detrás da liderança holandesa com a ideia de “destino manifesto”, associada à história da América do Norte. Um tema relacionado é o do “excepcionalismo americano” e o slogan “América primeiro”. Ambos deixaram muitas cicatrizes em todo o globo. De facto, podemos ver nos holandeses, “excepcionais” como eram, os precursores da expansão britânica e americana no Extremo Oriente.
Nessa altura, no final do século XVII, Mazu ainda não tinha lidado com estes feios fenómenos, mas observou cuidadosamente o que se passava na China. Quando o imperador Kangxi optou pela conquista de Taiwan, ainda sob o domínio de Zheng, Mazu entrou de novo em palco. Desta vez, ajudou as forças de Shi Lang 施琅 (1621-1696), o comandante Qing. O Tianfei xiansheng lu, acima citado, regista alguns dos detalhes. Isto diz respeito principalmente à batalha dos Pescadores ou Ilhas Penghu 澎湖群島. Mazu esteve por perto durante a batalha, os soldados puderam vê-la, embora não muito claramente; é isso que aprendemos com este texto. Em suma, a marinha e as tropas de Shi tomaram as ilhas e, em 1683, ocuparam também Taiwan. A partir de então, Taiwan passou a fazer parte do império Qing. Mazu tinha permitido aos Qing uma grande vitória.
Teria Mazu mudado de lado? Da resistência Ming, incarnada por Zheng Chenggong, para os governantes estrangeiros manchus? Teria sido ela induzida em erro? Teria ela tomado uma decisão errada? Ou deveríamos atribuir a sua ajuda eficiente ao facto de se ter sentido satisfeita com o imperador Kangxi e o seu governo? É verdade que os políticos muitas vezes instrumentalizam as crenças religiosas. Isto aconteceu certamente naqueles tempos iniciais; poderíamos citar outros exemplos para substanciar tal suposição. No entanto, os crentes no poder e influência de Mazu encontrarão certamente respostas muito diferentes às tentadoras questões acima colocadas.
Seja como for, o controlo Qing sobre Taiwan implicou que, durante mais de cem anos, os mares que faziam fronteira com a China permanecessem pacíficos. Sim, houve algumas tensões e escaramuças, mas Taiwan serviu como uma ponte entre partes do Nordeste e do Sudeste Asiático e o continente. Visto através dos olhos de patriotas, Mazu tinha feito a coisa certa, quando apoiou Shi Lang e as suas tropas. Sem dúvida, os seus acólitos, Shunfeng’er 順風耳 (Ouvido potente) e Qianliyan 千里眼 (Vidente), habitualmente expostos em todos os templos de Mazu, tinham recolhido a informação relevante necessária para uma decisão de tão grande alcance. A “Rainha Celestial” podia sempre contar com a sua CIA celestial.
A história prossegue: Os templos de Mazu de ambos os lados do Estreito de Taiwan estão em contacto estreito uns com os outros. Há fundos, há grupos e associações, há pontes silenciosas e invisíveis, há laços familiares. Mazu observa pacientemente a situação. Os crentes depositam nela muitas esperanças.

25 Out 2022

Amor universal

O amor conceitualizado pelo filósofo chinês Mozi (Mo Tzu) 墨子 (c. 470 a.C. – c. 391 a.C.) representa uma experiência emocional precisa que não possui correspondente direto em nosso idioma português. O amor universal (兼愛, jian’ai) é a pedra angular do pensamento moísta, à qual recorrerá toda ação moral (Cheng, 2008:108). Quando a filosofia chinesa se tornou parte de um diálogo com o Ocidente nos tempos modernos, a lógica moísta, há muito esquecida, foi redescoberta para apoiar a afirmação de que as filosofias chinesas também demonstraram uma mentalidade analítica.
Anne Cheng, em sua “História do pensamento chinês” (2008: 108), prefere traduzir 兼愛 “jian’ai” como “solicitude por assimilação” (ou uniformização), pois “entra aqui muito mais equidade do que sentimento”, afirma a sinóloga. Ela relembra que “de maneira significativa, Mozi opta por realçar a diferença” entre o termo “兼, jian” (assimilar os outros a si mesmo, como demonstra a imagem abaixo, ilustrativa da etimologia do pictograma), em oposição a “bie” (administrar distinções). Assim, Mozi censura o sentido de amor diferenciado como piedade filial (孝, xiao) pregado por Confúcio, devido à ancoragem do mesmo em sentimentos e, portanto, à distinção entre o tratamento dos entes familiares em relação aos distantes. O amor ao que se refere Mozi seria pois racional, objetivo e imparcial.

A etimologia de兼 (jian): universal/ inclusivo/ abrangente/ imparcial), em 兼愛 (jian’ai) amor universal.

Mozi estava plenamente consciente da dificuldade em ensinar as pessoas a irem contra seus sentimentos naturais de amar aos entes próximos antes dos demais. Assim, sua estratégia foi apelar ao desejo natural dos humanos pelo benefício (fazer ver como seria benéfico se todos amassem uns aos outros universalmente). Ele ressaltou que “quem ama será amado pelos outros, e quem odeia será odiado pelos outros”. Em última análise, “nosso próprio interesse é melhor garantido quando podemos amar universalmente” (Mozi, “Amor Universal” Parte III, Capítulo XVI).

24 Out 2022

Li Qingzhao: Do amor à mais profunda solidão

Entre a paz e a guerra, amor e paixão, prosperidade e miséria, abraço e solidão, a dinastia Song do Norte viu nascer e a dinastia Song do Sul viu morrer, a mais célebre poetisa de toda a história da China, chamada Li Qingzhao. Li, também conhecida como Yi An, a Budista Leiga, cresceu entre letrados e oficiais, em Jinan, província de Shandong, no ano de 1084. Yi An é fruto de uma junção de dois reconhecidos letrados da dinastia Song: seu pai, Li Gefei (1045-1105), professor na academia imperial, um famoso ensaísta muito respeitado no seio dos amigos do grande Su Shi (1037-1101); e sua mãe, Wang Shi, poetisa de renome. “Uma menina talentosa”, assim dizia o reconhecido letrado e amigo do seu pai, Zhao Buzhi (1053-1110). Desde muito cedo, Li aproveitou o ambiente favorável onde nasceu e seu talento inato incomparável, dedicando a sua infância e adolescência ao estudo de artes e literatura. Entre os dezesseis e os dezessete anos, ela já escrevia poemas que reflectem temas históricos do séc. VII, como a rebelião de An Lushan durante a dinastia Tang. Mas o que mais marcou sua adolescência foram os pequenos ci “词” (poemas para cantar) que ela escrevia sobre seus alegres passeios aos subúrbios da sua cidade natal. Essas canções não só revelam sua ingénua adolescência, como também seu amor pela natureza e seu espírito vivo e indomável. Eis aqui uma canção que representa este período da sua vida:

如梦令

昨夜雨疏风骤,
浓睡不消残酒,
试问卷帘人,却道海棠依旧。
知否?知否?应是绿肥红瘦。

Ao som de Como num sonho

Noite passada: chuva dispersa, vento repentino.
Apesar do sono profundo,
ainda sinto o último efeito do vinho.
À criada, na janela, pergunto sobre o dia:
“A macieira está brilhante, todavia.
Não sabias? Como saberias?
É o brotar das folhas verdes
e o cair das flores vermelhas abatidas.”

Li escreveu tanto sobre o amor e a saudade, dois sentimentos que se estenderam e modificaram de acordo com o caminhar da sua viagem. Seguimos com outra canção:

浣溪沙

髻子伤春慵更梳,晚风庭院落梅初。
淡云来往月疏疏。

玉鸭熏炉闲瑞脑,朱樱斗帐掩流苏。
通犀还解辟寒无?

Ao som de Lavando a areia do riacho

Vaga, com cabelo desfeito,
lamento o passar da primavera.
No pátio, sopra a brisa nocturna
e leva para o solo, as flores de ameixeira.
Nuvens claras, que vão e que voltam,
cobrem e descobrem o brilho da lua.

O turíbulo do pato de jade,
indiferente, dissipa o incenso perfumado.
Minhas cortinas de pérola cereja,
já fechadas, decaem suas franjas de borda.
A almofada de rinoceronte, com seu calor,
poderia dissipar o frio que nos separa?

Em 1101, aos dezoito anos, Li casou-se com um estudante da academia imperial, o homem que, segundo ela, foi o par ideal, Zhao Mingcheng (1081-1129). Zhao e Li tinham vários gostos em comum. Os dois partilhavam a mesma paixão pela poesia, colecção de inscrições antigas de bronze e pedra, objectos de arte, pintura e caligrafia. Eles compuseram juntos um catálogo de inscrições em metal e pedra. O tempo livre do casal era aproveitado para estudar as cópias das inscrições, ler livros antigos, fazer provas de memória e dedicar poemas um ao outro.
Essa felicidade e companheirismo provou ser temporal, na sua primeira fase, quando Zhao estava obrigado a viajar de trabalho. Nesta fase, Li começa a escrever canções que expressam amor ao seu esposo e a solidão traduzida em espera pelo amado; uma espera, segundo ela, paralela ao desejo da chegada da primavera. Segue mais uma canção que representa este momento da sua viagem:

小重山

春到长门春草青,红梅些子破,未开匀。
碧云笼碾玉成尘,
留晓梦,惊破一瓯春。

花影压重门,疏帘铺淡月,好黄昏。
二年三度负东君,
归来也,著意过今春。

Ao som de Duas pequenas montanhas

A primavera já bate na porta das esquecidas,
as ervas reverdecem, aos poucos,
ameixas vermelhas abrem desiguais.
As folhas de chá verde esmeralda
em pó finas dissipam seu aroma
No meu bonito sonho de aurora, de surpresa,
estala o pequeno copo de primavera.

A sombra das flores pressiona as portas do casal
As cortinas floridas transluzem a luz pálida da lua
Que belo escurecer!
Sem embargo, Príncipe do Leste,
é a terceira vez em dois anos que não correspondes
Tens de regressar,
gozar desta primavera meiga.

Com a queda da dinastia Song do Norte, em 1127, se funda a dinastia Song do Sul, com a corte em Lin’an, atual Hangzhou. No final do ano 1128, Zhao Mingcheng recebeu uma prestigiosa nomeação como governador de Jiankang (presente Nanjing). No ano seguinte, quando a corte oficial conspirou uma rebelião naquela cidade, Mingcheng desertou no meio da noite, aparentemente para garantir a sua segurança. Uma rebelião falhada resultou na demissão de Mingcheng. Zhao e Li navegaram em direção do Rio Yangtze em busca de um lugar seguro para se reinstalarem. Zhao Mingcheng foi depois convocado de volta para a corte itinerante em Jiankang. O imperador Gaozong(1127-1162) tinha decidido reintegrar Zhao e oferecer-lhe a governação de Huzhou. Ao chegar em Jiankang, Zhao Mingcheng ficou doente e acabou por falecer em 18 de Agosto de 1129, provavelmente de tifo.
Aos quarenta e seis anos, gravemente doente e ao mesmo tempo fugindo dos bárbaros, Li transferiu um grande número de relíquias culturais (uma grande parte dessas relíquias, incluindo livros antigos e inscrições esculpidos em metal e pedra, foram destruídos pelo exército Jin) para Hangzhou e confiou-as ao cunhado de Zhao Mingcheng, que era ministro militar na época, para as guardar. Ela carregou consigo um pequeno número de livros valiosos e relíquias históricas; depois, juntamente com seu irmão mais novo, seguiram a corte imperial liderada pelo imperador Gaozong à procura de refúgio e apoio. Em 1132, viúva e desabrigada, Li Qingzhao partiu de Shaoxing para Hangzhou. Depois, em 1134, colecionou e organizou o catálogo de inscrições em metal e pedra e, ainda, escreveu o epílogo.
Sem filhos e em busca de proteção, Li voltou a casar, desta vez, com um oficial de baixo escalão, chamado Zhang Ruzhou. Este casamento demorou muito pouco tempo, resultou na prisão de Li Qingzhao ao pedir o divórcio (acto prorrogativo do esposo), acusando Zhang de adultério. Li foi presa durante nove dias, e depois solta em consequência da confissão de Zhang. Este foi despojado do seu cargo, exilado e nunca mais visto.
Em seus últimos anos, Li Qingzhao viajou entre Jinhua e Lin’an. Numa permanente busca pela paz e conforto, Li viveu os seus últimos dias em profunda solidão e miséria. Ainda existe um ponto de interrogação em relação à data exacta da sua morte, porém muitos estudiosos acreditam que ela viveu aproximadamente 67 anos. Esta viagem termina assim, com a canção que descreve esta fase menos feliz da vida da poetisa:

声声慢

寻寻觅觅,冷冷清清,凄凄惨惨戚戚。
乍暖还寒时候,最难将息。
三杯两盏淡酒,怎故他、 晓来风急。
雁过也,正伤心,却是旧时相识。

满地黄花堆积,憔悴损,如今有谁堪摘?
守着窗儿,独自怎生得黑?
梧桐更兼细雨,到黄昏、 点点滴滴。
这次第,怎一个愁字了得!

Ao som de Melodia serena

Busco tudo aquilo que perdi, nada é tudo que encontro,
sinto só, alma lúgubre! Outono inconstante,
mais difícil meu consolo endurece.
Dois ou três copos deste leve vinho,
o que pode resistir ao furioso vento do anoitecer!
Gansos selvagens voam sobre o cimo,
mais profunda é minha dor,
seja como for, somos conhecidos d’outrora.
Sobre a terra tristes crisântemos se amontoam,
já murchos, agora, ainda existe quem os colhe?
Na janela, observo o cair da tarde,
como poderia uma alma solitária suportar o crepúsculo!
No extremo da noite, sobre as folhas,
gota a gota, um chuvisco vai caindo…
Como poderia esta paisagem caber numa palavra só:
tristeza!

“Os títulos de cada ci são, portanto, os nomes dos padrões musicais nos quais os poemas se encaixam pela primeira vez. Apenas em muito poucas ocasiões têm seus próprios títulos, os quais foram escritos ou pelos próprios poetas ou por comentadores posteriores; no entanto, o habitual é não possuir título. Por isso, esses padrões são repetidos em diferentes poemas. Se, por um lado, este género permitia uma expressão mais livre dos sentimentos e um uso habitual do pronome em primeira pessoa; por outro lado, requeria umas mãos delicadas de especialista e um sentido musical muito desenvolvido para poder satisfazer plenamente com palavras a canção seleccionada. Para realizar bem um ci, não só era necessário ser mestre da palavra, mas também é essencial conhecer perfeitamente os wuyin (cinco sons) e os liu lu (seis longitudes do tubo musical)”.
(Li Qingzhao, Poesía Completa, 60 poemas ci para cantar, traducción y notas de Pilar González España, Madrid, ediciones del oriente y del mediterráneo, 2010, pag. 15.)

Referências:
马玮,李清照诗词赏析. 北京:商务印书馆国际有限公司,2017.
The works of Li Qingzhao, translated by Ronald Egan. Boston/Berlin: Walter de Gruyter Inc, 2019.
Li Qingzhao, Poesía Completa, 60 poemas ci para cantar, traducción y notas de Pilar González España, Madrid, ediciones del oriente y del mediterráneo, 2010.

24 Out 2022

Giorgio Sinedino: “Zhuang Zi prescreve um mundo com imensos caminhos”

Giorgio Sinedino, sinólogo brasileiro residente em Macau, apresenta hoje, na Fundação Rui Cunha, pelas 18:30, um livro sobre Confúcio e a Tradição. Mas, recentemente, publicou uma tradução de Zhuang Zi, sobre a qual desenvolveu uma conversa, com Carlos Morais José

Primeiro traduziu os Analectos, de Confúcio, mas agora surgiu com uma tradução do Zhuangzi. Por que passou do confucionismo para o taoísmo, numa das suas versões?
Na verdade, não havia um plano, nada foi calculado com antecedência. Os Analectos surgiram de uma conclusão natural do que estava vivendo na época. Estava a fazer o meu mestrado na Universidade de Pequim e tive a oportunidade de conhecer de perto alguns especialistas muito importantes da chamada Escola do Princípio (Li Xue). Entrando em contacto com o pensamento de Zhu Xi, descobri que ele realizava um diálogo muito interessante com Confúcio. Esse diálogo, a interpessoalidade, a forma como Zhu Xi dá uma nova roupagem ao próprio confucionismo, e não apenas aos Analectos, estimulou-me a fazer uma tradução para português que levasse em consideração o modo como ele explicava, o pensamento do grande mestre. Na minha opinião, Zhu Xi é o melhor professor, de todas as pessoas que conhecemos da literatura sobre o pensamento chinês, ele é o grande propedeuta. Por isso, trabalhar os Analectos a partir de Zhu Xi foi muito estimulante.

