A Paisagem Ressonante de Ma Wan

Yang Weizhen (1296-1370) dedicaria a sua vida às palavras que escreveu muitas vezes como uma homenagem ao cenário da área de Jiangnan, porém não seriam só as palavras enformadas pela nostalgia, que o haveriam de recordar após a sua eloquente passagem por essa paisagem. Song Lian (1310-81) um ministro e conselheiro de Taizu, o fundador da dinastia Ming, recordou-o na «Inscrição para o mestre Yang, o falecido supervisor da erudição confuciana em Jiangxi»: «A meio da dinastia Yuan um grande mestre da literatura surgiu na área de Zhejiang e ele era o mestre Tieyai.
A sua voz ressonante e o seu brilho luzente subiram ao alto e penetraram no céu. Jovens de Wu e Yue aproximavam-se dele em grande número, do mesmo modo que as montanhas prestam homenagem ao Monte Tai e todos os rios fluem para o mar. Uma situação que só terminou ao fim de mais de quarenta anos.» O sobrenome Tieyai «Penhasco de ferro» com que foi conhecido resulta de um episódio biográfico: o seu pai Yang Hong, vendo que ele não estudava, mandou encerrá-lo numa torre no cimo da colina do mesmo nome onde durante cinco anos viveu isolado a estudar os clássicos.
Quando fez o exame jinshi em 1327 provou como os conhecia, em particular os Anais das Primaveras e Outonos (Chunqiu) e os seus comentários. E apesar de ter exercido funções oficiais em Tiantai ou Qianqing (perto da actual Shaoxing) a sua vocação cumpriu-se na área da literatura. Song Lian: «Com um turbante de Huayang e um casaco de penas, Yang partia num barco-casa na Piscina do dragão ao longo da ilha da Fénix, segurando a fauta de ferro a seu lado e quando a tocava, o som subia a pique, penetrando as nuvens. Os que observavam suspeitavam estar perante um imortal exilado.» Ver-se-ia em pinturas a tradução visual do som da flauta de Yang.
Ma Wan (c.1310-78) o poeta e pintor da actual Nanquim, que terá aprendido a arte com Yang Weizhen, pintou paisagens que respondiam a essa animação dos sentidos em Jiangnan. Em Paisagem de Primavera (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 83,2 x 27,5 cm, no Smithonian) que lhe é atribuída, nota-se a caligrafia de Tieyai, celebrando a alegria de navegar no rio Changjiang. Dois eruditos a cavalo prestes a passar uma ponte de madeira ecoam dois barcos no meio do rio.
Em Intenção poética de nuvens ao entardecer (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 95,6 x 56,3 cm, no Museu de Xangai) quase se pode escutar a flauta de Yang. Song Lian: «Com a idade ele foi-se tornando cada vez mais descomedido. Construiu um jardim isolado e um «terraço de Penglai» a norte do rio Song e não passava um dia que não recebesse convidados e ficasse profundamente embriagado. Depois ordenava cantoras que cantassem a «Neve branca» acompanhando-as na pipa de fénix. Alguns convidados dançavam rodopiando livre e graciosamente. Parecia mesmo o porte dos nobres da dinastia Jin.»

26 Out 2022

Guerra e paz: Mazu está atenta ao que se passa

I

A história de Macau está intimamente ligada à crença em Mazu 媽祖, a deusa chinesa dos Marinheiros e Navegadores. De acordo com a tradição, o culto teve origem na pequena ilha de Meizhou湄洲 (também 眉州), no início da dinastia Song: Em 960, sob circunstâncias auspiciosas e invulgares, nasceu uma rapariga na família Lin 林. Quando ela cresceu, tornou-se evidente que era capaz de realizar milagres e proteger pescadores e outros em alto-mar contra fortes ondas e tempestades. Alguns textos antigos chamavam-lhe wu 巫, ou xamã, o que provavelmente era.
Diz-se que ela ascendeu ao Céu no ano 987, aos vinte e sete anos, numa nuvem, acompanhada de música ou sons celestiais. Esta data marca o início da sua carreira póstuma. De imediato, as pessoas de Meizhou e da província vizinha de Fujian começaram a adorá-la. Registaram-se mais milagres e tornou-se claro que esta divindade não só protegeria navios e marinheiros, como também ofereceria ajuda de muitas outras formas. Em termos simples, ela tornou-se cada vez mais importante aos olhos da população costeira. Registos como o Tianfei xiansheng lu 天妃顯聖錄, um trabalho chave sobre o seu culto e carreira, diz-nos que ela protegeu diques, lutou contra doenças e ajudou soldados no combate contra maléficos inimigos – para mencionar apenas algumas das suas muitas funções.
Como ela apoiou firmemente eventos e assuntos no interesse do Estado, a Corte Imperial começou a promover oficialmente o seu culto. Recebeu títulos oficiais, foram-lhe construídos templos e realizadas cerimónias estatais em sua honra. Marinheiros e comerciantes, normalmente de Fujian, espalharam o seu culto pela costa da China e mesmo pelo Sudeste Asiático, Japão e Ilhas Ryukyu. Além disso, pelos textos antigos sabemos que já nos tempos mais remotos as pessoas a bordo de navios rezavam regularmente a esta deusa e ofereciam-lhe sacrifícios durante as viagens marítimas.
Quando os portugueses começaram a instalar-se na península de Macau nos anos 1550, o local da actual Ma-kok-miu / Templo da Barra já servia como um centro local para a sua veneração. Como é sabido, existem diferentes pontos de vista sobre a história inicial deste templo. Basta dizer que foi provavelmente fundado por marinheiros ou migrantes de ascendência fujianense. Outra possibilidade é que mercadores e marinheiros das Ryukyu tenham estado envolvidos na construção dos primeiros edifícios. Pelo menos, há referências a navios de Ryukyu vindos para o antigo distrito de Xiangshan 香山.
Hoje em dia, a deusa de que falamos é conhecida por diferentes nomes, alguns dos quais derivam de títulos honoríficos que lhe foram conferidos pela Corte Imperial. Isto aplica-se aos nomes Tianfei 天妃 e Tianhou 天后 (Tinhau em Cantonês). A aplicação de tais títulos seguiu frequentemente uma ordem hierárquica. Tianfei, um título antigo, significa “Consorte Celestial”, o título Tianhou, concedido pelos Qing, significa “Rainha Celestial”. Podemos dizer que o último título implica uma classificação muito elevada, de facto uma das mais altas jamais conferidas a uma divindade feminina.
Outros nomes – tais como as formas convencionais Mazu e Niangma 娘媽 – são menos fáceis de explicar. Podem ser considerados como designações gerais com um toque local. A versão Mazu é de longe a mais importante, mas o seu significado preciso não é claro. De acordo com uma versão, deriva do nome de uma estrela, escrito 馬祖; outra versão é que é um termo composto que denota simbolicamente várias gerações sucessivas de um clã ou família.
Mazu tornou-se na principal divindade protectora das costas marítimas de Fujian e Guangdong, em Hong Kong e Macau, em Taiwan e em certas partes de Hainan. Belos e ricamente ornamentados templos, a ela dedicados, tornaram-se atracções turísticas. Hoje sabemos que também existiam pequenos santuários de Mazu nas ilhas do Mar do Sul da China; estas estruturas apontam para a presença regular de marinheiros chineses nessa zona.
Mas há muito mais para contar. Em certa medida, pode-se comparar Mazu a diferentes versões da Virgem Maria, por exemplo, de Stella Maris ou de Nossa Senhora dos Navegantes. Mas também foi comparada com Guanyin 觀音. Budistas e taoístas têm defendido repetidamente que ela deveria pertencer aos seus respectivos panteões. Nas Filipinas, encontramos locais onde “se fundiu” com a Virgem Maria. Evidentemente, porque ambas as figuras representam virtudes semelhantes, demonstram benevolência e ajudam os crentes de muitas maneiras.
Tanto quanto podemos dizer, Mazu raramente ou nunca castigou alguém. Certamente, ela subjugaria inimigos e fantasmas maléficos, mas parece que não desejaria causar destruições devastadoras. Isto aplica-se também às suas “intervenções políticas”. Ela ajuda os que se encontram em perigo e aqueles cujo caso é justo.

II

Em 1661/62, há trezentos e sessenta anos, Mazu tomou o partido de Zheng Chenggong 鄭成功, quando este partiu para dispersar os holandeses de Taiwan. Para compreender o assunto, são necessárias algumas breves observações sobre os antecedentes históricos. Zheng Chenggong comandava uma grande frota comercial e muitos navios de guerra. Era um homem ambicioso, mas muito leal aos Ming, pelo que as suas forças lutaram contra os conquistadores Manchu, ou seja, os primeiros Qing. Por volta de 1660, Zheng controlava várias ilhas ao longo da costa da China. No entanto, para sua segurança, decidiu também adquirir algumas posições em Taiwan, que poderiam servir como um possível retiro, caso os Qing expulsassem as suas tropas dos locais costeiros ao longo do continente. Assim, iniciou-se um novo capítulo na história da China.
Mas voltemos aos holandeses. Eles não só tinham aterrorizado Macau na primeira metade do século XVII, como também tinham fugido para o Estreito de Taiwan, pilhando dezenas de embarcações comerciais chinesas e matando inocentes. Além disso, a partir do Forte Zeelandia – a sua principal base em Taiwan – e vários povoados embrionários naquela ilha, exploraram com rigor alguns dos recursos económicos locais. Em 1652, cometeram mesmo um massacre local, que deixou muitos chineses mortos. Podemos interrogar-nos sobre o estranho comportamento da Companhia Holandesa das Índias Orientais. Talvez as razões sejam muito simples: as ideias calvinistas e protestantes sugeriam que Deus estaria ao lado daqueles que tinham sucesso durante a vida. As pessoas teriam o “direito de negociar”. Os resultados eram óbvios: o comportamento da empresa era determinado pelo desejo ardente de maximizar os lucros; isso não a impediria de subjugar outros e anexar terras alheias.
Claramente, Zheng Chenggong e os seus homens não gostavam nada da violência causada por adeptos de tão dura linha. Eles sabiam que era impossível cooperar com eles. Portanto, muito naturalmente, a ideia de estabelecer uma base segura em Taiwan implicava que o Forte Zeelandia tinha de ser tomado e que a ilha tinha de se livrar de um inimigo impiedoso.
De acordo com a tradição, foi isto que aconteceu: em 1661, no 23º dia do 3º mês lunar – o dia em que Mazu nasceu na família Lin – uma frota de várias centenas de embarcações com vários milhares de homens partiu de Jinmen金門 e Xiamen 厦門 para Taiwan. A data foi cuidadosamente seleccionada: mostra que a família Zheng esperava a ajuda de Mazu. Sem dúvida, o caso era justo, o inimigo era verdadeiramente mau e perigoso. Contudo, quando a frota se aproximou do seu destino, verificou-se que os holandeses tinham barrado a área e que era impossível aos soldados de Zheng desembarcar no solo de Taiwan. O local, perto da moderna Tainan 臺南, é conhecido como Lu’ermen 鹿耳門.
Ao tomar conhecimento desta situação inesperada, Zheng Chenggong rezou a Mazu pedindo ajuda. No dia seguinte houve uma inundação, o mar subiu um zhang 丈 (dez pés) e a força de desembarque conseguiu mover-se suavemente através de todos os obstáculos nas águas costeiras pouco profundas e desembarcar na ilha. Em 1662, após um longo cerco, o Forte Zeelandia caiu nas mãos de Zheng. Esta foi uma vitória perfeita: os holandeses partiram de uma vez e para sempre. Foi também uma vitória decisiva, pois demonstrou pela primeira vez na história que a China foi militarmente capaz de derrotar um intruso “ocidental” ganancioso, caso tal fosse necessário.
A narração não termina aqui: de acordo com a tradição, Zheng Chenggong, para expressar a sua sincera gratidão a Mazu, encomendou madeiras e outros materiais de construção para o templo em Luer’men.

III

Zheng Chenggong morreu em 1662, mas o clã Zheng governou Taiwan até ao início da década de 1680. Entretanto, um novo imperador tinha acedido ao trono Manchu. Este era o famoso imperador Kangxi 康熙. O seu reinado começou em 1662, o ano em que Mazu ajudou Zheng Chenggong no seu justo caso, e terminou há três séculos, em 1722. O imperador Kangxi foi um dos governantes mais bem-sucedidos da China. Tinha a mente aberta, estava em contacto regular com homens brilhantes de todo o mundo e, especialmente, com os padres jesuítas em Pequim. Este era um caso de respeito mútuo, algo que os holandeses, cegos pelas aspirações materiais e pela crença na sua própria superioridade, não podiam oferecer.
Podemos ser tentados a comparar a “ideologia” por detrás da liderança holandesa com a ideia de “destino manifesto”, associada à história da América do Norte. Um tema relacionado é o do “excepcionalismo americano” e o slogan “América primeiro”. Ambos deixaram muitas cicatrizes em todo o globo. De facto, podemos ver nos holandeses, “excepcionais” como eram, os precursores da expansão britânica e americana no Extremo Oriente.
Nessa altura, no final do século XVII, Mazu ainda não tinha lidado com estes feios fenómenos, mas observou cuidadosamente o que se passava na China. Quando o imperador Kangxi optou pela conquista de Taiwan, ainda sob o domínio de Zheng, Mazu entrou de novo em palco. Desta vez, ajudou as forças de Shi Lang 施琅 (1621-1696), o comandante Qing. O Tianfei xiansheng lu, acima citado, regista alguns dos detalhes. Isto diz respeito principalmente à batalha dos Pescadores ou Ilhas Penghu 澎湖群島. Mazu esteve por perto durante a batalha, os soldados puderam vê-la, embora não muito claramente; é isso que aprendemos com este texto. Em suma, a marinha e as tropas de Shi tomaram as ilhas e, em 1683, ocuparam também Taiwan. A partir de então, Taiwan passou a fazer parte do império Qing. Mazu tinha permitido aos Qing uma grande vitória.
Teria Mazu mudado de lado? Da resistência Ming, incarnada por Zheng Chenggong, para os governantes estrangeiros manchus? Teria sido ela induzida em erro? Teria ela tomado uma decisão errada? Ou deveríamos atribuir a sua ajuda eficiente ao facto de se ter sentido satisfeita com o imperador Kangxi e o seu governo? É verdade que os políticos muitas vezes instrumentalizam as crenças religiosas. Isto aconteceu certamente naqueles tempos iniciais; poderíamos citar outros exemplos para substanciar tal suposição. No entanto, os crentes no poder e influência de Mazu encontrarão certamente respostas muito diferentes às tentadoras questões acima colocadas.
Seja como for, o controlo Qing sobre Taiwan implicou que, durante mais de cem anos, os mares que faziam fronteira com a China permanecessem pacíficos. Sim, houve algumas tensões e escaramuças, mas Taiwan serviu como uma ponte entre partes do Nordeste e do Sudeste Asiático e o continente. Visto através dos olhos de patriotas, Mazu tinha feito a coisa certa, quando apoiou Shi Lang e as suas tropas. Sem dúvida, os seus acólitos, Shunfeng’er 順風耳 (Ouvido potente) e Qianliyan 千里眼 (Vidente), habitualmente expostos em todos os templos de Mazu, tinham recolhido a informação relevante necessária para uma decisão de tão grande alcance. A “Rainha Celestial” podia sempre contar com a sua CIA celestial.
A história prossegue: Os templos de Mazu de ambos os lados do Estreito de Taiwan estão em contacto estreito uns com os outros. Há fundos, há grupos e associações, há pontes silenciosas e invisíveis, há laços familiares. Mazu observa pacientemente a situação. Os crentes depositam nela muitas esperanças.

25 Out 2022

Amor universal

O amor conceitualizado pelo filósofo chinês Mozi (Mo Tzu) 墨子 (c. 470 a.C. – c. 391 a.C.) representa uma experiência emocional precisa que não possui correspondente direto em nosso idioma português. O amor universal (兼愛, jian’ai) é a pedra angular do pensamento moísta, à qual recorrerá toda ação moral (Cheng, 2008:108). Quando a filosofia chinesa se tornou parte de um diálogo com o Ocidente nos tempos modernos, a lógica moísta, há muito esquecida, foi redescoberta para apoiar a afirmação de que as filosofias chinesas também demonstraram uma mentalidade analítica.
Anne Cheng, em sua “História do pensamento chinês” (2008: 108), prefere traduzir 兼愛 “jian’ai” como “solicitude por assimilação” (ou uniformização), pois “entra aqui muito mais equidade do que sentimento”, afirma a sinóloga. Ela relembra que “de maneira significativa, Mozi opta por realçar a diferença” entre o termo “兼, jian” (assimilar os outros a si mesmo, como demonstra a imagem abaixo, ilustrativa da etimologia do pictograma), em oposição a “bie” (administrar distinções). Assim, Mozi censura o sentido de amor diferenciado como piedade filial (孝, xiao) pregado por Confúcio, devido à ancoragem do mesmo em sentimentos e, portanto, à distinção entre o tratamento dos entes familiares em relação aos distantes. O amor ao que se refere Mozi seria pois racional, objetivo e imparcial.

A etimologia de兼 (jian): universal/ inclusivo/ abrangente/ imparcial), em 兼愛 (jian’ai) amor universal.

Mozi estava plenamente consciente da dificuldade em ensinar as pessoas a irem contra seus sentimentos naturais de amar aos entes próximos antes dos demais. Assim, sua estratégia foi apelar ao desejo natural dos humanos pelo benefício (fazer ver como seria benéfico se todos amassem uns aos outros universalmente). Ele ressaltou que “quem ama será amado pelos outros, e quem odeia será odiado pelos outros”. Em última análise, “nosso próprio interesse é melhor garantido quando podemos amar universalmente” (Mozi, “Amor Universal” Parte III, Capítulo XVI).

24 Out 2022

Li Qingzhao: Do amor à mais profunda solidão

Entre a paz e a guerra, amor e paixão, prosperidade e miséria, abraço e solidão, a dinastia Song do Norte viu nascer e a dinastia Song do Sul viu morrer, a mais célebre poetisa de toda a história da China, chamada Li Qingzhao. Li, também conhecida como Yi An, a Budista Leiga, cresceu entre letrados e oficiais, em Jinan, província de Shandong, no ano de 1084. Yi An é fruto de uma junção de dois reconhecidos letrados da dinastia Song: seu pai, Li Gefei (1045-1105), professor na academia imperial, um famoso ensaísta muito respeitado no seio dos amigos do grande Su Shi (1037-1101); e sua mãe, Wang Shi, poetisa de renome. “Uma menina talentosa”, assim dizia o reconhecido letrado e amigo do seu pai, Zhao Buzhi (1053-1110). Desde muito cedo, Li aproveitou o ambiente favorável onde nasceu e seu talento inato incomparável, dedicando a sua infância e adolescência ao estudo de artes e literatura. Entre os dezesseis e os dezessete anos, ela já escrevia poemas que reflectem temas históricos do séc. VII, como a rebelião de An Lushan durante a dinastia Tang. Mas o que mais marcou sua adolescência foram os pequenos ci “词” (poemas para cantar) que ela escrevia sobre seus alegres passeios aos subúrbios da sua cidade natal. Essas canções não só revelam sua ingénua adolescência, como também seu amor pela natureza e seu espírito vivo e indomável. Eis aqui uma canção que representa este período da sua vida:

如梦令

昨夜雨疏风骤,
浓睡不消残酒,
试问卷帘人,却道海棠依旧。
知否?知否?应是绿肥红瘦。

Ao som de Como num sonho

Noite passada: chuva dispersa, vento repentino.
Apesar do sono profundo,
ainda sinto o último efeito do vinho.
À criada, na janela, pergunto sobre o dia:
“A macieira está brilhante, todavia.
Não sabias? Como saberias?
É o brotar das folhas verdes
e o cair das flores vermelhas abatidas.”

Li escreveu tanto sobre o amor e a saudade, dois sentimentos que se estenderam e modificaram de acordo com o caminhar da sua viagem. Seguimos com outra canção:

浣溪沙

髻子伤春慵更梳,晚风庭院落梅初。
淡云来往月疏疏。

玉鸭熏炉闲瑞脑,朱樱斗帐掩流苏。
通犀还解辟寒无?

Ao som de Lavando a areia do riacho

Vaga, com cabelo desfeito,
lamento o passar da primavera.
No pátio, sopra a brisa nocturna
e leva para o solo, as flores de ameixeira.
Nuvens claras, que vão e que voltam,
cobrem e descobrem o brilho da lua.

O turíbulo do pato de jade,
indiferente, dissipa o incenso perfumado.
Minhas cortinas de pérola cereja,
já fechadas, decaem suas franjas de borda.
A almofada de rinoceronte, com seu calor,
poderia dissipar o frio que nos separa?

Em 1101, aos dezoito anos, Li casou-se com um estudante da academia imperial, o homem que, segundo ela, foi o par ideal, Zhao Mingcheng (1081-1129). Zhao e Li tinham vários gostos em comum. Os dois partilhavam a mesma paixão pela poesia, colecção de inscrições antigas de bronze e pedra, objectos de arte, pintura e caligrafia. Eles compuseram juntos um catálogo de inscrições em metal e pedra. O tempo livre do casal era aproveitado para estudar as cópias das inscrições, ler livros antigos, fazer provas de memória e dedicar poemas um ao outro.
Essa felicidade e companheirismo provou ser temporal, na sua primeira fase, quando Zhao estava obrigado a viajar de trabalho. Nesta fase, Li começa a escrever canções que expressam amor ao seu esposo e a solidão traduzida em espera pelo amado; uma espera, segundo ela, paralela ao desejo da chegada da primavera. Segue mais uma canção que representa este momento da sua viagem:

小重山

春到长门春草青,红梅些子破,未开匀。
碧云笼碾玉成尘,
留晓梦,惊破一瓯春。

花影压重门,疏帘铺淡月,好黄昏。
二年三度负东君,
归来也,著意过今春。

Ao som de Duas pequenas montanhas

A primavera já bate na porta das esquecidas,
as ervas reverdecem, aos poucos,
ameixas vermelhas abrem desiguais.
As folhas de chá verde esmeralda
em pó finas dissipam seu aroma
No meu bonito sonho de aurora, de surpresa,
estala o pequeno copo de primavera.

