Mentalismo com Características Chinesas (I)

Wang Yangming (王阳/陽明1472-1528), cujo nome pode ser traduzido por “Sol brilhante”, também é conhecido pelo seu nome de nascença, Wang Shouren (王守仁), que significa “Guardião da Benevolência”. Natural de Yuyao (余姚), da província de Zhejiang (浙江), perto de Hangzhou (杭州) , foi um importante pensador neo-confucionista ao qual é atribuído o desenvolvimento da Escola do Coração-Mente (心学/學 Xīn Xué), contra grande parte da sua tradição filosófica, a escola dos princípios (理学/學Xué Lǐ ), que defendia a existência basilar de princípios celestiais (天理 Tiān Lǐ), fundamentais para a explicação da realidade, separados do poder mental. Filho de um oficial, recebeu a melhor educação clássica, tendo acesso a todo o acervo da biblioteca confucionista.

Apesar de conhecer e defender bem a ortodoxia clássica dos Quatro Livros e dos Cinco Clássicos (四书五经/四書五經 Sì Shū Wǔ Jīng), ainda jovem sentiu-se atraído pelo Taoismo e pelo Budismo, o que o tornaria um verdadeiro neo-confucionista, já que esta filosofia se caracteriza por ser uma conjugação e ligação entre o Confucionismo, Taoismo e Budismo, regida e orquestrada pelos valores ético-morais da filosofia confucionista.

Também na sua vida filosófica e profissional os valores confucionistas estiveram sempre em primeiro plano, habilmente conjugados num “idealismo dinâmico”, como lhe chamou Wade Baskin em Classics in Chinese Philosophy, que sistematizou e desenvolveu na esteira de Lu Jiuyuan (陆九渊,1139-1193). Passou nos exames imperais e em 1499 alcançou o exame de topo. Seguindo as pisadas do pai, também ele serviu o seu governo, durante longos anos até ter ofendido um eunuco, o que lhe valeu uma sova enxovalhante na praça pública e o afastamento do centro do poder, tendo sido banido para à época pouco desenvolvida Província de Guizhou (贵州) em 1506.

Aí teve oportunidade de melhorar as condições de vida dos habitantes e, também, de aperfeiçoar o seu sistema filosófico. Foi reabilitado em 1510, regressando à corte, tendo-se distinguido não apenas como bom administrador e homem de estado, mas como um general de obra feita e várias vitórias no currículo. A influência da sua filosofia perdurou. E ele recebeu a honra póstuma de em 1584 lhe ser prestado culto no templo confucionista.

A sua linha filosófica afastava-o do maior neo-confucionista até então, Zhuxi (朱熹, 1130-1200). Distinguia-o não o louvor à Humanidade ou Benevolência (Rén仁), mas, por um lado, a defesa da indissociabilidade entre o conhecimento e a acção (知行和一Zhī xíng hé yī), em termos práticos e resumidos, a seus olhos não era possível ao sábio pensar uma coisa e fazer outra, porque formava um todo como uma árvore, cuja raiz já indicava os ramos, as flores e os frutos; por outro, a identificação dos princípios celestiais com o coração-mente e este, por seu turno, com o universo, formando um todo inseparável, mais uma vez como a árvore, imagem a que recorre frequentemente para explicar que os princípios são o coração e este os princípios. A união indica a mente correta, a divisão ou separação, o mau viver, ou seja, a mente egoísta. O coração-mente controla o corpo, e só é controlado pelas paixões deste, concretamente pelas suas sete paixões, quando deixa de ser o mestre que contém os princípios celestiais e virtuosos prontos a desabrocharem e frutificarem.

Há, portanto, ideias inatas, como a do bem que são alcançadas intuitivamente, pois estão dentro de nós. O coração-mente é um espelho que precisa de ser polido para compreender e empreender a união consigo próprio e com o universo. “A mente é una, no caso de não ter sido corrompida pelas paixões humanas, é então chamada a mente justa. Mas se é corrompida por intuitos humanos e paixões, denomina-se mente egoísta” (1974, Baskin: 578.) Neste neo-confucionista, o domínio do coração implica a relação com os princípios morais inatos. Só é benevolente quem compreende e atua de forma benevolente, porque teoria e prática, reitera-se, são uma e mesma coisa. O objetivo do sábio é que a sua mente esteja tão afinada ou polida que reflita perfeitamente a realidade que o rodeia. Para tal é fundamental tranquilizar a mente, como? Harmonizando as sensações e paixões num equilíbrio tão perfeito quanto possível.

Neste tipo de filosofia mentalista o que significa a natureza? Recordemos, antes de prosseguir, que estamos perante uma forma de idealismo, logo a natureza é, primeiro, quanto à substância, o Céu (Tian), impessoal, mas também pode assumir a figura popular de um deus personalista, O Senhor Supremo (上帝 Shàngdì); segundo, do ponto de vista funcional, o destino; terceiro, enquanto relação com a humanidade, é a disposição; quarto, é o coração-mente enquanto poder controlador do corpo, (Baskin, 1974: 593) porém, em quinto lugar, enquanto manifestação da mente ou princípio mental, é as suas próprias virtudes, que lhe vão permitir alcançar o equilíbrio ou o meio entre as paixões, suscitando os bons pensamentos, que são as raízes e radículas geradas pela mente altruísta (Baskin, 1974: 597).