É então a partir de Zhu Xi que aborda o confucionismo…
Antes de Zhu Xi não existia “o confucionismo”. Antes de Zhuang Zi também não existia taoísmo, ele tinha o espaço total de liberdade de se colocar no mundo. No caso de Zhu Xi, ele sentia uma enorme necessidade, uma nova China estava a surgir, a dinastia Song era ameaçada por todos os lados, e isso motiva-o a tentar renovar a cultura chinesa.

Tenta também coartar a influência do budismo…
Sem dúvida. O budismo já tinha se tornado um aspecto inseparável da cultura chinesa na época de Zhu Xi. Porém, o budismo era assumido como doutrina de Estado pelos Liao e pelos Jin, as duas nações do Norte. Então tínhamos o problema de como conciliar as necessidades de alta definição nacional, de dar uma identidade à dinastia Song, ao mesmo tempo que se preservava as ligações com o Budismo. Isso leva Zhu Xi a uma campanha polémica de luta contra o budismo, mas é interessante ver como ele vai assimilar certos aspectos do budismo, que podem ser conciliados com os ensinamentos confucianos. Inclusivamente, em termos de instituições. A grande novidade no neo-confucionismo foi também a influência da literatura do budismo Chan, a forma que escolheram para sistematizar os ensinamentos da Escola do Princípio foi exactamente a mesma que era utilizada pelo budismo chinês Chan, que era a biografia das linhagens e o estudo dos mestres. Como isso se cristaliza nos Analectos e vai reorientar a interpretação do Confúcio, é uma questão que tentei, mais ou menos, organizar.

Sobretudo nos comentários, uma parte muito rica da sua tradução…
Na altura, a proposta era essa. Quando trabalhamos a China, a tradução de um texto chinês não é como estamos habituados a trabalhar, a pensar nas línguas ocidentais. Nas línguas ocidentais existe um distanciamento entre o tradutor e o autor: o autor é a autoridade e o tradutor busca verter o idioma. O tradutor dá novas roupas ao autor. Mas, no caso da China, a relação entre autor e tradutor é muito mais fragmentada, porque, em primeiro lugar, o conceito de autoria, na China, é fluído. O autor dos Analectos é Confúcio? Começamos a pensar: não. Confúcio não escreveu nada, foram os discípulos. Mas aí, quando olhamos os Analectos e os estudamos por dentro, notamos que pelo menos três gerações, deram o corpo à obra. Quem disse isso, foi realmente Confúcio? A gente não tem como saber. Quem dá autoridade à obra? É difuso. E, para além das pessoas que compilaram os Analectos, temos séculos e séculos de eruditos que deram as suas contribuições, como editores e como críticos. Há enxertos de coisas, que não são da época, mas que passam a ser reconhecidos…

Daí que faça sentido ir ao neoconfucionismo quando, digamos, o Zhu Xi faz esse padrão, um li do confucionismo.
O Zhu Xi tornou-se um padrão por dois motivos: primeiro, porque a sua obra teve um reconhecimento imperial, foi escolhida como roteiro para os exames de acesso à burocracia; e a segunda razão é que ele é um grande professor. Os seus comentários são breves, não há nada de excessivo ali. Não são cem por cento autorais, ele escolhe o supra-sumo dos comentários já clássicos e ele processa aquelas informações e explicações da autoridade com a linguagem da Li Xue, da Escola do Princípio. Quando o tradutor lusófono se coloca nesse jogo histórico, de quem fez a obra e a transmitiu, quem a interpretou, há espaço para que nós tentemos adaptar essas discussões, o vocabulário, às vezes até para questões que fazem mais sentido para nós que vivemos no século XX e XXI.

Daí a importância dos comentários.
É fundamental. Acho que a tradução de uma obra clássica chinesa sem comentários tem muitos riscos.

Sem comentários ou muitas notas é incompreensível, basicamente.
Pessoalmente concordo, as coisas com comentários ficam melhores, com contexto. Mas infelizmente o nosso padrão editorial ainda hoje, não apenas nos países de língua portuguesa, não temos aquele processo do diálogo que há entre a primeira autoridade do clássico, dos comentaristas e as achegas do próprio tradutor. Quando se trabalha com a tradução clássica chinesa, essa é a parte mais interessante, porque há espaço para traduzir não apenas o texto, mas também a mentalidade.Isso é o que mais me atrai, o que faz mais sentido.

Como surge então Zhuang Zi no seu percurso?
Depois dos Analectos, que aconteceu no momento em que estava na Universidade de Pequim, chegou o Dao De Jing, num momento muito conturbado da minha vida, várias mudanças acontecendo em todos os sentidos, e o Lao Zi, de entre os pensadores chineses, acho que ele é realmente dos mais aberto às possibilidades da vida. Porque o Lao Zi é diferente do Confúcio, porque nunca diz: as coisas são assim ou assado. Ele diz: essa é a minha experiência, não diz que tem essas receitas aqui todas para você. Por isso é que no Dao De Jing não há um comentário taxativo. Esse é o tal momento da minha vida, de busca das possibilidades e da sua aceitação. Zhuang Zi é o primeiro texto que me tocou existencialmente. Foi um dos primeiros livros que li em chinês, pois era leitura obrigatória no nosso curso. Li o texto de um filósofo que vivia em Taiwan muito famoso porque deu uma roupagem 100% filosófica, respeitável, para o establishment ocidental, ao Zhuang Zi. Nunca gostei muito desse texto (risos). Então sempre tive essa ideia de traduzir o texto, comecei a traduzi-lo há seis anos…

Confúcio também aparece como personagem no Zhuang Zi várias vezes.
Zhuang Zi é um caleidoscópio. Você olha para o Zhuang Zi e consegue encontrar o mais profundo da alma das pessoas. É um dos pouquíssimos autores chineses antigos em que encontramos humor, sarcasmo, em que se encontra ironia. Não é como em Mêncio, um sarcasmo só para atacar as pessoas. O Zhuang Zi tem aquela coisa quase socrática de fazer pouco de si próprio.

Por exemplo, a passagem sobre a felicidade dos peixes…
Isso aí é óptimo, a sua relação com o mestre Hui. Mas sabe o que acho mais gratificante em ler o Zhuang Zi? Ele está um pouco além desses aspectos da cultura chinesa imperial, que é extremamente hierárquica e existe uma burocratização da vida social, e ele parece totalmente alheado disso. Naquela época, ele estava tendo o maior sucesso na sua carreira burocrática, serviu como grão-ministro do país de Wei um tempo, mas convivia de igual para igual com Hui que não tinha o mesmo estatuto social. Era uma pessoa que tinha saído do mundo e que vivia bebendo vinho, escrevendo literatura, fazendo meditação.

Sobretudo, não propondo, nem acreditando, que há uma única perspectiva de olhar o mundo.
Essa é uma coisa bem taoista. Mas o que Zhuang Zi tem de especial, mesmo nesse contexto taoista, é o seguinte: taoísmo, na sua época, era um taoísmo engajado, que participava das discussões e dos debates políticos. O pensamento de Lao Zi tem dois grandes pilares: o da verdade, o Dao, e o outro é o da realidade, o De, que é como se vai viver no mundo imperfeito e relacionar-se com pessoas que, de repente, não têm os mesmos ideais que você. O Dao está ali como um break through, não vai buscar primeiro o Dao, mas primeiro tem a questão de entender como a sociedade funciona e a dimensão humana.

É o lado confucionista do Dao. No Zhong Yong, a que chamei Prática do Meio, diz-se que a cada momento temos de tomar a decisão correcta para trilhar a Via do Meio, que não está pré-determinada, nem sequer pelo rito. Por isso é que Confúcio afirma que ninguém consegue caminhar na Via do Meio… tem de ter o sentido da história, para tomar uma decisão correcta. Mas é momento a momento, e não partindo de uma verdade pré-existente.
É aquele velho dilema de Confúcio: temos as regras sociais, tem expectativas justas e legítimas de como se deve comportar em sociedade e tem, sobre esse ambiente pré-determinado, a via que você tem de seguir, um espaço de liberdade. Para o Confúcio, a liberdade está dentro, não é no sentido de tirar a roupa e sair andando pela rua. Emocionalmente, pode atingir essa liberdade, essa auto-determinação. Especialmente com a música, que não é verbal e você pode fazer dela o que quiser. Confúcio angustiado, tocava qin e você sabia, mais ou menos, o que se passava dentro dele. Mas Confúcio não vai falar, não vai sair de si; enfrentou injustiças na sua vida mas… Esse é o espírito da harmonia chinesa: temos de entender que é muito bom em determinados momentos termos essa disposição, compreender em que circunstâncias isso é sábio e evita certos conflitos que levam a um desfasamento…

Temos um filósofo do tempo dos romanos, Epicteto, que nos diz mais ou menos a mesma coisa: aquilo que não controlamos não vale a pena preocuparmo-nos com isso.
Sim. Mas ali entendo que o Confúcio, antes de mais nada, era um político. Ele não tinha a sua comunidade, os seus amigos, “ah, beba hoje porque amanhã…”. O caminho do meio é tão restritivo como… ele te dá uma possibilidade de se libertar espiritualmente.

Já o Zhuang Zi tem outra perspectiva…
Absolutamente diferente. O Zhuang Zi, das poucas vezes que ele fala de política, dos reis da antiguidade, dos ideais, é conservador. O que o Confúcio ensinou é aquilo mesmo. Mas há um caminho maior. Usando a nossa linguagem ocidental, o indivíduo tem muito mais possibilidades do que a sociedade pode oferecer a ele, e isso é o Dao. Ele é muito discreto quando sopesa essas duas opções de vida: a do engajamento, de se tornar um funcionário público, um grande administrador, ou de você se tornar um esteta. Como assim discreto? Está lá o Yao, está lá o Shun, e ele diz: “olha, o Yao era taoista, por alguns anos da vida dele ele seguiu um mestre chamado Chiyou”. Então você tem essas histórias do diálogo entre o Yao e o Chiyou, e ele, com muito tacto, não põe em questão o projecto político chinês. Ele respeita, “nós precisamos dessas figuras mas o Imperador também é um ser humano. No dia a dia há coisas que ele não pode buscar só a realização tal como o Tao exige”. Essa é a complexidade de Zhuang Zi: Se ele fosse um pensador revolucionário, se tivesse colocado aquela nossa forma ocidental de ver as coisas, contra a sociedade… Mas o Zhuang Zi diz: o meu caminho passa ao lado daqui, não vai em sentido contrário. Nesses primeiros anos em que eu estava traduzindo Zhuang Zi, e fiz isso ao longo de seis anos, nos três primeiros anos conclui a tradução e fiz os comentários dos dois primeiros capítulos. Quando estava terminando o segundo capítulo, que fala do problema do saber e da linguagem, da relatividade do eu, entrei num momento de crise. Via a tradução e os comentários como estavam e estava tudo parecido com o Dao De Jing, aquela coisa mais fria, quase académica.

Zhuang Zi não tem a noção do Tao ontológico anterior a tudo que tem o Lao Zi. Não diz que é a origem.
Ele diz, mas não se preocupa. Está mais preocupado com a complexidade do humano. O Lao Zi é…

Mais metafísico…
Por isso é que ele é um deus. Lao Zi chega à dinastia Han e, nos movimentos taoistas, é sempre deificado. Mas esse Lao Zi não tem mais nada a ver com o que a gente vê no período final da Primavera-Outono, dos Reinos Combatentes, do homem, do bibliotecário, do burocrata, da pessoa que saiu do país. Essa minha tradução se concentrou nos sete primeiros capítulos, autorais, que a tradição diz que foram escritos pelo Zhuang Zi, talvez trabalhados pelos seus discípulos imediatos. Em relação ao Lao Zi, não é o mesmo tipo de relação que a gente encontra, por exemplo, entre Zisi e o Confúcio. Para Zhuang Zi, toda a vida é a busca do Dao, esse processo espiritual de crescimento não pode ser transmitido tal e qual. O discípulo é orientado a ir buscar a sua verdade, além dos princípios gerais do Dao. A relação entre o Zhuang Zi e o Lao Zi não poderia ser a mesma que entre dois confucianos. No livro do Zhuang Zi não há nenhum relato de que ele tenha estudado junto com Lao Zi. Nunca é referido pelo Zhuang Zi como Mestre Lao. São sempre indivíduos que estão ali. Porém, em vários momentos trabalha os ensinamentos do Dao De Jing. Ele não está reproduzindo ipsis verbis o que está no Dao De Jing, mas o espírito está ali. Outro dado interessante: quando o Lao Zi aparece na história, ele aparece quase em apoteose, no mínimo, não necessariamente como um deus, mas como um imortal superior de grandes realizações. Há um relato sobre o funeral do Lao Zi, que, claro, é uma ficção, mas a crítica que Zhuang Zi está fazendo é que não se vai celebrar a memória do Lao Zi como os discípulos de Confúcio celebraram a sua memória, que organizaram um funeral, estavam lá chorando, fazendo os ritos… e essa é a lógica da continuidade. Zhuang Zi, quando fala sobre Confúcio é o Confúcio de uma das recriações literárias mais geniais da literatura chinesa, um Confúcio apresentado como um homem com todas as suas limitações, como alguém que não conseguiu compreender o Dao.

Sim. Mas é apresentado como alguém com o qual o próprio Confúcio concordaria, porque ele nunca esteve preocupado em conhecer Dao nenhum…
Para Zhu Xi não é assim. Para ele, Confúcio era um homem que não erra. Viveu, morreu, mas era o Sábio. Ele nasceu sabendo de tudo, nunca errou, nem nunca pecou. Se o fez era para mostrar o que era erro aos seus discípulos… Aquilo ali era um conceito budista, de um iluminado. Uma das coisas mais interessantes dos Analectos são as passagens que reflectem a velhice de Confúcio, em que ele parece ter, de certa forma, tido uma veia mais mística, de dar valores aos ritos, não aqueles ritos que definem quem está acima e abaixo, quem é mais velho e mais jovem, mas aqueles ritos que ligam o homem ao Céu, que é uma coisa muito do taoísmo.

Em que ele fala do Da Dao… que é a parte menos abordada pelos confucionistas.
Pois é. Esse é um dos grandes problemas, quando se transforma um pensamento numa ideologia. A ideologia tem de ser reproduzida, não pode ser…

Posta em causa?
Tudo tem a sua utilidade. Acho que Confúcio também defende a ideologia dos Zhou mas vê isso como um ideal altruísta, então vejo Confúcio como pensador claramente conservador, não reacionário…

Ele inaugura também a parte da questão do mérito, muito importante em Confúcio. O junzi em Confúcio não é o mesmo junzi anterior, é um homem que pode lá chegar, não por nascença, mas por mérito, pelo estudo, por recuperar a sua natureza original.
Ele era uma pessoa que, no caso da China, na época dele, esses cargos eram automáticos, hereditários. O Confúcio, como uma pessoa que vem de baixo, como membro da baixa nobreza, mesmo reconhecendo um abismo entre as pessoas, os homens bons, com um sentido social, mas o Confúcio era, como São Paulo, um pragmático.

O que eu entendi é que para exercer o poder tem de haver virtude, posição social e sentido histórico.
Em si, isso não é mau. Todos os sistemas sociais e agentes políticos têm a sua razão de ser e de existir. Na China, vê-se nesses três mil anos uma tendência para se adaptar a novas realidades, criar novas instituições. Zhu Xi, por exemplo: você acha que ele está explicando o Confúcio autêntico? Não, ele está dando uma nova roupagem que funcionou muitos séculos na China.

Nos exames, os Cinco Clássicos passam a ser os Quatro Livros, por exemplo. Há uma mudança…
Mas das coisas mais interessantes no pensamento chinês é termos por fora a parte da ideologia, da ordem, mas dentro tem um espaço de negociação e debate crítico.

Esse é um assunto que acho interessante, por exemplo, na comparação com o pensamento ocidental: é que o pensamento chinês não procura a verdade, mas sim a eficácia, por oposição à verdade.
Esse é um debate tão profundo e complexo… Acho que os ocidentais estão certos e os chineses também estão certos. Há uma diversidade…

Apesar do pensamento de Sócrates ser uma antropologia, no sentido em que volta ao Homem, o cosmos não lhe interessa… tal como em Confúcio, que também não quer saber do cosmos, quer saber do Homem. No caso de Sócrates, para estudar o Homem, ele vai à procura da verdade, enquanto Confúcio não procura a verdade, mas como se pode funcionar, como se pode ser eficaz.
Esse é um debate fantástico e vai levar a um questionamento profundo. Tirando os pensadores jónicos, que investigavam a realidade a partir de dados objectivos da natureza… a partir do momento em que se fala de ética, de ontologia… se você abre mão da tradição, a Caixa de Pandora se abriu. Por que Sócrates sobreviveu? No fundo, porque houve a influência da Academia e de Aristóteles. E toda aquela orientação de vida e de valores é socrática. Então você tem a transmissão de conhecimento e essa visão de mundo, do que é a ética, a arte, as grandes questões. Vai sendo reproduzido e actualizado na civilização ocidental até que chegamos à pós-modernidade. Quando se chega aí, ninguém quer mais Sócrates, temos um nihilismo hoje em dia que as pessoas não encontram mais… Nietszche, Marx e Wagner, eles vêm, cada um, para tocar fogo no edifício que existia antes.