A sombra das flores pressiona as portas do casal
As cortinas floridas transluzem a luz pálida da lua
Que belo escurecer!
Sem embargo, Príncipe do Leste,
é a terceira vez em dois anos que não correspondes
Tens de regressar,
gozar desta primavera meiga.

Com a queda da dinastia Song do Norte, em 1127, se funda a dinastia Song do Sul, com a corte em Lin’an, atual Hangzhou. No final do ano 1128, Zhao Mingcheng recebeu uma prestigiosa nomeação como governador de Jiankang (presente Nanjing). No ano seguinte, quando a corte oficial conspirou uma rebelião naquela cidade, Mingcheng desertou no meio da noite, aparentemente para garantir a sua segurança. Uma rebelião falhada resultou na demissão de Mingcheng. Zhao e Li navegaram em direção do Rio Yangtze em busca de um lugar seguro para se reinstalarem. Zhao Mingcheng foi depois convocado de volta para a corte itinerante em Jiankang. O imperador Gaozong(1127-1162) tinha decidido reintegrar Zhao e oferecer-lhe a governação de Huzhou. Ao chegar em Jiankang, Zhao Mingcheng ficou doente e acabou por falecer em 18 de Agosto de 1129, provavelmente de tifo.
Aos quarenta e seis anos, gravemente doente e ao mesmo tempo fugindo dos bárbaros, Li transferiu um grande número de relíquias culturais (uma grande parte dessas relíquias, incluindo livros antigos e inscrições esculpidos em metal e pedra, foram destruídos pelo exército Jin) para Hangzhou e confiou-as ao cunhado de Zhao Mingcheng, que era ministro militar na época, para as guardar. Ela carregou consigo um pequeno número de livros valiosos e relíquias históricas; depois, juntamente com seu irmão mais novo, seguiram a corte imperial liderada pelo imperador Gaozong à procura de refúgio e apoio. Em 1132, viúva e desabrigada, Li Qingzhao partiu de Shaoxing para Hangzhou. Depois, em 1134, colecionou e organizou o catálogo de inscrições em metal e pedra e, ainda, escreveu o epílogo.
Sem filhos e em busca de proteção, Li voltou a casar, desta vez, com um oficial de baixo escalão, chamado Zhang Ruzhou. Este casamento demorou muito pouco tempo, resultou na prisão de Li Qingzhao ao pedir o divórcio (acto prorrogativo do esposo), acusando Zhang de adultério. Li foi presa durante nove dias, e depois solta em consequência da confissão de Zhang. Este foi despojado do seu cargo, exilado e nunca mais visto.
Em seus últimos anos, Li Qingzhao viajou entre Jinhua e Lin’an. Numa permanente busca pela paz e conforto, Li viveu os seus últimos dias em profunda solidão e miséria. Ainda existe um ponto de interrogação em relação à data exacta da sua morte, porém muitos estudiosos acreditam que ela viveu aproximadamente 67 anos. Esta viagem termina assim, com a canção que descreve esta fase menos feliz da vida da poetisa:

声声慢

寻寻觅觅,冷冷清清,凄凄惨惨戚戚。
乍暖还寒时候,最难将息。
三杯两盏淡酒,怎故他、 晓来风急。
雁过也,正伤心,却是旧时相识。

满地黄花堆积,憔悴损,如今有谁堪摘?
守着窗儿,独自怎生得黑?
梧桐更兼细雨,到黄昏、 点点滴滴。
这次第,怎一个愁字了得!

Ao som de Melodia serena

Busco tudo aquilo que perdi, nada é tudo que encontro,
sinto só, alma lúgubre! Outono inconstante,
mais difícil meu consolo endurece.
Dois ou três copos deste leve vinho,
o que pode resistir ao furioso vento do anoitecer!
Gansos selvagens voam sobre o cimo,
mais profunda é minha dor,
seja como for, somos conhecidos d’outrora.
Sobre a terra tristes crisântemos se amontoam,
já murchos, agora, ainda existe quem os colhe?
Na janela, observo o cair da tarde,
como poderia uma alma solitária suportar o crepúsculo!
No extremo da noite, sobre as folhas,
gota a gota, um chuvisco vai caindo…
Como poderia esta paisagem caber numa palavra só:
tristeza!

“Os títulos de cada ci são, portanto, os nomes dos padrões musicais nos quais os poemas se encaixam pela primeira vez. Apenas em muito poucas ocasiões têm seus próprios títulos, os quais foram escritos ou pelos próprios poetas ou por comentadores posteriores; no entanto, o habitual é não possuir título. Por isso, esses padrões são repetidos em diferentes poemas. Se, por um lado, este género permitia uma expressão mais livre dos sentimentos e um uso habitual do pronome em primeira pessoa; por outro lado, requeria umas mãos delicadas de especialista e um sentido musical muito desenvolvido para poder satisfazer plenamente com palavras a canção seleccionada. Para realizar bem um ci, não só era necessário ser mestre da palavra, mas também é essencial conhecer perfeitamente os wuyin (cinco sons) e os liu lu (seis longitudes do tubo musical)”.
(Li Qingzhao, Poesía Completa, 60 poemas ci para cantar, traducción y notas de Pilar González España, Madrid, ediciones del oriente y del mediterráneo, 2010, pag. 15.)

Referências:
马玮,李清照诗词赏析. 北京:商务印书馆国际有限公司,2017.
The works of Li Qingzhao, translated by Ronald Egan. Boston/Berlin: Walter de Gruyter Inc, 2019.
Li Qingzhao, Poesía Completa, 60 poemas ci para cantar, traducción y notas de Pilar González España, Madrid, ediciones del oriente y del mediterráneo, 2010.

24 Out 2022

Giorgio Sinedino: “Zhuang Zi prescreve um mundo com imensos caminhos”

Giorgio Sinedino, sinólogo brasileiro residente em Macau, apresenta hoje, na Fundação Rui Cunha, pelas 18:30, um livro sobre Confúcio e a Tradição. Mas, recentemente, publicou uma tradução de Zhuang Zi, sobre a qual desenvolveu uma conversa, com Carlos Morais José

Primeiro traduziu os Analectos, de Confúcio, mas agora surgiu com uma tradução do Zhuangzi. Por que passou do confucionismo para o taoísmo, numa das suas versões?
Na verdade, não havia um plano, nada foi calculado com antecedência. Os Analectos surgiram de uma conclusão natural do que estava vivendo na época. Estava a fazer o meu mestrado na Universidade de Pequim e tive a oportunidade de conhecer de perto alguns especialistas muito importantes da chamada Escola do Princípio (Li Xue). Entrando em contacto com o pensamento de Zhu Xi, descobri que ele realizava um diálogo muito interessante com Confúcio. Esse diálogo, a interpessoalidade, a forma como Zhu Xi dá uma nova roupagem ao próprio confucionismo, e não apenas aos Analectos, estimulou-me a fazer uma tradução para português que levasse em consideração o modo como ele explicava, o pensamento do grande mestre. Na minha opinião, Zhu Xi é o melhor professor, de todas as pessoas que conhecemos da literatura sobre o pensamento chinês, ele é o grande propedeuta. Por isso, trabalhar os Analectos a partir de Zhu Xi foi muito estimulante.

É então a partir de Zhu Xi que aborda o confucionismo…
Antes de Zhu Xi não existia “o confucionismo”. Antes de Zhuang Zi também não existia taoísmo, ele tinha o espaço total de liberdade de se colocar no mundo. No caso de Zhu Xi, ele sentia uma enorme necessidade, uma nova China estava a surgir, a dinastia Song era ameaçada por todos os lados, e isso motiva-o a tentar renovar a cultura chinesa.

Tenta também coartar a influência do budismo…
Sem dúvida. O budismo já tinha se tornado um aspecto inseparável da cultura chinesa na época de Zhu Xi. Porém, o budismo era assumido como doutrina de Estado pelos Liao e pelos Jin, as duas nações do Norte. Então tínhamos o problema de como conciliar as necessidades de alta definição nacional, de dar uma identidade à dinastia Song, ao mesmo tempo que se preservava as ligações com o Budismo. Isso leva Zhu Xi a uma campanha polémica de luta contra o budismo, mas é interessante ver como ele vai assimilar certos aspectos do budismo, que podem ser conciliados com os ensinamentos confucianos. Inclusivamente, em termos de instituições. A grande novidade no neo-confucionismo foi também a influência da literatura do budismo Chan, a forma que escolheram para sistematizar os ensinamentos da Escola do Princípio foi exactamente a mesma que era utilizada pelo budismo chinês Chan, que era a biografia das linhagens e o estudo dos mestres. Como isso se cristaliza nos Analectos e vai reorientar a interpretação do Confúcio, é uma questão que tentei, mais ou menos, organizar.

Sobretudo nos comentários, uma parte muito rica da sua tradução…
Na altura, a proposta era essa. Quando trabalhamos a China, a tradução de um texto chinês não é como estamos habituados a trabalhar, a pensar nas línguas ocidentais. Nas línguas ocidentais existe um distanciamento entre o tradutor e o autor: o autor é a autoridade e o tradutor busca verter o idioma. O tradutor dá novas roupas ao autor. Mas, no caso da China, a relação entre autor e tradutor é muito mais fragmentada, porque, em primeiro lugar, o conceito de autoria, na China, é fluído. O autor dos Analectos é Confúcio? Começamos a pensar: não. Confúcio não escreveu nada, foram os discípulos. Mas aí, quando olhamos os Analectos e os estudamos por dentro, notamos que pelo menos três gerações, deram o corpo à obra. Quem disse isso, foi realmente Confúcio? A gente não tem como saber. Quem dá autoridade à obra? É difuso. E, para além das pessoas que compilaram os Analectos, temos séculos e séculos de eruditos que deram as suas contribuições, como editores e como críticos. Há enxertos de coisas, que não são da época, mas que passam a ser reconhecidos…

Daí que faça sentido ir ao neoconfucionismo quando, digamos, o Zhu Xi faz esse padrão, um li do confucionismo.
O Zhu Xi tornou-se um padrão por dois motivos: primeiro, porque a sua obra teve um reconhecimento imperial, foi escolhida como roteiro para os exames de acesso à burocracia; e a segunda razão é que ele é um grande professor. Os seus comentários são breves, não há nada de excessivo ali. Não são cem por cento autorais, ele escolhe o supra-sumo dos comentários já clássicos e ele processa aquelas informações e explicações da autoridade com a linguagem da Li Xue, da Escola do Princípio. Quando o tradutor lusófono se coloca nesse jogo histórico, de quem fez a obra e a transmitiu, quem a interpretou, há espaço para que nós tentemos adaptar essas discussões, o vocabulário, às vezes até para questões que fazem mais sentido para nós que vivemos no século XX e XXI.

Daí a importância dos comentários.
É fundamental. Acho que a tradução de uma obra clássica chinesa sem comentários tem muitos riscos.

Sem comentários ou muitas notas é incompreensível, basicamente.
Pessoalmente concordo, as coisas com comentários ficam melhores, com contexto. Mas infelizmente o nosso padrão editorial ainda hoje, não apenas nos países de língua portuguesa, não temos aquele processo do diálogo que há entre a primeira autoridade do clássico, dos comentaristas e as achegas do próprio tradutor. Quando se trabalha com a tradução clássica chinesa, essa é a parte mais interessante, porque há espaço para traduzir não apenas o texto, mas também a mentalidade.Isso é o que mais me atrai, o que faz mais sentido.

Como surge então Zhuang Zi no seu percurso?
Depois dos Analectos, que aconteceu no momento em que estava na Universidade de Pequim, chegou o Dao De Jing, num momento muito conturbado da minha vida, várias mudanças acontecendo em todos os sentidos, e o Lao Zi, de entre os pensadores chineses, acho que ele é realmente dos mais aberto às possibilidades da vida. Porque o Lao Zi é diferente do Confúcio, porque nunca diz: as coisas são assim ou assado. Ele diz: essa é a minha experiência, não diz que tem essas receitas aqui todas para você. Por isso é que no Dao De Jing não há um comentário taxativo. Esse é o tal momento da minha vida, de busca das possibilidades e da sua aceitação. Zhuang Zi é o primeiro texto que me tocou existencialmente. Foi um dos primeiros livros que li em chinês, pois era leitura obrigatória no nosso curso. Li o texto de um filósofo que vivia em Taiwan muito famoso porque deu uma roupagem 100% filosófica, respeitável, para o establishment ocidental, ao Zhuang Zi. Nunca gostei muito desse texto (risos). Então sempre tive essa ideia de traduzir o texto, comecei a traduzi-lo há seis anos…

Confúcio também aparece como personagem no Zhuang Zi várias vezes.
Zhuang Zi é um caleidoscópio. Você olha para o Zhuang Zi e consegue encontrar o mais profundo da alma das pessoas. É um dos pouquíssimos autores chineses antigos em que encontramos humor, sarcasmo, em que se encontra ironia. Não é como em Mêncio, um sarcasmo só para atacar as pessoas. O Zhuang Zi tem aquela coisa quase socrática de fazer pouco de si próprio.

Por exemplo, a passagem sobre a felicidade dos peixes…
Isso aí é óptimo, a sua relação com o mestre Hui. Mas sabe o que acho mais gratificante em ler o Zhuang Zi? Ele está um pouco além desses aspectos da cultura chinesa imperial, que é extremamente hierárquica e existe uma burocratização da vida social, e ele parece totalmente alheado disso. Naquela época, ele estava tendo o maior sucesso na sua carreira burocrática, serviu como grão-ministro do país de Wei um tempo, mas convivia de igual para igual com Hui que não tinha o mesmo estatuto social. Era uma pessoa que tinha saído do mundo e que vivia bebendo vinho, escrevendo literatura, fazendo meditação.

Sobretudo, não propondo, nem acreditando, que há uma única perspectiva de olhar o mundo.
Essa é uma coisa bem taoista. Mas o que Zhuang Zi tem de especial, mesmo nesse contexto taoista, é o seguinte: taoísmo, na sua época, era um taoísmo engajado, que participava das discussões e dos debates políticos. O pensamento de Lao Zi tem dois grandes pilares: o da verdade, o Dao, e o outro é o da realidade, o De, que é como se vai viver no mundo imperfeito e relacionar-se com pessoas que, de repente, não têm os mesmos ideais que você. O Dao está ali como um break through, não vai buscar primeiro o Dao, mas primeiro tem a questão de entender como a sociedade funciona e a dimensão humana.

É o lado confucionista do Dao. No Zhong Yong, a que chamei Prática do Meio, diz-se que a cada momento temos de tomar a decisão correcta para trilhar a Via do Meio, que não está pré-determinada, nem sequer pelo rito. Por isso é que Confúcio afirma que ninguém consegue caminhar na Via do Meio… tem de ter o sentido da história, para tomar uma decisão correcta. Mas é momento a momento, e não partindo de uma verdade pré-existente.
É aquele velho dilema de Confúcio: temos as regras sociais, tem expectativas justas e legítimas de como se deve comportar em sociedade e tem, sobre esse ambiente pré-determinado, a via que você tem de seguir, um espaço de liberdade. Para o Confúcio, a liberdade está dentro, não é no sentido de tirar a roupa e sair andando pela rua. Emocionalmente, pode atingir essa liberdade, essa auto-determinação. Especialmente com a música, que não é verbal e você pode fazer dela o que quiser. Confúcio angustiado, tocava qin e você sabia, mais ou menos, o que se passava dentro dele. Mas Confúcio não vai falar, não vai sair de si; enfrentou injustiças na sua vida mas… Esse é o espírito da harmonia chinesa: temos de entender que é muito bom em determinados momentos termos essa disposição, compreender em que circunstâncias isso é sábio e evita certos conflitos que levam a um desfasamento…

Temos um filósofo do tempo dos romanos, Epicteto, que nos diz mais ou menos a mesma coisa: aquilo que não controlamos não vale a pena preocuparmo-nos com isso.
Sim. Mas ali entendo que o Confúcio, antes de mais nada, era um político. Ele não tinha a sua comunidade, os seus amigos, “ah, beba hoje porque amanhã…”. O caminho do meio é tão restritivo como… ele te dá uma possibilidade de se libertar espiritualmente.

Já o Zhuang Zi tem outra perspectiva…
Absolutamente diferente. O Zhuang Zi, das poucas vezes que ele fala de política, dos reis da antiguidade, dos ideais, é conservador. O que o Confúcio ensinou é aquilo mesmo. Mas há um caminho maior. Usando a nossa linguagem ocidental, o indivíduo tem muito mais possibilidades do que a sociedade pode oferecer a ele, e isso é o Dao. Ele é muito discreto quando sopesa essas duas opções de vida: a do engajamento, de se tornar um funcionário público, um grande administrador, ou de você se tornar um esteta. Como assim discreto? Está lá o Yao, está lá o Shun, e ele diz: “olha, o Yao era taoista, por alguns anos da vida dele ele seguiu um mestre chamado Chiyou”. Então você tem essas histórias do diálogo entre o Yao e o Chiyou, e ele, com muito tacto, não põe em questão o projecto político chinês. Ele respeita, “nós precisamos dessas figuras mas o Imperador também é um ser humano. No dia a dia há coisas que ele não pode buscar só a realização tal como o Tao exige”. Essa é a complexidade de Zhuang Zi: Se ele fosse um pensador revolucionário, se tivesse colocado aquela nossa forma ocidental de ver as coisas, contra a sociedade… Mas o Zhuang Zi diz: o meu caminho passa ao lado daqui, não vai em sentido contrário. Nesses primeiros anos em que eu estava traduzindo Zhuang Zi, e fiz isso ao longo de seis anos, nos três primeiros anos conclui a tradução e fiz os comentários dos dois primeiros capítulos. Quando estava terminando o segundo capítulo, que fala do problema do saber e da linguagem, da relatividade do eu, entrei num momento de crise. Via a tradução e os comentários como estavam e estava tudo parecido com o Dao De Jing, aquela coisa mais fria, quase académica.

Zhuang Zi não tem a noção do Tao ontológico anterior a tudo que tem o Lao Zi. Não diz que é a origem.
Ele diz, mas não se preocupa. Está mais preocupado com a complexidade do humano. O Lao Zi é…

Mais metafísico…
Por isso é que ele é um deus. Lao Zi chega à dinastia Han e, nos movimentos taoistas, é sempre deificado. Mas esse Lao Zi não tem mais nada a ver com o que a gente vê no período final da Primavera-Outono, dos Reinos Combatentes, do homem, do bibliotecário, do burocrata, da pessoa que saiu do país. Essa minha tradução se concentrou nos sete primeiros capítulos, autorais, que a tradição diz que foram escritos pelo Zhuang Zi, talvez trabalhados pelos seus discípulos imediatos. Em relação ao Lao Zi, não é o mesmo tipo de relação que a gente encontra, por exemplo, entre Zisi e o Confúcio. Para Zhuang Zi, toda a vida é a busca do Dao, esse processo espiritual de crescimento não pode ser transmitido tal e qual. O discípulo é orientado a ir buscar a sua verdade, além dos princípios gerais do Dao. A relação entre o Zhuang Zi e o Lao Zi não poderia ser a mesma que entre dois confucianos. No livro do Zhuang Zi não há nenhum relato de que ele tenha estudado junto com Lao Zi. Nunca é referido pelo Zhuang Zi como Mestre Lao. São sempre indivíduos que estão ali. Porém, em vários momentos trabalha os ensinamentos do Dao De Jing. Ele não está reproduzindo ipsis verbis o que está no Dao De Jing, mas o espírito está ali. Outro dado interessante: quando o Lao Zi aparece na história, ele aparece quase em apoteose, no mínimo, não necessariamente como um deus, mas como um imortal superior de grandes realizações. Há um relato sobre o funeral do Lao Zi, que, claro, é uma ficção, mas a crítica que Zhuang Zi está fazendo é que não se vai celebrar a memória do Lao Zi como os discípulos de Confúcio celebraram a sua memória, que organizaram um funeral, estavam lá chorando, fazendo os ritos… e essa é a lógica da continuidade. Zhuang Zi, quando fala sobre Confúcio é o Confúcio de uma das recriações literárias mais geniais da literatura chinesa, um Confúcio apresentado como um homem com todas as suas limitações, como alguém que não conseguiu compreender o Dao.

Sim. Mas é apresentado como alguém com o qual o próprio Confúcio concordaria, porque ele nunca esteve preocupado em conhecer Dao nenhum…
Para Zhu Xi não é assim. Para ele, Confúcio era um homem que não erra. Viveu, morreu, mas era o Sábio. Ele nasceu sabendo de tudo, nunca errou, nem nunca pecou. Se o fez era para mostrar o que era erro aos seus discípulos… Aquilo ali era um conceito budista, de um iluminado. Uma das coisas mais interessantes dos Analectos são as passagens que reflectem a velhice de Confúcio, em que ele parece ter, de certa forma, tido uma veia mais mística, de dar valores aos ritos, não aqueles ritos que definem quem está acima e abaixo, quem é mais velho e mais jovem, mas aqueles ritos que ligam o homem ao Céu, que é uma coisa muito do taoísmo.

Em que ele fala do Da Dao… que é a parte menos abordada pelos confucionistas.
Pois é. Esse é um dos grandes problemas, quando se transforma um pensamento numa ideologia. A ideologia tem de ser reproduzida, não pode ser…

Posta em causa?
Tudo tem a sua utilidade. Acho que Confúcio também defende a ideologia dos Zhou mas vê isso como um ideal altruísta, então vejo Confúcio como pensador claramente conservador, não reacionário…

Ele inaugura também a parte da questão do mérito, muito importante em Confúcio. O junzi em Confúcio não é o mesmo junzi anterior, é um homem que pode lá chegar, não por nascença, mas por mérito, pelo estudo, por recuperar a sua natureza original.
Ele era uma pessoa que, no caso da China, na época dele, esses cargos eram automáticos, hereditários. O Confúcio, como uma pessoa que vem de baixo, como membro da baixa nobreza, mesmo reconhecendo um abismo entre as pessoas, os homens bons, com um sentido social, mas o Confúcio era, como São Paulo, um pragmático.

O que eu entendi é que para exercer o poder tem de haver virtude, posição social e sentido histórico.
Em si, isso não é mau. Todos os sistemas sociais e agentes políticos têm a sua razão de ser e de existir. Na China, vê-se nesses três mil anos uma tendência para se adaptar a novas realidades, criar novas instituições. Zhu Xi, por exemplo: você acha que ele está explicando o Confúcio autêntico? Não, ele está dando uma nova roupagem que funcionou muitos séculos na China.