A natureza, tal como é entendida por Wang Yangming, neste caso o coração-mente (心xin) é o bem maior, pelo que o filósofo nos aconselha a tratá-lo como se cultivássemos uma das suas imagens já nossa conhecida, a árvore, com calma e sem ansiedade, pois precisa de tempo para se desenvolver, não se deve esperar que o tronco surja antes das raízes e quanto a estas devem ser regadas parcimoniosamente, de modo a que cresça a seu ritmo, deixando surgir os ramos, as folhas, as flores e os frutos. Nesta filosofia, procura-se alcançar uma mente altruísta, tranquila, guiada por virtudes morais, pela justiça e serviço à humanidade, com o controlo atento das paixões e das vicissitudes da vida, em nome do caminho do dever, determinado pela mente. E os filósofos taoistas e budistas que não praticam esta via, vivem separados, mergulhados em ilusões e comportamentos desviados pelas suas personalidades egoístas, já que segundo Wang Yangming os taoistas se revelam incapazes de conhecer e praticar os princípios morais e os budistas de se exercitarem nos relacionamentos humanos.

A verdade é que este filósofo também foi poeta. Na excelente edição Quinhentos Poemas Chineses (2014), coordenada por António Graça de Abreu e Carlos Morais José, podemos ler dois poemas de Wang Yangming, traduzidos por Camilo Pessanha: “Ascensão ao Miradoiro do Kiang” e “À noite, no Pego do Dragão”, onde seguimos com emoção a luta do neo-confucionista pelo domínio do corpo e suas paixões, sobretudo no segundo poema, donde retiro os últimos versos “À borda da torrente, intento fazer versos aos viço das orquídeas. /Embargam-mo as saudades violentas, empolgando-me, do Kiang-Pei e do Kiang-Nan.” (Wang Apud Abreu, Morais José, 2014:271 )

Recorde-se com o Clássico Trimétrico que entre as sete paixões a controlar: a alegria (喜 xi), a fúria (怒nù), a tristeza(哀āi), o medo (惧/懼jù), o amor (爱/愛ài), o ódio(恶/惡 wù) e o desejo (欲yù), se encontra o amor . Este, na versão neo-confucionista de Wang Shouren, “Guardião da Benevolência”, assume-se como amor à humanidade (仁爱/愛 rén´ài), mas, ainda assim, deve ser sentido e expresso com contenção, equilíbrio e harmonia para que a mente egoísta não se sobreponha à altruísta.

Acompanhemos a exteriorização poética desta ideia, que ao ganhar corpo adquire forte sentimento em “Oração de invocação à Chuva” (《祈雨辞》), registada no reinado do Imperador Ming Zheng De, no Rio Gan na actual parte Sul de Jiangxi , no 11º ano, que corresponde ao ano de 1516 da era cristã (正德丙子南赣作):

Ó Céus! Há dez dias que não chove. O campo não tem colheitas.
Há um mês que não chove, o rio vai deixar de correr.
Ah, há um mês que não chove, o povo já está doente.
Se não chover no próximo mês, como vai a população sobreviver?
Que culpa tem a arraia-miúda para sofrer tamanho castigo?!
Se falhei no cumprimento do meu dever, que me seja ditada a sentença.
Ó Céus! Já não bastam os ladrões para às gentes dar aflição, é sobre eles que deve recair a ira, não sobre o povo inocente.
Por que se consomem mutuamente o bem e o mal?
Ó Céus! Que mal te fez o povo para tão pronta fúria!
Ergam-se velozes as nuvens no céu, caindo a chuva benfazeja sobre os campos.
Mais do que os roubos não terem sido travados a tempo, pesa-me a tristeza de ver à minha volta tanto sofrimento e pobreza.

(呜呼!十日不雨兮,田且无禾。
一月不雨兮,川且无波。
一月不雨兮,民已为痾。
再月不雨兮,民将奈何?
小民无罪兮,天无咎民!
抚巡失职兮,罪在予臣。
呜呼!盗贼兮为民大屯,天或罪此兮赫威降嗔。
民则何罪兮,玉石俱焚?
呜呼!民则何罪兮,天何遽怒?
油然兴云兮,雨兹下土。
彼罪遏逋兮,哀此穷苦!)

O mentalismo de Wang Yangming, porque é neo-confucionista, implica amor, respeito e atenção aos outros e ao seu contexto natural e social, tal como o ponto de chegada da sua filosofia requer, pelo que este tipo de mentalismo se na raiz se aproxima do budismo, distingue-dele, mesmo quando este último manifesta caraterísticas chinesas, como teremos oportunidade de ver num próximo texto.

O objectivo dos neo-confucionistas será grosso modo o de transformar a terra num paraíso benevolente, onde a humanidade possa viver em harmonia por acção directa de chefes empenhados e sérios, que muito se penalizam ao jeito dos governantes da antiguidade chinesa, como Yao (尧) e Shun (舜), quando o vento não sopra a favor da população, ou melhor, quando as condições não permitem que todos os seres desabrochem tão naturalmente como plantas regadas por bons agricultores.

Referências Bibliográficas

Baskin, Wade. 1974, Classics in Chinese Philosophy. New Jersey: Helix Books.
Graça de Abreu, António, Carlos Morais José (Coord.). 2014. Quinhentos Poemas Chineses. Lisboa: Nova Veja.
Wang Yangming. 2019.Stanford Encyclopedia of Philosophy. https://plato.stanford.edu/entries/wang-yangming/
Wang Yangming (王陽阳明) 2013《祈雨辞》璞如子(释注).http://www.ziyexing.cn/articles/article-37.htm
Xu Chuiyang.1990. Three Classic in Pictures. Ilustrações de Shang Liangxin. Singapura: EPB Publishers.

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