É isso que o Nietszche vem dizer, que a vontade de saber é vontade de poder. Vem desmontar essa vontade de verdade…
Mas ele morre como morreu, não resolveu o problema. Com questões muito interessantes, a grande literatura que não perde de vista a realização humana, as questões no trabalho, até uma crença numa coisa positiva.

Ele acredita na arte, na possibilidade de criação.
Essa é a salvação, no dia-a-dia, mas a angústia está lá, o vazio, a insatisfação. Então a arte deixa de ser verdade, mas sim uma terapia.

A arte é uma das formas de expressão que representa o mundo de uma determinada maneira num individuo.
Essa é a nossa realidade actual, mas para um chinês esse debate não faz o menor sentido. Inclusive a palavra “verdade”, em chinês não existe uma palavra assim. Você tem o Dao, que é verdadeiro, é confiável. Mas ele não é uma revelação, não têm um Moisés. São duas civilizações totalmente diferentes. O chinês se preocupa com o Dao, que na política é a boa ordem social, a harmonia. Individualmente, o que é o Dao? É o que conseguimos alcançar.

Mas Confúcio também diz que o papa-figos dourado está no seu ramo, canta no seu ramo e aí permanece na mais alta excelência, desde que saiba onde tem de permanecer.
E isso é satisfatório para nós?

Não. Mas é compreensível.
Compreensível e aceitável, e hoje nós vivemos num mundo da pós-verdade, globalizado, que vale a pena conhecer.

Zhuang Zi também vive nesse mundo da pós-verdade, de alguma maneira…
Essa é a nossa leitura. Acho que os chineses estão sempre muito bem balizados pelo senso de ordem e estabilidade social, pela ideia de autoridade política, baseado num tipo de entendimento do que é a moral, e essa é a forma dos chineses.

Sempre balizados, à excepção de quando se retiram do mundo. Não quero encontrar semelhanças, mas é mais para tentar que o público ocidental compreenda mais facilmente o que lhe é quase incompreensível porque não está dentro da cultura. Utilizando conceitos ocidentais, ou tentando traduzir os conceitos chineses, numa linguagem que seja compreensível para um público ocidental.
Essa é a grande complexidade… a gente vê Zhuang Zi. O qi, a energia vital, que nos ajuda a compreender mais ou menos como é que conseguia ser tão frio com o ser humano em si, com as paixões humanas, o sofrimento humano. O Zhuang Zi é extremamente brando, você não encontra diante o sofrimento humano o que é natural para nós, qualquer sentido de revolta. A partir do momento em que uma pessoa diz: “no seu coração, você tem o sentido correcto”. Essa é uma coisa boa, rectidão. Mas podemos dizer: “por que você age dessa forma se o seu coração tem isso?”. O interessante de Zhuang Zi é que se pode fazer o que se quiser, prescreve um mundo com imensos caminhos.

Desde que não interfiras com a ordem social.
Todo o pensador chinês pensa como Confúcio nisso. “Você pode fazer o que você quiser desde que não interfira no andar das coisas”.

Ainda hoje isso está presente na sociedade chinesa, de alguma maneira.
Acho que faz falta no ocidental, um pouco. Agora começamos a ver como é que tudo parecia tão melhor no século XIX… acho que havia um sentido mais profundo de respeito mútuo. Falta esse sentido de ordem e coesão social.

É uma das coisas que o Ocidente ainda pode aprender com o Oriente?
O objectivo é o mesmo, mas a forma de chegar lá é diferente. Acho que você tem de respeitar o que as pessoas agregarem nas suas vivências, mas deve-se respeitar e dar uma oportunidade para cada pessoa defender os seus próprios valores. Deve aceitar que todo o mundo tem o espaço de liberdade para seguir com a sua vida e tomar suas próprias escolhas e, realmente, construir algo. Julgar o que essa pessoa fez quando ela não está mais, é isso que faz falta hoje em dia. A gente vê as pessoas a serem julgadas, quando fez um filme ou um livro, a pessoa já está lá, destruída. Você não dá oportunidade para que ela tenha um desenvolvimento ao longo da existência dela, ou se de repente a pessoa escreveu um livro ou fez um filme, já é louvada. Na Europa antiga, a sociedade não era tão igualitária como agora, mas havia o sentido de debate mais saudável, as pessoas tinham uma maior tolerância em relação aos outros, ninguém era dono da verdade. O Ocidente ainda tem muito para aprender e em relação às culturas orientais, a que chamamos orientais — Pérsia, China, Japão, Coreia, etc. — temos de estar abertos a elas e vermos os valores que elas têm.

21 Out 2022

A tulou

E eis-nos chegados à mais sagradas das montanhas, habitadas por deuses, loucos temerários e estranhas bestas: o monte Kunlun. Situado algures perto da linha vertical que divide em dois o mundo, também conhecido por Pilar do Céu, fôra em tempos comparado à Raposa de Nove Caudas, pois dele se distinguia como de nenhum outro lugar as nove secções do Céu e — ¿quem sabe? — donde também seria possível, a homens iluminados, observar as nove partes da Terra.
Em tempos mais recentes, nele habitava a Rainha-Mãe do Oeste, mandando em tudo ou quase. Dessa fabulosa montanha emanavam quatro rios de seu nome Amarelo, Vermelho, Preto e Oceânico, embora nada nos indique que a mitologia chinesa o tenha considerado um paraíso ou sequer um jardim edénico com uma árvore proibida no seu centro.
Ora o monte Kunlun, além de deuses e plantas com propriedades maravilhosos, era também a morada de estranhos animais, entre os quais a tulou. Descrito como uma espécie de cabra, mas dotada de quatro cornos, a tulou é-nos apresentada como sendo uma insaciável devoradora de homens. Contudo, não sabemos se no sentido literal ou em sentido figurado, como personagem oposta à santidade da Rainha-Mãe do Oeste, cujos traços piedosos e protectores nos evocam a Guanyin budista.
Certo é que já São João nos falava de um animal cornudo, excessivamente cornudo, como sendo uma das bestas do Apocalipse, por oposição ao pacífico e triunfante Cordeiro, cuja armadura córnea, dada a sua tenra idade, não tivera tempo de se desenvolver. Portanto, poderemos imaginar que a tulou aqui surge também, com a sua excessividade chifruda, como o lado terrível do monte Kunlun.
Ora a cabra, animal de natureza independente e selvagem, capaz de trepar a impossíveis falésias e de sobreviver deglutindo alimentos improváveis, ao contrário da sua prima ovelha, não poucas vezes nos é apresentada como símbolo da lubricidade feminina, característica que os homens temem mais que a própria sombra, ainda que esta surja desenhada na obscura noite por tímidos raios do luar. Por isso, não nos estribamos na certeza de que a tulou literalmente devorava seres humanos ou se deles abusava sexualmente nas encostas inclinadas do monte Kunlun.
Nas parcas representações da tulou, damos por um animal cuja diferença para a normal cabra passa unicamente pela sua dimensão e pelo facto de exibir quatro salientes chifres. Sobre ela paira um ensurdecedor silêncio, como se aqueles que porventura tiveram ocasião de a encontrar, preferissem ficar calados e guardar para si mesmos as memórias, eventualmente terríveis ou maravilhosas, desses estranhos encontros.
Também sabemos que na cultura Hakka, que abrange parte de Fujian, Guandong e Jiangxi, o termo tulou refere uma espécie antiga e raríssima de casas circulares, cuja funcionalidade está ainda hoje longe de ser conhecida. O que dentro dessas casas ocorria não vem descrito em nenhum dos anais.

21 Out 2022

Debate sobre cavalos brancos de Gongsun Long

Tradução e comentários de Cláudia Ribeiro

「白馬非馬」,可乎?
曰:可。
曰:何哉?
曰:馬者,所以命形也;白者,所以命色也。命色者非命形也。故曰:「白馬非馬」。

Interlocutor – “Cavalos brancos não são cavalos” é admissível?
Gongsun Long – É admissível.
I – Mas como?!
GSL – “Cavalo” nomeia uma forma. “Branco” nomeia uma cor. O que nomeia uma cor não é o que nomeia uma forma. Por isso digo: “cavalos brancos” não é “cavalos”.

Comentário
Neste início do diálogo, o interlocutor mostra-se surpreso com a afirmação de Gongsun Long de que cavalos brancos não são cavalos. Gongsun Long justifica que essa afirmação se sustenta porque o que nomeia uma forma não é o que nomeia uma cor. Que o que nomeia uma forma não é o que nomeia uma cor é uma afirmação verdadeira. No entanto, a conclusão – de que cavalo branco não é cavalo – não se segue das premissas. Para obter um modus ponens o raciocínio deveria ser antes o seguinte:
Se “cavalo” indica a forma, enquanto “branco” indica a cor; e se o que indica a forma não é o que indica a cor, então, “cavalo” não é “branco”. Ou seja, a conclusão não seria que “cavalo branco” não é “cavalo”.
E em que sentido é que o que nomeia uma cor não é o que nomeia uma forma? Será uma distinção entre essência e acidente do tipo aristotélico? Angus C. Graham (1986: 100) fez notar que, na filosofia chinesa, as coisas são concebidas como tendo forma e tendo cor, (有形有色, you xing you se). Ou seja, são concebidas como se forma e cor fossem sua parte intrínseca e não como sendo essencialmente formas onde a cor é um acidente. No entanto, é difícil discordar que a forma (cavalo) é algo de necessário, estrutural, para um cavalo ser visual- mente e mentalmente reconhecido como um cavalo, enquanto a cor branca é uma qualidade acidental. Mas também é verdade, como acrescenta Graham, que forma e cor são percebidas simultaneamente; e que a forma é percebida através de vários dos nossos sentidos, entre os quais a visão que capta a cor.
O que interessa reter é que esta resposta de Gongsun Long mostra que ele não se situa no mesmo plano do interlocutor. Situa-se no plano da linguagem e não no plano dos cavalos e das coisas brancas concretas. Refere-se a termos, aos termos “cavalo”, “branco” e “cavalo branco”. O termo “cavalo branco” provém da combinação da forma cavalo com a cor branca. Denota todos os cavalos que partilham a forma cavalo e a cor branca. Isto difere do termo “cavalo” que denota o conjunto de todos os seres com a forma cavalo, independentemente da sua cor. E difere do termo “branco” que denota todas as coisas brancas independentemente da sua forma. Ou seja, no plano semântico, cada um desses termos tem um conteúdo conceptual diferente. Por isso, é admissível afirmar que “cavalos brancos” não é “cavalos”.

曰:有白馬,不可謂無馬也。不可謂無馬者,非馬也?有白馬為有馬,白 之,非馬何也?
I – Mas, havendo cavalos brancos, não se pode dizer que não há cavalos. Se não se pode dizer que não há cavalos, então como é que [cavalos brancos] não são cavalos? Se, havendo cavalos brancos, então, há cavalos, como é que os brancos não são cavalos?

Comentário
O interlocutor riposta que a existência de cavalos brancos implica a existência de cavalos. O seu raciocínio respeita a lei da inferência. Todavia, mostra com isto que continua a pensar no plano (onto)lógico, no interior do qual a afirmação de Gongsun Long não só é falsa como é bizarra.

曰:求馬,黃、黑馬皆可致;求白馬,黃、黑馬不可致。使白馬乃馬也,是 所求一也。所求一者,白馬不異馬也;所求不異,如黃、黑馬有可有不 可,何也?可與不可,其相非明。故黃、黑馬一也,而可以應有馬,而不 可以應有白馬。是白馬之非馬,審矣!
GSL – Se o que se procura são cavalos, os baios ou negros podem ser enviados. Mas, se o que se procura são cavalos brancos, os baios ou negros não podem ser enviados.
Se “cavalo branco” fosse “cavalo”, ambas as pretensões seriam idênticas. Se ambas as pretensões fossem idênticas, “branco” não se diferenciaria de “cavalo”. Se ambas as pretensões não fossem diferentes, como pode ser que os baios ou negros ora sejam admissíveis, ora sejam inadmissíveis? É óbvio que “admissível” e “inadmissível” não são idênticos um ao outro. Por isso, através dos baios ou negros pode concluir-se que há cavalos, mas não se pode concluir que há cavalos brancos. Daí que, de facto, “cavalos brancos” não é “cavalos”!

Comentário
Gongsun Long riposta com um raciocínio que se assemelha a um modus tollens:
Se cavalos brancos são cavalos, então procurar cavalos brancos é idêntico a procurar cavalos baios e negros.
Procurar cavalos brancos não é idêntico a procurar cavalos baios ou negros. Logo, cavalos brancos não são cavalos.
Mas trata-se, na verdade, de um raciocínio falacioso do tipo designado como “boneco de palha”, através do qual se distorce o raciocínio do interlocutor para melhor o atacar. O interlocutor não defendeu que é idêntico procurar cavalos brancos e procurar cavalos baios ou negros. De cavalos brancos serem cavalos não se segue que procurar cavalos brancos seja idêntico a procurar cavalos baios e negros. Logo, a conclusão é inválida.
No entanto, se nos deslocarmos da esfera estritamente lógica para a esfera semântica, as coisas mudam de semblante. Antes de mais, se o que se procura são “cavalos” e se os baios ou negros vão de encontro ao que se procura, como afirma Gongsun Long, então isto significa que também os brancos iriam ao encontro do que se procura. Nesse sentido, Gongsun Long está a reconhecer, sub-repticiamente, que cavalos brancos são efectivamente cavalos.
Por isto se vê que o interesse de Gongsun Long não é contrariar a noção comum de que os cavalos brancos são cavalos. Fei em bai ma fei ma, não tem, aliás, a mesma carga ontológica do nosso “não é”, mas aproxima-se mais de “não é o mesmo que” ou “não é como”.1 Nesse sentido, bai ma fei ma não está nos antípodas de “cavalos brancos são cavalos”, mas apenas de que “cavalos brancos são o mesmo que cavalos.”
O que move Gongsun Long é mostrar que, em determinadas circunstâncias, os cavalos brancos não devem ser tomados simplesmente como cavalos. Isto porque, quando o que se procura não são “cavalos”, mas “cavalos brancos”, nem cavalos negros nem cavalos baios vão ao encontro do que se pretende. Se um regente pedisse que lhe fossem enviados cavalos brancos para uma dada cerimónia protocolar e súbditos distraídos lhe enviassem cavalos brancos, baios e negros, como se o imperador tivesse pedido apenas “cavalos”, poderiam rolar cabeças… Os cavalos baios e negros podem ser incluídos na extensão “cavalos” mas não podem ser incluídos na extensão “cavalos brancos”.
Repare-se que, no final do trecho, Gongsun Long torna a reconhecer que os cavalos brancos são efectivamente cavalos, quando afirma que, através dos baios ou negros (logo, também dos brancos) se pode concluir que há cavalos. Todavia, nem de “cavalos baios e negros”, nem sequer de “cavalos”, se pode concluir que há cavalos brancos. Apenas de “cavalos brancos” se pode concluir que há cavalos brancos. “Cavalos” e “cavalos brancos” são termos que não dizem respeito exactamente ao mesmo conjunto de seres. Tanto a extensão como a intensão são diferentes. Por isso, mais uma vez, é admissível afirmar que “cavalos brancos” não é “cavalos”.

曰:以馬之有色為非馬,天下非有無色之馬也。天下無馬可乎?
I – Consideras que cavalos com cor não são cavalos mas, neste mundo, não há cavalos sem cor. “Neste mundo não há cavalos” é admissível?

Comentário
O interlocutor não repara que Gongsun Long acabou de afirmar implicitamente por duas vezes que os cavalos brancos são efectivamente cavalos, o que poderia ter inflectido o debate numa outra direcção. Mantendo-se no plano concreto, apoia-se num mal-entendido: que Gongsun Long afirmou que cavalos concretos, com cor, não são cavalos. Ora, em nenhum momento isso aconteceu. Mas o interlocutor prossegue, ripostando que, por reductio ad absurdum, nesse caso não existiriam cavalos, dado todos os cavalos terem cor. Negar que um cavalo branco seja um cavalo equivale a negar que um cavalo de qualquer cor seja um cavalo. Ora, não existem cavalos sem cor; de onde se concluiria que não existem cavalos, o que é um absurdo e até Gongsun Long teria de o reconhecer como tal.