Nos exames, os Cinco Clássicos passam a ser os Quatro Livros, por exemplo. Há uma mudança…
Mas das coisas mais interessantes no pensamento chinês é termos por fora a parte da ideologia, da ordem, mas dentro tem um espaço de negociação e debate crítico.

Esse é um assunto que acho interessante, por exemplo, na comparação com o pensamento ocidental: é que o pensamento chinês não procura a verdade, mas sim a eficácia, por oposição à verdade.
Esse é um debate tão profundo e complexo… Acho que os ocidentais estão certos e os chineses também estão certos. Há uma diversidade…

Apesar do pensamento de Sócrates ser uma antropologia, no sentido em que volta ao Homem, o cosmos não lhe interessa… tal como em Confúcio, que também não quer saber do cosmos, quer saber do Homem. No caso de Sócrates, para estudar o Homem, ele vai à procura da verdade, enquanto Confúcio não procura a verdade, mas como se pode funcionar, como se pode ser eficaz.
Esse é um debate fantástico e vai levar a um questionamento profundo. Tirando os pensadores jónicos, que investigavam a realidade a partir de dados objectivos da natureza… a partir do momento em que se fala de ética, de ontologia… se você abre mão da tradição, a Caixa de Pandora se abriu. Por que Sócrates sobreviveu? No fundo, porque houve a influência da Academia e de Aristóteles. E toda aquela orientação de vida e de valores é socrática. Então você tem a transmissão de conhecimento e essa visão de mundo, do que é a ética, a arte, as grandes questões. Vai sendo reproduzido e actualizado na civilização ocidental até que chegamos à pós-modernidade. Quando se chega aí, ninguém quer mais Sócrates, temos um nihilismo hoje em dia que as pessoas não encontram mais… Nietszche, Marx e Wagner, eles vêm, cada um, para tocar fogo no edifício que existia antes.

É isso que o Nietszche vem dizer, que a vontade de saber é vontade de poder. Vem desmontar essa vontade de verdade…
Mas ele morre como morreu, não resolveu o problema. Com questões muito interessantes, a grande literatura que não perde de vista a realização humana, as questões no trabalho, até uma crença numa coisa positiva.

Ele acredita na arte, na possibilidade de criação.
Essa é a salvação, no dia-a-dia, mas a angústia está lá, o vazio, a insatisfação. Então a arte deixa de ser verdade, mas sim uma terapia.

A arte é uma das formas de expressão que representa o mundo de uma determinada maneira num individuo.
Essa é a nossa realidade actual, mas para um chinês esse debate não faz o menor sentido. Inclusive a palavra “verdade”, em chinês não existe uma palavra assim. Você tem o Dao, que é verdadeiro, é confiável. Mas ele não é uma revelação, não têm um Moisés. São duas civilizações totalmente diferentes. O chinês se preocupa com o Dao, que na política é a boa ordem social, a harmonia. Individualmente, o que é o Dao? É o que conseguimos alcançar.

Mas Confúcio também diz que o papa-figos dourado está no seu ramo, canta no seu ramo e aí permanece na mais alta excelência, desde que saiba onde tem de permanecer.
E isso é satisfatório para nós?

Não. Mas é compreensível.
Compreensível e aceitável, e hoje nós vivemos num mundo da pós-verdade, globalizado, que vale a pena conhecer.

Zhuang Zi também vive nesse mundo da pós-verdade, de alguma maneira…
Essa é a nossa leitura. Acho que os chineses estão sempre muito bem balizados pelo senso de ordem e estabilidade social, pela ideia de autoridade política, baseado num tipo de entendimento do que é a moral, e essa é a forma dos chineses.

Sempre balizados, à excepção de quando se retiram do mundo. Não quero encontrar semelhanças, mas é mais para tentar que o público ocidental compreenda mais facilmente o que lhe é quase incompreensível porque não está dentro da cultura. Utilizando conceitos ocidentais, ou tentando traduzir os conceitos chineses, numa linguagem que seja compreensível para um público ocidental.
Essa é a grande complexidade… a gente vê Zhuang Zi. O qi, a energia vital, que nos ajuda a compreender mais ou menos como é que conseguia ser tão frio com o ser humano em si, com as paixões humanas, o sofrimento humano. O Zhuang Zi é extremamente brando, você não encontra diante o sofrimento humano o que é natural para nós, qualquer sentido de revolta. A partir do momento em que uma pessoa diz: “no seu coração, você tem o sentido correcto”. Essa é uma coisa boa, rectidão. Mas podemos dizer: “por que você age dessa forma se o seu coração tem isso?”. O interessante de Zhuang Zi é que se pode fazer o que se quiser, prescreve um mundo com imensos caminhos.

Desde que não interfiras com a ordem social.
Todo o pensador chinês pensa como Confúcio nisso. “Você pode fazer o que você quiser desde que não interfira no andar das coisas”.

Ainda hoje isso está presente na sociedade chinesa, de alguma maneira.
Acho que faz falta no ocidental, um pouco. Agora começamos a ver como é que tudo parecia tão melhor no século XIX… acho que havia um sentido mais profundo de respeito mútuo. Falta esse sentido de ordem e coesão social.

É uma das coisas que o Ocidente ainda pode aprender com o Oriente?
O objectivo é o mesmo, mas a forma de chegar lá é diferente. Acho que você tem de respeitar o que as pessoas agregarem nas suas vivências, mas deve-se respeitar e dar uma oportunidade para cada pessoa defender os seus próprios valores. Deve aceitar que todo o mundo tem o espaço de liberdade para seguir com a sua vida e tomar suas próprias escolhas e, realmente, construir algo. Julgar o que essa pessoa fez quando ela não está mais, é isso que faz falta hoje em dia. A gente vê as pessoas a serem julgadas, quando fez um filme ou um livro, a pessoa já está lá, destruída. Você não dá oportunidade para que ela tenha um desenvolvimento ao longo da existência dela, ou se de repente a pessoa escreveu um livro ou fez um filme, já é louvada. Na Europa antiga, a sociedade não era tão igualitária como agora, mas havia o sentido de debate mais saudável, as pessoas tinham uma maior tolerância em relação aos outros, ninguém era dono da verdade. O Ocidente ainda tem muito para aprender e em relação às culturas orientais, a que chamamos orientais — Pérsia, China, Japão, Coreia, etc. — temos de estar abertos a elas e vermos os valores que elas têm.

21 Out 2022

A tulou

E eis-nos chegados à mais sagradas das montanhas, habitadas por deuses, loucos temerários e estranhas bestas: o monte Kunlun. Situado algures perto da linha vertical que divide em dois o mundo, também conhecido por Pilar do Céu, fôra em tempos comparado à Raposa de Nove Caudas, pois dele se distinguia como de nenhum outro lugar as nove secções do Céu e — ¿quem sabe? — donde também seria possível, a homens iluminados, observar as nove partes da Terra.
Em tempos mais recentes, nele habitava a Rainha-Mãe do Oeste, mandando em tudo ou quase. Dessa fabulosa montanha emanavam quatro rios de seu nome Amarelo, Vermelho, Preto e Oceânico, embora nada nos indique que a mitologia chinesa o tenha considerado um paraíso ou sequer um jardim edénico com uma árvore proibida no seu centro.
Ora o monte Kunlun, além de deuses e plantas com propriedades maravilhosos, era também a morada de estranhos animais, entre os quais a tulou. Descrito como uma espécie de cabra, mas dotada de quatro cornos, a tulou é-nos apresentada como sendo uma insaciável devoradora de homens. Contudo, não sabemos se no sentido literal ou em sentido figurado, como personagem oposta à santidade da Rainha-Mãe do Oeste, cujos traços piedosos e protectores nos evocam a Guanyin budista.
Certo é que já São João nos falava de um animal cornudo, excessivamente cornudo, como sendo uma das bestas do Apocalipse, por oposição ao pacífico e triunfante Cordeiro, cuja armadura córnea, dada a sua tenra idade, não tivera tempo de se desenvolver. Portanto, poderemos imaginar que a tulou aqui surge também, com a sua excessividade chifruda, como o lado terrível do monte Kunlun.
Ora a cabra, animal de natureza independente e selvagem, capaz de trepar a impossíveis falésias e de sobreviver deglutindo alimentos improváveis, ao contrário da sua prima ovelha, não poucas vezes nos é apresentada como símbolo da lubricidade feminina, característica que os homens temem mais que a própria sombra, ainda que esta surja desenhada na obscura noite por tímidos raios do luar. Por isso, não nos estribamos na certeza de que a tulou literalmente devorava seres humanos ou se deles abusava sexualmente nas encostas inclinadas do monte Kunlun.
Nas parcas representações da tulou, damos por um animal cuja diferença para a normal cabra passa unicamente pela sua dimensão e pelo facto de exibir quatro salientes chifres. Sobre ela paira um ensurdecedor silêncio, como se aqueles que porventura tiveram ocasião de a encontrar, preferissem ficar calados e guardar para si mesmos as memórias, eventualmente terríveis ou maravilhosas, desses estranhos encontros.
Também sabemos que na cultura Hakka, que abrange parte de Fujian, Guandong e Jiangxi, o termo tulou refere uma espécie antiga e raríssima de casas circulares, cuja funcionalidade está ainda hoje longe de ser conhecida. O que dentro dessas casas ocorria não vem descrito em nenhum dos anais.

21 Out 2022

Debate sobre cavalos brancos de Gongsun Long

Tradução e comentários de Cláudia Ribeiro

「白馬非馬」,可乎?
曰:可。
曰:何哉?
曰:馬者,所以命形也;白者,所以命色也。命色者非命形也。故曰:「白馬非馬」。

Interlocutor – “Cavalos brancos não são cavalos” é admissível?
Gongsun Long – É admissível.
I – Mas como?!
GSL – “Cavalo” nomeia uma forma. “Branco” nomeia uma cor. O que nomeia uma cor não é o que nomeia uma forma. Por isso digo: “cavalos brancos” não é “cavalos”.

Comentário
Neste início do diálogo, o interlocutor mostra-se surpreso com a afirmação de Gongsun Long de que cavalos brancos não são cavalos. Gongsun Long justifica que essa afirmação se sustenta porque o que nomeia uma forma não é o que nomeia uma cor. Que o que nomeia uma forma não é o que nomeia uma cor é uma afirmação verdadeira. No entanto, a conclusão – de que cavalo branco não é cavalo – não se segue das premissas. Para obter um modus ponens o raciocínio deveria ser antes o seguinte:
Se “cavalo” indica a forma, enquanto “branco” indica a cor; e se o que indica a forma não é o que indica a cor, então, “cavalo” não é “branco”. Ou seja, a conclusão não seria que “cavalo branco” não é “cavalo”.
E em que sentido é que o que nomeia uma cor não é o que nomeia uma forma? Será uma distinção entre essência e acidente do tipo aristotélico? Angus C. Graham (1986: 100) fez notar que, na filosofia chinesa, as coisas são concebidas como tendo forma e tendo cor, (有形有色, you xing you se). Ou seja, são concebidas como se forma e cor fossem sua parte intrínseca e não como sendo essencialmente formas onde a cor é um acidente. No entanto, é difícil discordar que a forma (cavalo) é algo de necessário, estrutural, para um cavalo ser visual- mente e mentalmente reconhecido como um cavalo, enquanto a cor branca é uma qualidade acidental. Mas também é verdade, como acrescenta Graham, que forma e cor são percebidas simultaneamente; e que a forma é percebida através de vários dos nossos sentidos, entre os quais a visão que capta a cor.
O que interessa reter é que esta resposta de Gongsun Long mostra que ele não se situa no mesmo plano do interlocutor. Situa-se no plano da linguagem e não no plano dos cavalos e das coisas brancas concretas. Refere-se a termos, aos termos “cavalo”, “branco” e “cavalo branco”. O termo “cavalo branco” provém da combinação da forma cavalo com a cor branca. Denota todos os cavalos que partilham a forma cavalo e a cor branca. Isto difere do termo “cavalo” que denota o conjunto de todos os seres com a forma cavalo, independentemente da sua cor. E difere do termo “branco” que denota todas as coisas brancas independentemente da sua forma. Ou seja, no plano semântico, cada um desses termos tem um conteúdo conceptual diferente. Por isso, é admissível afirmar que “cavalos brancos” não é “cavalos”.

曰:有白馬,不可謂無馬也。不可謂無馬者,非馬也?有白馬為有馬,白 之,非馬何也?
I – Mas, havendo cavalos brancos, não se pode dizer que não há cavalos. Se não se pode dizer que não há cavalos, então como é que [cavalos brancos] não são cavalos? Se, havendo cavalos brancos, então, há cavalos, como é que os brancos não são cavalos?

Comentário
O interlocutor riposta que a existência de cavalos brancos implica a existência de cavalos. O seu raciocínio respeita a lei da inferência. Todavia, mostra com isto que continua a pensar no plano (onto)lógico, no interior do qual a afirmação de Gongsun Long não só é falsa como é bizarra.

曰:求馬,黃、黑馬皆可致;求白馬,黃、黑馬不可致。使白馬乃馬也,是 所求一也。所求一者,白馬不異馬也;所求不異,如黃、黑馬有可有不 可,何也?可與不可,其相非明。故黃、黑馬一也,而可以應有馬,而不 可以應有白馬。是白馬之非馬,審矣!
GSL – Se o que se procura são cavalos, os baios ou negros podem ser enviados. Mas, se o que se procura são cavalos brancos, os baios ou negros não podem ser enviados.
Se “cavalo branco” fosse “cavalo”, ambas as pretensões seriam idênticas. Se ambas as pretensões fossem idênticas, “branco” não se diferenciaria de “cavalo”. Se ambas as pretensões não fossem diferentes, como pode ser que os baios ou negros ora sejam admissíveis, ora sejam inadmissíveis? É óbvio que “admissível” e “inadmissível” não são idênticos um ao outro. Por isso, através dos baios ou negros pode concluir-se que há cavalos, mas não se pode concluir que há cavalos brancos. Daí que, de facto, “cavalos brancos” não é “cavalos”!

Comentário
Gongsun Long riposta com um raciocínio que se assemelha a um modus tollens:
Se cavalos brancos são cavalos, então procurar cavalos brancos é idêntico a procurar cavalos baios e negros.
Procurar cavalos brancos não é idêntico a procurar cavalos baios ou negros. Logo, cavalos brancos não são cavalos.
Mas trata-se, na verdade, de um raciocínio falacioso do tipo designado como “boneco de palha”, através do qual se distorce o raciocínio do interlocutor para melhor o atacar. O interlocutor não defendeu que é idêntico procurar cavalos brancos e procurar cavalos baios ou negros. De cavalos brancos serem cavalos não se segue que procurar cavalos brancos seja idêntico a procurar cavalos baios e negros. Logo, a conclusão é inválida.
No entanto, se nos deslocarmos da esfera estritamente lógica para a esfera semântica, as coisas mudam de semblante. Antes de mais, se o que se procura são “cavalos” e se os baios ou negros vão de encontro ao que se procura, como afirma Gongsun Long, então isto significa que também os brancos iriam ao encontro do que se procura. Nesse sentido, Gongsun Long está a reconhecer, sub-repticiamente, que cavalos brancos são efectivamente cavalos.
Por isto se vê que o interesse de Gongsun Long não é contrariar a noção comum de que os cavalos brancos são cavalos. Fei em bai ma fei ma, não tem, aliás, a mesma carga ontológica do nosso “não é”, mas aproxima-se mais de “não é o mesmo que” ou “não é como”.1 Nesse sentido, bai ma fei ma não está nos antípodas de “cavalos brancos são cavalos”, mas apenas de que “cavalos brancos são o mesmo que cavalos.”
O que move Gongsun Long é mostrar que, em determinadas circunstâncias, os cavalos brancos não devem ser tomados simplesmente como cavalos. Isto porque, quando o que se procura não são “cavalos”, mas “cavalos brancos”, nem cavalos negros nem cavalos baios vão ao encontro do que se pretende. Se um regente pedisse que lhe fossem enviados cavalos brancos para uma dada cerimónia protocolar e súbditos distraídos lhe enviassem cavalos brancos, baios e negros, como se o imperador tivesse pedido apenas “cavalos”, poderiam rolar cabeças… Os cavalos baios e negros podem ser incluídos na extensão “cavalos” mas não podem ser incluídos na extensão “cavalos brancos”.
Repare-se que, no final do trecho, Gongsun Long torna a reconhecer que os cavalos brancos são efectivamente cavalos, quando afirma que, através dos baios ou negros (logo, também dos brancos) se pode concluir que há cavalos. Todavia, nem de “cavalos baios e negros”, nem sequer de “cavalos”, se pode concluir que há cavalos brancos. Apenas de “cavalos brancos” se pode concluir que há cavalos brancos. “Cavalos” e “cavalos brancos” são termos que não dizem respeito exactamente ao mesmo conjunto de seres. Tanto a extensão como a intensão são diferentes. Por isso, mais uma vez, é admissível afirmar que “cavalos brancos” não é “cavalos”.

曰:以馬之有色為非馬,天下非有無色之馬也。天下無馬可乎?
I – Consideras que cavalos com cor não são cavalos mas, neste mundo, não há cavalos sem cor. “Neste mundo não há cavalos” é admissível?

Comentário
O interlocutor não repara que Gongsun Long acabou de afirmar implicitamente por duas vezes que os cavalos brancos são efectivamente cavalos, o que poderia ter inflectido o debate numa outra direcção. Mantendo-se no plano concreto, apoia-se num mal-entendido: que Gongsun Long afirmou que cavalos concretos, com cor, não são cavalos. Ora, em nenhum momento isso aconteceu. Mas o interlocutor prossegue, ripostando que, por reductio ad absurdum, nesse caso não existiriam cavalos, dado todos os cavalos terem cor. Negar que um cavalo branco seja um cavalo equivale a negar que um cavalo de qualquer cor seja um cavalo. Ora, não existem cavalos sem cor; de onde se concluiria que não existem cavalos, o que é um absurdo e até Gongsun Long teria de o reconhecer como tal.

曰:馬固有色,故有白馬。使馬無色,有馬如已耳,安取白馬?故白者非 馬也。白馬者,馬與白也;馬與白馬也,故曰:白馬非馬。
GSL – Os cavalos têm necessariamente cor, por isso há cavalos brancos. Se os cavalos não tivessem cor, então só haveria cavalos como tal; como distinguir aí os cavalos brancos? Por isso, “branco” não é “cavalo”. “Cavalo branco” é a combinação de “cavalo” com “branco”. Poderá a combinação de “cavalo” com “branco” ser “cavalo”? Por isso digo: “cavalo branco” não é “cavalo”.

Comentário
Gongsun Long desloca-se brevemente para o plano concreto do seu interlocutor e corrige-o: não há efectivamente cavalos sem cor. Caso os cavalos não tivessem cor, não haveria cavalos brancos. Não havendo cavalos brancos, não existiria o termo “cavalos brancos”, bastaria o termo “cavalos”. Mas há cavalos brancos, cavalos baios e cavalos negros. E faz notar que o termo “cavalos brancos” engloba “brancos”, tal como a identidade dos cavalos brancos engloba ser branco. Ora, o mesmo não sucede com o termo “cavalos”, que não engloba por si cor alguma, tal como o cavalo conceptual é livre de especificidades (como a cor) e por isso não é idêntico aos cavalos específicos, particulares. Algo nos cavalos com cor, como os brancos, é cavalo, mas não existe uma relação de identidade entre o que “cavalos brancos” e “cavalos” denotam. Dado não terem a mesma identidade, é admissível afirmar que “cavalos brancos” não é “cavalos”.

曰:馬未與白為馬,白未與馬為白。合馬與白,復名白馬。是相與以不相 與為名,未可。故曰:白馬非馬未可。

I – “Cavalo” que não se combina com “branco” é “cavalo”, “branco” que não se combina com “cavalo” é “branco”. “Cavalo” com “branco” combinando-se, o composto nomeia-se “cavalo branco”. Isto chama-se combinar o que não se combina, o que é inadmissível. Por isso, dizer que “cavalo branco” não é “cavalo” é inadmissível.

Comentário
Por fim, o interlocutor desloca-se também ele para o plano semântico. E conclui que, se a combinação de “cavalos” com “brancos” não é “cavalos”, como defende Gongsun Long, então só quando “cavalo” não se combina com nenhuma cor é que é “cavalo” e só quando “branco” não se combina com nada é que é “branco”. Se os cavalos tiverem cores serão sempre “cavalos brancos”, “cavalos baios” ou “cavalos negros” e nunca simplesmente “cavalos”. Mas isso, prossegue, é formar um termo composto (“cavalo branco”) com componentes originalmente independentes um do outro, “cavalo” e “branco”.

曰:以「有白馬為有馬」,謂有白馬為有黃馬,可乎?
GSL – Dizes: “se há cavalos brancos, então há cavalos”. E dizer que, se há cavalos brancos, então há cavalos baios, é admissível?

Comentário
Depois de relembrar ao interlocutor a posição deste (de que se pode concluir que há cavalos de haver cavalos brancos), Gongsun Long distorce novamente um pouco a questão e pergunta-lhe se, de um universo onde existem cavalos brancos, se pode concluir que há cavalos baios ou negros. Isto equivale, claro está, a perguntar o inverso, se de um universo onde existem cavalos baios ou negros é admissível concluir que há cavalos brancos.

曰:未可。
I – É inadmissível.

Comentário
O opositor, obviamente, discorda que, de haver cavalos brancos, se possa concluir que há cavalos baios.

曰:以有馬為異有黃馬,是異黃馬於馬也;異黃馬於馬,是以黃馬為非 馬。以黃馬為非馬,而以白馬為有馬,此飛者入池而棺槨異處,此天下之悖言亂辭也。
GSL – Considerar que haver cavalos difere de haver cavalos baios é diferenciar entre “cavalos baios” e “cavalos”. Ora, diferenciar entre “cavalos baios” e “cavalos” é considerar que “cavalos baios” não é “cavalos”. Considerar que “cavalos baios” não é “cavalos”, mas manter que “cavalos brancos” é “cavalos”, é como “algo a voar penetra no lago” e “caixão interior e caixão exterior estão em diferentes lugares”2 – do mais contraditório e disparatado deste mundo!

