Li Bai – Poemas da Guerra

Tradução e texto* de António Izidro

 

PROVAVELMENTE a pergunta terá sido feita com raiva — quantos nos pudestes devolver com vida? A dinastia Tang havia consolidado o poder e tornara-se militarmente forte, mas as batalhas nas fronteiras não davam sinais de terminar. Na mente de Li Bai perpassam memórias da série de conflitos armados que desgastaram o Estado e sacrificaram o povo. Eram as lutas fratricidas, as revoltas populares, guerras entre reinos e os bárbaros do Norte que cobiçavam terras mais produtivas.

O posto de vigia, as montanhas e a Lua, a simbiose que o poeta escolheu para descrever os campos de batalha do Monte Branco e do Lago das Águas Límpidas, palco onde durante largos anos muito sangue correu de pobres soldados que eram obrigados a alistarem-se nas fileiras do exército. Uma sentinela que guarda o posto de vigia, o sentimento de saudade, a família que anseia pelo seu regresso, descritos em versos.

A sentinela sob a Lua
A Lua brilha sobre a celeste cordilheira,1
num infindo mar de esparsas nuvens,
dez mil lis viajaram estes ventos,
pela Porta de Jade trespassam a fronteira.2

Marcham os Han pela estrada de Baiteng,3
bárbaros espreitam das margens azuis da baía.
De tanta batalha neste palco cumprida,
quantos nos pudeste devolver com vida?

A sentinela vagamente olha além-fronteira,4
a face crispada de dor, o pensamento no lar
e nos que à noite, na solidão das casas,
entre suspiros, também não podem descansar.

1. Celeste cordilheira Cordilheira dos Qilian, situada no nordeste da China, junto à Mongólia, cobrindo uma extensão de cerca 800 Km.
2. Porta-de-Jade Posto de vigia construído na dinastia Han, junto à fronteira Norte com a Mongólia. As ruínas desta construção podem ser visitadas na Província de Gansu.
3. Han Nome que geralmente designa a principal etnia chinesa e que deriva da dinastia Han, período durante o qual se travaram inúmeras batalhas com as tribos nómadas mongóis, os Xiongnu, que se aliaram aos Tubós Tibetanos em Baiteng (Monte Branco, na região de Shanxi ) e no Lago das Águas Límpidas (Baía), na província de Qinghai.
4. Fronteira Trata-se do Posto de Fronteira de Tiemenguan, situado no actual Xinjiang.

A missão era fazer recuar o inimigo aos Montes Altaicas, na Mongólia, de onde a invasão havia começado. Na Porta-de-Jade trava-se a grande batalha com sérias baixas para o exército real que se viu obrigado a retirar e voltar ao acampamento pelo caminho do Sul. Antecipando-se, os invasores impuseram um apertado cerco. Para poder conduzir as tropas de novo ao acampamento, o comandante apenas tinha uma solução: a cabeça do chefe dos invasores.

Ode à Campanha Militar
Pela Porta de Jade irrompe o exército,
acossando o inimigo na montanha Jinwei,1
a canção das ameixas nas flautas a soar,2
a lua das espadas não cessa de brilhar.3

Rufos de tambores revolvem o Mar,4
bravos soldados as nuvens dominam.
Quando a Danyou a cabeça cortar,5
à nossa fronteira iremos voltar.

Cem batalhas no deserto, armaduras quebradas,
do lado sul, a nossa cidade de hunos cercada.
Mas logrando, num só golpe, Huyan eliminar,6
soldados feridos e mil cavalos podem regressar.

1. Montanha Jinwei Hoje chamada montanha Altai, situada nas fronteiras da China, Rússia, Mongólia e Cazaquistão.
2. Canção das Ameixas Canção antiga intitulada “Quando caem as flores da ameixeira”.
3. Lua das espadas O pomo das antigas espadas era redondo, fazendo lembrar a lua-cheia.
4. Mar “Vasto mar deserto”, como era antigamente designado o deserto de Gobi.
5. Danyou Rei dos Xiongnu, um povo huno.
6. Huyan Um dos quatro principais generais dos Xiongnu.