曰:馬固有色,故有白馬。使馬無色,有馬如已耳,安取白馬?故白者非 馬也。白馬者,馬與白也;馬與白馬也,故曰:白馬非馬。
GSL – Os cavalos têm necessariamente cor, por isso há cavalos brancos. Se os cavalos não tivessem cor, então só haveria cavalos como tal; como distinguir aí os cavalos brancos? Por isso, “branco” não é “cavalo”. “Cavalo branco” é a combinação de “cavalo” com “branco”. Poderá a combinação de “cavalo” com “branco” ser “cavalo”? Por isso digo: “cavalo branco” não é “cavalo”.

Comentário
Gongsun Long desloca-se brevemente para o plano concreto do seu interlocutor e corrige-o: não há efectivamente cavalos sem cor. Caso os cavalos não tivessem cor, não haveria cavalos brancos. Não havendo cavalos brancos, não existiria o termo “cavalos brancos”, bastaria o termo “cavalos”. Mas há cavalos brancos, cavalos baios e cavalos negros. E faz notar que o termo “cavalos brancos” engloba “brancos”, tal como a identidade dos cavalos brancos engloba ser branco. Ora, o mesmo não sucede com o termo “cavalos”, que não engloba por si cor alguma, tal como o cavalo conceptual é livre de especificidades (como a cor) e por isso não é idêntico aos cavalos específicos, particulares. Algo nos cavalos com cor, como os brancos, é cavalo, mas não existe uma relação de identidade entre o que “cavalos brancos” e “cavalos” denotam. Dado não terem a mesma identidade, é admissível afirmar que “cavalos brancos” não é “cavalos”.

曰:馬未與白為馬,白未與馬為白。合馬與白,復名白馬。是相與以不相 與為名,未可。故曰:白馬非馬未可。

I – “Cavalo” que não se combina com “branco” é “cavalo”, “branco” que não se combina com “cavalo” é “branco”. “Cavalo” com “branco” combinando-se, o composto nomeia-se “cavalo branco”. Isto chama-se combinar o que não se combina, o que é inadmissível. Por isso, dizer que “cavalo branco” não é “cavalo” é inadmissível.

Comentário
Por fim, o interlocutor desloca-se também ele para o plano semântico. E conclui que, se a combinação de “cavalos” com “brancos” não é “cavalos”, como defende Gongsun Long, então só quando “cavalo” não se combina com nenhuma cor é que é “cavalo” e só quando “branco” não se combina com nada é que é “branco”. Se os cavalos tiverem cores serão sempre “cavalos brancos”, “cavalos baios” ou “cavalos negros” e nunca simplesmente “cavalos”. Mas isso, prossegue, é formar um termo composto (“cavalo branco”) com componentes originalmente independentes um do outro, “cavalo” e “branco”.

曰:以「有白馬為有馬」,謂有白馬為有黃馬,可乎?
GSL – Dizes: “se há cavalos brancos, então há cavalos”. E dizer que, se há cavalos brancos, então há cavalos baios, é admissível?

Comentário
Depois de relembrar ao interlocutor a posição deste (de que se pode concluir que há cavalos de haver cavalos brancos), Gongsun Long distorce novamente um pouco a questão e pergunta-lhe se, de um universo onde existem cavalos brancos, se pode concluir que há cavalos baios ou negros. Isto equivale, claro está, a perguntar o inverso, se de um universo onde existem cavalos baios ou negros é admissível concluir que há cavalos brancos.

曰:未可。
I – É inadmissível.

Comentário
O opositor, obviamente, discorda que, de haver cavalos brancos, se possa concluir que há cavalos baios.

曰:以有馬為異有黃馬,是異黃馬於馬也;異黃馬於馬,是以黃馬為非 馬。以黃馬為非馬,而以白馬為有馬,此飛者入池而棺槨異處,此天下之悖言亂辭也。
GSL – Considerar que haver cavalos difere de haver cavalos baios é diferenciar entre “cavalos baios” e “cavalos”. Ora, diferenciar entre “cavalos baios” e “cavalos” é considerar que “cavalos baios” não é “cavalos”. Considerar que “cavalos baios” não é “cavalos”, mas manter que “cavalos brancos” é “cavalos”, é como “algo a voar penetra no lago” e “caixão interior e caixão exterior estão em diferentes lugares”2 – do mais contraditório e disparatado deste mundo!

Comentário
Gongsun Long faz então com que o interlocutor repare na sua presumível contradição. “Presumível” porque, mais uma vez, deixa cair, pelo caminho, o termo “branco”. Afinal, “cavalo baio” é diferente de “cavalo” (e já não de “cavalo branco”). Dado que “cavalo baio” é diferente de “cavalo”, então, “cavalo branco”, necessariamente, também é diferente de “cavalo”. E vai avisando que, caso o interlocutor discorde disto, cairá em contradições que considera absurdas. Os dois exemplos de contradições que oferece não costumam merecer qualquer linha dos comentadores. No entanto, se lhes prestarmos atenção, assemelham-se estranhamente a algumas das teses de Hui Shi acima referidas. Não seria esta uma crítica a esse tipo de antinomias, como se Gongsun Long delas se quisesse demarcar?

有白馬,不可謂無馬者,離白之謂也。不離者有白馬不可謂有馬也。故所以為有馬者,獨以馬為有馬耳,非有白馬為有馬。故其為有馬也,不可以謂馬馬也。
GSL – De haver cavalos brancos, não se pode dizer que não há cavalos: chama-se “separar o branco”. Não separar o branco, é quando, de haver cavalos brancos, não se pode dizer que há cavalos. Assim, que há cavalos, é porque de “cavalos” se conclui que há cavalos, não porque de “cavalos brancos” se conclua que há cavalos. Assim, se [de cavalos brancos] se concluísse que há cavalos, então não se poderia dizer que os cavalos são “cavalos”.

Comentário
Gongsun Long deixa claro que quem defende que se deve “separar ‘branco’” (li bai) defende que “quando há um cavalo branco pode afirmar-se que há um cavalo”. Ou seja, havendo um cavalo branco, é possível abstrair do branco e concluir que há um cavalo, conferindo, assim, o protagonismo a “cavalo”. É a posição do interlocutor.
Mas, para quem defende que não se deve “separar ‘branco’” (bu li), “quando há um cavalo branco não se pode afirmar que há um cavalo”. Se há um cavalo branco, não é possível abstrair “branco” do cavalo. Um cavalo branco, com cor, é diferente do cavalo-forma, abstracto, sem determinação de cor. Ou seja, aqui confere-se protagonismo a “branco”. É a posição de Gongsun Long.
Assim, da proposição “há cavalos brancos” conclui-se que há cavalos só por causa do termo “cavalos”. Se do termo “cavalos brancos” se concluísse que há cavalos (ou seja, se “brancos” também estivesse implicado nessa conclusão), então “cavalos” e “cavalos brancos” seriam idênticos e intermutáveis. Mas se os termos “cavalos” e “cavalos brancos” fossem intermutáveis, então, das duas uma: ou seria possível chamar “cavalos brancos” aos cavalos baios e negros, o que é inadmissível; ou teria de se chamar aos cavalos baios e negros outra coisa que não “cavalos”.

曰:白者不定所白,忘之而可也。白馬者,言白定所白也。定所白者,非 白也。馬者,無去取于色,故黃、黑皆所以應。白馬者,有去取于色,黃、 黑馬皆所以色去,故唯白馬獨可以應耳。無去者非有去也;故曰:「白馬非馬」。
GSL – “Branco” não fixa o que é branco e pode ser posto de parte. Em “cavalos brancos” fala-se num branco fixado. O branco fixado não é “o branco”. “Cavalos” não exclui nem selecciona cores, por isso, baios ou negros podem ser aceites. Mas “cavalos brancos” exclui e selecciona cores e, por isso, os baios ou negros ficam excluídos devido à cor e só cavalos brancos podem ser aceites. Não excluir nada não é o mesmo que excluir algo. Por isso digo: “cavalos brancos” não é “cavalos”.

Comentário
Gongsun Long declara que, neste debate, é extemporâneo discorrer sobre uma cor que não está associada a nada. Rebate assim a anterior interpretação distorcida do seu interlocutor segundo a qual estaria a afirmar que só quando “cavalo” não se une a “branco” é que se trata de cavalo, e que só quando “branco” não se une a “cavalo” é que se trata de “branco”. Um termo (“cavalo”) que informa sobre a forma mas não informa sobre uma determinada característica, como a cor, difere forçosamente de um termo que informa tanto sobre a forma como sobre uma determinada característica, como a cor (“cavalos brancos”). Por não informar sobre a cor, “cavalos” designa os cavalos brancos, baios ou negros. Por informar sobre a cor, “cavalos brancos” só designa os cavalos brancos e exclui os baios ou negros. Logo, “cavalos brancos” não é o mesmo que “cavalos”. Mais uma vez, dado não terem nem a mesma intensão nem a mesma extensão, é admissível afirmar que “cavalos brancos” não é “cavalos”.

Notas
1 Fei pode desempenhar quatro funções: afirmar que um sujeito é diferente de um objecto; afirmar que um sujeito não tem um certo atributo; mostrar que a relação entre um sujeito e o objecto é exclusiva; e mostrar que nomes compostos (como “bois-cavalos”) não são iguais a nomes de indivíduos. Em bai ma fei ma, fei é utilizado na primeira forma, no sentido em que “cavalo branco é diferente de cavalo” (Mou Zongsan 1979).
2 Na China Antiga, para cada cadáver, era costume utilizarem-se dois caixões, um exterior e um interior.

Excerto de Cláudia Ribeiro, “Podem cavalos brancos não ser cavalos? O “Debate sobre Cavalos Brancos” de Gongsun Long e sua tradução comentada.”, in Philosophy@Lisbon, nº11.
http://www.philosophyatlisbon.org/archive.php

21 Out 2022

Primeira visita à Falésia Vermelha, de Su Dongpo

Tradução de António Graça de Abreu

赤壁赋

壬戌之秋,七月既望,苏子与客泛舟游于赤壁之下。清风徐来,水波不兴。举酒属客,诵明月之诗,歌窈窕之章。
少焉,月出于东山之上,徘徊于斗牛之间。白露横江,水光接天。纵一苇之所如,凌万顷之茫然。浩浩乎如冯虚御风,而不知其所止;飘飘乎如遗世独立,羽化而登仙。于是饮酒乐甚,扣舷而歌之。歌曰:
“桂棹兮兰桨,击空明兮溯流光。渺渺兮予怀,望美人兮天一方”
客有吹洞箫者,倚歌而和之。其声呜呜然,如怨如慕,如泣如诉,余音袅袅,不绝如缕。舞幽壑之潜蛟,泣孤舟之嫠妇。苏子愀然,正襟危坐而问客曰:“何为其然也?
”客曰:“月明星稀,乌鹊南飞,此非曹孟德之诗乎?西望夏口,东望武昌,山川相缪,郁乎苍苍,此非孟德之困于周郎者乎?方其破荆州,下江陵,顺流而东也,舳舻千里,旌旗蔽空,酾酒临江,横槊赋诗,固一世之雄也,而今安在哉?
况吾与子渔樵于江渚之上,侣鱼虾而友麋鹿,驾一叶之扁舟,举匏樽以相属。寄蜉蝣于天地,渺沧海之一粟。哀吾生之须臾,羡长江之无穷。挟飞仙以遨游,抱明月而长终。知不可乎骤得,托遗响于悲风。”
苏子曰:“客亦知夫水与月乎?逝者如斯,而未尝往也;盈虚者如彼,而卒莫消长也。盖将自其变者而观之,则天地曾不能以一瞬;自其不变者而观之,则物与我皆无尽也,而又何羡乎!
且夫天地之间,物各有主,苟非吾之所有,虽一毫而莫取。惟江上之清风,与山间之明月,耳得之而为声,目遇之而成色,取之无禁,用之不竭,是造物者之无尽藏也,而吾与子之所共适。”
客喜而笑,洗盏更酌。肴核既尽,杯盘狼籍。相与枕藉乎舟中,不知东方之既白。

No Outono de 1081, a 16 do sétimo mês, fui de barco com alguns amigos até à Falésia Vermelha. Soprava uma brisa doce, serenas as águas do rio. Ofereci vinho aos meus amigos, recitámos poemas em louvor da lua, entoámos canções da minha autoria.
Depois, a lua apareceu sobre as montanhas do leste e começou a sua viagem entre as constelações. Uma leve névoa branca estendia-se sobre o rio, o brilho das águas confundia-se com o resplandecer do céu. Demos liberdade à frágil barca e vogámos para águas distantes, como se flutuássemos no vazio, cavalgando brisas, despreocupados quanto a parar, como se tivéssemos abandonado o mundo suspensos nas asas do vento e fôssemos uma espécie de génios imortais.
Bebíamos, satisfeitos, cantávamos marcando a cadência na madeira da barca. Foi esta a canção:

Os remos traseiros são de pau de canela,
os remos da frente são caules de orquídeas.
Batem na luminosidade do céu,
subindo no cintilar da corrente.
No espaço ilimitado
abre-se o sentir de um coração.
Ao longe, um homem sábio,
caminha pelos confins do mundo.

Um dos convidados da jornada sabia tocar flauta e acompanhou a nossa canção. A música suspirava, como um queixume, um soluço, um gemido, o som prolongava-se, ondulante, estendendo-se como fios de seda. O dragão das águas dançava na sua caverna escondida, lágrimas encharcavam a barca de uma viúva solitária.
Emocionado, apertei os panos da minha cabaia e perguntei ao meu amigo o porquê da tristeza e da melancolia. Respondeu:

“O príncipe guerreiro Cao Cao já tudo explicou.
Clara a lua, raras as estrelas,
os corvos sombrios voam para sul.”

Ora a oeste de onde nós estávamos, situa-se Xiakou, do outro lado, a leste, fica Wuchang. Misturam-se as montanhas e os cursos de água, imensos, sombrios, azuis. Aqui foi Cao Cao derrotado pelo jovem Zhou Yu. Depois de ter tomado de assalto a cidade de Jingzhou e submetido Jiangling, o príncipe Cao avançou para leste, seguindo o leito do rio. As suas barcaças de guerra estendiam-se por cem léguas, os seus pendões e bandeiras escondiam o céu. Sentado nas margens do rio, tendo guardado a sua alabarda, bebia vinho e recitava poemas. Cao Cao foi um dos grandes heróis da nossa História, mas onde está hoje?
Como falar então de mim ou de vós, lenhadores, pescadores nas ilhotas do rio, camaradas de peixes e amigos de veados… Viajamos numa barca minúscula como uma casca de árvore, em vez de termos taças de vinho, bebemos em humildes calabaças, esvoaçamos entre céu e terra como gente efémera, somos simples grãos de cereal no meio de infindáveis mares. Lamentamos a passagem de uma vida tão breve e rápida, temos inveja do grande rio Yangtsé que jamais se cansa de correr. Gostávamos de nos juntar aos imortais no seu vôo, de partir para longe, de existir para sempre, arrastados pelo brilho do luar. Sabemos que tudo isso é impossível de alcançar e deixamos cair na placidez do vento o eco lúgubre das nossas queixas.
Eu pergunto: “Conhecem a água e a lua? Desaparecem, mas jamais se separam de nós. A lua cresce, decresce, mas não aumenta nem diminui.”
Se considerarmos o todo do ponto de vista do que muda, então o céu e a terra não deviam durar mais do que um piscar de olhos. Se considerarmos o todo do ponto de vista do que não muda, então a natureza e nós próprios, mudamos mas pouco.
Vale a pena invejar o que quer que seja?
Para tudo o que existe na natureza, entre céu e terra, surge sempre um mestre. É algo que não podemos escolher e decidir. Mas podemos contar com a brisa serena por cima do rio e uma lua clara entre montanhas. A primeira traz o som aos nossos ouvidos, a segunda, as cores aos nossos olhos. Estas podem ser nossas, para fruir sem gastar, o que mostra que o criador não escondeu tudo, há prazeres à solta ao alcance do coração dos homens.
Feliz, o meu amigo sorriu. Enxaguámos então as calabaças que enchemos outra vez de vinho. Comemos fruta e umas tantas iguarias. Os pratos e os copos espalhavam-se em desordem. Deitámo-nos nas tábuas da barca, encostados uns aos outros, sem nos apercebermos que, a leste, o dia já nascia.

18 Out 2022

Zhang Wo dançando com a sua sombra

Su Dongpo (1037-1101), que viveu dolorosamente o exílio, escreveu um célebre poema recordado no Festival do Meio-Outono, e conhecido como «Prelúdio à melodia da água» (Xuidiao getou) onde constam os versos que sublinham a saudade e alertam para os perigos do isolamento:

Como gostaria de voltar cavalgando o vento,
Mas receio o Palácio de cristal
e a Torre de jade lá no alto
onde poderei não conseguir suportar o frio.
Levanto-me e danço com a minha sombra clara:
ainda estou no Mundo dos homens?