Comentário
Gongsun Long faz então com que o interlocutor repare na sua presumível contradição. “Presumível” porque, mais uma vez, deixa cair, pelo caminho, o termo “branco”. Afinal, “cavalo baio” é diferente de “cavalo” (e já não de “cavalo branco”). Dado que “cavalo baio” é diferente de “cavalo”, então, “cavalo branco”, necessariamente, também é diferente de “cavalo”. E vai avisando que, caso o interlocutor discorde disto, cairá em contradições que considera absurdas. Os dois exemplos de contradições que oferece não costumam merecer qualquer linha dos comentadores. No entanto, se lhes prestarmos atenção, assemelham-se estranhamente a algumas das teses de Hui Shi acima referidas. Não seria esta uma crítica a esse tipo de antinomias, como se Gongsun Long delas se quisesse demarcar?

有白馬,不可謂無馬者,離白之謂也。不離者有白馬不可謂有馬也。故所以為有馬者,獨以馬為有馬耳,非有白馬為有馬。故其為有馬也,不可以謂馬馬也。
GSL – De haver cavalos brancos, não se pode dizer que não há cavalos: chama-se “separar o branco”. Não separar o branco, é quando, de haver cavalos brancos, não se pode dizer que há cavalos. Assim, que há cavalos, é porque de “cavalos” se conclui que há cavalos, não porque de “cavalos brancos” se conclua que há cavalos. Assim, se [de cavalos brancos] se concluísse que há cavalos, então não se poderia dizer que os cavalos são “cavalos”.

Comentário
Gongsun Long deixa claro que quem defende que se deve “separar ‘branco’” (li bai) defende que “quando há um cavalo branco pode afirmar-se que há um cavalo”. Ou seja, havendo um cavalo branco, é possível abstrair do branco e concluir que há um cavalo, conferindo, assim, o protagonismo a “cavalo”. É a posição do interlocutor.
Mas, para quem defende que não se deve “separar ‘branco’” (bu li), “quando há um cavalo branco não se pode afirmar que há um cavalo”. Se há um cavalo branco, não é possível abstrair “branco” do cavalo. Um cavalo branco, com cor, é diferente do cavalo-forma, abstracto, sem determinação de cor. Ou seja, aqui confere-se protagonismo a “branco”. É a posição de Gongsun Long.
Assim, da proposição “há cavalos brancos” conclui-se que há cavalos só por causa do termo “cavalos”. Se do termo “cavalos brancos” se concluísse que há cavalos (ou seja, se “brancos” também estivesse implicado nessa conclusão), então “cavalos” e “cavalos brancos” seriam idênticos e intermutáveis. Mas se os termos “cavalos” e “cavalos brancos” fossem intermutáveis, então, das duas uma: ou seria possível chamar “cavalos brancos” aos cavalos baios e negros, o que é inadmissível; ou teria de se chamar aos cavalos baios e negros outra coisa que não “cavalos”.

曰:白者不定所白,忘之而可也。白馬者,言白定所白也。定所白者,非 白也。馬者,無去取于色,故黃、黑皆所以應。白馬者,有去取于色,黃、 黑馬皆所以色去,故唯白馬獨可以應耳。無去者非有去也;故曰:「白馬非馬」。
GSL – “Branco” não fixa o que é branco e pode ser posto de parte. Em “cavalos brancos” fala-se num branco fixado. O branco fixado não é “o branco”. “Cavalos” não exclui nem selecciona cores, por isso, baios ou negros podem ser aceites. Mas “cavalos brancos” exclui e selecciona cores e, por isso, os baios ou negros ficam excluídos devido à cor e só cavalos brancos podem ser aceites. Não excluir nada não é o mesmo que excluir algo. Por isso digo: “cavalos brancos” não é “cavalos”.

Comentário
Gongsun Long declara que, neste debate, é extemporâneo discorrer sobre uma cor que não está associada a nada. Rebate assim a anterior interpretação distorcida do seu interlocutor segundo a qual estaria a afirmar que só quando “cavalo” não se une a “branco” é que se trata de cavalo, e que só quando “branco” não se une a “cavalo” é que se trata de “branco”. Um termo (“cavalo”) que informa sobre a forma mas não informa sobre uma determinada característica, como a cor, difere forçosamente de um termo que informa tanto sobre a forma como sobre uma determinada característica, como a cor (“cavalos brancos”). Por não informar sobre a cor, “cavalos” designa os cavalos brancos, baios ou negros. Por informar sobre a cor, “cavalos brancos” só designa os cavalos brancos e exclui os baios ou negros. Logo, “cavalos brancos” não é o mesmo que “cavalos”. Mais uma vez, dado não terem nem a mesma intensão nem a mesma extensão, é admissível afirmar que “cavalos brancos” não é “cavalos”.

Notas
1 Fei pode desempenhar quatro funções: afirmar que um sujeito é diferente de um objecto; afirmar que um sujeito não tem um certo atributo; mostrar que a relação entre um sujeito e o objecto é exclusiva; e mostrar que nomes compostos (como “bois-cavalos”) não são iguais a nomes de indivíduos. Em bai ma fei ma, fei é utilizado na primeira forma, no sentido em que “cavalo branco é diferente de cavalo” (Mou Zongsan 1979).
2 Na China Antiga, para cada cadáver, era costume utilizarem-se dois caixões, um exterior e um interior.

Excerto de Cláudia Ribeiro, “Podem cavalos brancos não ser cavalos? O “Debate sobre Cavalos Brancos” de Gongsun Long e sua tradução comentada.”, in Philosophy@Lisbon, nº11.
http://www.philosophyatlisbon.org/archive.php

21 Out 2022

Primeira visita à Falésia Vermelha, de Su Dongpo

Tradução de António Graça de Abreu

赤壁赋

壬戌之秋,七月既望,苏子与客泛舟游于赤壁之下。清风徐来,水波不兴。举酒属客,诵明月之诗,歌窈窕之章。
少焉,月出于东山之上,徘徊于斗牛之间。白露横江,水光接天。纵一苇之所如,凌万顷之茫然。浩浩乎如冯虚御风,而不知其所止;飘飘乎如遗世独立,羽化而登仙。于是饮酒乐甚,扣舷而歌之。歌曰:
“桂棹兮兰桨,击空明兮溯流光。渺渺兮予怀,望美人兮天一方”
客有吹洞箫者,倚歌而和之。其声呜呜然,如怨如慕,如泣如诉,余音袅袅,不绝如缕。舞幽壑之潜蛟,泣孤舟之嫠妇。苏子愀然,正襟危坐而问客曰:“何为其然也?
”客曰:“月明星稀,乌鹊南飞,此非曹孟德之诗乎?西望夏口,东望武昌,山川相缪,郁乎苍苍,此非孟德之困于周郎者乎?方其破荆州,下江陵,顺流而东也,舳舻千里,旌旗蔽空,酾酒临江,横槊赋诗,固一世之雄也,而今安在哉?
况吾与子渔樵于江渚之上,侣鱼虾而友麋鹿,驾一叶之扁舟,举匏樽以相属。寄蜉蝣于天地,渺沧海之一粟。哀吾生之须臾,羡长江之无穷。挟飞仙以遨游,抱明月而长终。知不可乎骤得,托遗响于悲风。”
苏子曰:“客亦知夫水与月乎?逝者如斯,而未尝往也;盈虚者如彼,而卒莫消长也。盖将自其变者而观之,则天地曾不能以一瞬;自其不变者而观之,则物与我皆无尽也,而又何羡乎!
且夫天地之间,物各有主,苟非吾之所有,虽一毫而莫取。惟江上之清风,与山间之明月,耳得之而为声,目遇之而成色,取之无禁,用之不竭,是造物者之无尽藏也,而吾与子之所共适。”
客喜而笑,洗盏更酌。肴核既尽,杯盘狼籍。相与枕藉乎舟中,不知东方之既白。

No Outono de 1081, a 16 do sétimo mês, fui de barco com alguns amigos até à Falésia Vermelha. Soprava uma brisa doce, serenas as águas do rio. Ofereci vinho aos meus amigos, recitámos poemas em louvor da lua, entoámos canções da minha autoria.
Depois, a lua apareceu sobre as montanhas do leste e começou a sua viagem entre as constelações. Uma leve névoa branca estendia-se sobre o rio, o brilho das águas confundia-se com o resplandecer do céu. Demos liberdade à frágil barca e vogámos para águas distantes, como se flutuássemos no vazio, cavalgando brisas, despreocupados quanto a parar, como se tivéssemos abandonado o mundo suspensos nas asas do vento e fôssemos uma espécie de génios imortais.
Bebíamos, satisfeitos, cantávamos marcando a cadência na madeira da barca. Foi esta a canção:

Os remos traseiros são de pau de canela,
os remos da frente são caules de orquídeas.
Batem na luminosidade do céu,
subindo no cintilar da corrente.
No espaço ilimitado
abre-se o sentir de um coração.
Ao longe, um homem sábio,
caminha pelos confins do mundo.

Um dos convidados da jornada sabia tocar flauta e acompanhou a nossa canção. A música suspirava, como um queixume, um soluço, um gemido, o som prolongava-se, ondulante, estendendo-se como fios de seda. O dragão das águas dançava na sua caverna escondida, lágrimas encharcavam a barca de uma viúva solitária.
Emocionado, apertei os panos da minha cabaia e perguntei ao meu amigo o porquê da tristeza e da melancolia. Respondeu:

“O príncipe guerreiro Cao Cao já tudo explicou.
Clara a lua, raras as estrelas,
os corvos sombrios voam para sul.”

Ora a oeste de onde nós estávamos, situa-se Xiakou, do outro lado, a leste, fica Wuchang. Misturam-se as montanhas e os cursos de água, imensos, sombrios, azuis. Aqui foi Cao Cao derrotado pelo jovem Zhou Yu. Depois de ter tomado de assalto a cidade de Jingzhou e submetido Jiangling, o príncipe Cao avançou para leste, seguindo o leito do rio. As suas barcaças de guerra estendiam-se por cem léguas, os seus pendões e bandeiras escondiam o céu. Sentado nas margens do rio, tendo guardado a sua alabarda, bebia vinho e recitava poemas. Cao Cao foi um dos grandes heróis da nossa História, mas onde está hoje?
Como falar então de mim ou de vós, lenhadores, pescadores nas ilhotas do rio, camaradas de peixes e amigos de veados… Viajamos numa barca minúscula como uma casca de árvore, em vez de termos taças de vinho, bebemos em humildes calabaças, esvoaçamos entre céu e terra como gente efémera, somos simples grãos de cereal no meio de infindáveis mares. Lamentamos a passagem de uma vida tão breve e rápida, temos inveja do grande rio Yangtsé que jamais se cansa de correr. Gostávamos de nos juntar aos imortais no seu vôo, de partir para longe, de existir para sempre, arrastados pelo brilho do luar. Sabemos que tudo isso é impossível de alcançar e deixamos cair na placidez do vento o eco lúgubre das nossas queixas.
Eu pergunto: “Conhecem a água e a lua? Desaparecem, mas jamais se separam de nós. A lua cresce, decresce, mas não aumenta nem diminui.”
Se considerarmos o todo do ponto de vista do que muda, então o céu e a terra não deviam durar mais do que um piscar de olhos. Se considerarmos o todo do ponto de vista do que não muda, então a natureza e nós próprios, mudamos mas pouco.
Vale a pena invejar o que quer que seja?
Para tudo o que existe na natureza, entre céu e terra, surge sempre um mestre. É algo que não podemos escolher e decidir. Mas podemos contar com a brisa serena por cima do rio e uma lua clara entre montanhas. A primeira traz o som aos nossos ouvidos, a segunda, as cores aos nossos olhos. Estas podem ser nossas, para fruir sem gastar, o que mostra que o criador não escondeu tudo, há prazeres à solta ao alcance do coração dos homens.
Feliz, o meu amigo sorriu. Enxaguámos então as calabaças que enchemos outra vez de vinho. Comemos fruta e umas tantas iguarias. Os pratos e os copos espalhavam-se em desordem. Deitámo-nos nas tábuas da barca, encostados uns aos outros, sem nos apercebermos que, a leste, o dia já nascia.

18 Out 2022

Zhang Wo dançando com a sua sombra

Su Dongpo (1037-1101), que viveu dolorosamente o exílio, escreveu um célebre poema recordado no Festival do Meio-Outono, e conhecido como «Prelúdio à melodia da água» (Xuidiao getou) onde constam os versos que sublinham a saudade e alertam para os perigos do isolamento:

Como gostaria de voltar cavalgando o vento,
Mas receio o Palácio de cristal
e a Torre de jade lá no alto
onde poderei não conseguir suportar o frio.
Levanto-me e danço com a minha sombra clara:
ainda estou no Mundo dos homens?

O exílio poderia ser entendido como a condição do poeta como a viveu Qu Yuan (339-298 a.C) e identificou no Li Sao, Encontrando a tristeza, que consta da antologia Chu ci, as Elegias de Chu. A figura do poeta unia-se assim aos versos de origem xamânica, escritos para serem cantados em forma de antífonas no decurso de cerimónias rituais e, fazendo uma ponte para o mundo dos seres sobrenaturais, facilitavam a transmissão de objectivos morais, métodos estilísticos do passado e à exposição expressiva do trabalho do pincel.
Foi o que na dinastia Yuan um pintor literato de Hangzhou chamado 張渥 Zhang Wo (activo entre 1336-64) fez e mostrou no rolo horizontal Nove Cantos (Jiu ge) de que existem três versões. Duas de 1346, uma no Museu de Xangai, outra no Museu Provincial de Jilin (tinta sobre papel, 29 x 523,5 cm). Outra de 1361 está no Museu de Arte de Cleveland (tinta sobre papel, 28 x 438,2 cm) contendo o texto original na caligrafia de Chu Huan (activo 1361- c.1450), que acompanha as onze representações.
Entre elas, uma das mais antigas figurações do poeta Qu Yuan e mais dez seres imortais que constam das Elegias. Executadas sem cor ou diluição de tinta (baimiao) mostram, no esplendor das suas linhas claras e ondulantes, a cadência do movimento de ondas e nuvens, particularmente nas etéreas figuras dos dois poemas mais conhecidos, dedicados à Divindade e à Dama do rio Xiang.
Zhang Wo recriou nessa pintura um tema e um método já usado por Li Gonglin (1049-1106), que aperfeiçoou e que vinha já do pioneiro Gu Kaizhi (345-406) e do seu rolo Ninfa do rio Luo, que também se apoiava num poema narrativo de Cao Zhi (192-232), que descreve encontros e desencontros com uma ninfa desse rio cujo original se perdera, mas fora recriado várias vezes durante a dinastia Song. Um género de pintura em que os seus amigos literatos gostavam de se rever.
Da biografia de Zhang Wo consta uma breve carreira de funcionário imperial, abandonada por desencorajamento ou perseguição baseada em preconceitos regionalistas. Mas desde que abandonara a burocracia, encontrara o mecenas Gu Ying (ou Gu Dehui, 1310-69) que lhe proporcionou a possibilidade de viver da arte da pintura. Achará nela um lugar de exílio oposto ao destino funesto de Qu Yuan. Como escrevera Su Dongpo: «Se o meu coração encontra aqui a paz, aqui será a minha aldeia natal.»

18 Out 2022

Oposição contraditória e oposição complementar na cultura chinesa

OPOSIÇÃO CONTRADITÓRIA:
A palavra chinesa para expressar “contradição” 矛盾 (Máodùn), é formada por uma lança矛 (máo) oposta a um escudo盾 (dùn). A etimologia vem de um extrato de um conto encontrado pela primeira vez no período dos Reinos Combatentes (475 – 221 aC), com o texto do filósofo legalista Han Feizi (韩非子):
‘Havia um homem no Estado de Chu que vendia escudos e lanças. Ele elogiou sua mercadoria da seguinte forma: “Meus escudos são tão fortes que nada pode perfurá-los”. Ele em seguida elogiou assim suas lanças: “Minhas lanças são tão fortes que perfuram qualquer coisa”. Alguém comentou: “E se você usar uma de suas lanças para perfurar um de seus escudos?” O homem ficou sem palavras. “Os escudos que não podem ser perfurados por nada” e “as lanças que podem perfurar qualquer coisa” não podem coexistir 不可同世而立” (Han Feizi, “Nan Yi” (韓非子 • 難一) : 265).’
O conto ilustra duas proposições incompatíveis, ou seja, não podem ser ambas verdadeiras, embora possam ser ambas falsas. No enredo, Han segue a Lei da Não-Contradição de Aristóteles: “É impossível que uma coisa pertença e não pertença à mesma coisa ao mesmo tempo e no mesmo sentido” (Metafísica 1005b19-23; Apóstolo 1966, 58- 59) e ‘É impossível ser e não ser ao mesmo tempo’ (Metafísica 996b-30-31; Apóstolo 1966, 42).
毛泽东Mao Zedong (1893 – 1976) admirava o pensamento de Han Fei Zi, creditando-lhe a imensa influência na política da corte imperial chinesa. Assim, o revolucionário comunista abre seu ensaio intitulado矛盾論 (Máodùn Lùn; lit. ‘Diálogo sobre a contradição’), publicado em 1937, afirmando que “A lei da contradição nas coisas, ou seja, a lei da unidade dos opostos, é a lei básica da dialética materialista”, sugerindo que toda existência é resultado de contradição. O materialismo dialético de Mao estava profundamente enraizado na cultura tradicional chinesa autóctone. Por isso é também importante compreender a noção de oposição não-contraditória ou complementar, sobre a qual discursaremos a seguir.

OPOSIÇÃO COMPLEMENTAR:
Diferentemente da ideia platônica ou kantiana de “Essência” (Ousia, Wesen), a língua chinesa não definiu esse termo pela noção de permanência de uma substância. Em vez disso, está subjacente a noção dual de opostos complementares, como ‘luz-escuridão’, ‘negativo-positivo’ (陰陽 “yin-yang”) e ‘princípio – força vital’ 理氣 (li-qi), que se tornou a base para os principais sistemas de pensamento oriental. Segundo a visão chinesa, “tudo que existe possui dois aspectos. Para a maioria das escolas de filosofia do Extremo Oriente, uma interação entre dois opostos produz todas as coisas no universo”, ou, para tomar emprestada uma expressão hegeliana, “tudo envolve sua própria negação”.
Uma das ideias centrais taoístas é a de que oposição é indispensável para harmonia. Por exemplo, a noção chinesa de opostos complementares (陰陽 “yin-yang) parece inconsistente com a Lei da Não-Contradição proposta por Aristóteles. De facto, a coordenação yin-yang não é apenas contrária, mas também interdependente e complementar. Esta é uma das principais filosofias de Lao Zi, inspirada nos movimentos do sol e da lua e na sucessão das quatro estações, aos quais os agricultores prestavam especial atenção (Fung, 1997, p. 37).
O círculo dividido em duas seções rodopiantes, uma preta e outra branca, com um círculo menor da cor oposta inserido em cada metade, tornou-se um símbolo mundialmente conhecido da religião taoísta. É também uma representação visual da oposição dialética (ou da não-contradição), expressa pelo princípio da Unidade na cosmologia chinesa.
Conforme examinado por Jiang e Zhang (1992, p.75), na lógica chinesa as correlações entre os opostos, como acima e abaixo, ou frente e verso, são enfatizadas e tidas como complementares. No pensamento sinítico, os opostos representados por yin (força negativa) e yang (força positiva) “não são mutuamente exclusivos; em vez disso, eles são dependentes e se completam. Portanto, na lógica chinesa, o significado é muitas vezes expresso em termos de oposição, como “grande forma sem aparência” ou “bênção produz infortúnio”. Essas noções opostas, em vez de produzir contradições, geram harmonia, conforme exposto no Clássico das Mutações (易經Yi Jing).

1. “Sobre a contradição”. Das Obras Selecionadas de Mao Tse-tung. Imprensa de Línguas Estrangeiras. Pequim 1967. Primeira edição 1965. Segunda impressão 1967. Vol. I, pp. 311-47.
2. FUNG, Yu-Lan. A Short History of Chinese Philosophy. New York: Free Press, 1997, p.37.
3. FUNG, Yu-Lan. A Short History of Chinese Philosophy. New York: Free Press, 1997, p.37.
4. LI, Chenyang; HE, Fan; and ZHANG, Lili. Thomé H. Fang’s Philosophy of Comprehensive Harmony. Global Scholarly Publications, New York, 2018.

17 Out 2022

Um sábio não sabe de si

Diz-se que Bodhidharma (達摩), primeiro patriarca do budismo Chán (禪) na China, certa vez se apresentou ao imperador Wu da dinastia Liang (梁朝, 502-557). O diálogo entre os dois, ambos budistas, faz parte da literatura de distintas escolas do budismo sino-coreano-japonês, que compreendem Bodhidharma como o introdutor de suas práticas no Leste Asiático, sendo ele um monge de origem talvez persa vindo das terras a oeste.

