Yuan Mei – Palavras Poéticas

Tradução e textos de António Graça de Abreu

 

Yuan Mei 袁枚 nasceu em Hangzhou em 1716. A cidade, na margem do lago Oeste, em Zhejiang, com mil e quinhentos anos de história, será talvez a mais bonita capital de província de todo o império chinês, rodeada de montes e florestas, polvilhada de templos e pavilhões, com um lago enorme que nas margens se desdobra em recantos onde são possíveis quase todos os encantamentos do mundo. Hangzhou está embebida no lastro do passado, recordando mil vilanias e todos os prazeres.

Yuan Mei, talvez o maior poeta da dinastia Qing (1644-1911), provinha de uma família de modestos letrados da cidade. Seria ele o primeiro mandarim da família, grau que obtém nos exames imperiais aos 23 anos.

Exerceria as funções de funcionário estatal apenas durante nove anos. Voltou ainda aos afazeres de mandarim, mas tinha pouco ou nenhum gosto pelas malhas do poder, um dos seus maiores prazeres era nada ter que fazer e dedicar-se apenas à escrita e à leitura. Os seus poemas começavam a ser conhecidos e tinham venda.

Ele próprio acabaria por montar na sua casa uma espécie de tipografia, com painéis de impressão com pranchas de caracteres móveis em madeira. Editava assim os seus próprios livros e obtinha avultados rendimentos. Com menos de quarenta anos, Yuan Mei retirou-se para uma grande mansão que comprou em Suiyuan, nos arredores da também bonita cidade de Nanquim, e, com muitas viagens de permeio, aí viveu até ao fim da sua longa vida. Fechou os olhos, para sempre, em Dezembro de 1798, aos 82 anos de idade.

 

Três poemas de Yuan Mei 袁枚 (1716-1797) ,

Contemplando um amigo que toca flauta ao luar

Noite de Outono,
visito um ermita meu amigo.
Vem até mim a música,
acordes perfeitos debaixo do céu,
ondeando na superfície do lago,
à luz fria do luar.
O trinar de uma flauta, o coração do amigo,
a melodia agarra nuvens azuis que descem sobre as águas.
Encontramo-nos no meio de perfumes coloridos
pelo rosa das flores de lótus,
cobertas de gotas de orvalho cristalino.
Na claridade prateada
humedecidas nossas vestes.
Na estrada para Baling[1]

A oeste do lago Dongting, um templo, uma deusa no altar,
jovens de sobrancelhas pintadas confortam viajantes cansados.
A região montanhosa, vazia de gentes, as tendas fechadas,
distantes os faróis na margem, a minha barca ao entardecer.
Não entendo o dialecto do lugar, preciso de alguém para traduzir,
pássaros estranhos, de nomes desconhecidos, envergonham o poeta.
Raros barqueiros conhecem a minha vontade, o meu sentir,
levanto a janela do barco, por toda a parte, ramos em flor.

[1]Baling, ao lado da actual cidade de Yueyang, famosa pelo torreão junto ao lago Dongting, na província de Hunan.

Aceitando a minha sorte

Fechado em casa
assumo os dias como um pobre poeta.
Acumularam-se os anos,
entrei agora no carreiro dos velhos.
Fascinado por montanhas rodeadas de nuvens
esqueço a minha própria terra,
por vizinhos, tenho macacos e pássaros.
Abandonei todos os meus cargos,
dedico-me a fruir o prazer de existir.
Porque não tenho um filho varão.
vou casando, vez após vez.1
Esqueci o grande talento
que julgava ter para mandar e governar,
e aceito ser um simples poeta,
minha sorte, meu destino.

[1] Só aos 62 anos, Yuan Mei conseguiu ter um filho rapaz da sua quarta concubina.

Nas últimas duas décadas da sua vida, Yuan Mei entreteve-se a redigir um vasto conjunto de Shi Hua 詩話, Palavras Poéticas,
utilizando sobretudo a prosa. Com esta denominação apareciam desde o século XI inúmeras recolhas de textos breves da autoria dos mais diversos letrados.
Yuan Mei não inovou no título dos seus escritos. Tratava-se fundamentalmente de pequenos excertos autobiográficos, meditações sobre a essência da poesia, vidas de poetas, anedotas, etc.
Por exemplo:
“Wang Chizi foi meu colega nos exames de 1744. À entrada na sala das provas, recitou um poema da sua autoria com o título Junto de túmulos antigos. Assim:

Sombrio, triste, minúsculo o antigo templo,
um mocho descansa nas gravuras do arco de pedra.
Ainda é dia quando quem perdeu entes queridos
se reúne e prepara as cerimónias fúnebres.
Enorme confusão de cavalos e carruagens.

Eu ousei perguntar-lhe porque é que ele parecia tão satisfeito por ter escrito este poema,. Wang Chizi sorriu e disse: “Fecha os olhos e pensa.”

Outro exemplo:

Os taoistas para ascender ao céu precisam de fabricar nove vezes os seus pozinhos da imortalidade. Os confucionistas apreciam sobremaneira a rectidão e o meio justo. Um cozinheiro conhece bem a sua arte, sabe como controlar o fogo, como manter o lume.

Yuan Mei continua questionando o leitor.
Alguém me perguntou qual o nome do melhor poema escrito durante esta dinastia. Eu argumentei, perguntando: qual é o melhor poema do Shi Jing, (o Livro das Odes.)[1] Não obtive resposta. Então disse: A poesia é como as flores, uma orquídea na Primavera, um crisântemo no Outono, não podemos dizer que uma é melhor do que a outra. Quando a música das palavras e a ideia na concepção do poema emocionam um coração, estamos diante de um bom poema.

E continua Yuan Mei:
O poeta Yang Wanli (1124-1206) terá escrito “Porque é que as pessoas com pouco talento literário sempre falam sobre métrica e a utilização dos tons em poesia? A métrica e os tons são apenas a armação e não é difícil levantá-los. Mas é na concepção do poema que se expressa o génio do poeta, é aqui que se mostra a sua qualidade.

Outro exemplo da prosa breve de Yuan Mei, citando Bu Xian um amigo presidente de uma academia em Guilin onde o nosso amigo o encontrou em visita que fez à cidade, em 1784:
Bu Xian disse: “A poesia nasce do coração e depois faz-se com as mãos. Se o coração controla a mão, está tudo bem, mas se a mão faz o trabalho do coração, está tudo errado. Hoje em dia, muitos imitam as bases da poesia, copiam um pouco daqui e de acolá, usam tudo o que está amontoado em pilhas de papel velho em vez de contarem com o que brota dos seus próprios sentimentos. É o que eu chamo ‘A mão fazendo o trabalho do coração.’”

Na China do século XVIII aconteciam ainda acaloradas discussões sobre a poesia do passado. Yuan Mei explica:
A divisão da poesia entre estilo Tang e estilo Song continua hoje a manifestar-se. Isto corresponde ao facto de muitos ignorarem que a poesia é o produto dos sentimentos dos homens, enquanto que Tang e Song são simplesmente nomes de duas dinastias. Os sentimentos das gentes não mudam com o renovar das dinastias.

Para terminar, uma referência a um incerto poeta chamado Tai Yuyang:
Este senhor escreveu o seguinte verso: “O ar da noite envolve os montes/ apequena-se a terra e o céu.” A beleza reside na margem existente entre o inteligível e o não inteligível, trata-se de dois versos primorosos. Mas quem foi Tai Yuyang, o autor? Não faço a mínima ideia.

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