Su Dongpo | O vinho enquanto segunda vida

Texto e tradução de António Graça de Abreu

 

O grande poeta Su Dongpo gostava de se reunir com os amigos, comiam, bebiam gloriosamente, diziam ou compunham poemas, pintavam. Um deles, Huang Tingjian黄庭坚 (1045-1105), a seu respeito, escreveu:
“Ele adorava viver mas, após três ou cinco copos, já ébrio, parecia meio morto. Deitava-se sem cerimónia num qualquer recanto e ressonava com o ruído de um trovão. Algum tempo depois despertava, sentava-se à mesa e começava a escrever ou a pintar com a velocidade do vento.”

Nestes encontros de amigos e em momentos de solidão prevalecia a exaltação das bebidas fortes e encorpadas. O vinho, 酒 jiu em chinês, ou melhor, as vinte mil variedades de bebidas alcoólicas, fazia parte dos quotidianos de quase toda a gente.

Nos seus poemas e na sua prosa, Su Dongpo faz referências frequentes ao vinho e aos prazeres do álcool. O que bebiam não era propriamente vinho de uvas, também existente em algumas regiões da China, mas sobretudo baijiu, aguardentes destiladas a partir do sorgo, do painço, do arroz, de uma série de plantas e frutas que, levedadas, produziam néctares de elevada graduação que chegavam aos sessenta graus. Fabricavam-se também os mais variados licores e xaropes com menor teor de álcool e era vulgar uma espécie de cerveja que se obtinha misturando aguardentes e fruta com água, o que resultava numa bebida leve que alegrava o espírito de quem a bebia, mas não embebedava. Todos estes derivados alcoólicos se chamam jiu, normalmente traduzido por “vinho” mas os chineses, tal como acontecia com o chá, sabiam muito bem diferenciar os diversos jiu.

Num texto que intitulou “Em louvor do vinho forte” Su Dongpo vai longe na definição e valorização dos supremos néctares, em palavras que por certo grandes beberrões subscreveriam, poetas como Horácio, Ronsard, Baudelaire, Omar Kahyan, Alberti, o nosso Fernando Pessoa:

“Nos homens é preferível um temperamento brando, mas no vinho não se devem evitar a potência e a força. É através do vinho que se esquecem os sonhos de uma noite e com ele se chega a entender as verdades do universo. O vinho é para os homens como uma segunda vida e frequentemente é só no estado de abençoado conforto e maravilhosa tranquilidade criada pelo vinho que alguém pode ter a sensação de encontrar a própria alma.”

E escrevia assim, em sublimes poemas:

Fraco, o vinho

O pior de todos os vinhos, melhor do que água quente. Trapos, melhores que nada ter para vestir. Uma mulher feia, uma concubina conflituosa, melhores do que ter a casa vazia.

Quanto mais fraco o vinho, mais fácil emborcar dois copos,
quanto mais fino o tecido da cabaia, mais fácil vesti-la, a dobrar.
Existe a contradição entre o feio e o belo,
mas, quando embriagado, uma coisa tão boa como a outra.
Esposas mal-parecidas, concubinas briguentas,
quanto mais velhas, mais se assemelham.
Impossível saber como será o final dos nossos anos,
toma apenas por conselho o teu bom senso.
Evita audiências imperiais,
os grandes governantes do reino, o salão Florido do Leste,
a poeira do tempo, o vento na Passagem do Norte.
Cem anos, parece uma eternidade, mas, célere, tudo chega ao fim,
nós acabamos por cumprir tão pouco.
Vale tanto o cadáver de um rico como o cadáver de um pobre,
no rico, para conservar o corpo, pedras de jade,
pérolas colocadas na boca do ilustre defunto.
Não são grande ajuda, mil anos depois enriquecem ladrões de túmulos,
por recompensa, apenas uma ou outra referência literária.
Felizmente gente tonta pouca importância dá a tudo isto,
enganam meio mundo, enrubescem de contentamento,
homens justos são seus inimigos.
Para o mérito, um bom vinho por recompensa,
em toda a parte, o bem, a alegria, a tristeza,
simples manifestações de um mesmo todo, o Vazio.

O mau vinho é como os maus homens

Bebendo com Liu Ziyu, no templo da Montanha Dourada. Ébrio, adormeci no terraço da meditação. Despertei a meio da noite e escrevi este poema nas paredes do terraço.

O mau vinho é como os maus homens,
ataca, é mais mortífero que flechas ou facas.
Alquebrado, desmaiei no terraço,
foi necessário decretar tréguas.
O velho poeta é um homem de coragem,
gentis, profundas, as palavras do mestre budista.
Demasiado ébrio para tudo entender,
esbatida a mente em vermelhão e verde,
horas depois, acordei, já a lua se afundava no rio.
Diferente o bramido do vento,
num altar do templo,
ainda o leve fulgor de uma lamparina.
Os meus dois heróis, desapareceram. [1]

Imagens perfeitas

Os vapores húmidos do vinho
revolteiam-me as entranhas.
Dos pulmões, do fígado,
numa torrente, como numa avalanche,
saltam rochas e bambus.
Pinto-as na parede côr de neve,
imagens perfeitas.

[1] Lin Ziyu, amigo do poeta e Pao Xue, o superior do templo budista.

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