Assim se relata: estando frente a frente, o imperador inquiriu Bodhidharma a respeito de seus feitos beneméritos como governante daquelas terras. Que méritos teria ele, imperador, adquirido graças aos esforços que despendera para construir monastérios, ordenar monges budistas, reproduzir cópias e cópias de sutras e entalhar imagens de budas?
“Mérito algum,” teria dito Bodhidharma. “Boas ações mundanas podem originar bons frutos, nesta e em próximas vidas, mas mérito algum advém delas.”
“Então,” continuou o imperador, “qual o sentido de tudo isso?”, teria dito. Ao que Bodhidharma respondeu: “o único sentido verdadeiro é a vacuidade; ela é tudo que existe.” Ou, se pensarmos bem, o que não existe, posto ser vacuidade. Mas a tradição informa que o patriarca teria dito algo assim: “existe apenas vacuidade.”
E por vacuidade, pelo vazio essencial que não é apenas ausência de algo, mas natureza inessencial de todos os fenômenos, Bodhidharma se referia a uma das verdades profundas do budismo, das verdades centrais que, com ele na China, passou a compor parte significativa do entendimento budista do mundo. Desde o Chán, passando pela tradição Seon da Coreia até o mais popular Zen japonês.
Mas aqui, a vacuidade que o monge enfatiza ganha maior materialidade. Porque em sua verdade se desfaz não apenas a ideia essencial de todos os fenômenos — afinal, tudo que existe é vacuidade —, mas a ideia de que o sujeito mesmo que enuncia tal ideia, o enunciador de qualquer enunciado, ele próprio não pode existir. Ou, melhor dizendo, ele próprio é vacuidade. Falta-lhe um cerne essencial que o mantenha imutável ao longo do tempo, das experiências, dos fenômenos todos de uma existência. Com a vacuidade, vem também a verdade budista da impermanência. Nada se mantém eternamente.
Frente a isso, a última pergunta do imperador a Bodhidharma foi a seguinte: “Se tudo é vacuidade, quem é você, agora, defronte a mim?”
E o monge lhe deu a única resposta possível: “Eu não sei, Vossa Majestade.”
Neste pequeno diálogo, anedótico ou não, se registra o coração de uma sabedoria passada de geração em geração, de espírito a espírito, desde o tempo primeiro do budismo Chán. O não se saber, o reconhecimento de que se desconhece qualquer essencialidade última, de que tudo é vacuidade e impermanência, alimenta toda a prática budista dessa escola e das que se desenvolvem a partir dela, na China ou alhures.
E ainda que elementos de tal verdade estejam presentes nos discursos do próprio Buda histórico, nas tradições que já vinham se desenvolvendo em terras indianas, a chegada de Bodhidharma à China é fundamental pelo encontro que promove entre tais perspectivas e certas tradições originárias da China mesma. Pelo encontro da verdade budista com certo espírito existencial que o sinólogo francês François Jullien bem resume ao dizer, como o faz em um título de sua obra, que “o sábio não tem ideia”. O sábio — e não o filósofo, não o teorizador — não tem ideia porque não toma, de partida, nenhum pressuposto. Na experiência da sabedoria, segundo o sinólogo e as tradições às quais se refere, e mesmo ao budismo que aqui citamos, não se tem ideia porque ideias pressupostas são apriorismos essencializantes, ou cristalizações de expectativas, de pontos de vista que são pontos de partida (parti pris, diz Jullien). Ao contrário, não ter ideia é não saber, por exemplo, quem se encontra defronte ao imperador.
Mesmo que quem ali esteja seja o próprio interlocutor do soberano, o próprio monge budista, patriarca que, ao dizer não saber quem é, diz muito mais do que apenas isso: diz-nos que reconhecer seu desconhecimento lhe permite estar ali, defronte ao imperador, sem projetar ilusões em nenhuma relação sua com o mundo. Apenas estando ali, aberto ao que o fluxo dos fenômenos venha a apresentar.

Bibliografia
Broughton, Jeffrey L. (1999), The Bodhidharma Anthology: The Earliest Records of Zen, Berkeley: University of California Press.
Jullien, François. (2000). Um sábio não tem idéia. São Paulo: Martins Fontes.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa. https://www.cccm.gov.pt/

17 Out 2022

O Yingshao

Os atrevidos mortais, que tudo parecem querer classificar e arrumar nas suas frágeis gavetas mentais, amiúde sofrem por não conseguirem sequer rotular certos seres, por estes escaparem às categorias preconcebidas. É o caso do yingshao. Com um forte corpo de cavalo, a pele tigrada como os temíveis felinos, face humana e duas asas implantadas no dorso, ao darem por este estranho ente os sábios hesitam se o hão-de considerar um animal ou um ser divino.
Humano, com certeza, não será; ¿deveremos então considerá-lo pertencente ao reino da natureza ou ao reino do sagrado? Ou, tomando uma outra perspectiva, considerar que a sua existência esbate por completo as fronteiras entre os dois reinos e que essa separação não passa de mais um erro derivado da nossa leitura incapaz do mundo e das dez mil coisas que o compõem.
Segundos os antigos textos, o yingshao terá nascido numa extraordinária montanha chamada Huaijiang, onde o lápis-lazuli, um raro pigmento encarnado, jade branco, ouro e prata abundantemente existem. De tal modo esta montanha esplandece e espanta os homens que muitos acreditam ser a morada terrestre do Imperador do Céu e dão-lhe o nome de Jardim da Paz.
Contudo, a beleza da sua terra originária não foi suficiente para ali prender o yingshao. Aliás, nenhum lugar particular parece ter o condão de o fixar, pois esta criatura, tão magnífica quanto bizarra, é conhecida por continuamente se deslocar, quer por toda a terra, quer através dos Quatro Mares ou traçando temerários riscos ao longo da abóbada celeste.
Relatos arcaicos confirmam a presença do yingshao nos mais díspares e inopinados espaços, sendo desconhecido o que o faz mover-se sem hesitações ou descanso. Num dia poderá ser avistado no sopé de um monte verdejante, no outro descortinado no mais abrasante deserto ou sobrevoando as ilhas ignotas que salpicam os mares.
O yingshao é, sobretudo, apreciado pelos letrados, porque os sons que emite fazem lembrar os que ressoam no ar quando um ser humano lê um livro em voz alta. Quem o escuta, facilmente fantasia estar na presença de um incontido poeta ou de um inesgotável contador de histórias, embora até ao presente ninguém tenha sido capaz de encontrar sentido algum na cascata de sons que a sua boca incessantemente produz.
Alguns comentadores sugerem que o yingshao se exprime numa língua perdida, falada entre os antigos deuses. Estes são os que o consideram como pertencente ao reino dos seres divinos. Já outros apenas consideram esses sons como os grunhidos de uma besta incontinente que, continuamente, se vê impelida a proferi-los, sendo que a semelhança ao homem-leitor não passará de uma coincidência e, definitivamente, o catalogam como pertencente ao reino dos animais.
O que seguramente sabemos é que o homem, nem animal nem divino ou uma mescla infeliz dos dois reinos, é a bamboleante corda sobre o abismo que separa as bestas dos deuses (ou de uma realização humana ulterior, como descreve um bigodudo pensador alemão), ser infeliz de não dar por si como uma totalidade plena de sentido.
Já o yingshao, aproveitando as suas poderosas asas, sobrevoa esse mesmo abismo mas, para espanto de muitos, não se fixa nem de um lado nem do outro, preferindo uma vida nómada e, aparentemente, sem outro sentido que não seja usufruir do movimento a que parece para sempre condenado.

Este texto é uma ficção inspirada no clássico “Livro das Montanhas e dos Mares” (Shanhai Jing).

14 Out 2022

Estudos de Macau – Fábricas de vinho liu-pun

Com licença especial emitida pela repartição da Fazenda Pública, a 15 de Julho de 1892, recomeçou a venda, fabrico e importação de vinho liu-pun em Macau, na Taipa e em Coloane, mas apenas para quem obtivera licença para esse fim.
Antes de 1892, na colónia de Macau existiam mais de dez fábricas de produção de vinho, mas com o novo exclusivo de liu-pun, celebrado em Abril desse ano, estas contam-se pelo número de licenças passadas. Assim, para o período de três meses, entre 31 de Julho e 15 de Outubro de 1892, fica-se a saber existirem catorze licenças para o fabrico de liu-pun em Macau, quatro na Taipa e sete em Coloane. No semestre seguinte, até 14 de Abril de 1893, era menos uma licença para o fabrico de vinho em Macau e nas ilhas mantinham-se as existentes.
No ano de 1896, havia em Macau apenas duas fábricas de liu-pun com sete trabalhadores. O tema do vinho liu-pun desapareceu dos jornais e do Boletin Oficial, onde os assuntos focavam outros e novos monopólios de géneros comerciais, assinalando O Echo Macaense os impostos que as mercadorias pagavam em Macau.
Assim, este jornal a 18 de Julho de 1894 referia: “Quando a peste negra recrudesceu em Hongkong, e se acentuou o êxodo dos chineses, espalhou-se o boato de que algumas firmas chinesas, conhecidas como casas de consignação, tencionavam mudar-se para Macau, e seria uma fortuna se assim acontecesse. Infelizmente, além das desvantagens do porto, antolhou-se logo outro estorvo grande, que há muito tempo tem sido apontado como um sério obstáculo ao desenvolvimento do comércio e da navegação do porto de Macau, a saber, o imposto de tonelagem. Já em relatórios oficiais se tem chamado a atenção do governo da metrópole sobre a inconveniência de manter esse imposto em 50 réis por tonelada, que pelo câmbio actual equivale a 7 avos e 8 milésimos de pataca, enquanto em Hongkong esse mesmo imposto não passa de um avo e em Singapura de dois avos. Não mereceu o assunto consideração alguma da parte do governo da metrópole, e os vapores de Hainan e da costa d’ Oeste que traziam a Macau vários produtos para daqui serem distribuídos para os portos do interior, continuam a fugir do nosso porto, preferindo fazer as descargas em Hongkong, donde vem depois no vapor de carreira esses géneros, que constituem a exportação de Macau para os portos chineses. Por este sistema, o governo não lucra nada com esse imposto, ao mesmo tempo que Macau se vê na necessidade de tornar-se cada vez mais dependente de Hongkong, do qual é hoje apenas um porto sucursal, porque daí procedem todos os géneros comerciais, que não podem vir directamente a Macau, tanto pelo mau estado do porto, como pela taxa proibitiva do imposto de tonelagem.”
Mas não era apenas esse imposto! Num texto do mesmo jornal de 1 de Agosto de 1894 assinala-se: “Estipulado no artigo 4.º da convenção de Beijing, os produtos chineses que tiverem já pago os direito aduaneiros e a taxa likin antes de entrar em Macau ficariam isentos de pagar novamente aqueles impostos quando reexportados para os portos chineses, ficando somente sujeitos ao pagamento da taxa denominada Siao-hao. No entanto, em Macau são de novo onerados com a taxa likin ao serem reexportados para os portos chineses.”
Daí o grande decréscimo da actividade industrial e comercial em Macau, onde em 1910 continuavam a existir apenas duas fábricas de produção de vinho, tendo aumentado o número de trabalhadores para 27.

AUMENTO DE PRODUÇÃO

Em 1922, existiam 43 fábricas de vinho liu-pun, três firmas a vendê-lo por grosso, 59 de importação e exportação e 98 de venda a retalho. Havia ainda oito firmas de vinho europeu. Registado pela metrópole em 1926, existiam em Macau 17 destilatórios com produção anual de 600 mil patacas.
Beatriz Basto da Silva, citando Jaime do Inso, refere no ano de 1929 Macau ter 54 fábricas de vinho chinês (destilação de arroz a que se juntam infusões conforme o paladar ou o efeito, até medicinal, pretendido).
As autoridades, no início de Fevereiro de 1929, souberam que, sob falsas declarações prestadas por alguns exportadores de vinho chinês liu-pun, a maior parte do álcool importado para fabrico do mesmo vinho era reexportado sem sofrer alterações; o Governo da Colónia necessitando de pôr cobro a semelhante abuso a fim de evitar os inconvenientes que resultam, quer para a fiscalização quer para os serviços estatísticos, só pode obviar aos inconvenientes apontados, sujeitando as exportações do vinho chinês liu-pun e do álcool à fiscalização do Estado, tendo em consideração o que foi exposto pelo Inspector dos Impostos de Consumo.
O Conselho do Governo aprovou e o Governador interino da Colónia de Macau, usando da competência que lhe confere o n.º 7.º do artigo 70.º da Carta Orgânica, determinava: “Artigo 1.º Os exportadores do vinho chinês liu-pun e do álcool ficam obrigados a declarar na Inspecção dos Impostos de Consumo, antes de efectuarem qualquer exportação dos artigos indicados a data em que se realizará a exportação, a espécie do artigo a exportar, o seu meio de transporte, o seu peso bruto e o seu valor em moeda local. Artigo 2.º A Inspecção dos Impostos de Consumo passará a competente licença de exportação para cada espécie de artigo a exportar se entender que essa licença pode ser imediatamente concedida, tendo a bona fide do exportador. Artigo 3.º Sempre que a Inspecção dos Impostos de Consumo tenha dúvidas sobre a legitimidade da declaração prestada pelo exportador poderá suspender a concessão da competente licença para proceder às necessárias averiguações. Artigo 4.º Qualquer exportador que transgrida as disposições deste diploma será punido com a multa de $10 a $50. § único: Em caso de reincidência será punido com a multa correspondente ao décuplo da importância paga pela transgressão anterior. Macau, 6 de Abril de 1929, o Governador interino João Pereira Magalhães.” Diploma novamente publicado para corrigir o que saíra incorrecto a 2 de Fevereiro e assinado por o Governador Artur Tamagnini de Sousa Barbosa.
Em 1932, a indústria de vinho chinês liu-pun classificava-se em décimo lugar na escala da produção ($250.000,00), sendo exercida por mais de cinquenta fábricas das quais cinco estabelecidas na Taipa e outras cinco em Coloane. Quanto aos importadores e exportadores de vinho chinês eram dezanove, encontrando-se doze na Rua Almirante Sérgio. A exportação fazia-se por intermédio de Hong Kong para Singapura, Penang, Califórnia e ainda para os territórios limítrofes. No entanto, esta indústria ia decrescendo de importância pois os chineses começaram a adoptar o uso de bebidas espirituosas estrangeiras, sobretudo whisky e brandy, que os comerciantes ingleses tinham conseguido introduzir no grande mercado da China.
Apesar de todas as contingências, em 1932, os industriais de Macau mantinham a sua produção, embora um tanto reduzida pela enorme concorrência de fabricantes, alguns dos quais iam empregando álcool de açúcar no seu fabrico, o que, no dizer dos entendidos, lhe tirava a genuinidade.

12 Out 2022

O início dos contactos oficiais entre a China e Ryukyu em 1372

Os historiadores procuram frequentemente datas “redondas” para comemorar eventos importantes. Em 1622, há 400 anos atrás, Macau livrou-se de um grande ataque holandês. Os leitores estão familiarizados com o evento, que foi de grande importância para o Estado da Índia e para a história das relações sino-europeias. No mesmo ano, 1622, novamente há 400 anos, os holandeses ocuparam as Pescadores 澎湖群島. Este foi o prelúdio para a presença holandesa em Taiwan. Ainda antes, há 450 anos, em 1572, Zhu Yijun 朱翊鈞 tornou-se imperador da China. O seu reinado, chamado Wanli 萬曆, foi uma era conhecida pelas suas conquistas culturais, mas também por desastres políticos. 1522 marcou o início da era Jiajing 嘉靖. Este foi o período em que aconteceu a fundação de Macau. Há 550 anos, em 1472, nasceu Wang Yangming 王陽明 (Wang Shouren 王守仁), um dos filósofos mais importantes da China. E em 1372, há 650 anos, no início da dinastia Ming, assistimos à abertura formal das relações entre a China e as ilhas Ryukyu, chamadas Liuqiu qundao 琉球群島 em chinês.
Este evento não foi registado em fontes europeias, mas quando Tomé Pires escreveu a sua famosa Suma Oriental, incluiu no seu livro um breve capítulo sobre as Léquias. Este nome, que ocorre em diferentes formas ortográficas, tornou-se a denominação comum utilizada pelos primeiros viajantes ibéricos para estas ilhas. Muito importante também, no século XVI, estas ilhas são geralmente vistas como uma região independente, intimamente ligada à China. Esta imagem estava correcta, espelhava a verdadeira situação política.
A ilha principal do arquipélago de Ryukyu, com uma cultura e história própria, mas agora pertencente ao Japão, é obviamente Okinawa 沖縄. No século XIV, era governada por três pequenos reinos: Hokuzan 北山, Zhusan 中山 e Nanzan 南山. Estes são os seus nomes japoneses, e o período durante o qual co-existiram, é normalmente chamado Sanzan-jida 三山時代, literalmente “Três Montanhas”, em japonês. O período Sanzan durou de 1322 a 1429. Não sabemos muito sobre a estrutura interna das três entidades políticas, mas fontes revelam que elas estavam envolvidas no comércio marítimo através dos mares do Leste e do Sul da China.
Porque é que é de interesse recordar tudo isso? Há uma razão complexa, que requer uma leitura paciente. Quando o imperador Ming enviou um enviado oficial a Okinawa em 1372, para inaugurar relações formais, os chineses usaram o nome Liuqiu para aquela ilha. Em suma, o enviado, Yang Zai 楊載, foi enviado para Liuqiu; pelo menos, é isto que nos dizem as fontes. Não houve qualquer especificação em relação às três entidades políticas de Okinawa. Mais importante ainda, em tempos anteriores, o nome Liuqiu denominava Taiwan – e não necessariamente as ilhas Ryukyu. Além disso, sabemos que, anteriormente, Yang Zai tinha servido os inimigos dos Ming, ou seja, tinha trabalhado para a corte mongol. Os mongóis, também sabemos, tinham tentado ocupar Taiwan (Liuqiu) no final do século XIII, mas não o haviam conseguido. Esta combinação de acontecimentos e factos levou a uma suposição notável: Provavelmente, devido à sua carreira anterior, Yang Zai tinha uma má reputação aos olhos de alguns oficiais Ming. Por conseguinte, foi enviado numa missão difícil – para Taiwan e não para as Ryukyu. Difícil, porque não existia nenhum estado ou entidade política na ilha de Taiwan com o qual ele pudesse ter estabelecido relações bilaterais. Assim, ele simplesmente navegou para Okinawa e, quando voltou, afirmou ter estabelecido com sucesso contactos oficiais com “Liuqiu”, deixando em aberto para onde tinha ido.
Se esta teoria estiver correcta, então podemos acrescentar outro ponto curioso: Desde o início do período Ming, encontramos três nomes em textos escritos chineses: Liuqiu 琉球, Da Liuqiu 大琉球, e Xiao Liuqiu 小琉球. Os seus últimos equivalentes portugueses foram Léquias, Léquia Grande e Léquia Pequena. Paradoxalmente, os primeiros textos Ming utilizam a versão Da Liuqiu para Okinawa e as ilhas Ryukyu na sua totalidade, enquanto Xiao Liuqiu significava Taiwan. Paradoxalmente – porque Taiwan é muito maior do que as ilhas Ryukyu. Pode-se acrescentar, Liuqiu continua a não ser específico. Pode significar ambos ou referir-se a apenas a um local.
Como ligar tudo isso a Yang Zai? Provavelmente, após a abertura de relações formais com uma – ou várias – das três entidades políticas de Okinawa, o próprio Yang, ou os seus apoiantes na corte, fez circular o nome Da Liuqiu / Grande Liuqiu para sublinhar o peso das suas realizações diplomáticas, e para polir a sua reputação. Se essa suposição for verdadeira, então podemos dizer que a abertura de relações diplomáticas entre as Ryukyu e a China dos Ming assentou numa constelação política complicada, alguns erros, possíveis intrigas dentro da corte chinesa e ambições pessoais. Claro que a corte Ming deve ter percebido o problema geográfico e do nome muito rapidamente, mas como as três entidades políticas de Ryukyu provaram ser vassalos muito leais nos anos vindouros, o nome não importava muito.
Nos anos 1420, Okinawa tornou-se uma entidade política unida com apenas um rei. As relações oficiais com a China continuaram da mesma forma cordial que antes. Ryukyu enviou regularmente embaixadores à corte Ming e os navios tributários de Ryukyu trouxeram enxofre, especiarias do sudeste asiático, e cavalos – tudo muito necessário na China. Fontes também nos dizem que as Ryukyu mantinham então boas relações com o Japão e a Coreia. Além disso, a China apoiou grandemente o pequeno reino de muitas maneiras. O apoio foi principalmente organizado pelos habitantes de Fujian. Curiosamente, também não houve qualquer disputa territorial. As Ilhas Diaoyu 釣魚 encontravam-se fora do domínio de Liuqiu. Estudiosos chineses têm produzido muitas provas disso.
Muito mais tarde, o Japão invadiu as ilhas Liuqiu e as coisas começaram a mudar. Tendo em conta a disputa em curso sobre as Ilhas Diaoyu, a importância militar de Okinawa nos nossos dias, e a situação actual dos habitantes das Ryukyu, pode ser aconselhável e bastante útil, de facto, pensar melhor nos tempos de paz, de que esta parte do mundo desfrutou durante grande parte do período Ming, a partir de 1372. Assim, 1372 é um ano para recordar.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores.

12 Out 2022

Mestre de dez mil gerações

Confúcio hoje? Mas que estratagemas singulares terá desencantado Mestre Kong para renascer, fénix uma e outra vez teimosa, das cinzas vermelhas da Revolução Cultural, como renascera dos escombros cinzelados da dinastia Qin? Onde encontra este pensamento, idoso de 2500 anos, a sua provada resiliência e como consegue ser suficientemente jovem e flexível para se reafirmar hoje no seio da cultura que rectificou e, ao mesmo tempo, estender a sua influência mais além?

Confúcio nasceu em Qufu, na província de Shandong, então reino de Lu, no dia 28 de Setembro de 551 a.E.C., nessa China imperial de antanho, ao que dizem produto de uma tempestade e de uma promessa.

No princípio era o mito

Seria um das primeiras tardes do ano de 551 a.E.C., quando o céu sobre cidade de Qufu, no reino de Lu, subitamente se cobriu de nuvens negras. Em breve ribombavam trovões e raios fendiam o céu enfurecido. Uma chuva grossa, açoitada pelo vento, tudo atingia e ensopava. Em suma, em meros minutos, montara-se uma tempestade pouco menos que perfeita.

Zhengzai, menina caçula da família Yan, regressava a casa, após tarde de passeio pelas colinas, onde solitária colhera ervas e plantas medicinais. Surpreendida pela inesperada tormenta, não encontrou outro refúgio senão uma simplória cabana de trabalhadores, edificada não longe da estrada. Ainda Zhengzai procurava meio de ali passar confortavelmente algum tempo, quando um homem desconhecido assomou à porta do tugúrio, também carente de abrigo daquela e de outras tempestades.

E foi ali, naquela choça indigna de nota, sob o signo de uma terrível procela, que Zhengzai terá concebido o filho de Kong He, a quem foi dado o nome de clã Kong Qiu, o epíteto de cortesia Zhongni e que viria a ser conhecido como Mestre Kong (Kong Fuzi), latinizado Confucius pelos padres jesuítas, um dos mais influentes pensadores que calcorreou o planeta Terra.