O exílio poderia ser entendido como a condição do poeta como a viveu Qu Yuan (339-298 a.C) e identificou no Li Sao, Encontrando a tristeza, que consta da antologia Chu ci, as Elegias de Chu. A figura do poeta unia-se assim aos versos de origem xamânica, escritos para serem cantados em forma de antífonas no decurso de cerimónias rituais e, fazendo uma ponte para o mundo dos seres sobrenaturais, facilitavam a transmissão de objectivos morais, métodos estilísticos do passado e à exposição expressiva do trabalho do pincel.
Foi o que na dinastia Yuan um pintor literato de Hangzhou chamado 張渥 Zhang Wo (activo entre 1336-64) fez e mostrou no rolo horizontal Nove Cantos (Jiu ge) de que existem três versões. Duas de 1346, uma no Museu de Xangai, outra no Museu Provincial de Jilin (tinta sobre papel, 29 x 523,5 cm). Outra de 1361 está no Museu de Arte de Cleveland (tinta sobre papel, 28 x 438,2 cm) contendo o texto original na caligrafia de Chu Huan (activo 1361- c.1450), que acompanha as onze representações.
Entre elas, uma das mais antigas figurações do poeta Qu Yuan e mais dez seres imortais que constam das Elegias. Executadas sem cor ou diluição de tinta (baimiao) mostram, no esplendor das suas linhas claras e ondulantes, a cadência do movimento de ondas e nuvens, particularmente nas etéreas figuras dos dois poemas mais conhecidos, dedicados à Divindade e à Dama do rio Xiang.
Zhang Wo recriou nessa pintura um tema e um método já usado por Li Gonglin (1049-1106), que aperfeiçoou e que vinha já do pioneiro Gu Kaizhi (345-406) e do seu rolo Ninfa do rio Luo, que também se apoiava num poema narrativo de Cao Zhi (192-232), que descreve encontros e desencontros com uma ninfa desse rio cujo original se perdera, mas fora recriado várias vezes durante a dinastia Song. Um género de pintura em que os seus amigos literatos gostavam de se rever.
Da biografia de Zhang Wo consta uma breve carreira de funcionário imperial, abandonada por desencorajamento ou perseguição baseada em preconceitos regionalistas. Mas desde que abandonara a burocracia, encontrara o mecenas Gu Ying (ou Gu Dehui, 1310-69) que lhe proporcionou a possibilidade de viver da arte da pintura. Achará nela um lugar de exílio oposto ao destino funesto de Qu Yuan. Como escrevera Su Dongpo: «Se o meu coração encontra aqui a paz, aqui será a minha aldeia natal.»

18 Out 2022

Oposição contraditória e oposição complementar na cultura chinesa

OPOSIÇÃO CONTRADITÓRIA:
A palavra chinesa para expressar “contradição” 矛盾 (Máodùn), é formada por uma lança矛 (máo) oposta a um escudo盾 (dùn). A etimologia vem de um extrato de um conto encontrado pela primeira vez no período dos Reinos Combatentes (475 – 221 aC), com o texto do filósofo legalista Han Feizi (韩非子):
‘Havia um homem no Estado de Chu que vendia escudos e lanças. Ele elogiou sua mercadoria da seguinte forma: “Meus escudos são tão fortes que nada pode perfurá-los”. Ele em seguida elogiou assim suas lanças: “Minhas lanças são tão fortes que perfuram qualquer coisa”. Alguém comentou: “E se você usar uma de suas lanças para perfurar um de seus escudos?” O homem ficou sem palavras. “Os escudos que não podem ser perfurados por nada” e “as lanças que podem perfurar qualquer coisa” não podem coexistir 不可同世而立” (Han Feizi, “Nan Yi” (韓非子 • 難一) : 265).’
O conto ilustra duas proposições incompatíveis, ou seja, não podem ser ambas verdadeiras, embora possam ser ambas falsas. No enredo, Han segue a Lei da Não-Contradição de Aristóteles: “É impossível que uma coisa pertença e não pertença à mesma coisa ao mesmo tempo e no mesmo sentido” (Metafísica 1005b19-23; Apóstolo 1966, 58- 59) e ‘É impossível ser e não ser ao mesmo tempo’ (Metafísica 996b-30-31; Apóstolo 1966, 42).
毛泽东Mao Zedong (1893 – 1976) admirava o pensamento de Han Fei Zi, creditando-lhe a imensa influência na política da corte imperial chinesa. Assim, o revolucionário comunista abre seu ensaio intitulado矛盾論 (Máodùn Lùn; lit. ‘Diálogo sobre a contradição’), publicado em 1937, afirmando que “A lei da contradição nas coisas, ou seja, a lei da unidade dos opostos, é a lei básica da dialética materialista”, sugerindo que toda existência é resultado de contradição. O materialismo dialético de Mao estava profundamente enraizado na cultura tradicional chinesa autóctone. Por isso é também importante compreender a noção de oposição não-contraditória ou complementar, sobre a qual discursaremos a seguir.

OPOSIÇÃO COMPLEMENTAR:
Diferentemente da ideia platônica ou kantiana de “Essência” (Ousia, Wesen), a língua chinesa não definiu esse termo pela noção de permanência de uma substância. Em vez disso, está subjacente a noção dual de opostos complementares, como ‘luz-escuridão’, ‘negativo-positivo’ (陰陽 “yin-yang”) e ‘princípio – força vital’ 理氣 (li-qi), que se tornou a base para os principais sistemas de pensamento oriental. Segundo a visão chinesa, “tudo que existe possui dois aspectos. Para a maioria das escolas de filosofia do Extremo Oriente, uma interação entre dois opostos produz todas as coisas no universo”, ou, para tomar emprestada uma expressão hegeliana, “tudo envolve sua própria negação”.
Uma das ideias centrais taoístas é a de que oposição é indispensável para harmonia. Por exemplo, a noção chinesa de opostos complementares (陰陽 “yin-yang) parece inconsistente com a Lei da Não-Contradição proposta por Aristóteles. De facto, a coordenação yin-yang não é apenas contrária, mas também interdependente e complementar. Esta é uma das principais filosofias de Lao Zi, inspirada nos movimentos do sol e da lua e na sucessão das quatro estações, aos quais os agricultores prestavam especial atenção (Fung, 1997, p. 37).
O círculo dividido em duas seções rodopiantes, uma preta e outra branca, com um círculo menor da cor oposta inserido em cada metade, tornou-se um símbolo mundialmente conhecido da religião taoísta. É também uma representação visual da oposição dialética (ou da não-contradição), expressa pelo princípio da Unidade na cosmologia chinesa.
Conforme examinado por Jiang e Zhang (1992, p.75), na lógica chinesa as correlações entre os opostos, como acima e abaixo, ou frente e verso, são enfatizadas e tidas como complementares. No pensamento sinítico, os opostos representados por yin (força negativa) e yang (força positiva) “não são mutuamente exclusivos; em vez disso, eles são dependentes e se completam. Portanto, na lógica chinesa, o significado é muitas vezes expresso em termos de oposição, como “grande forma sem aparência” ou “bênção produz infortúnio”. Essas noções opostas, em vez de produzir contradições, geram harmonia, conforme exposto no Clássico das Mutações (易經Yi Jing).

1. “Sobre a contradição”. Das Obras Selecionadas de Mao Tse-tung. Imprensa de Línguas Estrangeiras. Pequim 1967. Primeira edição 1965. Segunda impressão 1967. Vol. I, pp. 311-47.
2. FUNG, Yu-Lan. A Short History of Chinese Philosophy. New York: Free Press, 1997, p.37.
3. FUNG, Yu-Lan. A Short History of Chinese Philosophy. New York: Free Press, 1997, p.37.
4. LI, Chenyang; HE, Fan; and ZHANG, Lili. Thomé H. Fang’s Philosophy of Comprehensive Harmony. Global Scholarly Publications, New York, 2018.

17 Out 2022

Um sábio não sabe de si

Diz-se que Bodhidharma (達摩), primeiro patriarca do budismo Chán (禪) na China, certa vez se apresentou ao imperador Wu da dinastia Liang (梁朝, 502-557). O diálogo entre os dois, ambos budistas, faz parte da literatura de distintas escolas do budismo sino-coreano-japonês, que compreendem Bodhidharma como o introdutor de suas práticas no Leste Asiático, sendo ele um monge de origem talvez persa vindo das terras a oeste.

Assim se relata: estando frente a frente, o imperador inquiriu Bodhidharma a respeito de seus feitos beneméritos como governante daquelas terras. Que méritos teria ele, imperador, adquirido graças aos esforços que despendera para construir monastérios, ordenar monges budistas, reproduzir cópias e cópias de sutras e entalhar imagens de budas?
“Mérito algum,” teria dito Bodhidharma. “Boas ações mundanas podem originar bons frutos, nesta e em próximas vidas, mas mérito algum advém delas.”
“Então,” continuou o imperador, “qual o sentido de tudo isso?”, teria dito. Ao que Bodhidharma respondeu: “o único sentido verdadeiro é a vacuidade; ela é tudo que existe.” Ou, se pensarmos bem, o que não existe, posto ser vacuidade. Mas a tradição informa que o patriarca teria dito algo assim: “existe apenas vacuidade.”
E por vacuidade, pelo vazio essencial que não é apenas ausência de algo, mas natureza inessencial de todos os fenômenos, Bodhidharma se referia a uma das verdades profundas do budismo, das verdades centrais que, com ele na China, passou a compor parte significativa do entendimento budista do mundo. Desde o Chán, passando pela tradição Seon da Coreia até o mais popular Zen japonês.
Mas aqui, a vacuidade que o monge enfatiza ganha maior materialidade. Porque em sua verdade se desfaz não apenas a ideia essencial de todos os fenômenos — afinal, tudo que existe é vacuidade —, mas a ideia de que o sujeito mesmo que enuncia tal ideia, o enunciador de qualquer enunciado, ele próprio não pode existir. Ou, melhor dizendo, ele próprio é vacuidade. Falta-lhe um cerne essencial que o mantenha imutável ao longo do tempo, das experiências, dos fenômenos todos de uma existência. Com a vacuidade, vem também a verdade budista da impermanência. Nada se mantém eternamente.
Frente a isso, a última pergunta do imperador a Bodhidharma foi a seguinte: “Se tudo é vacuidade, quem é você, agora, defronte a mim?”
E o monge lhe deu a única resposta possível: “Eu não sei, Vossa Majestade.”
Neste pequeno diálogo, anedótico ou não, se registra o coração de uma sabedoria passada de geração em geração, de espírito a espírito, desde o tempo primeiro do budismo Chán. O não se saber, o reconhecimento de que se desconhece qualquer essencialidade última, de que tudo é vacuidade e impermanência, alimenta toda a prática budista dessa escola e das que se desenvolvem a partir dela, na China ou alhures.
E ainda que elementos de tal verdade estejam presentes nos discursos do próprio Buda histórico, nas tradições que já vinham se desenvolvendo em terras indianas, a chegada de Bodhidharma à China é fundamental pelo encontro que promove entre tais perspectivas e certas tradições originárias da China mesma. Pelo encontro da verdade budista com certo espírito existencial que o sinólogo francês François Jullien bem resume ao dizer, como o faz em um título de sua obra, que “o sábio não tem ideia”. O sábio — e não o filósofo, não o teorizador — não tem ideia porque não toma, de partida, nenhum pressuposto. Na experiência da sabedoria, segundo o sinólogo e as tradições às quais se refere, e mesmo ao budismo que aqui citamos, não se tem ideia porque ideias pressupostas são apriorismos essencializantes, ou cristalizações de expectativas, de pontos de vista que são pontos de partida (parti pris, diz Jullien). Ao contrário, não ter ideia é não saber, por exemplo, quem se encontra defronte ao imperador.
Mesmo que quem ali esteja seja o próprio interlocutor do soberano, o próprio monge budista, patriarca que, ao dizer não saber quem é, diz muito mais do que apenas isso: diz-nos que reconhecer seu desconhecimento lhe permite estar ali, defronte ao imperador, sem projetar ilusões em nenhuma relação sua com o mundo. Apenas estando ali, aberto ao que o fluxo dos fenômenos venha a apresentar.

Bibliografia
Broughton, Jeffrey L. (1999), The Bodhidharma Anthology: The Earliest Records of Zen, Berkeley: University of California Press.
Jullien, François. (2000). Um sábio não tem idéia. São Paulo: Martins Fontes.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa. https://www.cccm.gov.pt/

17 Out 2022

O Yingshao

Os atrevidos mortais, que tudo parecem querer classificar e arrumar nas suas frágeis gavetas mentais, amiúde sofrem por não conseguirem sequer rotular certos seres, por estes escaparem às categorias preconcebidas. É o caso do yingshao. Com um forte corpo de cavalo, a pele tigrada como os temíveis felinos, face humana e duas asas implantadas no dorso, ao darem por este estranho ente os sábios hesitam se o hão-de considerar um animal ou um ser divino.
Humano, com certeza, não será; ¿deveremos então considerá-lo pertencente ao reino da natureza ou ao reino do sagrado? Ou, tomando uma outra perspectiva, considerar que a sua existência esbate por completo as fronteiras entre os dois reinos e que essa separação não passa de mais um erro derivado da nossa leitura incapaz do mundo e das dez mil coisas que o compõem.
Segundos os antigos textos, o yingshao terá nascido numa extraordinária montanha chamada Huaijiang, onde o lápis-lazuli, um raro pigmento encarnado, jade branco, ouro e prata abundantemente existem. De tal modo esta montanha esplandece e espanta os homens que muitos acreditam ser a morada terrestre do Imperador do Céu e dão-lhe o nome de Jardim da Paz.
Contudo, a beleza da sua terra originária não foi suficiente para ali prender o yingshao. Aliás, nenhum lugar particular parece ter o condão de o fixar, pois esta criatura, tão magnífica quanto bizarra, é conhecida por continuamente se deslocar, quer por toda a terra, quer através dos Quatro Mares ou traçando temerários riscos ao longo da abóbada celeste.
Relatos arcaicos confirmam a presença do yingshao nos mais díspares e inopinados espaços, sendo desconhecido o que o faz mover-se sem hesitações ou descanso. Num dia poderá ser avistado no sopé de um monte verdejante, no outro descortinado no mais abrasante deserto ou sobrevoando as ilhas ignotas que salpicam os mares.
O yingshao é, sobretudo, apreciado pelos letrados, porque os sons que emite fazem lembrar os que ressoam no ar quando um ser humano lê um livro em voz alta. Quem o escuta, facilmente fantasia estar na presença de um incontido poeta ou de um inesgotável contador de histórias, embora até ao presente ninguém tenha sido capaz de encontrar sentido algum na cascata de sons que a sua boca incessantemente produz.
Alguns comentadores sugerem que o yingshao se exprime numa língua perdida, falada entre os antigos deuses. Estes são os que o consideram como pertencente ao reino dos seres divinos. Já outros apenas consideram esses sons como os grunhidos de uma besta incontinente que, continuamente, se vê impelida a proferi-los, sendo que a semelhança ao homem-leitor não passará de uma coincidência e, definitivamente, o catalogam como pertencente ao reino dos animais.
O que seguramente sabemos é que o homem, nem animal nem divino ou uma mescla infeliz dos dois reinos, é a bamboleante corda sobre o abismo que separa as bestas dos deuses (ou de uma realização humana ulterior, como descreve um bigodudo pensador alemão), ser infeliz de não dar por si como uma totalidade plena de sentido.
Já o yingshao, aproveitando as suas poderosas asas, sobrevoa esse mesmo abismo mas, para espanto de muitos, não se fixa nem de um lado nem do outro, preferindo uma vida nómada e, aparentemente, sem outro sentido que não seja usufruir do movimento a que parece para sempre condenado.

Este texto é uma ficção inspirada no clássico “Livro das Montanhas e dos Mares” (Shanhai Jing).