Da Ásia Central, Mongólia e do Deserto de Gobi, Tártaros, Uigures e povos turcomanos das línguas altaicas ameaçavam seriamente o império da grande dinastia Han, acabando, gradualmente, por se fixarem nas regiões Norte e Noroeste da China sem grande resistência por parte do exército.
Ao cabo de intensas lutas percebeu-se que a estratégia residia na conquista do Monte Yanzhi e obrigar ao recuo dos invasores.
No seu poema, composto na corte, o poeta aponta as falhas da estratégia do rei Han, o que pode ser visto como uma advertência ao imperador Tang, quanto à necessidade de reforçar uma zona do Norte que se revelava mais vulnerável aos ataques dos temíveis Xiongnu.
Curiosamente, as campanhas militares lançadas por volta do ano 745 culminaram na derrota dos invasores que acabaram por aceitar o estatuto de protectorado da corte, juntando-se ainda ao exército real para fazer frente a outras ameaças.

Cântico à fronteira
O grande rei Han estratégia não tivera,
os hunos da ponte de Wei se apoderaram;1
no condado, tropa e rija cavalaria assentaram,
quando sobre Wuyan pairava a Primavera.2

Às fragas d’ Oeste ide como ordenado,
marcharam guerreiros para Yishan,3
e quando o monte Yanzhi tomaram,4
as faces das damas alvas se quedaram.

Pelo Rio Amarelo muito pelejaram
só vitoriosas as armas acalmaram,
por mais de mil lis a paz espalharam,
as ondas do Mar enfim amainaram.5

1. Rio Wei O maior afluente do Rio Amarelo, com cerca 800 km, banhando diversas províncias como Gansu e Xanshi.
2. Wuyuan O condado foi estabelecido durante o reinado de Hanwudi, depois de uma vitória sobre os bárbaros invasores no ano 129 a.C.
3. Yinshan Trata-se da Cordilheira dos Yinshan, situada na Mongólia Interior.
4. Monte Yanzhi Actualmente é mais conhecido pelo nome “Grande Monte Amarelo”. Famoso pelo seu parque florestal e topografia acidentada, o que tornou num ponto estratégico no período das guerras contra as incursões das Tribos do Norte. O nome Yanzhi tem origem na planta que cresce abundantemente nesse monte e donde se extrai o corante que as mulheres usam para ruborizar as faces; a conquista do monte pelo exército real ditou a retirada dos Xiongnus, cujas damas não mais puderam enfeitar-se com aquela substância.
5. Mar Han Hanhai não é um mar, mas a antiga forma como era designado o Deserto de Gobi, situado na região Sul da Mongólia.

Li Bai assiste o embarque de tropas para uma campanha e a voz sai embargada do seu pincel, para contar a tragédia da guerra e o cataclismo que ameaçava o reinado do imperador Tang Xianzong. Expedições, campanhas, incursões, cenários sangrentos de uma luta interminável contra as invasões dos bárbaros do Norte.

As Guerras a Sul da Cidade
Ontem batiam-se no rio Sang,1
hoje guerreiam nas margens do Hedao.2
Limparam-se armas nas águas do Eufrates3
e as montadas pastaram no Monte Celeste.4
Guerras esforçadas, longínquas incursões a quanto obrigas,
exércitos consumidos por anos de arenas,
de matanças fazem os bárbaros sustento,
ontem como hoje, os seus ossos jazem em areia seca.
Dos Tártaros o rei Qin defendeu-se com muralhas,
o tempo jamais apagará as chamas do fogo
que os arqueiros de Han lançaram.
Cruezas mortais, combates sem fim,
corpos tombando em pelejas no campo agreste;
cavalos choram fitando o céu,
corvos famintos arrancam-lhes as entranhas,
devoram-nas em ramos de árvores secas.
O sangue dos soldados ensopa as ervas silvestres
enquanto generais regressam de mãos vazias.
Sabeis que o soldado é sempre uma arma?
Os virtuosos usam-na só quando dela precisam.

(…)

Reino de Shu – Os desafios de uma senda

No período em que a Europa vivia sob o domínio autocrático do Império Romano, desde Heliogábalo a Floriano (218-276), a China encontrava-se dividida em três reinos.
Estandartes com as insígnias Wei, Shi e Wu, desfraldados em campos de batalha, sangue e corpos espalhados em terrenos áridos, peripécias e planos de conspiração nos bastidores das cortes, eram o quadro que perpassava na memória de Li Bai enquanto viajava as terras do antigo reino de Shu, hoje província de Sichuan, cujo terreno acidentado constituía um enorme desafio para as tropas invasoras.
Com as batalhas a não poderem ser resolvidas de forma rápida, a guerra arrastava-se por entre incursões intermináveis, empobrecendo cada vez mais os recursos e aumentando o sofrimento do povo.
Em “Os árduos caminhos do reino de Shu”, Li Bai imagina os obstáculos que os invasores teriam encontrado devido às características topográficas da região, para descrever como teriam decorrido os acontecimentos e dar um alerta, tardio, ao inimigo.