Kong He era um magistrado de 65 anos e fraca descendência masculina (tinha gerado nove filhas com a sua esposa principal e um filho deformado com uma esposa secundária). Face às esperanças de Zhengzai, tudo prometeu lhe proporcionar – riquezas e requintados confortos – caso nascesse um rapaz saudável, o que veio a suceder. Contudo, reza a lenda, logo se percebeu que não nasceria uma pessoa qualquer. Durante a gravidez, acontecimentos miraculosos eram sintomas, índices, augúrios, que de Zhengzai emergiria um grande homem, um excelso sábio, que todos encimaria e cujo destino se entrecruzaria com o da própria civilização chinesa.

Entre eles, destaca-se a aparição de um animal fantástico da mitologia chinesa, que reúne no seu nome qualidades de macho e de fémea: o qilin (unicórnio chinês).

Ora estava a mãe do futuro sábio entretida nos seus habituais afazeres, junto a casa, quando surgiu um qilin, que até seus pés caracoleou e aí depositou uma tablete de jade, onde era profetizada a grandeza futura do seu filho.

No dia 28 de Setembro, nascia Confúcio.

O qilin, entretanto desaparecido, voltaria a surgir na história quando, pouco antes da morte de Mestre Kong, se espalhou um relato segundo o qual uma destas quimeras fôra atropelada por um carroceiro destravado e se encontrava ferida, algures a recuperar.

Independentemente da veracidade desta narrativa inicial e iniciática, eivada de elementos míticos e esotéricos, alguns de inspiração budista, a vida de Confúcio revelar-se-ia uma odisseia atribulada. Pouco depois do seu nascimento (há quem diga no dia seguinte e há quem afirme três anos depois), o seu pai, talvez exultante de alegria, sucumbiu a um achaque e viu-se assim incapaz de cumprir a prometida subsistência de Zhengzai. Esta, entretanto, perdera o seu próprio pai e viu-se então reduzida a uma situação de extrema pobreza. Contudo, arranjou forças para sustentar e educar esmeradamente o seu filho. A tempestade passara e a promessa ficara por cumprir.

Depois veio o sábio. Mais tarde, já homem de seis pés de altura, um tamanho que causava profunda impressão, e sábio reconhecido, especialista nos ritos, Confúcio tentou colocar os seus préstimos ao serviço dos governantes, mas encontrou sempre grandes resistências, sobretudo por parte de ministros que entendiam desfavoravelmente o rigor das suas doutrinas e as consequências dos seus procedimentos. Conseguia ainda assim vaguear de reino em reino, como professor, conselheiro, mestre ou ministro, atraindo cada vez mais discípulos. No entanto, nunca manteve os seus cargos políticos durante um período suficientemente longo para permitir uma extensa avaliação do seus métodos. Foi sempre, em geral, coarctado pela inveja e pelas intrigas de quem rodeava os detentores do poder ou pelas manobras de outros reinos que temiam que o seu bom governo fizesse prosperar demasiado os seus rivais (Sima Qian, 1985, 47).

Tal como Sócrates e Jesus, Confúcio não deixou obra escrita e os seus ensinamentos chegam-nos através dos seus discípulos e comentadores. O Grande Mestre considerava-se, sobretudo, um editor e um transmissor de uma sabedoria esquecida. Face à decadência da dinastia Zhou e à ambição de cada um dos reinos que então constituíam o império, Confúcio propunha um regresso aos modos iniciais da dinastia e, sobretudo, ao exemplo dos grandes homens de Estado como os reis Yao e Shun, o rei Wen e o duque de Zhou. Com o objectivo de transmitir esse saber do passado, reorganizou Os Cinco Livros (Wujīng), que viriam a constituir o nódulo essencial da cultura chinesa clássica: Livro das Mutações (Yijing ), Livro das Odes (Shijing), Livro dos Documentos (Shujing), Livro dos Ritos (Lijing ) e Anais da Primavera e do Outono (Chūnqiū).

Os Cinco Livros, também crismados pelo Ocidente de Pentateuco da cultura chinesa, tornaram-se desde então na referência essencial da aprendizagem e da educação na China, servindo de biblioteca abarrotada de exemplos de uma sabedoria imbuída no comportamento e procedimentos de pessoas exemplares, versando da política à família, da explanação ritual à história, da adivinhação às práticas agrícolas, e até como manual de etiqueta e civilidade.

Mais tarde, já em plena dinastia Han do Oeste, os exames imperiais foram fundamentalmente baseados no conhecimento e capacidade de interpretação destes textos, seleccionados e editados por Confúcio.

O eclodir da obra

Depois da morte de Mestre Kong, num primeiro período, os discípulos e descendentes divulgaram com relativa facilidade as suas ideias, que rapidamente encontraram eco na comunidade pensante da China.

Nos três séculos seguintes floresceriam várias escolas de inspiração confuciana e importantes pensadores basearam-se nas suas ideias, como Mêncio ou Xunzi, cujas obras permanecem referências incontornáveis e inesgotáveis, ao longo dos tempos sujeitas a novas interpretações.

As divergências entre eles, na interpretação do pensamento do Mestre, surgem como um reflexo da complexidade de um saber, de uma via profícua, que conheceria numerosos desenvolvimentos ao longo da história do pensamento chinês.

Mas se, durante este período, os ru1 eram bem recebidos nas casas reais, com o advento da dinastia Qin (221-206 a.E.C.) ganharam extraordinária força as ideias ditas “legistas”, uma outra corrente filosófica chinesa, ferozmente oposta aos conceitos eleitos por Confúcio. Pela primeira vez, o confucionismo foi considerado como “inimigo do Estado”, os livros queimados e os seus seguidores ferozmente perseguidos.

É preciso compreender que Confúcio vivera durante o regime imperial extremamente débil da dinastia Zhou, em que os senhores locais, numa espécie de feudalismo, se encontravam dotados de grande autonomia. De algum modo, as ideias confucianas destinavam-se à interpretação e prática deste tipo de organização política e social, e não às necessidades de um Estado ferozmente centralizado, como preconizava e implementou a dinastia Qin, que pela primeira vez unificou a China.

Além disso e fulcral, temos a questão da cabra.

Vejamos:
O duque Ye disse a Confúcio: “No meu país um homem recto cujo pai roubou uma cabra denunciou o progenitor às autoridades.” Ao que o Mestre respondeu: “Os homens rectos no meu país são diferentes: o pai protege o filho e o filho protege o pai, isto é rectidão.” (Analectos, 13:8)

Como se pode deduzir deste aparentemente inocente episódio da cabra roubada, contudo de trágicas consequências, Confúcio revela dar mais importância à família do que ao Estado e colocar em primeiro lugar as relações familiares e clânicas face ao dever de servir o reino. O Mestre vai ainda mais longe: para proteger a família, poder-se-á mesmo ignorar a lei e ir contra a vontade do soberano. Ora tais propósitos não podiam cair bem junto de quem pretendia fazer da lei e da centralização do poder o sustentáculo máximo da governação, o que era o caso de Qin Huangdi, primeiro imperador da dinastia Qin.

A sabedoria confuciana seria, no entanto, salva da fogueira legista. Reza a lenda que alguém conseguiu esconder os principais escritos (incluindo Os Cinco Livros, as obras de Mêncio e de Xunzi) no interior de um muro, a famosa parede de Lu, que terá pertencido à casa original de Confúcio, hoje parte do Templo do Mestre em Qufu, donde foram recuperados após o advento da dinastia Han (205 a.E.C-224), durante a qual os ensinamentos dos ru foram de novo apreciados, estudados, complexificados e difundidos. Com os Han, o ruismo ganhava contornos de ortodoxia, pois encontrava-se agora ao serviço do Estado.

Contudo, nas dinastias seguintes, especialmente durante a dinastia Tang, a chamada intromissão de crenças estrangeiras, nomeadamente budistas, e a influência do daoísmo mágico, foram relegando o confucionismo para uma posição secundária. Nas cortes, os ru voltavam a perder posição e influência. Esta situação viria a causar uma forte reacção, com o advento da dinastia Song, originando o que se convencionou chamar de “neo-confucionismo”, ou seja, uma rejeição quase liminar do budismo e do taoísmo, acompanhada de um expressivo renascimento da ideias confucianas, agora reordenadas, reeditadas e reinterpretadas segundo os sábios desta dinastia, nomeadamente pelos dois Cheng, os irmãos Cheng Yi e Cheng Hao. Entre os seus seguidores, destacou-se Zhu Xi (1130-1200), que repensou e reorganizou o cânone confuciano, nomeadamente através da edição d’ Os Quatro Livros (Estudo Maior, Prática do Meio, Analectos e Mêncio), que viriam a ser a base incontornável do pensamento chinês tal qual o Ocidente o encontrou no século XVI, sob a lupa dos padres jesuítas, os seus primeiros tradutores para línguas europeias.

Assim, operara-se uma mudança fundamental: enquanto que, até à dinastia Song, os estudos e os exames se baseavam fundamentalmente n’ Os Cinco Livros, algum tempo depois de reconhecido e apreciado o trabalho de Zhu Xi, a cultura chinesa conheceria uma reorganização dos seus textos de referência. Nela assumia agora lugar preponderante a formação ética da pessoa por oposição ao sublinhar da importância dos ritos.

Os Quatro Livros passaram a ser a base dos exames imperiais e regularam o ethos chinês desde então até ao século XX. E, mesmo rejeitados e de novo queimados, pelas correntes modernas novecentistas ou pelo radicalismo dos Guardas Vermelhos, estes volumes continuam a encerrar os valores e ditames que ainda hoje regulam o comportamento e formam a culpabilidade de muitos milhões de pessoas.

Daí que tenhamos entendido como fundamental para o leitor contemporâneo empreender a publicação dos referidos volumes em língua portuguesa, pois neles se revelam as doutrinas que constituem a mais importante raiz não apenas do actual pensamento chinês como da modulação de comportamentos e práticas existentes na China e noutros países influenciados por esta corrente do pensamento.

O confucionismo é hoje uma das doutrinas mais presentes e realmente praticadas em todo o planeta. A sua influência não somente enforma a sociedade chinesa, com os seus 1,4 mil milhões de pessoas, como se espalhou a outras civilizações asiáticas onde desempenha um papel central (como a Coreia, Japão, Vietname e Singapura) ou constitui uma importante influência (como a Tailândia, Indonésia, Laos, Camboja e Malásia). Fazendo as contas, o confucionismo constitui a base moral de mais de um terço da humanidade e, com o crescimento da importância da China no palco mundial, a sua expansão não deverá ficar por aqui. Aliás, os indicadores do século XXI revelam que alguns aspectos da “moral oriental” tendem a emigrar para Ocidente e a “contaminar” as sociedades ocidentais, de matriz greco-romana, com os seus valores, tal como estas desde o século XVI têm “contaminado” o Oriente. Eis mais uma razão para do confucionismo fazer um estudo de eleição, no sentido de compreender, ao extremo, estas “viagens de ideias” e antecipar as suas consequências, para um lado e para o outro.

É a moral, pois claro!

Em palavras contemporâneas, diríamos que, para Confúcio, o homem é, antes de mais e de tudo, um produtor de moral. Sabe distinguir o bem do mal e encontra-se dotado de livre arbítrio. Estas qualidades distinguem-no dos animais e de todos os outros seres. Portanto, daqui advém também a sua responsabilidade, o dever de incorrer em acção correcta, de modo a criar um mundo em que prevaleça a harmonia.

Assim, o modo como se apresenta, como se veste, como anda e como fala; o que diz, o que lê, o que desenvolve como actividade, o que produz e como se dirige aos outros; enfim, toda e qualquer acção humana (e mesmo a ausência dela) é imediatamente produtora de valores morais (e, num plano superior, estéticos), quer como exemplo para os outros, quer a partir dos resultados das práticas concretas.

De sublinhar que, ao contrário de Sartre (para quem “o inferno são os outros”), Confúcio só entende o homem em relação com outros homens, como animal gregário, social e cultural. Para ele, a vida são os outros e este é um facto incontornável. Dos desígnios do Céu, do mundo, da vida depois da morte, dos espíritos, pouco ou nada sabemos e de nada podemos ter a certeza. Por isso, antes de mais, devemos regular o que podemos controlar: as nossas relações humanas e sociais.

O confucionismo é um pensamento moral e ético, que visa uma prática, destinado a contribuir para uma excelsa regulação das relações entre os homens e destes com o mundo. Pensamento político, com certeza e, em grande parte, destinado aos que exercem o poder, no sentido de os convencer da necessidade imperiosa de autovigilância, virtude e benevolência nas suas acções, o confucionismo cedo ignora a metafísica e se centra na regulação dos assuntos humanos.

O objectivo do confucionista é tornar-se uma pessoa exemplar (junzi), ou seja alguém cujo comportamento é de tal modo virtuoso e benevolente que os outros naturalmente o seguirão. Mas como atingir este estado de exemplaridade? Para os ru, o homem nasce dotado de uma “luminosa virtude”, que lhe é conferida, homologamente, pelo Céu. Mas, ao longo da sua vida, ao roçagar pelos constrangimentos sociais e com a emergência dos desejos egoístas, a sua natureza original gradualmente se esvai, sendo então necessário recuperá-la.

Como fazê-lo? Várias escolas indicam diversos caminhos mas, fundamentalmente, todos concordam que tal se efectua pelo “cultivo de si” (xiushen). Quer este “cultivo de si” signifique a aquisição de conhecimento, “a investigação das coisas”, como querem uns, ou meramente “a rectificação do coração” e “tornar íntegros os pensamentos”, como sugerem outros, o cultivo de si representa no confucionismo o esforço individual, o dao de cada um, para atingir a plena prática de ren. Neste sentido, o cultivo de si, embora deva ser feito através do estudo, permanece como um trabalho constante do indivíduo no sentido de rectificar constantemente o seu coração, tornando os seus pensamentos eficazes e autênticos (cheng). É neste sentido que no Estudo Maior (Da Xue) surge escrito: “Na banheira de Tang, fora gravado: “Renova-te com rigor dia após dia. Que haja uma renovação diária.”

A necessidade de renovação contínua inscreve-se num permanente acompanhamento do devir do universo. Zhu Xi prescreve-a, através da inscrição da banheira de Tang e da comparação higienista. Esta funciona em dois planos: primeiro, a urgência de continuamente renovar a investigação das coisas e os seus princípios, por estarem permanente transformação; segundo, a eliminação das máculas que o exterior vai traçando em cada natureza original3. Finalmente, sublinha a importância de uma constante atenção: “É impossível admitir, ainda que por negligência, um intervalo ou uma interrupção”.

Por outro lado, a eficácia destes procedimentos passa em grande parte pela compreensão e a execução dos ritos, na medida em que estes proporcionam o modo correcto de proceder.

Qualquer pessoa pode afinar o seu comportamento vergando-o à execução dos ritos. O rito é uma via segura para o discorrer da acção. Assim, por exemplo, ao entrar numa sala, a criança sabe de antemão, se conhecer o rito, quem deve cumprimentar em primeiro lugar e como se dirigir de forma apropriada a cada um dos presentes, consoante a sua posição social e/ou familiar. Assim se evita o erro e se mantém a harmonia.

Eficácia até ao fim?

A postura de Confúcio face ao saber (afinal, o que podemos conhecer?) foi determinante para o pensamento chinês como a de Sócrates para o pensamento ocidental. Neles detectamos propósitos semelhantes e gigantescas diferenças.

De facto, ambos transformaram o pensamento do seu tempo numa “antropologia”, ao fazerem do homem o centro das suas preocupações. Sócrates desprezava tanto o discurso sobre o cosmos, querido aos sofistas, como Confúcio ignorava o que não fosse relações humanas. Contudo, o Mestre de Dez Mil Gerações emitia um pensamento voltado para a “eficácia” e não para a descoberta da “verdade”, já que quanto a essa, tão querida à “parteira grega”, entendia que cada família, cada grupo, cada pessoa teria a sua e isso interessa muito pouco ao modo como nos relacionamos uns com os outros. A verdade exclui e por isso é criadora de conflitos e desarmonia.

Metafísica, vida depois da morte, a existência dos deuses e dos espíritos, a sacralidade do Céu e da Terra, nada disto realmente preocupava Confúcio, já que o que ele via, o que ele vivia e ressentia era o quotidiano dos camponeses e as iniquidades dos senhores, os esforços dos letrados e o desprezo pelo saber dos ocupantes das cadeiras do poder, cujo comportamento vicioso, distanciado dos princípios morais, impedia o estabelecimento da harmonia e de um governo justo para todos os homens.

Eficácia ao invés de verdade, Li em vez de logos — narra a história deste pensamento que, para plenamente se exercer, não se satisfaz com o respeito à moral social vigente mas obriga a uma profunda interrogação ética. É certo que muitos atribuem (e bem) ao ruismo uma inclinação para o conformismo social, como se cada um devesse ficar satisfeito com o lugar que o destino lhe atribuiu na sociedade e, consequentemente, respeitar os poderosos. E, claro, o poder soube ao longo dos tempos aproveitar-se dos aspectos mais “reaccionários” da sua obra ou o confucionismo não teria sido incensado e servido de cartilha em numerosos momentos da história chinesa.

Mais recentemente, vários pensadores chineses reinterpretam o confucionismo enfatizando aspectos que lhes permitem hierarquizar os “direitos colectivos” acima dos “direitos individuais”, os “deveres” para com a comunidade acima dos “direitos de cidadania” e, sobretudo, recusar a ideia de indivíduo — isolado e considerado independentemente de outros membros da sua sociedade — adaptando este pensamento à ideologia hoje reinante na China em que o Estado sobremaneira controla e regula a cidadania (Chen Lai, 2014).

Será mesmo assim ou a leitura dos textos originais abrirá portas que permitem outras interpretações e conclusões? Estamos perante uma doutrina “reaccionária”, “nacionalista”, “só para orientais”; ou conterá virtualidades, como a “benevolência, integridade, rectidão, harmonia, cultivo de si e virtude”, que lhe permitirão tornar-se num pensamento global?

Certo é que entender Confúcio é entender a China de ontem, de hoje e de amanhã. E, nesse entendimento do confucionismo, na sua reavaliação e actualização, residirá grande parte da resposta à pergunta: que papel desempenhará o pensamento chinês no futuro da humanidade e que consequências daí advirão?

 
Notas

1 Ru significa “letrado”, “culto”, e é utilizado para pessoas, ideias ou coisas relacionadas com os pensamentos e as práticas derivadas de Confúcio. No passado, ru era, por exemplo, o conjunto dos letrados confucionistas que ensinavam ou aconselhavam os governantes e as suas famílias. Segundo Zhou Youguang, o pai do pinyin, ru originalmente referia-se aos antigos métodos utilizados pelos xamanes nos rituais, mas depois de Confúcio tornou-se na designação para os que espalham as suas ideias e educam o povo. Alguns pensadores contemporâneos rejeitam mesmo o termo “confucionismo”, por ser de origem europeia, e propõem que as doutrinas relevantes sejam chamadas de “ruismo” e os seus seguidores “ruistas”, por entenderem que tal é mais fiel ao original chinês.

2. Legge escreve não ter encontrado em qualquer outro documento referência alguma a esta citação, gravada na banheira de Tang, fundador da dinastia Shang. Admite que terá sido recolhida da sabedoria tradicional. Legge, James; THE FOUR BOOKS, The Great Learning; Culture Book Co.; pág. 10.

3. Natureza (xing) significa fundamentalmente “natureza humana”, apesar de Zhu Xi a generalizar a todos os seres. O Céu confere ao homem a sua natureza que necessita, no entanto, de ser regulada através da educação porque ao longo da vida ela é, geralmente, desvirtuada. Portanto, a natureza humana é entendida como tendo um carácter transcendental, na medida em que é decorrente do Céu. Segundo o comentário de Zhu Xi, Zisi transmite neste capítulo as bases da concepção confuciana do mundo, começando por referir a origem celeste da Via e a sua imutabilidade. O homem encontra-se plenamente munido desta realidade substancial e não a pode abandonar.

Ao apresentar na mesma frase quatro noções interligadas – Céu, Natureza Humana, Via e Educação, este livro lança os fundamentos da cultura filosófica chinesa: a realidade da natureza moral do homem encontra o seu fundamento no Céu; para se manter na Via, deverá ser empreendido o cultivo de si (regresso à natureza original/celeste), através da educação. De notar ainda que existe uma homologia (uma mesma estrutura) entre Céu e Natureza Humana, o que justificará o desenvolvimento ao longo de todo o pensamento chinês (nomeadamente, entre os letrados) de uma “ontologia” moral.

A moral encontra aqui um princípio natural e universal, que é inalterável, coerente e espontâneo. O que poderia, em termos de filosofia ocidental, ser considerado unicamente transcendente, absorve aqui a noção de imanência. A moral não vai contra a natureza humana; pelo contrário, ela é um “estado natural” do homem, sendo pervertida pelos acidentes da existência e pelo egoísmo de cada indivíduo. A natureza humana (moral) é dada, mas não realizada. Para a realizar, há que recorrer à educação/cultivo de si.

11 Out 2022

Manuel Fernandes Rodrigues – Preservar a identidade: Uma história da cozinha macaense

Por Manuel Fernandes Rodrigues*

 

Quando se pergunta a um macaense porque é que ele ou ela sente macaense, as respostas variam. Alguns dirão que se sente parte da vida da comunidade e dos encontros sociais. Outros colocarão ênfase nas tradições e costumes. Um terceiro grupo reivindicará a influência de uma educação religiosa ou de ter estudado em português.

Apesar destas diferentes razões, os macaenses concordam que a comida macaense com os seus pratos icónicos e representativos, a maioria dos quais receitas centenárias, é única. A cozinha macaense identifica e preserva a história dos macaenses, tornando-os um grupo distinto de qualquer outro grupo ou etnia. A gastronomia macaense é uma afirmação da identidade macaense.

A cozinha representada pelos pratos da tradicional Sentá Mesa e Chá Gordo são passos numa viagem marcada por séculos de história e interacção social entre os macaenses que forjaram e consolidaram a sua identidade.

Isto levanta a questão de saber porque razão os acontecimentos históricos por si só não constroem um sentimento de pertença nem criam uma memória colectiva. Não houve contribuição dos portugueses que governaram Macau durante séculos? Não houve influência dos chineses, japoneses ou outras influências orientais no desenvolvimento da identidade macaense? Obviamente, houve um impacto das culturas portuguesa, chinesa, japonesa e de outras culturas orientais que enriqueceu a identidade macaense. A partir desta interacção, a cozinha macaense evoluiu, um processo semelhante a outras culinárias no mundo. Por exemplo, o esparguete, inquestionavelmente de origem oriental, é hoje reconhecido como genuinamente italiano.