14 Out 2022

Estudos de Macau – Fábricas de vinho liu-pun

Com licença especial emitida pela repartição da Fazenda Pública, a 15 de Julho de 1892, recomeçou a venda, fabrico e importação de vinho liu-pun em Macau, na Taipa e em Coloane, mas apenas para quem obtivera licença para esse fim.
Antes de 1892, na colónia de Macau existiam mais de dez fábricas de produção de vinho, mas com o novo exclusivo de liu-pun, celebrado em Abril desse ano, estas contam-se pelo número de licenças passadas. Assim, para o período de três meses, entre 31 de Julho e 15 de Outubro de 1892, fica-se a saber existirem catorze licenças para o fabrico de liu-pun em Macau, quatro na Taipa e sete em Coloane. No semestre seguinte, até 14 de Abril de 1893, era menos uma licença para o fabrico de vinho em Macau e nas ilhas mantinham-se as existentes.
No ano de 1896, havia em Macau apenas duas fábricas de liu-pun com sete trabalhadores. O tema do vinho liu-pun desapareceu dos jornais e do Boletin Oficial, onde os assuntos focavam outros e novos monopólios de géneros comerciais, assinalando O Echo Macaense os impostos que as mercadorias pagavam em Macau.
Assim, este jornal a 18 de Julho de 1894 referia: “Quando a peste negra recrudesceu em Hongkong, e se acentuou o êxodo dos chineses, espalhou-se o boato de que algumas firmas chinesas, conhecidas como casas de consignação, tencionavam mudar-se para Macau, e seria uma fortuna se assim acontecesse. Infelizmente, além das desvantagens do porto, antolhou-se logo outro estorvo grande, que há muito tempo tem sido apontado como um sério obstáculo ao desenvolvimento do comércio e da navegação do porto de Macau, a saber, o imposto de tonelagem. Já em relatórios oficiais se tem chamado a atenção do governo da metrópole sobre a inconveniência de manter esse imposto em 50 réis por tonelada, que pelo câmbio actual equivale a 7 avos e 8 milésimos de pataca, enquanto em Hongkong esse mesmo imposto não passa de um avo e em Singapura de dois avos. Não mereceu o assunto consideração alguma da parte do governo da metrópole, e os vapores de Hainan e da costa d’ Oeste que traziam a Macau vários produtos para daqui serem distribuídos para os portos do interior, continuam a fugir do nosso porto, preferindo fazer as descargas em Hongkong, donde vem depois no vapor de carreira esses géneros, que constituem a exportação de Macau para os portos chineses. Por este sistema, o governo não lucra nada com esse imposto, ao mesmo tempo que Macau se vê na necessidade de tornar-se cada vez mais dependente de Hongkong, do qual é hoje apenas um porto sucursal, porque daí procedem todos os géneros comerciais, que não podem vir directamente a Macau, tanto pelo mau estado do porto, como pela taxa proibitiva do imposto de tonelagem.”
Mas não era apenas esse imposto! Num texto do mesmo jornal de 1 de Agosto de 1894 assinala-se: “Estipulado no artigo 4.º da convenção de Beijing, os produtos chineses que tiverem já pago os direito aduaneiros e a taxa likin antes de entrar em Macau ficariam isentos de pagar novamente aqueles impostos quando reexportados para os portos chineses, ficando somente sujeitos ao pagamento da taxa denominada Siao-hao. No entanto, em Macau são de novo onerados com a taxa likin ao serem reexportados para os portos chineses.”
Daí o grande decréscimo da actividade industrial e comercial em Macau, onde em 1910 continuavam a existir apenas duas fábricas de produção de vinho, tendo aumentado o número de trabalhadores para 27.

AUMENTO DE PRODUÇÃO

Em 1922, existiam 43 fábricas de vinho liu-pun, três firmas a vendê-lo por grosso, 59 de importação e exportação e 98 de venda a retalho. Havia ainda oito firmas de vinho europeu. Registado pela metrópole em 1926, existiam em Macau 17 destilatórios com produção anual de 600 mil patacas.
Beatriz Basto da Silva, citando Jaime do Inso, refere no ano de 1929 Macau ter 54 fábricas de vinho chinês (destilação de arroz a que se juntam infusões conforme o paladar ou o efeito, até medicinal, pretendido).
As autoridades, no início de Fevereiro de 1929, souberam que, sob falsas declarações prestadas por alguns exportadores de vinho chinês liu-pun, a maior parte do álcool importado para fabrico do mesmo vinho era reexportado sem sofrer alterações; o Governo da Colónia necessitando de pôr cobro a semelhante abuso a fim de evitar os inconvenientes que resultam, quer para a fiscalização quer para os serviços estatísticos, só pode obviar aos inconvenientes apontados, sujeitando as exportações do vinho chinês liu-pun e do álcool à fiscalização do Estado, tendo em consideração o que foi exposto pelo Inspector dos Impostos de Consumo.
O Conselho do Governo aprovou e o Governador interino da Colónia de Macau, usando da competência que lhe confere o n.º 7.º do artigo 70.º da Carta Orgânica, determinava: “Artigo 1.º Os exportadores do vinho chinês liu-pun e do álcool ficam obrigados a declarar na Inspecção dos Impostos de Consumo, antes de efectuarem qualquer exportação dos artigos indicados a data em que se realizará a exportação, a espécie do artigo a exportar, o seu meio de transporte, o seu peso bruto e o seu valor em moeda local. Artigo 2.º A Inspecção dos Impostos de Consumo passará a competente licença de exportação para cada espécie de artigo a exportar se entender que essa licença pode ser imediatamente concedida, tendo a bona fide do exportador. Artigo 3.º Sempre que a Inspecção dos Impostos de Consumo tenha dúvidas sobre a legitimidade da declaração prestada pelo exportador poderá suspender a concessão da competente licença para proceder às necessárias averiguações. Artigo 4.º Qualquer exportador que transgrida as disposições deste diploma será punido com a multa de $10 a $50. § único: Em caso de reincidência será punido com a multa correspondente ao décuplo da importância paga pela transgressão anterior. Macau, 6 de Abril de 1929, o Governador interino João Pereira Magalhães.” Diploma novamente publicado para corrigir o que saíra incorrecto a 2 de Fevereiro e assinado por o Governador Artur Tamagnini de Sousa Barbosa.
Em 1932, a indústria de vinho chinês liu-pun classificava-se em décimo lugar na escala da produção ($250.000,00), sendo exercida por mais de cinquenta fábricas das quais cinco estabelecidas na Taipa e outras cinco em Coloane. Quanto aos importadores e exportadores de vinho chinês eram dezanove, encontrando-se doze na Rua Almirante Sérgio. A exportação fazia-se por intermédio de Hong Kong para Singapura, Penang, Califórnia e ainda para os territórios limítrofes. No entanto, esta indústria ia decrescendo de importância pois os chineses começaram a adoptar o uso de bebidas espirituosas estrangeiras, sobretudo whisky e brandy, que os comerciantes ingleses tinham conseguido introduzir no grande mercado da China.
Apesar de todas as contingências, em 1932, os industriais de Macau mantinham a sua produção, embora um tanto reduzida pela enorme concorrência de fabricantes, alguns dos quais iam empregando álcool de açúcar no seu fabrico, o que, no dizer dos entendidos, lhe tirava a genuinidade.

12 Out 2022

O início dos contactos oficiais entre a China e Ryukyu em 1372

Os historiadores procuram frequentemente datas “redondas” para comemorar eventos importantes. Em 1622, há 400 anos atrás, Macau livrou-se de um grande ataque holandês. Os leitores estão familiarizados com o evento, que foi de grande importância para o Estado da Índia e para a história das relações sino-europeias. No mesmo ano, 1622, novamente há 400 anos, os holandeses ocuparam as Pescadores 澎湖群島. Este foi o prelúdio para a presença holandesa em Taiwan. Ainda antes, há 450 anos, em 1572, Zhu Yijun 朱翊鈞 tornou-se imperador da China. O seu reinado, chamado Wanli 萬曆, foi uma era conhecida pelas suas conquistas culturais, mas também por desastres políticos. 1522 marcou o início da era Jiajing 嘉靖. Este foi o período em que aconteceu a fundação de Macau. Há 550 anos, em 1472, nasceu Wang Yangming 王陽明 (Wang Shouren 王守仁), um dos filósofos mais importantes da China. E em 1372, há 650 anos, no início da dinastia Ming, assistimos à abertura formal das relações entre a China e as ilhas Ryukyu, chamadas Liuqiu qundao 琉球群島 em chinês.
Este evento não foi registado em fontes europeias, mas quando Tomé Pires escreveu a sua famosa Suma Oriental, incluiu no seu livro um breve capítulo sobre as Léquias. Este nome, que ocorre em diferentes formas ortográficas, tornou-se a denominação comum utilizada pelos primeiros viajantes ibéricos para estas ilhas. Muito importante também, no século XVI, estas ilhas são geralmente vistas como uma região independente, intimamente ligada à China. Esta imagem estava correcta, espelhava a verdadeira situação política.
A ilha principal do arquipélago de Ryukyu, com uma cultura e história própria, mas agora pertencente ao Japão, é obviamente Okinawa 沖縄. No século XIV, era governada por três pequenos reinos: Hokuzan 北山, Zhusan 中山 e Nanzan 南山. Estes são os seus nomes japoneses, e o período durante o qual co-existiram, é normalmente chamado Sanzan-jida 三山時代, literalmente “Três Montanhas”, em japonês. O período Sanzan durou de 1322 a 1429. Não sabemos muito sobre a estrutura interna das três entidades políticas, mas fontes revelam que elas estavam envolvidas no comércio marítimo através dos mares do Leste e do Sul da China.
Porque é que é de interesse recordar tudo isso? Há uma razão complexa, que requer uma leitura paciente. Quando o imperador Ming enviou um enviado oficial a Okinawa em 1372, para inaugurar relações formais, os chineses usaram o nome Liuqiu para aquela ilha. Em suma, o enviado, Yang Zai 楊載, foi enviado para Liuqiu; pelo menos, é isto que nos dizem as fontes. Não houve qualquer especificação em relação às três entidades políticas de Okinawa. Mais importante ainda, em tempos anteriores, o nome Liuqiu denominava Taiwan – e não necessariamente as ilhas Ryukyu. Além disso, sabemos que, anteriormente, Yang Zai tinha servido os inimigos dos Ming, ou seja, tinha trabalhado para a corte mongol. Os mongóis, também sabemos, tinham tentado ocupar Taiwan (Liuqiu) no final do século XIII, mas não o haviam conseguido. Esta combinação de acontecimentos e factos levou a uma suposição notável: Provavelmente, devido à sua carreira anterior, Yang Zai tinha uma má reputação aos olhos de alguns oficiais Ming. Por conseguinte, foi enviado numa missão difícil – para Taiwan e não para as Ryukyu. Difícil, porque não existia nenhum estado ou entidade política na ilha de Taiwan com o qual ele pudesse ter estabelecido relações bilaterais. Assim, ele simplesmente navegou para Okinawa e, quando voltou, afirmou ter estabelecido com sucesso contactos oficiais com “Liuqiu”, deixando em aberto para onde tinha ido.
Se esta teoria estiver correcta, então podemos acrescentar outro ponto curioso: Desde o início do período Ming, encontramos três nomes em textos escritos chineses: Liuqiu 琉球, Da Liuqiu 大琉球, e Xiao Liuqiu 小琉球. Os seus últimos equivalentes portugueses foram Léquias, Léquia Grande e Léquia Pequena. Paradoxalmente, os primeiros textos Ming utilizam a versão Da Liuqiu para Okinawa e as ilhas Ryukyu na sua totalidade, enquanto Xiao Liuqiu significava Taiwan. Paradoxalmente – porque Taiwan é muito maior do que as ilhas Ryukyu. Pode-se acrescentar, Liuqiu continua a não ser específico. Pode significar ambos ou referir-se a apenas a um local.
Como ligar tudo isso a Yang Zai? Provavelmente, após a abertura de relações formais com uma – ou várias – das três entidades políticas de Okinawa, o próprio Yang, ou os seus apoiantes na corte, fez circular o nome Da Liuqiu / Grande Liuqiu para sublinhar o peso das suas realizações diplomáticas, e para polir a sua reputação. Se essa suposição for verdadeira, então podemos dizer que a abertura de relações diplomáticas entre as Ryukyu e a China dos Ming assentou numa constelação política complicada, alguns erros, possíveis intrigas dentro da corte chinesa e ambições pessoais. Claro que a corte Ming deve ter percebido o problema geográfico e do nome muito rapidamente, mas como as três entidades políticas de Ryukyu provaram ser vassalos muito leais nos anos vindouros, o nome não importava muito.
Nos anos 1420, Okinawa tornou-se uma entidade política unida com apenas um rei. As relações oficiais com a China continuaram da mesma forma cordial que antes. Ryukyu enviou regularmente embaixadores à corte Ming e os navios tributários de Ryukyu trouxeram enxofre, especiarias do sudeste asiático, e cavalos – tudo muito necessário na China. Fontes também nos dizem que as Ryukyu mantinham então boas relações com o Japão e a Coreia. Além disso, a China apoiou grandemente o pequeno reino de muitas maneiras. O apoio foi principalmente organizado pelos habitantes de Fujian. Curiosamente, também não houve qualquer disputa territorial. As Ilhas Diaoyu 釣魚 encontravam-se fora do domínio de Liuqiu. Estudiosos chineses têm produzido muitas provas disso.
Muito mais tarde, o Japão invadiu as ilhas Liuqiu e as coisas começaram a mudar. Tendo em conta a disputa em curso sobre as Ilhas Diaoyu, a importância militar de Okinawa nos nossos dias, e a situação actual dos habitantes das Ryukyu, pode ser aconselhável e bastante útil, de facto, pensar melhor nos tempos de paz, de que esta parte do mundo desfrutou durante grande parte do período Ming, a partir de 1372. Assim, 1372 é um ano para recordar.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores.

12 Out 2022

Mestre de dez mil gerações

Confúcio hoje? Mas que estratagemas singulares terá desencantado Mestre Kong para renascer, fénix uma e outra vez teimosa, das cinzas vermelhas da Revolução Cultural, como renascera dos escombros cinzelados da dinastia Qin? Onde encontra este pensamento, idoso de 2500 anos, a sua provada resiliência e como consegue ser suficientemente jovem e flexível para se reafirmar hoje no seio da cultura que rectificou e, ao mesmo tempo, estender a sua influência mais além?

Confúcio nasceu em Qufu, na província de Shandong, então reino de Lu, no dia 28 de Setembro de 551 a.E.C., nessa China imperial de antanho, ao que dizem produto de uma tempestade e de uma promessa.

No princípio era o mito

Seria um das primeiras tardes do ano de 551 a.E.C., quando o céu sobre cidade de Qufu, no reino de Lu, subitamente se cobriu de nuvens negras. Em breve ribombavam trovões e raios fendiam o céu enfurecido. Uma chuva grossa, açoitada pelo vento, tudo atingia e ensopava. Em suma, em meros minutos, montara-se uma tempestade pouco menos que perfeita.

Zhengzai, menina caçula da família Yan, regressava a casa, após tarde de passeio pelas colinas, onde solitária colhera ervas e plantas medicinais. Surpreendida pela inesperada tormenta, não encontrou outro refúgio senão uma simplória cabana de trabalhadores, edificada não longe da estrada. Ainda Zhengzai procurava meio de ali passar confortavelmente algum tempo, quando um homem desconhecido assomou à porta do tugúrio, também carente de abrigo daquela e de outras tempestades.

E foi ali, naquela choça indigna de nota, sob o signo de uma terrível procela, que Zhengzai terá concebido o filho de Kong He, a quem foi dado o nome de clã Kong Qiu, o epíteto de cortesia Zhongni e que viria a ser conhecido como Mestre Kong (Kong Fuzi), latinizado Confucius pelos padres jesuítas, um dos mais influentes pensadores que calcorreou o planeta Terra.

Kong He era um magistrado de 65 anos e fraca descendência masculina (tinha gerado nove filhas com a sua esposa principal e um filho deformado com uma esposa secundária). Face às esperanças de Zhengzai, tudo prometeu lhe proporcionar – riquezas e requintados confortos – caso nascesse um rapaz saudável, o que veio a suceder. Contudo, reza a lenda, logo se percebeu que não nasceria uma pessoa qualquer. Durante a gravidez, acontecimentos miraculosos eram sintomas, índices, augúrios, que de Zhengzai emergiria um grande homem, um excelso sábio, que todos encimaria e cujo destino se entrecruzaria com o da própria civilização chinesa.

Entre eles, destaca-se a aparição de um animal fantástico da mitologia chinesa, que reúne no seu nome qualidades de macho e de fémea: o qilin (unicórnio chinês).

Ora estava a mãe do futuro sábio entretida nos seus habituais afazeres, junto a casa, quando surgiu um qilin, que até seus pés caracoleou e aí depositou uma tablete de jade, onde era profetizada a grandeza futura do seu filho.

No dia 28 de Setembro, nascia Confúcio.

O qilin, entretanto desaparecido, voltaria a surgir na história quando, pouco antes da morte de Mestre Kong, se espalhou um relato segundo o qual uma destas quimeras fôra atropelada por um carroceiro destravado e se encontrava ferida, algures a recuperar.

