Segunda jornada à Falésia Vermelha – Su Dongpo

Tradução de António Graça de Abreu

No mesmo ano, na lua cheia do décimo mês, na companhia de dois amigos, parti de minha casa, a pé, em direcção ao pavilhão de Lingao. O orvalho já se havia transformado em geada gelada, as árvores tinham perdido todas as folhas. Na terra, distinguiam-se as sombras dos homens e, levantando-se a cabeça, aparecia uma lua brilhante.

Olhávamos à nossa volta e contemplávamos a paisagem, caminhávamos cantando, ou íamos conversando uns com os outros. Por fim, eu disse, suspirando: “Tenho amigos comigo, mas não temos vinho. Mesmo se tivéssemos vinho não haveria iguarias para acompanhar. O prateado da lua, a doçura da brisa, que fazer numa noite tão bonita?”

Um dos meus amigos respondeu: “Hoje, ao cair da noite recolhi a minha rede e a pesca foram uns tantos peixes de bocas grandes e escamas finas, uma espécie de percas. Mas onde encontrar vinho?”

Regressámos a minha casa e falei com a minha esposa. Ela disse: “Tenho uns potes de vinho que ficaram guardados já há algum tempo, esperando que um dia te recordasses deles.” Partimos de novo com o vinho rumo à Falésia Vermelha. Impetuosa a corrente do rio, as escarpas subiam a mil pés de altura. Enormes as montanhas, pequena a lua, baixo o caudal e as ondas, as pedras no leito rompiam as águas. Habitamos estes lugares há já tantos anos e ainda não conhecemos o rio e as montanhas.

Saímos da barca, levantei a cabaia comprida, trepei pela margem rochosa, caminhei sobre pedras afiadas, afastando, ao passar, as ervas selvagens. Sentei-me sobre penedos semelhantes a tigres ou leopardos, atravessei matagais, os arbustos pareciam dragões com cornos, no alto, havia ninhos de falcões. Levantando os braços procurei encontrar um poiso entre a ramaria, para passar a noite, baixando a cabeça, tentei descobrir o palácio solitário do deus das águas.

Não fui seguido pelos meus dois amigos. Dei então um enorme grito que perfurou o espaço e fez estremecer as ervas e as árvores. Sonoridades na montanha, o eco, o vale respondeu. Levantou-se vento, a água caía nas cascatas.

Em mim, alguma inquietação, tristeza, receio. Eu tremia, não queria ficar na margem do rio. Regressei à nossa barca que vogava ao sabor da corrente. Para satisfação de todos, era ela quem decidia por onde devia navegar.

Era quase meia-noite. À nossa volta, um imenso silêncio e calmaria. Apenas um grou solitário, vindo de leste, sobrevoava o rio. Asas grandes como as rodas de uma carroça, o corpo, negro em cima, branco, em baixo.

Grasnava, longos gritos que rasgavam a escuridão. Passou, rasando, por cima da nossa barca e seguiu para oeste.
Os meus amigos partiram e eu adormeci. Sonhei que um monge taoista, vestindo um manto de penas ondulantes, passava junto ao pavilhão de Lingao. Saudou-me e disse: “A vossa viagem à Falésia Vermelha foi ou não foi uma jornada de espantar?”

Perguntei-lhe como se chamava. Um leve aceno de cabeça e não me respondeu. Questionei-o, outra vez: “Não foste tu que ontem à noite sobrevoaste o nosso barco?” O monge sorriu. Sobressaltado, despertei por completo. Abri a janela da barca, olhei a paisagem, não se via ninguém.

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