Os pratos da cozinha macaense permitem aos macaenses conhecer a origem histórica por detrás de cada prato. Abrem uma janela para revisitar a história e examinar a maquilhagem e o desenvolvimento deste grupo étnico.
As receitas da cozinha macaense são extraordinariamente ricas e, como investigador, considero-as um arquivo vivo da história macaense.

Daí,
miçó cristão (miso cristão) mostra a influência dos cristãos japoneses e Filhos da terra (descendentes de homens portugueses casados com mulheres locais) de Nagasaki atestando uma identificação católica.
Galinha di português retrata a associação de Filhos da terra e contrabandistas chineses numa guerra contra os holandeses para que Timor pudesse continuar a ser português.
Minchi, o prato icónico dos cristãos japoneses exilados e esquecidos e Filhos da terra de Nagasaki e outras cidades do Japão que ajudaram a construir a igreja de São Paulo, hoje um símbolo reconhecido de Macau.
Peixe têmpora, conhecido entre os macaenses como peixe temp’ra, foi levado para o Japão pelos jesuítas no século XVI, tornando-se tempura, o prato mais conhecido da cozinha japonesa. Peixe têmp’ra foi também levado para a região portuguesa da Extremadura por marinheiros e monges que regressaram, tornando-se peixinhos da horta com feijões verdes de forma semelhante aos pequenos peixes, um substituto do biqueirão original utilizado em Macau.
Balichã ou balichão, uma pasta de camarão desenvolvida por mulheres macaenses, foi posteriormente adoptada pela cozinha chinesa. Foi descrita por Austin Coates, um historiador britânico, como uma contribuição importante para a cozinha do Oriente.

Alguns pratos macaenses são apresentados por alguns autores como adaptações de antigas receitas portuguesas utilizando ingredientes locais. Os exemplos seguintes são uma ilustração limitada sobre como as semelhanças entre pratos podem levar a conclusões que a história contradiz:

Sarã surabe, um bolo macaense é apresentado como sendo baseado na receita de fatias da China. Fatias da China aparece em Portugal por volta de 1876. O nome foi alterado no final do século XIX para Fatias de Tomar.

Vale a pena notar que sarã surabe, significa ninho de pássaro no bazar malaio. Aparece primeiro em Macau durante a segunda metade do século XVI, mais tarde levada para a região da Extremadura em Portugal por monges e tripulantes de navios que regressam. Chamavam ao bolo fatias da China, uma lembrança da Cidade do Nome de Deus na China, como a cidade de Macau era conhecida em documentos portugueses mais antigos.

Pan pan di mamã (pão da mãe) foi mostrado com base na receita do pão de Deus que aparece nas padarias portuguesas no último quartel do século XIX. No entanto, o pan di mamã é descrito em pormenor em Ou-Mun Kei-Leok (澳門記畧), o mais importante e completo repositório chinês de observação factual e costume de Macau publicado em 1775, como um pão de origem macaense.
Chau chau parida é um prato fortificado dado às mulheres após o parto. Uma sopa ou canja é mencionada no Colóquio dos simples e drogas e coisas da Índia de Garcia da Horta, publicado em Goa em 1563. A receita de Chau chau parida, contudo, é feita com ingredientes indicados na Farmacopeia Chinesa de Matéria Medica (本草綱目 Pun Ch’ou Kóng Môk- Princípios e Espécies de Raízes e Ervas) compilada por Lei Si-Tchân entre 1552-1578 e distribuída pela ervanária em Macau. Embora com o mesmo objectivo, os ingredientes e os métodos de cozedura são diferentes.

– Arroz doce é considerada hoje uma sobremesa portuguesa quintessencial e está incluído no livro de cozinha de Domingos Rodrigues publicado em 1680 com o nome de arroz doce do Japão e no livro de cozinha de João da Mata de 1875 como simplesmente arroz doce. No entanto, o arroz doce do Japão, como o nome indica, é uma receita trazida do Japão, em primeira mão, pelos jesuítas, que estavam baseados em Macau, a porta de acesso ao Japão e o porto terminal para os barcos do comércio Japão-Macau. Esta receita foi levada para Macau no século XVI por famílias cristãs japonesas e Filhos da terra e depois transmitida aos comerciantes portugueses que, por sua vez, levaram a receita para Portugal. Este é um facto histórico. Curiosamente, a receita mais antiga de arroz doce em Portugal é conhecida como arroz doce bairradino, considerado como o mais fino devido ao grande número de gemas de ovo utilizadas e à ausência de leite. A ausência de leite na receita é idêntica à do arroz doce macaense, que era um mingau de arroz cremoso e suave pela mistura de gemas de ovo, depois adoçado com açúcar e polvilhado com canela.

Muitas tradições culinárias macaenses continuam vivas hoje em dia, dando-lhes a oportunidade de reviver os sabores e as ocasiões, reforçando o sentimento de pertença. Chá Gordo é uma conhecida tradição macaense e uma obrigação em qualquer celebração no Natal, Páscoa, baptismos ou qualquer outro evento especial.
Chá Gordo é uma tradição associada à refeição substancial servida no dia de Natal em 1563, nas horas da Ave Marias, 18.00 horas, em Firando, hoje Hirado, na Prefeitura de Nagasaki. Evoluiu para um banquete com 6 a 18 pratos diferentes servidos geralmente à tarde, por volta das 18 horas, consistindo em:

– Aperitivos tais como apa-bico, apa-mochi, mochi, ladu, bolo de nabo, pan di minchi e chilicotes;
– Os pratos principais incluem bafassá de porco, tâcho/chau-chau pêle, galinha di português, chicu di porco, lacassá, congee, mela-miçó di porco e o icónico prato de minchi e arroz branco representando tenacidade e sucesso.

– Molhos, tanto quentes como vinagres, como o chili-miçó, miçó-christãn e os diferentes tipos de achar (prato vinagroso) feitos com gamên, limão, estrela de fruta e outras frutas da época para limpar o paladar e estimular o apetite.
– As sopas incluem imbigo di frade, abobra-verdi e abobra cambalenga.
– As sobremesas são compostas por chácha, uma sopa doce, pudins como bagi, chawan-no-mushi, e “ovos de aranha” seguidos de bolos feitos com receitas antigas e apreciadas como o celicário, bolo minino e sarã-surabe.

Todos estes pratos contêm factos históricos e tradições sociais associadas a um sentido macaense de identidade. A origem histórica e social por detrás do minchi está ligada ao Édito emitido por Shogun Tokugawa em 1614 expulsando os cristãos japoneses e os Filhos da Terra que não rejeitaram a fé católica. Em 1623-24, homens portugueses (pais, maridos, irmãos e filhos) foram expulsos do Japão. Em 1627, nobres militares japoneses (samurais) e as suas famílias foram entregues aos barcos portugueses destinados a Macau. Em 1636, mulheres casadas com homens portugueses e as suas filhas foram exiladas para Macau. Esta migração forçada aumentou substancialmente a população local em Macau, levando a povoações no bairro de São Lázaro e outras áreas fora das muralhas da cidade, conhecida como Campo, uma área que se estende até às Portas do Cerco, que marca a fronteira com a China.

A sobrevivência destas povoações não estava assegurada e o minchi tornou-se um elemento básico nestas condições extremamente difíceis. Esta é a razão pela qual o minchi, na psique macaense, é um legado dos exilados e esquecidos, um prato emblemático representando a tenacidade e o sucesso do povo macaense.

A sopa Imbigo di frade é uma oferta de acção de graças a São Francisco Xavier, apóstolo do Japão e padroeiro de Macau, pela sua protecção durante as tempestades sofridas pelas tripulações da frota comercial macaense, que por vezes passavam anos no comércio marítimo, escalando vários portos do Oriente, antes de regressarem a Macau cuja população dependia exclusivamente do comércio marítimo para sobreviver.

Uma missa de Te Deum, seguida de uma procissão, era realizada anualmente, como mostra de gratidão na igreja de São Paulo, construída com os lucros do comércio Macao-Japão e do trabalho dos cristãos japoneses e dos artesãos Filhos da terra. A 10 de Dezembro, esta procissão percorria as ruas do Monte, um bairro em redor da Igreja de São Paulo, após o que era servida uma refeição reconfortante com sopa Imbigo di frade. A pirataria e o clima tempestuoso eram riscos perigosos para os que se encontravam no navio. Muitos naufrágios atestam este facto, como escrito por Frei José Jesus de Maria no seu manuscrito de 1740-45 intitulado Azia Sinica e Japonica, Macau conseguido e perseguido, que Macau era uma cidade de mulheres destituídas.

O período histórico e social da guerra contra os holandeses no século XVII aponta para a origem do bagi e do celicário. A derrota e subsequente expulsão dos portugueses e Filhos da Terra de Makassar, em 1660, reforçou a sensação de derrota causada pela queda de Malaca, em 1641. Makassar era, na altura, o centro mais importante do comércio intra-asiático no leste do arquipélago malaio com uma importante comunidade portuguesa e Filhos da Terra. Esta população derrotada escolheu instalar-se em Macau porque, na altura, era uma cidade governada por cidadãos eleitos, separada do governo do Capitão-General nomeado pelo Vice-Rei em Goa.

Em 21-22 de Julho de 1622, a marinha holandesa bem organizada e equipada invadiu Macau mal defendida. Graças a um tiro de canhão da Fortaleza do Monte disparado por jesuítas, as forças macaenses conseguiram subjugar os holandeses e alcançar a vitória. Para os macaenses esta tremenda vitória prevaleceu sobre todas as derrotas anteriores nas mãos dos holandeses e o bagi, um prato desenvolvido em Makassar, tornou-se o símbolo dos derrotados, mas não vencidos. Considerando a enorme disparidade entre as forças holandesas e macaenses, a vitória de 22 de Julho só podia ser atribuída à intervenção divina, uma crença da população macaense.

O Celicário reflecte a lenda do bem vencendo o mal representado pelos invasores holandeses a quem os chineses chamavam demónios ruivos (紅毛鬼 Hon môu kwei). Tornou-se um símbolo de unidade porque as pessoas deixaram de lado as suas diferenças para se unirem contra um inimigo comum.

Chilicote, um pequeno frito recheado de carne picante moída, desenvolvido por mães macaenses de Malaca, continua a ser a melhor expressão de hospitalidade. A origem deste prato remonta ao primeiro encontro entre as tripulações das caravelas portuguesas comandadas por Diogo Lopes Sequeira e os juncos chineses no porto de Malaca, em 1509. Este encontro proporcionou a base para uma longa amizade entre marinheiros portugueses e chineses que permitiu a Jorge Álvares aceder a cartas marítimas chinesas e embarcar num junco chinês para viajar até Tamão na China, onde um padrão com o brasão real foi erguido em 1514. Além disso, esta relação permitiu a Fernão Peres de Andrade visitar Cantão para assistir a uma feira em 1517. A partir desta data, os portugueses e os Filhos da Terra estabeleceram vários povoados na costa da China, levando ao estabelecimento de Macau em 1553-1555.

Para concluir e olhando para a história das populações, a gastronomia foi sempre um importante elemento de construção da identidade. A alimentação é uma presença constante e desenvolve-se juntamente com uma sociedade em mudança, ajudando a transmitir a experiência pessoal e comunitária, enriquecendo a sociabilidade e o sentido de pertença dos macaenses.

Olhando para a vida de outras comunidades étnicas, descobrimos que a alimentação, através de pratos emblemáticos, é um fio de continuidade na salvaguarda da identidade e de um sentido de filiação. O Kristang em Malaca, Larantuqueiros na Ilha das Flores, o Português Negro (Zwarte Portugueesen) de Batávia, hoje Jacarta, e o Indp-Português de Goa são testemunhos deste facto.

Entre os blocos de construção da identidade, a cozinha macaense continua a enriquecer e reforçar o orgulho de pertencer e ajuda a definir o que significa ser macaense.

 

Referências:
Boxer, C. R. (1959). The Great Ship from Amacon. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos.
Coates, A. (1978). A Macao narrative. Hong Kong: Heinemann Educational Books (Asia) Ltd.
Fróis S.J., Pe. Luís (1976). História de Japam. Lisboa: Biblioteca Nacional.
Maria, Fr. José de Jesus (1988) Ásia Sínica e Japónica. Macau: Instituto Cultural de Macau/Centro de Estudos Marítimos de Macau.
Rodrigues, M. F. (2015). A gastronomia como elemento de identidade: a culinária macaense. Lisboa: DAXIYANGGUO Portuguese Journal of Asian Studies Nº20 p. 67-88. Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa/ Instituto do Oriente.
______________ (2018). História da Gastronomia Macaense: Contributo para o reforço de uma identidade singular. Lisboa: Edições MGI.
______________ (2020). Macanese cuisine: Fusion or evolution? Macao: Review of Culture 62 p 17-25. Instituto Cultural de Macau.
______________ (2021). Macanese Heritage from Nagasaki. Macao: Review of Culture 65 p.82-91. Instituto Cultural de Macau.
_____________ (2021). O Chá Gordo Macaense: Análise histórica das narrativas sobre a sua origem. Lisboa: DAXIYANGGUO Portuguese Journal of Asian Studies Nº26. Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa/ Instituto do Oriente.
Teixeira S.J., Pe. Manuel, (1993). Japoneses em Macau. Macau: Instituto Cultural/ Comissão Territorial para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.

* Manuel F. Rodrigues, MA in Economics, York University, Toronto, Canada. Pós-graduações: University of Virginia and Michigan USA, e European College, Brugges, Belgium. Oficial reformado da Comissão Europeia. Economista na Ontario Energy Board. Ex-professor assistente na York University. Publicações recentes: artigos na Daxiyangguo – Revista Portuguesa de Estudos Asiáticos da Universidade de Lisboa e na Revista de Cultura do Instituto Cultural de Macau.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores.

10 Out 2022

Do Silêncio e do Vazio na poesia de Su Dongpo

O grande 蘇東坡Su Dongpo (1037-1101) não pára de nos surpreender. A sua vasta poesia, multifacetada nos temas, na abordagem ao real e ao fantástico, desdobra-se diante dos nossos olhos e sensibilidades, num painel distante e próximo de encantamentos e maravilhas. O vazio e o silêncio são temas caros à grande poesia chinesa. Eis quarenta caracteres de poemas de Su Dongbo, recriando o tema:

Vazio e silêncio (dois excertos)
欲令诗语妙
无厌空且静
静故了群动
空故纳万境

Para a maravilha do poema,
o melhor é o vazio e o silêncio.
Em silêncio, floresce tudo o que se move,
o vazio alberga dez mil imagens.

我心空无物
斯文定何间
君看古井水
万象自往还

O meu coração vazio, suportando coisa nenhuma,
não importam as comezinhas coisas do mundo.
Olhem a água de um velho poço,
dez mil imagens aparecem, desaparecem.

A propósito destes versos, do silêncio e da água no velho poço, escreveu He Qing, letrado chinês nosso contemporâneo:
“O vazio e o silêncio são considerados como o princípio primevo da poesia. Quanto mais vazio e silencioso um poema soa, mais valor estético ele ganha.
“(…) Pode-se imaginar esse silêncio, essa imobilidade, essa limpidez, essa frescura, essa profundidade temporal da água de um antigo poço, e imaginar que esta água silenciosa reflecte, serenamente, os vôos das aves, as viagens das nuvens, as vibrações da luz do sol, as oscilações das relvas e dos ramos das árvores, as mil cores da natureza. Nesta imagem poética reside não só a maior sabedoria chinesa, mas também o estado ideal da estética chinesa: permanecer ancorado no silêncio mais profundo e contemplar os movimentos mais íntimos do universo…” (He Ding, Images du Silence, Pensée et Art Chinois, Paris, L’Harmattan, 1999, pag. 79/80.)

7 Out 2022

Sentido de Justiça, por Ana Cristina Alves

por Ana Cristina Alves*

Heraclito ou Heráclito, o Obscuro, nasceu em Éfeso, antiga colónia grega da Ásia Menor (Turquia), em meados do século VI a.C. Pensa-se que fosse filho do Rei-Sacerdote de Éfeso. Segundo Diógenes Laércio, abdicou do trono, heranças e mordomias cedendo os direitos ao seu irmão. Tornou-se misantropo e era muito admirado pela sua sabedoria, embora fosse considerado um pensador obscuro e ele mesmo tivesse como meta a sabedoria, acreditando à semelhança de um dos seus sucessores na filosofia, Sócrates, que esta se encontrava além, pois quanto mais fundo se ia no conhecimento, tanto mais vasta era a consciência do horizonte desconhecido.

Abrigou-se por um tempo no templo de Ártemis, a deusa grega da caça, filha de Zeus e de Leto, irmã gémea de Apolo, personificava o espírito feminino independente. Depois tornou-se eremita nas montanhas, seguindo o mais estrito regime vegan, pois para a sua alimentação não contava com mais do que raízes e plantas.

Segundo Heraclito, na physis, ou natureza, o princípio gerador e regulador do cosmos expressa-se no fogo, imagem viva da justa transformação, numa realidade em devir, cujas mutações seguiam uma racionalidade dialética própria, um logos, razão do universo, viabilizador do todo organizado, ou seja, o cosmos, iluminado por esta razão à semelhança do fogo solar, dando visibilidade a todos os seres da terra. É dele o famoso aforismo: ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, porque tanto a água como o homem mudam incessantemente, estando e não estando; sendo e não sendo.

Considerava, portanto, que o pensamento tudo governava, incluindo a mudança, que geria de um modo tensional, donde resultava a harmonia, da oposição e da discórdia. Um outro aforismo célebre é: A guerra é a mãe e rainha de todas as coisas, alguns transforma em deuses, outros em homens; de alguns faz escravos, de outros homens livres.

Ainda que Heraclito reconhecesse a importância da guerra na lógica da organização do mundo, ele não era um guerreiro stricto sensu. O muito pouco que se conhece da sua biografia, leva a concluir precisamente o contrário.

Sabemo-lo vegetariano e eremita. Mas não é menos verdade que terá depositado os seus escritos à guarda da Deusa da Caça, no tempo que lhe era dedicado. Assim, seria um guerreiro sábio lato sensu, já que destacava a luta e a discórdia para a organização de um cosmos sempre em transformação dialética e racional, personificada pelo fogo terreno e astral, que com os seus ritmos e regularidades iluminavam o mundo.

Os escassos aforismos que nos chegaram de Heraclito aproximam-no, com alguma margem hermenêutica, do pensamento de Sunzi (孙子), que também terá vivido entre os séculos VI e V a.C., sendo o maior estratega da antiguidade chinesa, igualmente filósofo, a quem é, por tradição, atribuído o tratado de estratégia, a Arte da Guerra 《孙子兵法 Sūnzi bīngfǎ》. Este, talvez registado pelos seus discípulos, inaugura com o capítulo “Planear da seguinte forma” (Sunzi, 2001:2):

“Disse Sunzi: a guerra é uma questão de importância vital para o estado, uma questão de vida ou morte, uma estrada para a sobrevivência ou ruína. Assim é, um assunto que exige um estudo cuidadoso.” (孙子曰:兵者,国之大事,死生之地,存亡之道,不可不察也)

Ora, o estudo cuidadoso traduz-se numa exposição minuciosa da estratégia da guerra, cuja racionalidade deve ser analisada em profundidade, como sucede neste tratado de treze capítulos, que inicia com o Planear da Guerra, passando para Fazer Guerra, Ofensiva Estratégica, Formas e Disposições, Potencial; Pontos Fracos e Fortes; O Conflito; As Nove Variáveis; O Exército em Marcha; O Terreno; Os Nove Tipos de Terreno; O Ataque pelo Fogo, terminando em Utilização de Espiões.

Nada é deixado ao acaso, neste jogo de vida ou de morte. Os planos devem ser estudados em pormenor, as ações medidas, porque se está perante um assunto da maior gravidade, definindo-se o grande estratega como aquele que consegue evitar o conflito no terreno, a menos que seja realmente forçado a partir para ele. Os cinco fatores fundamentais para perceber a conclusão de uma guerra são (Sunzi, 2001:2): o dao (道 dào), “caminho”; o céu (天 tiān ); a terra (地dì); o comando (将 jiàng)e os regulamentos(法 fǎ ), sendo fundamental o primeiro, “o caminho”, definido em termos de “influência moral”. Oiça-se o estratega (Ibidem): “Pelo “caminho”, entendo a influência moral, ou o que leva a população a pensar da mesma forma que o soberano, seguindo-o em cada vicissitude, seja para viver ou para morrer, sem receio do perigo mortal” (道者,令民与上同意也。故可以与之死,可以与之生,而不畏危). Há, assim, uma justiça inerente ao próprio processo de desencadear e conduzir o conflito que muito influencia a derrota ou a vitória numa guerra. Um soberano, que não obtenha a confiança do seu povo, ou um general, que não se imponha moralmente aos seus militares, estarão condenados ao fracasso.

Não se espere, pois, que chefes injustos na distribuição de recompensas e castigos possam conduzir as suas tropas à vitória (Sunzi, 2001:7): “Para que eu possa prever qual dos lados sairá vitorioso, é preciso descobrir qual o soberano que possui mais influência moral, qual o general mais capaz, qual dos lados beneficia de mais vantagens do céu e da terra, quais as tropas mais bem armadas e treinadas, qual o comando mais justo na distribuição de recompensas e castigos” (曰:主孰有道?将孰有能?天地孰得?法令孰行?兵众孰强?士卒孰练赏罚明?吾以此知胜负矣。)

E se é verdade que a guerra implica logro e dissimulação, fingimento, até espionagem, estes estratagemas não devem servir causas menores. Digamos que um bom chefe age corretamente em todas as situações, sendo justo para quem o é, mas também deverá estar à altura do adversário, ou, em linguagem bélica, do inimigo, porque a sua responsabilidade maior é para com a população que deverá proteger. Para tal, será necessário recorrer à inteligência em profundidade, espera-se que seja um guerreiro sábio, como somos informados em Ofensiva Estratégica, porque melhor do que travar batalhas é não o fazer (Sunzi, 2001: 21) : “Travar cem batalhas, ganhando cada uma delas, não é a atitude mais sábia. Quebrar a resistência do inimigo sem lutar, é.” (是故百战百胜,非善之善者也;不战而屈人之兵,善之善者也。).