Independentemente da veracidade desta narrativa inicial e iniciática, eivada de elementos míticos e esotéricos, alguns de inspiração budista, a vida de Confúcio revelar-se-ia uma odisseia atribulada. Pouco depois do seu nascimento (há quem diga no dia seguinte e há quem afirme três anos depois), o seu pai, talvez exultante de alegria, sucumbiu a um achaque e viu-se assim incapaz de cumprir a prometida subsistência de Zhengzai. Esta, entretanto, perdera o seu próprio pai e viu-se então reduzida a uma situação de extrema pobreza. Contudo, arranjou forças para sustentar e educar esmeradamente o seu filho. A tempestade passara e a promessa ficara por cumprir.

Depois veio o sábio. Mais tarde, já homem de seis pés de altura, um tamanho que causava profunda impressão, e sábio reconhecido, especialista nos ritos, Confúcio tentou colocar os seus préstimos ao serviço dos governantes, mas encontrou sempre grandes resistências, sobretudo por parte de ministros que entendiam desfavoravelmente o rigor das suas doutrinas e as consequências dos seus procedimentos. Conseguia ainda assim vaguear de reino em reino, como professor, conselheiro, mestre ou ministro, atraindo cada vez mais discípulos. No entanto, nunca manteve os seus cargos políticos durante um período suficientemente longo para permitir uma extensa avaliação do seus métodos. Foi sempre, em geral, coarctado pela inveja e pelas intrigas de quem rodeava os detentores do poder ou pelas manobras de outros reinos que temiam que o seu bom governo fizesse prosperar demasiado os seus rivais (Sima Qian, 1985, 47).

Tal como Sócrates e Jesus, Confúcio não deixou obra escrita e os seus ensinamentos chegam-nos através dos seus discípulos e comentadores. O Grande Mestre considerava-se, sobretudo, um editor e um transmissor de uma sabedoria esquecida. Face à decadência da dinastia Zhou e à ambição de cada um dos reinos que então constituíam o império, Confúcio propunha um regresso aos modos iniciais da dinastia e, sobretudo, ao exemplo dos grandes homens de Estado como os reis Yao e Shun, o rei Wen e o duque de Zhou. Com o objectivo de transmitir esse saber do passado, reorganizou Os Cinco Livros (Wujīng), que viriam a constituir o nódulo essencial da cultura chinesa clássica: Livro das Mutações (Yijing ), Livro das Odes (Shijing), Livro dos Documentos (Shujing), Livro dos Ritos (Lijing ) e Anais da Primavera e do Outono (Chūnqiū).

Os Cinco Livros, também crismados pelo Ocidente de Pentateuco da cultura chinesa, tornaram-se desde então na referência essencial da aprendizagem e da educação na China, servindo de biblioteca abarrotada de exemplos de uma sabedoria imbuída no comportamento e procedimentos de pessoas exemplares, versando da política à família, da explanação ritual à história, da adivinhação às práticas agrícolas, e até como manual de etiqueta e civilidade.

Mais tarde, já em plena dinastia Han do Oeste, os exames imperiais foram fundamentalmente baseados no conhecimento e capacidade de interpretação destes textos, seleccionados e editados por Confúcio.

O eclodir da obra

Depois da morte de Mestre Kong, num primeiro período, os discípulos e descendentes divulgaram com relativa facilidade as suas ideias, que rapidamente encontraram eco na comunidade pensante da China.

Nos três séculos seguintes floresceriam várias escolas de inspiração confuciana e importantes pensadores basearam-se nas suas ideias, como Mêncio ou Xunzi, cujas obras permanecem referências incontornáveis e inesgotáveis, ao longo dos tempos sujeitas a novas interpretações.

As divergências entre eles, na interpretação do pensamento do Mestre, surgem como um reflexo da complexidade de um saber, de uma via profícua, que conheceria numerosos desenvolvimentos ao longo da história do pensamento chinês.

Mas se, durante este período, os ru1 eram bem recebidos nas casas reais, com o advento da dinastia Qin (221-206 a.E.C.) ganharam extraordinária força as ideias ditas “legistas”, uma outra corrente filosófica chinesa, ferozmente oposta aos conceitos eleitos por Confúcio. Pela primeira vez, o confucionismo foi considerado como “inimigo do Estado”, os livros queimados e os seus seguidores ferozmente perseguidos.

É preciso compreender que Confúcio vivera durante o regime imperial extremamente débil da dinastia Zhou, em que os senhores locais, numa espécie de feudalismo, se encontravam dotados de grande autonomia. De algum modo, as ideias confucianas destinavam-se à interpretação e prática deste tipo de organização política e social, e não às necessidades de um Estado ferozmente centralizado, como preconizava e implementou a dinastia Qin, que pela primeira vez unificou a China.

Além disso e fulcral, temos a questão da cabra.

Vejamos:
O duque Ye disse a Confúcio: “No meu país um homem recto cujo pai roubou uma cabra denunciou o progenitor às autoridades.” Ao que o Mestre respondeu: “Os homens rectos no meu país são diferentes: o pai protege o filho e o filho protege o pai, isto é rectidão.” (Analectos, 13:8)

Como se pode deduzir deste aparentemente inocente episódio da cabra roubada, contudo de trágicas consequências, Confúcio revela dar mais importância à família do que ao Estado e colocar em primeiro lugar as relações familiares e clânicas face ao dever de servir o reino. O Mestre vai ainda mais longe: para proteger a família, poder-se-á mesmo ignorar a lei e ir contra a vontade do soberano. Ora tais propósitos não podiam cair bem junto de quem pretendia fazer da lei e da centralização do poder o sustentáculo máximo da governação, o que era o caso de Qin Huangdi, primeiro imperador da dinastia Qin.

A sabedoria confuciana seria, no entanto, salva da fogueira legista. Reza a lenda que alguém conseguiu esconder os principais escritos (incluindo Os Cinco Livros, as obras de Mêncio e de Xunzi) no interior de um muro, a famosa parede de Lu, que terá pertencido à casa original de Confúcio, hoje parte do Templo do Mestre em Qufu, donde foram recuperados após o advento da dinastia Han (205 a.E.C-224), durante a qual os ensinamentos dos ru foram de novo apreciados, estudados, complexificados e difundidos. Com os Han, o ruismo ganhava contornos de ortodoxia, pois encontrava-se agora ao serviço do Estado.

Contudo, nas dinastias seguintes, especialmente durante a dinastia Tang, a chamada intromissão de crenças estrangeiras, nomeadamente budistas, e a influência do daoísmo mágico, foram relegando o confucionismo para uma posição secundária. Nas cortes, os ru voltavam a perder posição e influência. Esta situação viria a causar uma forte reacção, com o advento da dinastia Song, originando o que se convencionou chamar de “neo-confucionismo”, ou seja, uma rejeição quase liminar do budismo e do taoísmo, acompanhada de um expressivo renascimento da ideias confucianas, agora reordenadas, reeditadas e reinterpretadas segundo os sábios desta dinastia, nomeadamente pelos dois Cheng, os irmãos Cheng Yi e Cheng Hao. Entre os seus seguidores, destacou-se Zhu Xi (1130-1200), que repensou e reorganizou o cânone confuciano, nomeadamente através da edição d’ Os Quatro Livros (Estudo Maior, Prática do Meio, Analectos e Mêncio), que viriam a ser a base incontornável do pensamento chinês tal qual o Ocidente o encontrou no século XVI, sob a lupa dos padres jesuítas, os seus primeiros tradutores para línguas europeias.

Assim, operara-se uma mudança fundamental: enquanto que, até à dinastia Song, os estudos e os exames se baseavam fundamentalmente n’ Os Cinco Livros, algum tempo depois de reconhecido e apreciado o trabalho de Zhu Xi, a cultura chinesa conheceria uma reorganização dos seus textos de referência. Nela assumia agora lugar preponderante a formação ética da pessoa por oposição ao sublinhar da importância dos ritos.

Os Quatro Livros passaram a ser a base dos exames imperiais e regularam o ethos chinês desde então até ao século XX. E, mesmo rejeitados e de novo queimados, pelas correntes modernas novecentistas ou pelo radicalismo dos Guardas Vermelhos, estes volumes continuam a encerrar os valores e ditames que ainda hoje regulam o comportamento e formam a culpabilidade de muitos milhões de pessoas.

Daí que tenhamos entendido como fundamental para o leitor contemporâneo empreender a publicação dos referidos volumes em língua portuguesa, pois neles se revelam as doutrinas que constituem a mais importante raiz não apenas do actual pensamento chinês como da modulação de comportamentos e práticas existentes na China e noutros países influenciados por esta corrente do pensamento.

O confucionismo é hoje uma das doutrinas mais presentes e realmente praticadas em todo o planeta. A sua influência não somente enforma a sociedade chinesa, com os seus 1,4 mil milhões de pessoas, como se espalhou a outras civilizações asiáticas onde desempenha um papel central (como a Coreia, Japão, Vietname e Singapura) ou constitui uma importante influência (como a Tailândia, Indonésia, Laos, Camboja e Malásia). Fazendo as contas, o confucionismo constitui a base moral de mais de um terço da humanidade e, com o crescimento da importância da China no palco mundial, a sua expansão não deverá ficar por aqui. Aliás, os indicadores do século XXI revelam que alguns aspectos da “moral oriental” tendem a emigrar para Ocidente e a “contaminar” as sociedades ocidentais, de matriz greco-romana, com os seus valores, tal como estas desde o século XVI têm “contaminado” o Oriente. Eis mais uma razão para do confucionismo fazer um estudo de eleição, no sentido de compreender, ao extremo, estas “viagens de ideias” e antecipar as suas consequências, para um lado e para o outro.

É a moral, pois claro!

Em palavras contemporâneas, diríamos que, para Confúcio, o homem é, antes de mais e de tudo, um produtor de moral. Sabe distinguir o bem do mal e encontra-se dotado de livre arbítrio. Estas qualidades distinguem-no dos animais e de todos os outros seres. Portanto, daqui advém também a sua responsabilidade, o dever de incorrer em acção correcta, de modo a criar um mundo em que prevaleça a harmonia.

Assim, o modo como se apresenta, como se veste, como anda e como fala; o que diz, o que lê, o que desenvolve como actividade, o que produz e como se dirige aos outros; enfim, toda e qualquer acção humana (e mesmo a ausência dela) é imediatamente produtora de valores morais (e, num plano superior, estéticos), quer como exemplo para os outros, quer a partir dos resultados das práticas concretas.

De sublinhar que, ao contrário de Sartre (para quem “o inferno são os outros”), Confúcio só entende o homem em relação com outros homens, como animal gregário, social e cultural. Para ele, a vida são os outros e este é um facto incontornável. Dos desígnios do Céu, do mundo, da vida depois da morte, dos espíritos, pouco ou nada sabemos e de nada podemos ter a certeza. Por isso, antes de mais, devemos regular o que podemos controlar: as nossas relações humanas e sociais.

O confucionismo é um pensamento moral e ético, que visa uma prática, destinado a contribuir para uma excelsa regulação das relações entre os homens e destes com o mundo. Pensamento político, com certeza e, em grande parte, destinado aos que exercem o poder, no sentido de os convencer da necessidade imperiosa de autovigilância, virtude e benevolência nas suas acções, o confucionismo cedo ignora a metafísica e se centra na regulação dos assuntos humanos.

O objectivo do confucionista é tornar-se uma pessoa exemplar (junzi), ou seja alguém cujo comportamento é de tal modo virtuoso e benevolente que os outros naturalmente o seguirão. Mas como atingir este estado de exemplaridade? Para os ru, o homem nasce dotado de uma “luminosa virtude”, que lhe é conferida, homologamente, pelo Céu. Mas, ao longo da sua vida, ao roçagar pelos constrangimentos sociais e com a emergência dos desejos egoístas, a sua natureza original gradualmente se esvai, sendo então necessário recuperá-la.

Como fazê-lo? Várias escolas indicam diversos caminhos mas, fundamentalmente, todos concordam que tal se efectua pelo “cultivo de si” (xiushen). Quer este “cultivo de si” signifique a aquisição de conhecimento, “a investigação das coisas”, como querem uns, ou meramente “a rectificação do coração” e “tornar íntegros os pensamentos”, como sugerem outros, o cultivo de si representa no confucionismo o esforço individual, o dao de cada um, para atingir a plena prática de ren. Neste sentido, o cultivo de si, embora deva ser feito através do estudo, permanece como um trabalho constante do indivíduo no sentido de rectificar constantemente o seu coração, tornando os seus pensamentos eficazes e autênticos (cheng). É neste sentido que no Estudo Maior (Da Xue) surge escrito: “Na banheira de Tang, fora gravado: “Renova-te com rigor dia após dia. Que haja uma renovação diária.”

A necessidade de renovação contínua inscreve-se num permanente acompanhamento do devir do universo. Zhu Xi prescreve-a, através da inscrição da banheira de Tang e da comparação higienista. Esta funciona em dois planos: primeiro, a urgência de continuamente renovar a investigação das coisas e os seus princípios, por estarem permanente transformação; segundo, a eliminação das máculas que o exterior vai traçando em cada natureza original3. Finalmente, sublinha a importância de uma constante atenção: “É impossível admitir, ainda que por negligência, um intervalo ou uma interrupção”.

Por outro lado, a eficácia destes procedimentos passa em grande parte pela compreensão e a execução dos ritos, na medida em que estes proporcionam o modo correcto de proceder.

Qualquer pessoa pode afinar o seu comportamento vergando-o à execução dos ritos. O rito é uma via segura para o discorrer da acção. Assim, por exemplo, ao entrar numa sala, a criança sabe de antemão, se conhecer o rito, quem deve cumprimentar em primeiro lugar e como se dirigir de forma apropriada a cada um dos presentes, consoante a sua posição social e/ou familiar. Assim se evita o erro e se mantém a harmonia.

Eficácia até ao fim?

A postura de Confúcio face ao saber (afinal, o que podemos conhecer?) foi determinante para o pensamento chinês como a de Sócrates para o pensamento ocidental. Neles detectamos propósitos semelhantes e gigantescas diferenças.

De facto, ambos transformaram o pensamento do seu tempo numa “antropologia”, ao fazerem do homem o centro das suas preocupações. Sócrates desprezava tanto o discurso sobre o cosmos, querido aos sofistas, como Confúcio ignorava o que não fosse relações humanas. Contudo, o Mestre de Dez Mil Gerações emitia um pensamento voltado para a “eficácia” e não para a descoberta da “verdade”, já que quanto a essa, tão querida à “parteira grega”, entendia que cada família, cada grupo, cada pessoa teria a sua e isso interessa muito pouco ao modo como nos relacionamos uns com os outros. A verdade exclui e por isso é criadora de conflitos e desarmonia.

Metafísica, vida depois da morte, a existência dos deuses e dos espíritos, a sacralidade do Céu e da Terra, nada disto realmente preocupava Confúcio, já que o que ele via, o que ele vivia e ressentia era o quotidiano dos camponeses e as iniquidades dos senhores, os esforços dos letrados e o desprezo pelo saber dos ocupantes das cadeiras do poder, cujo comportamento vicioso, distanciado dos princípios morais, impedia o estabelecimento da harmonia e de um governo justo para todos os homens.

Eficácia ao invés de verdade, Li em vez de logos — narra a história deste pensamento que, para plenamente se exercer, não se satisfaz com o respeito à moral social vigente mas obriga a uma profunda interrogação ética. É certo que muitos atribuem (e bem) ao ruismo uma inclinação para o conformismo social, como se cada um devesse ficar satisfeito com o lugar que o destino lhe atribuiu na sociedade e, consequentemente, respeitar os poderosos. E, claro, o poder soube ao longo dos tempos aproveitar-se dos aspectos mais “reaccionários” da sua obra ou o confucionismo não teria sido incensado e servido de cartilha em numerosos momentos da história chinesa.

Mais recentemente, vários pensadores chineses reinterpretam o confucionismo enfatizando aspectos que lhes permitem hierarquizar os “direitos colectivos” acima dos “direitos individuais”, os “deveres” para com a comunidade acima dos “direitos de cidadania” e, sobretudo, recusar a ideia de indivíduo — isolado e considerado independentemente de outros membros da sua sociedade — adaptando este pensamento à ideologia hoje reinante na China em que o Estado sobremaneira controla e regula a cidadania (Chen Lai, 2014).

Será mesmo assim ou a leitura dos textos originais abrirá portas que permitem outras interpretações e conclusões? Estamos perante uma doutrina “reaccionária”, “nacionalista”, “só para orientais”; ou conterá virtualidades, como a “benevolência, integridade, rectidão, harmonia, cultivo de si e virtude”, que lhe permitirão tornar-se num pensamento global?

Certo é que entender Confúcio é entender a China de ontem, de hoje e de amanhã. E, nesse entendimento do confucionismo, na sua reavaliação e actualização, residirá grande parte da resposta à pergunta: que papel desempenhará o pensamento chinês no futuro da humanidade e que consequências daí advirão?