Os árduos caminhos do Reino de Shu1
Eia! Ai! Ei!2
Vede estes caminhos de Shu! Que perigo! Que alturas!
Mais árduos que escalar ao céu azul.
Can e Yu vagamente são lembrados3
e, desde que este antigo reino fundaram,
quarenta e oito mil anos passaram,
sem que alguém tenha cruzado a fronteira com Qin.
Só um caminho de aves une as duas montanhas,4
de Taibai a oeste até ao cume de Emei.
Mas o chão e a montanha tremeram, esmagando os heróis,
e só esta estrada celeste une os países separados.5
Lá em cima, o grande marco onde os Seis Dragões dão meia-volta!6
Lá em baixo, um rio agitado de vagas e turbilhões!
Por mais alto que voem, os grous não conseguem atravessar,
mesmo os macacos desistem da escalada amedrontados.
Como dá voltas e mais voltas a vereda!
A cada cem passos nove curvas, até aos picos acerados.
Ali podes olhar o céu e afagar as Três Estrelas,
a respiração ofegante, mão no peito procurando fôlego.
Quando voltarás desta viagem ao Oeste,
deste terror de penhascos intransponíveis,
de aves lúgubres, silvando em árvores antigas,
machos voando e fêmeas seguindo-os pelos bosques?
Também se ouve o planger dos cucos,7
sob o assustador luar de serras desabitadas.
Caminhos árduos de Shu,
mais árduos que escalar ao céu azul!
Quando deles se fala, as faces rosadas empalidecem.
Os cumes sucedem-se a menos de um pé do céu;
pinheiros murchos pendurados sobre abismos.
Torrentes e cataratas entrechocam com fragor,
caem de penhascos, arrastam dez mil pedras por barrancos,
em vozes trovejantes ribombando.
Tanto perigo…
ah, homem que vens de longe, para quê enfrentá-lo?
O Passo da Espada, altíssimo e rochoso, imponente, vertiginoso,
apenas um homem basta para o guardar,
de dez mil nem um conseguirá passar.
E se esse guarda for desleal,
no seu lugar surgem os lobos e os chacais.
Fujai! De manhã, tigres ferozes!
Fujai! De noite, enormes serpentes!
Afiam os dentes e sugam-vos o sangue;
massacram homens como se ceifassem linho.
Apesar de dizerem que se é feliz na cidade de Jin,8
é melhor voltar depressa para casa.
Caminhos árduos de Shu,
mais árduos que escalar ao céu azul!
Dou meia-volta, fixo os olhos no Oeste
e longamente suspiro.

1. Shu Reino antigo, corresponde à actual Província de Sichuan, com uma área de 48 mil Km2, caracterizada pela sua peculiar geografia, dominada por grandes cadeias montanhosas, planaltos e desfiladeiros e a célebre falha tectónica de Longmengsha, que marca o grande desnivelamento entre as regiões situadas a Leste e a Oeste.
2. Eia! Ai! Ei! Era costume as cantigas populares começarem com interjeições.
3. Can e Yu, os monarcas Can Cong e Yu Fu, a quem a tradição popular atribui a fundação do Reino de Shu.
4. As duas serras Refere-se à Serra de Taibai e o pico da Serra de Ewei; Taibai situa-se na Província de Sanxi, sendo hoje um importante ponto turístico devido às reservas naturais do Parque Nacional de Florestas. Emei é um dos cumes da serra com o mesmo nome, situada na província de Sichuan, com 4000m de altitude. Notável pela sua riquíssima fauna e flora, de espécies únicas.
5. Escada celeste Está associada à história dos cinco oficiais que, em missão ao serviço do monarca de Shu, sucumbiram numa fenda aberta na terra. Deste acidente geográfico terá partido a formação de cinco elevações e aberto uma via, designada por “Escada do Céu”, ligando o Reino de Shu e as regiões vizinhas.
6. Coche-seis-dragões Alusivo aos seis picos da serra, dispostos em série, lembrando uma carruagem com seis dragões a proteger o Reino de Shu.
7. Planger dos cucos Os chineses tradicionalmente acham que o crocitar do cuco reproduz as palavras “²»Èç歸È¥£¡” – “Volta para trás!”
8. Cidade de Jin Actual Chengdu.

In Li Bai – António Izidro, A Via do Imortal, Macau: Livros do Meio, 2021

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