Mas nem sempre é possível evitar o conflito, porque há atos agressores que não podem ficar sem resposta. Nesse caso, aconselha-se um conhecimento profundo das suas próprias forças e das do adversário, porque se parte do mesmo princípio a animar o pensamento de Heraclito, há medida e racionalidade em toda a natureza e nos comportamentos humanos, logo aquele que domina a sua própria razão e entende a dos outros, está votado ao sucesso. Assim somos aconselhados no capítulo O Terreno (Sunzi, 2001: 95): “Por isso se diz: Conhece o inimigo e conhece-te a ti mesmo para que a vitória não esteja em causa; conhece o céu e a terra para que a vitória seja completa.” (故曰:知彼知已,胜乃不殆;知天知地,胜乃不穷。)

O melhor chefe, nesta China dos tempos antigos, era quem possuía visíveis virtudes morais, ainda que tivesse de ostentar uma atitude silenciosa e imperscrutável perante as suas tropas, deveria ser capaz de manter a disciplina, quase espontaneamente, porque era imparcial e/ou justo, se o critério da justiça se aferir por um comportamento correto e equitativo, como nos é dito no capítulo Os Nove Tipos de Terreno (Sunzi, 2001: 107). Já no penúltimo capítulo, O Ataque pelo Fogo, não restam quaisquer dúvidas sobre os verdadeiros princípios defendidos neste primeiro tratado de estratégia chinês e o mais lido ao longo de toda a sua história. Se a guerra acompanha as transformações do mundo, sendo inevitável e de importância decisiva, tornando uns senhores e outros escravos, uns vencedores e de outros vencidos, é um assunto nesta tradição estratégica de uma gravidade tal, que nenhum conflito deve ser travado de ânimo leve, implicando cuidadosas deliberações; é sempre preferível em última análise, não a travar, porque (Sunzi, 2001:121 ) “Um estado que pereceu não pode ser restaurado, nem os mortos trazidos de regresso à vida. Por isso, o soberano iluminado aborda a questão da guerra com a maior precaução, evitando um bom comandante qualquer atitude precipitada. Porque este é o caminho para manter o estado seguro e o exército a salvo. ”(亡国就不可以复存,死者不可以复生。故明君要慎之,良将警之,此安国全,军之道也。)

Pergunte-se se a mentalidade chinesa mudou ao longo dos séculos, sobretudo depois de verificar a consistência com que a China de Xi Jinping tem defendido a neutralidade no conflito russo-ucraniano e, talvez agora, se perceba melhor a razão por que o faz. O primeiro interesse do país é o de assegurar o bem-estar da sua própria população, sobretudo quando tem estabelecidas relações culturais e comerciais com o vizinho russo, que vêm de longa data, mais constantes desde os tempos da fundação da República Popular Chinesa, para a qual ao tempo a União Soviética contribuiu ideologicamente, e não só. Já que à época estes apoiaram o desenvolvimento económico chinês, nomeadamente no setor industrial. Recorda-nos José Milhazes em Rússia e Europa: uma parte do todo que nos anos 40 e 50 do século XX, Estaline e Mao juraram amizade eterna, “russos e chineses – irmãos para sempre” (Milhazes, 2016: 83), mas com a morte de Estaline reacenderam-se os combates fronteiriços entre os dois vizinhos. Ora é precisamente este tipo de situação que os chineses tentam evitar, para não mencionar os interesses nacionais entre a Gazprom e a China National Petroleum Corporation, com o consequente contrato de fornecimento de gás russo à China por 30 anos, a construção de gasodutos, etc.

Embora haja grandes interesses económicos em jogo, nota-se que o presidente russo Vladimir Putin não consegue quebrar a tradição de neutralidade chinesa, que tem vindo a ser consolidada pela China nas questões de política internacional desde meados do século XX até ao presente, sendo os conselhos mais recentes de Xi Jinping ao homólogo russo de procurar restabelecer a paz perdida, com ênfase para o enaltecimento apenas via das conversações e do diálogo sem outros compromissos, como sucedeu recentemente no discurso que o presidente realizou na reunião do Conselho de Chefes de Estados Membros da Organização de Cooperação de Xangai (SCO) a 16 de setembro de 2022, onde apelou aos valores éticos tradicionais que conduzem a política chinesa, aqueles que já conhecemos desde o clássico A Arte da Guerra: a preocupação com a segurança interna e externa, a confiança mútua, tolerância, justiça, cooperação e diálogo. Ontem e hoje os valores defendidos são os mesmos na China, é a ética que conduz a política e a meta a paz.

Mas há quem veja intenções escondidas neste discurso neutro proferido pelas autoridades chinesas. Recordemos o que nos diz José Milhazes na obra já referida: “Pequim é conhecido pelo seu pragmatismo nas relações internacionais, que não deixa qualquer espaço a sentimentos. Por isso, a Rússia é, para a China, um dos muitos instrumentos que poderão ser aproveitados na disputa com os Estados Unidos” (Milhazes, 2016: 90).

Não é esta a minha posição, acredito sinceramente na via da moralidade e segurança defendida pelos chineses, e se o fazem não é por razões sentimentais, no que partilho o parecer de Milhazes, mas sim por uma tradição racional, que encontra a sua justiça num sábio equilíbrio de opostos, onde a bela harmonia nasce, recordando as palavras de Heraclito da ponderação e afinação da discórdia.

 

Referências Bibliográficas

Frazão, Dilva. 2019. “Heráclito”. Ebiografia. Disponível em: https://www.ebiografia.com/heraclito/, acedido a 22 de setembro de 2022.

Kirk , G.S, J.E. Raven, M. Schofield. 1983 The Presocratic Philosophers: A Critical History with a Selection of Texts. Cambridge: Cambridge University Press.

Milhazes, José. 2016. Rússia e Europa: uma parte do todo. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.

《孙子兵法》Sunzi: The Art of War. 2001. Tradução de 林戊荪.北京:外文出版社.

Sun Tzu. A Arte da Guerra. 2008. Tradução de Ricardo Silva. Versão resumida. Vila Nova de Famalicão: Quasi.

* Coordenadora do Serviço Educativo do Centro Científico e Cultural de Macau

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores.

6 Out 2022

Tereza Sena, historiadora: “Houve confiança do Imperador em Tomás Pereira”

Acaba de ser lançado, em Portugal, o livro “Tomás Pereira e o Imperador Kangxi – Um Diálogo entre a China e o Ocidente”, editado pela Guerra e Paz, e da autoria de Tereza Sena, historiadora e ex-residente de Macau. Trata-se de uma narrativa histórica, com elementos ficcionais, do percurso do jesuíta português até à China e da relação especial que estabeleceu com o Imperador Kangxi. O objectivo é mostrar mais detalhes sobre a missão deste português jesuíta ainda pouco conhecido do grande público

 

Quando começou o projecto para a construção desta narrativa histórica?

Tudo partiu de um convite da embaixada de Portugal em Pequim, na pessoa de José Augusto Duarte [ex-embaixador] que fez uma proposta à Universidade de Macau em prol de uma maior divulgação da figura de Tomás Pereira. Este não é um trabalho académico, mas sim uma narrativa histórica destinada ao grande público. É uma obra síntese sobre Tomás Pereira, que é ainda desconhecido. Na altura, fiquei em Macau mais algum tempo e fui enquadrada na Universidade de São José com o objectivo principal de escrever esta obra, que poderá ser traduzida para chinês e para inglês.

Decidiu então escrever sobre a relação próxima que Tomás Pereira teve com o imperador Kangxi.

Esta foi a forma de abordar [o tema] e trazer um pouco para o lado português as relações sino-ocidentais e o papel de Macau, bem como os aspectos da acção dos missionários, com especial destaque para os jesuítas, devido ao papel que tiveram na corte imperial. Há todo um trabalho académico que foi feito sobre Tomás Pereira, sobretudo em 2008, uma série de iniciativas comemorativas dessa personalidade, quando se celebraram os 400 anos do seu falecimento. Nessa altura, do ponto de vista científico, ele era uma figura pouco estudada. Em toda a historiografia, mesmo dos jesuítas, dá-se sempre relevo a outras personalidades na corte de Pequim. Nessa altura surgiu o projecto, no seio do Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM), de reunir, com vários académicos, as diversas obras de Tomás Pereira, que estavam dispersas, nomeadamente as cartas.

Que trocou com que personalidades?

Dentro da própria Ordem, com os superiores e os companheiros, e temos algumas cartas trocadas com autoridades, algumas com o próprio rei de Portugal, e cartas de viagens que fez. Temos um texto, a pedido de um antigo mestre dele, o João Queirós, sobre o budismo na China. Mas esse foi um trabalho académico, aqui faço uma abordagem diferente, uma tentativa de construção de um quase romance, um guia do que foi a vida de Tomás Pereira, mas contextualizado. Isto porque pouco sabemos dele até à sua chegada a Pequim. Tentei fazer esse ajuste biográfico, construindo uma narrativa em que o Tomás Pereira aparece como protagonista, mas não como herói. Aparecem no livro uma série de conjunturas em que ele está inserido. Fui buscar textos, mesmo que não sejam do tempo do Tomás Pereira, que contextualizam a viagem marítima, a vida em Goa, a formação dos jesuítas, um pouco da história de Macau. Há depois uma segunda parte em que o protagonista entra directamente em cena e já é uma narrativa construída, mas onde fui buscar mais elementos à sua epistolografia [escrita de cartas]. Não só utilizei material que tinha compilado em 2008 como me socorri das Obras Completas de Tomás Pereira, que foram depois publicadas.

Porque é que Tomás Pereira foi tão importante?

Houve uma grande propaganda, por parte dos jesuítas franceses, com o Tratado de Nerchinsk [assinado em 1689], quando se conseguiu uma certa liberdade religiosa em Pequim, embora não fosse plena. Há que olhar para os conflitos entre as nações que existiam na altura. A Companhia de Jesus [a que pertencia Tomás Pereira] estava cada vez mais nacional e menos internacional, porque tinham membros de todas as nacionalidades. Os jesuítas eram criticados pela exclusividade da missão missionária na China por parte de outras ordens, que também queriam ter as suas missões e, como sabemos, a Companhia de Jesus teve a exclusividade, até certa altura, do trabalho missionário na China e no Japão. Houve a contestação dos direitos do Padroado também. Tomás Pereira foi um acérrimo defensor dos direitos do Padroado e assume um papel extremamente importante nesse aspecto, tendo sido atacado por muitos, acusado de estar ao serviço do Padroado. Sendo um jesuíta português de grande envergadura, e com assento na corte de Pequim, com contactos com o Imperador, ensinando-lhe música, e sendo-lhe confiadas algumas missões importantes, mesmo ao serviço da corte…

Tais como?

Uma delas foi o papel de mediador na assinatura do tratado sino-russo [de Nerchinsk]. Foi-lhe atribuída a responsabilidade sobre o tribunal das matemáticas, embora em conjunto com outro jesuíta. Houve uma confiança que o Imperador depositou em Tomás Pereira, que é, de facto, uma figura de relevo nas relações sino-ocidentais e é um português. Não é tão conhecido, porque todos falam do Mateus Ricci, por exemplo. Todos tinham o seu papel no seio da Companhia de Jesus, mas de facto Tomás Pereira não é uma figura tão popular como os outros.

Esta relação com o Imperador Kangxi foi de facto especial.

Creio que sim, embora tenhamos de ter sempre alguma precaução. Nestas narrativas jesuíticas sobre este conflito de interesses, de contestações, de Roma e de outras ordens, sempre com as pressões nacionais por detrás, qualquer gesto do Imperador, relativamente aos jesuítas, à Missão, à própria Companhia ou à Igreja, era exacerbado. Colocavam tudo nas cartas para que o Ocidente soubesse da sua relação privilegiada com o Imperador. Por isso temos sempre de ter alguma precaução. Os pequenos gestos que são descritos, de ofertas do Imperador, por exemplo, têm de ser interpretados como sinais que o Imperador dava de estima daquelas pessoas, e que os considerava seus cortesãos, embora respeitando uma hierarquia na corte imperial.

Chegou-se a estabelecer uma espécie de relação de amizade entre os dois?

É muito difícil de dizer, embora Tomás Pereira se tenha referido ao “grande amor” que o Imperador sentia por ele. Amor no sentido figurado, de respeito. A minha interpretação é que se tratou mais de uma relação de respeito e de confiança. Ao atribuir-lhe determinadas tarefas e missões o Imperador revela ter confiança em Tomás Pereira. Havia sempre um cerimonial, regras. Era uma relação sempre um pouco à distância, até porque o Imperador era sempre intocável. Não havia uma intimidade entre os dois como a concebemos no Ocidente. Eles poderiam, por exemplo, inquirir mais directamente o Imperador, enquanto os restantes cortesãos tinham de fazer um requerimento.

Sente que, com esta obra, dá mais um contributo para o conhecimento da China, também, além da própria figura de Tomás Pereira?

Sim. A ideia é também essa, mostrar e despertar a curiosidade do leitor que não está familiarizado com estas temáticas para este tipo de relações e sobre a presença de portugueses na China, neste período, com determinados objectivos. Perceber como se faziam os contactos, como se organizava a corte imperial chinesa e até como era o papel de Macau em tudo isto. Este tipo de livros praticamente não tem uma bibliografia porque é quase ficção, ainda que seja uma narrativa histórica.

O livro tem muitos elementos ficcionados?

Alguns. A parte da viagem, por exemplo. A infância. Inspirei-me em leituras que já tinha feito e em muitos textos que são aqui utilizados, [existindo elementos] que fazem parte do nosso imaginário sobre a Expansão e que nem são do tempo do Tomás Pereira. Fiz isso para mostrar, por exemplo, como era a vida a bordo. É uma narrativa plausível, e se ele não passou exactamente por aquilo, poderia ter passado. A ideia é dar a conhecer a vida destes homens e por isso não dei a Tomás Pereira o papel de herói, mas sim de protagonista de um movimento que envolveu muitos portugueses. Não se sabe a rota exacta que fez de Macau para Pequim, e aí aproveitei elementos dos escritos do Fernão Mendes Pinto, por exemplo. Foi uma conjugação de múltiplos textos que fazem parte da nossa memória colectiva.

6 Out 2022

Poemas de Su Dongpo

苏轼 Su Shi, ou 苏东坡 Su Dongpo, é considerado o maior poeta da dinastia Song (960-1279) e um dos maiores de toda a poesia chinesa, ao lado de Li Bai e de Du Fu. Nasceu em Meishan, em 1037, na província de Sichuan.

A sua figura corresponde ao ideal do letrado/mandarim da velha China, poeta e prosador, calígrafo e pintor, homem político e criador de jardins. Crítico dos poderosos do império, conheceu mais de uma dezena de despromoções e exílios. A sua poesia, imaginativa, rica de cores e tonalidades, influenciada pelo budismo禅 chan (o zen japonês) desdobra-se por excelentes descrições da natureza e também pelos temas da amizade e do amor.

A lua, no meio do Outono

Ao entardecer, nuvens dispersas desaparecem,
não se vêem mais montanhas,
silenciosa, a Via Láctea dá a volta, na abóbada de jade.
Se nesta noite, neste nosso existir,
não fruirmos prazer, mil alegrias,
no próximo mês, no próximo ano,
quem sabe por onde se desdobrarão as nossas vidas?

鹧鸪天·林断山明竹隐墙

林断山明竹隐墙。
乱蝉衰草小池塘。
翻空白鸟时时见,
照水红蕖细细香。
村舍外,古城旁。
杖藜徐步转斜阳。
殷勤昨夜三更雨,
又得浮生一日凉。

Fim da floresta, resplandece a montanha

Acaba a floresta, resplandece a montanha,
os bambus escondem um muro feito pelos homens.
O canto das cigarras na erva murcha, junto ao lago,
pássaros brancos em círculos no céu aparecem, desaparecem.
Lótus vermelhos reflectem-se na água, soltam perfumes,
uma muralha antiga rodeia um velho lar.
Lentamente, apoiado no bastão, caminho para o sol poente,
de súbito, uma chuva cai, ilumina o céu,
Sempre a incerteza no avançar do tempo,
o final do dia envolto em espasmos de frescura.

Ainda, o último poema de Su Dongpo, escrito em 1101, numa das mais fantásticas montanhas da China, Lushan, na província de Jiangxi.

庐山烟雨浙江潮

庐山烟雨浙江潮,
未至千般恨不消。
到得还来别无事,
庐山烟雨浙江潮。

Névoas de Lushan, marés de Zhejiang

Névoas de Lushan, marés de Zhejiang.
Antes da viagem, nostalgias mil,
depois da viagem, o crescer dos dias.
Névoas de Lushan, marés de Zhejiang.


Tradução e texto de António Graça de Abreu

6 Out 2022

Wang Jun e as Pedras de Sonho

Ruan Yuan (1764-1849) cumprindo as suas funções de funcionário imperial iria desde a sua terra natal de Yizheng perto da grande cidade de Yangzhou (Jiangsu) até às mais díspares regiões, algumas tocando as fronteiras do Império Qing, criando no espaço e no tempo uma intrigante figura luzente. Desenhada a partir das suas origens humildes ao Grande Secretariado em Pequim, escorada na convicção confuciana do homem justo e da sua virtude, também vislumbrou o indizível da arte.

Governador da Província de Guandong entre 1817 e 1826 tomou acções decisivas no combate ao comércio do ópio tendo estendido a sua acção até Macau onde, em 1821, terá ordenado a prisão de vários traficantes. Mas a sua curiosidade estendeu-se aos conhecimentos dos estrangeiros, ao publicar um estudo biográfico sobre astrónomos e matemáticos da dinastia que incluiu trinta e sete missionários Europeus que viveram no Império e escreveram sobre o assunto.

Em 1820 em Cantão, fundou a notória Academia do Oceano da Erudição (Xuehai Tang). O pintor Wang Jun (1816- depois de 1883) interrogou o seu enigma vital nos locais por onde ele caminhou. No álbum Legado dos feitos de Ruan Yuan em dez cenários pintados (tinta e cor sobre papel, 27,9 x 33,7 cm, no Metmuseum) escreveu na última folha: «No meio do Inverno de 1883 o neto do mestre, Jingcen, trouxe-me um álbum para pintar, assim reuni passagens das “Notas do barco de um imortal” (Yingzhou Bitan) que ele compilou e que poderiam ser representadas em pinturas e apresentei-as nas páginas precedentes para sua instrução.» Essas passagens referem lugares como a Torre Wenxuan onde «o mestre não apenas erigiu uma torre a Oeste do templo da sua família, exclusivamente para guardar os seus livros mas também escreveu um ensaio sobre ela.»

Wang Jun referia assim o apego de Ruan Yuan aos livros, sendo inéditas as bibliotecas que ele promoveu bem como as reuniões de objectos artísticos que prolongavam a sua colecção pessoal e que foram pioneiras da ideia de um «museu» em templos célebres. Deles faziam parte as «pedras de pintura» (huashi) ou «pedras de sonho» (mengshi) da montanha Cangshan, na área de Dali, que ele coleccionava desde que fora governador de Yunnan (1826-35).

Nessas pedras cortadas em fatias, conservando os veios, o observador podia recriar na sua imaginação o aspecto de uma paisagem e escrever na margem uma anotação. Num rolo vertical (tinta sobre papel salpicado de ouro, 164,5 x 40,7 cm, no Smithonian) ele caligrafou um poema evocando Su Shi, que começa: «Pedras de pintura de Taicang assemelham-se a multidões de nuvens,/ O engenho humano não alcançaria a majestade da arte do Céu./

As caravanas de flores e pedras terminaram e o rio Bian congelou,/ O estúdio do Lago de neve foi destruído, as nuvens escureceram, o mestre Su há muito partiu e a sua pedra também.»

6 Out 2022

O Fuxi

Ó meus amigos, companheiros destas funestas viagens por países tão antigos quanto as estrelas e a Lua, e tão estranhos quanto o profundíssimo interior de nossas desgraçadas almas, ¿que sobressaltos ainda nos esperam, que magias secretas teremos ainda de superar, que horrores se erguerão perante as nossas pupilas dilatadas de espanto e terror?

Cada vez mais perto de nossas precárias existências, uiva o monstro da guerra, que ameaça fundir de vez a humanidade com a terra, incessantemente percorrida pelo espectro esquálido da fome e pela invisível maldade de dez mil pestes.

Ó maldito humano, que te crês superior à própria Natureza, mas depois te revelas, uma e outra vez, incapaz de simplesmente ordenar a tua existência e não compreendes que te encontras possuído pela inconstante ira e és escravo da tua própria ambição! Não te contentas com o jade branco ou o refulgente ouro, não há tesouro que sacie tua inextinguível sede de mando sobre os outros homens, os animais e as coisas; pois em ti habita uma eterna angústia; em ti rastejam as serpentes expulsas; por ti cresce, poderosa e impante, a fertilíssima hera do Mal!

É talvez por isso que no Monte a que chamam do Veado Branco, onde um dos oito imortais em montada sagrada se evolou pelos céus rumo a Penglai, habita o fuxi, um pássaro cuja forma lembra a do galo, embora encimada por uma cabeça humana. ¿Que estranhas cópulas, que monstruosos amplexos, que terríveis procedimentos terão ocorrido para tornarem possível a existência deste sinistro animal? Não sabemos, mas basta a nossa mente extenuada atrever-se a alvitrar uma resposta, para logo sentirmos a pele percorrida por horrendos arrepios e o coração disparar em desfilada, qual cavalo selvagem fustigado pelo chicote nocturno do medo, alheio a rédeas e contenção.

Que os homens se abstenham de percorrer o Monte do Veado, pois apesar de nele existirem riquezas capazes de acalmar as mais desvairadas ambições, se tiverem a desgraçada sorte de vislumbrarem um fuxi, é certo que cedo se desencadeará uma Guerra e por ela perecerão os campos cultivados, por ela serão decapitados os mansos animais, por ela serão sacrificados os melhores mancebos de duas gerações e destruída a soberba dos países.

O fuxi emite um som que lembra o seu nome. Se o ouvirdes, sombria noite ou dia claro, arrepiai caminho, pois a senda onde vos encontrais é a mais certa das vias para a desgraça!

30 Set 2022