 
Notas

1 Ru significa “letrado”, “culto”, e é utilizado para pessoas, ideias ou coisas relacionadas com os pensamentos e as práticas derivadas de Confúcio. No passado, ru era, por exemplo, o conjunto dos letrados confucionistas que ensinavam ou aconselhavam os governantes e as suas famílias. Segundo Zhou Youguang, o pai do pinyin, ru originalmente referia-se aos antigos métodos utilizados pelos xamanes nos rituais, mas depois de Confúcio tornou-se na designação para os que espalham as suas ideias e educam o povo. Alguns pensadores contemporâneos rejeitam mesmo o termo “confucionismo”, por ser de origem europeia, e propõem que as doutrinas relevantes sejam chamadas de “ruismo” e os seus seguidores “ruistas”, por entenderem que tal é mais fiel ao original chinês.

2. Legge escreve não ter encontrado em qualquer outro documento referência alguma a esta citação, gravada na banheira de Tang, fundador da dinastia Shang. Admite que terá sido recolhida da sabedoria tradicional. Legge, James; THE FOUR BOOKS, The Great Learning; Culture Book Co.; pág. 10.

3. Natureza (xing) significa fundamentalmente “natureza humana”, apesar de Zhu Xi a generalizar a todos os seres. O Céu confere ao homem a sua natureza que necessita, no entanto, de ser regulada através da educação porque ao longo da vida ela é, geralmente, desvirtuada. Portanto, a natureza humana é entendida como tendo um carácter transcendental, na medida em que é decorrente do Céu. Segundo o comentário de Zhu Xi, Zisi transmite neste capítulo as bases da concepção confuciana do mundo, começando por referir a origem celeste da Via e a sua imutabilidade. O homem encontra-se plenamente munido desta realidade substancial e não a pode abandonar.

Ao apresentar na mesma frase quatro noções interligadas – Céu, Natureza Humana, Via e Educação, este livro lança os fundamentos da cultura filosófica chinesa: a realidade da natureza moral do homem encontra o seu fundamento no Céu; para se manter na Via, deverá ser empreendido o cultivo de si (regresso à natureza original/celeste), através da educação. De notar ainda que existe uma homologia (uma mesma estrutura) entre Céu e Natureza Humana, o que justificará o desenvolvimento ao longo de todo o pensamento chinês (nomeadamente, entre os letrados) de uma “ontologia” moral.

A moral encontra aqui um princípio natural e universal, que é inalterável, coerente e espontâneo. O que poderia, em termos de filosofia ocidental, ser considerado unicamente transcendente, absorve aqui a noção de imanência. A moral não vai contra a natureza humana; pelo contrário, ela é um “estado natural” do homem, sendo pervertida pelos acidentes da existência e pelo egoísmo de cada indivíduo. A natureza humana (moral) é dada, mas não realizada. Para a realizar, há que recorrer à educação/cultivo de si.

11 Out 2022

Manuel Fernandes Rodrigues – Preservar a identidade: Uma história da cozinha macaense

Por Manuel Fernandes Rodrigues*

 

Quando se pergunta a um macaense porque é que ele ou ela sente macaense, as respostas variam. Alguns dirão que se sente parte da vida da comunidade e dos encontros sociais. Outros colocarão ênfase nas tradições e costumes. Um terceiro grupo reivindicará a influência de uma educação religiosa ou de ter estudado em português.

Apesar destas diferentes razões, os macaenses concordam que a comida macaense com os seus pratos icónicos e representativos, a maioria dos quais receitas centenárias, é única. A cozinha macaense identifica e preserva a história dos macaenses, tornando-os um grupo distinto de qualquer outro grupo ou etnia. A gastronomia macaense é uma afirmação da identidade macaense.

A cozinha representada pelos pratos da tradicional Sentá Mesa e Chá Gordo são passos numa viagem marcada por séculos de história e interacção social entre os macaenses que forjaram e consolidaram a sua identidade.

Isto levanta a questão de saber porque razão os acontecimentos históricos por si só não constroem um sentimento de pertença nem criam uma memória colectiva. Não houve contribuição dos portugueses que governaram Macau durante séculos? Não houve influência dos chineses, japoneses ou outras influências orientais no desenvolvimento da identidade macaense? Obviamente, houve um impacto das culturas portuguesa, chinesa, japonesa e de outras culturas orientais que enriqueceu a identidade macaense. A partir desta interacção, a cozinha macaense evoluiu, um processo semelhante a outras culinárias no mundo. Por exemplo, o esparguete, inquestionavelmente de origem oriental, é hoje reconhecido como genuinamente italiano.

Os pratos da cozinha macaense permitem aos macaenses conhecer a origem histórica por detrás de cada prato. Abrem uma janela para revisitar a história e examinar a maquilhagem e o desenvolvimento deste grupo étnico.
As receitas da cozinha macaense são extraordinariamente ricas e, como investigador, considero-as um arquivo vivo da história macaense.

Daí,
miçó cristão (miso cristão) mostra a influência dos cristãos japoneses e Filhos da terra (descendentes de homens portugueses casados com mulheres locais) de Nagasaki atestando uma identificação católica.
Galinha di português retrata a associação de Filhos da terra e contrabandistas chineses numa guerra contra os holandeses para que Timor pudesse continuar a ser português.
Minchi, o prato icónico dos cristãos japoneses exilados e esquecidos e Filhos da terra de Nagasaki e outras cidades do Japão que ajudaram a construir a igreja de São Paulo, hoje um símbolo reconhecido de Macau.
Peixe têmpora, conhecido entre os macaenses como peixe temp’ra, foi levado para o Japão pelos jesuítas no século XVI, tornando-se tempura, o prato mais conhecido da cozinha japonesa. Peixe têmp’ra foi também levado para a região portuguesa da Extremadura por marinheiros e monges que regressaram, tornando-se peixinhos da horta com feijões verdes de forma semelhante aos pequenos peixes, um substituto do biqueirão original utilizado em Macau.
Balichã ou balichão, uma pasta de camarão desenvolvida por mulheres macaenses, foi posteriormente adoptada pela cozinha chinesa. Foi descrita por Austin Coates, um historiador britânico, como uma contribuição importante para a cozinha do Oriente.

Alguns pratos macaenses são apresentados por alguns autores como adaptações de antigas receitas portuguesas utilizando ingredientes locais. Os exemplos seguintes são uma ilustração limitada sobre como as semelhanças entre pratos podem levar a conclusões que a história contradiz:

Sarã surabe, um bolo macaense é apresentado como sendo baseado na receita de fatias da China. Fatias da China aparece em Portugal por volta de 1876. O nome foi alterado no final do século XIX para Fatias de Tomar.

Vale a pena notar que sarã surabe, significa ninho de pássaro no bazar malaio. Aparece primeiro em Macau durante a segunda metade do século XVI, mais tarde levada para a região da Extremadura em Portugal por monges e tripulantes de navios que regressam. Chamavam ao bolo fatias da China, uma lembrança da Cidade do Nome de Deus na China, como a cidade de Macau era conhecida em documentos portugueses mais antigos.

Pan pan di mamã (pão da mãe) foi mostrado com base na receita do pão de Deus que aparece nas padarias portuguesas no último quartel do século XIX. No entanto, o pan di mamã é descrito em pormenor em Ou-Mun Kei-Leok (澳門記畧), o mais importante e completo repositório chinês de observação factual e costume de Macau publicado em 1775, como um pão de origem macaense.
Chau chau parida é um prato fortificado dado às mulheres após o parto. Uma sopa ou canja é mencionada no Colóquio dos simples e drogas e coisas da Índia de Garcia da Horta, publicado em Goa em 1563. A receita de Chau chau parida, contudo, é feita com ingredientes indicados na Farmacopeia Chinesa de Matéria Medica (本草綱目 Pun Ch’ou Kóng Môk- Princípios e Espécies de Raízes e Ervas) compilada por Lei Si-Tchân entre 1552-1578 e distribuída pela ervanária em Macau. Embora com o mesmo objectivo, os ingredientes e os métodos de cozedura são diferentes.

– Arroz doce é considerada hoje uma sobremesa portuguesa quintessencial e está incluído no livro de cozinha de Domingos Rodrigues publicado em 1680 com o nome de arroz doce do Japão e no livro de cozinha de João da Mata de 1875 como simplesmente arroz doce. No entanto, o arroz doce do Japão, como o nome indica, é uma receita trazida do Japão, em primeira mão, pelos jesuítas, que estavam baseados em Macau, a porta de acesso ao Japão e o porto terminal para os barcos do comércio Japão-Macau. Esta receita foi levada para Macau no século XVI por famílias cristãs japonesas e Filhos da terra e depois transmitida aos comerciantes portugueses que, por sua vez, levaram a receita para Portugal. Este é um facto histórico. Curiosamente, a receita mais antiga de arroz doce em Portugal é conhecida como arroz doce bairradino, considerado como o mais fino devido ao grande número de gemas de ovo utilizadas e à ausência de leite. A ausência de leite na receita é idêntica à do arroz doce macaense, que era um mingau de arroz cremoso e suave pela mistura de gemas de ovo, depois adoçado com açúcar e polvilhado com canela.

Muitas tradições culinárias macaenses continuam vivas hoje em dia, dando-lhes a oportunidade de reviver os sabores e as ocasiões, reforçando o sentimento de pertença. Chá Gordo é uma conhecida tradição macaense e uma obrigação em qualquer celebração no Natal, Páscoa, baptismos ou qualquer outro evento especial.
Chá Gordo é uma tradição associada à refeição substancial servida no dia de Natal em 1563, nas horas da Ave Marias, 18.00 horas, em Firando, hoje Hirado, na Prefeitura de Nagasaki. Evoluiu para um banquete com 6 a 18 pratos diferentes servidos geralmente à tarde, por volta das 18 horas, consistindo em:

– Aperitivos tais como apa-bico, apa-mochi, mochi, ladu, bolo de nabo, pan di minchi e chilicotes;
– Os pratos principais incluem bafassá de porco, tâcho/chau-chau pêle, galinha di português, chicu di porco, lacassá, congee, mela-miçó di porco e o icónico prato de minchi e arroz branco representando tenacidade e sucesso.

– Molhos, tanto quentes como vinagres, como o chili-miçó, miçó-christãn e os diferentes tipos de achar (prato vinagroso) feitos com gamên, limão, estrela de fruta e outras frutas da época para limpar o paladar e estimular o apetite.
– As sopas incluem imbigo di frade, abobra-verdi e abobra cambalenga.
– As sobremesas são compostas por chácha, uma sopa doce, pudins como bagi, chawan-no-mushi, e “ovos de aranha” seguidos de bolos feitos com receitas antigas e apreciadas como o celicário, bolo minino e sarã-surabe.

Todos estes pratos contêm factos históricos e tradições sociais associadas a um sentido macaense de identidade. A origem histórica e social por detrás do minchi está ligada ao Édito emitido por Shogun Tokugawa em 1614 expulsando os cristãos japoneses e os Filhos da Terra que não rejeitaram a fé católica. Em 1623-24, homens portugueses (pais, maridos, irmãos e filhos) foram expulsos do Japão. Em 1627, nobres militares japoneses (samurais) e as suas famílias foram entregues aos barcos portugueses destinados a Macau. Em 1636, mulheres casadas com homens portugueses e as suas filhas foram exiladas para Macau. Esta migração forçada aumentou substancialmente a população local em Macau, levando a povoações no bairro de São Lázaro e outras áreas fora das muralhas da cidade, conhecida como Campo, uma área que se estende até às Portas do Cerco, que marca a fronteira com a China.

A sobrevivência destas povoações não estava assegurada e o minchi tornou-se um elemento básico nestas condições extremamente difíceis. Esta é a razão pela qual o minchi, na psique macaense, é um legado dos exilados e esquecidos, um prato emblemático representando a tenacidade e o sucesso do povo macaense.

A sopa Imbigo di frade é uma oferta de acção de graças a São Francisco Xavier, apóstolo do Japão e padroeiro de Macau, pela sua protecção durante as tempestades sofridas pelas tripulações da frota comercial macaense, que por vezes passavam anos no comércio marítimo, escalando vários portos do Oriente, antes de regressarem a Macau cuja população dependia exclusivamente do comércio marítimo para sobreviver.

Uma missa de Te Deum, seguida de uma procissão, era realizada anualmente, como mostra de gratidão na igreja de São Paulo, construída com os lucros do comércio Macao-Japão e do trabalho dos cristãos japoneses e dos artesãos Filhos da terra. A 10 de Dezembro, esta procissão percorria as ruas do Monte, um bairro em redor da Igreja de São Paulo, após o que era servida uma refeição reconfortante com sopa Imbigo di frade. A pirataria e o clima tempestuoso eram riscos perigosos para os que se encontravam no navio. Muitos naufrágios atestam este facto, como escrito por Frei José Jesus de Maria no seu manuscrito de 1740-45 intitulado Azia Sinica e Japonica, Macau conseguido e perseguido, que Macau era uma cidade de mulheres destituídas.

O período histórico e social da guerra contra os holandeses no século XVII aponta para a origem do bagi e do celicário. A derrota e subsequente expulsão dos portugueses e Filhos da Terra de Makassar, em 1660, reforçou a sensação de derrota causada pela queda de Malaca, em 1641. Makassar era, na altura, o centro mais importante do comércio intra-asiático no leste do arquipélago malaio com uma importante comunidade portuguesa e Filhos da Terra. Esta população derrotada escolheu instalar-se em Macau porque, na altura, era uma cidade governada por cidadãos eleitos, separada do governo do Capitão-General nomeado pelo Vice-Rei em Goa.

Em 21-22 de Julho de 1622, a marinha holandesa bem organizada e equipada invadiu Macau mal defendida. Graças a um tiro de canhão da Fortaleza do Monte disparado por jesuítas, as forças macaenses conseguiram subjugar os holandeses e alcançar a vitória. Para os macaenses esta tremenda vitória prevaleceu sobre todas as derrotas anteriores nas mãos dos holandeses e o bagi, um prato desenvolvido em Makassar, tornou-se o símbolo dos derrotados, mas não vencidos. Considerando a enorme disparidade entre as forças holandesas e macaenses, a vitória de 22 de Julho só podia ser atribuída à intervenção divina, uma crença da população macaense.

O Celicário reflecte a lenda do bem vencendo o mal representado pelos invasores holandeses a quem os chineses chamavam demónios ruivos (紅毛鬼 Hon môu kwei). Tornou-se um símbolo de unidade porque as pessoas deixaram de lado as suas diferenças para se unirem contra um inimigo comum.

Chilicote, um pequeno frito recheado de carne picante moída, desenvolvido por mães macaenses de Malaca, continua a ser a melhor expressão de hospitalidade. A origem deste prato remonta ao primeiro encontro entre as tripulações das caravelas portuguesas comandadas por Diogo Lopes Sequeira e os juncos chineses no porto de Malaca, em 1509. Este encontro proporcionou a base para uma longa amizade entre marinheiros portugueses e chineses que permitiu a Jorge Álvares aceder a cartas marítimas chinesas e embarcar num junco chinês para viajar até Tamão na China, onde um padrão com o brasão real foi erguido em 1514. Além disso, esta relação permitiu a Fernão Peres de Andrade visitar Cantão para assistir a uma feira em 1517. A partir desta data, os portugueses e os Filhos da Terra estabeleceram vários povoados na costa da China, levando ao estabelecimento de Macau em 1553-1555.

Para concluir e olhando para a história das populações, a gastronomia foi sempre um importante elemento de construção da identidade. A alimentação é uma presença constante e desenvolve-se juntamente com uma sociedade em mudança, ajudando a transmitir a experiência pessoal e comunitária, enriquecendo a sociabilidade e o sentido de pertença dos macaenses.

Olhando para a vida de outras comunidades étnicas, descobrimos que a alimentação, através de pratos emblemáticos, é um fio de continuidade na salvaguarda da identidade e de um sentido de filiação. O Kristang em Malaca, Larantuqueiros na Ilha das Flores, o Português Negro (Zwarte Portugueesen) de Batávia, hoje Jacarta, e o Indp-Português de Goa são testemunhos deste facto.

Entre os blocos de construção da identidade, a cozinha macaense continua a enriquecer e reforçar o orgulho de pertencer e ajuda a definir o que significa ser macaense.

 

Referências:
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* Manuel F. Rodrigues, MA in Economics, York University, Toronto, Canada. Pós-graduações: University of Virginia and Michigan USA, e European College, Brugges, Belgium. Oficial reformado da Comissão Europeia. Economista na Ontario Energy Board. Ex-professor assistente na York University. Publicações recentes: artigos na Daxiyangguo – Revista Portuguesa de Estudos Asiáticos da Universidade de Lisboa e na Revista de Cultura do Instituto Cultural de Macau.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores.

10 Out 2022