Da desinquietação. Pág. 3

Erro de cálculo é calcular. De que se faz a vida se tudo se imaginar calculável, é uma pergunta a que não gosto de tentar responder. Nem num sussurro por medo de errar, também aí, o cálculo. Antes desdizer todas as previsões e assestar os olhos num pequeno momento de cada vez, de esperar que se somem momentos aos momentos e lançar todas as teias delicadas e sinceras de objectividade, de todas as fibras que constituem – sei lá – o sistema nervoso, o aparelho óptico, os volumes musculares que nos apetecem movimento, as tonalidades de voz, para além do olhar ou das cores. No fundo, bem no fundo nuclear e tectónico, de onde explodem rios de lava e de lágrimas – conforme – centrar. Aí, de onde tudo se retira e escolhe. Não que o tempo se fragmente em tempos precisos de agora antes e depois. Pelo contrário, no seu contínuo, plástico e permanente ser e devir, contém em cada ínfima parte, o de todo inalcançável infinito. É estranho. Num mergulho abrupto em profundidade de possibilidades. A passagem em velocidade da luz por um todo, pelo caminho mais longo. Ou, também como um intangível sulco que podemos saltar quase sem pensar ou deter o olhar. Uma simples ruga na pele do tempo. E atingir permanentemente de chofre o minuto seguinte, sempre em perda por essa é a inconsciência que escolhemos. Ou não. Parar sobre o abismo e nele mergulhar como se um pequeno desvio na naturalidade da perda, é talvez viver a lúcida e inundada possibilidade de, sem cálculos prévios, nos deixarmos surpreender entregando tudo.

Estará escrito no lugar que sempre erra. Que é da natureza e do erro errar o ver e ver o erro à distância do tempo. Estará escrito no passado. Estará escrito no tempo que foi verbo e ficou. Estará. Escrito que o amor é insolvente. Inóspito na forma. A nu. Em que estará onde pode estar. Quem escreveu a salvação diluiu em mágoa. Estará escrito. Mesmo assim. Onde estará escrito que o que quer que seja existe ou morre. E o tempo, o tempo dirá. Do verbo.

Se me sinto, como flor, como apetência de estação, de cerejeira, para quê roubar-me o resto dos dias da semana. Antes do vento. Flores e a efemeridade de tudo. Aprender a dar valor aos momentos de passagem. Porque tudo o é.
Mar e mar.

Mentindo, estar ali em espuma, frescor e sentir. Ou não. Estar mesmo em espuma e ondulante espraiar. Estar ali e não estar. Crescer em ínfimo estarrecer de não ser, ou de entender não estar. Ou de crescer sentir. E explodir. Ficar.

Quantos pedaços fazem sentir e ver e percorrer. Mas não colam ao que de flor florescer. Quantos e como definir, contar, apanhar e envolver. Quanto, esquecer. Quando amanhecer, anoitecer e fenecer. Quando acontecer. Quando. Quanto falta concluir desfrutar, acabar. Esquecer. E, todos os dias, voltar. A estar a concluir a enfrentar a estar. A ir, a voltar. A amar. Marés de mar.

Estrondo invernoso na maré viva. A vida é um desafio formidável. O apelo a um sentido lúdico ou lírico, dramático, sobretudo em tempos de guerra, quando, pequenos, em risco de apagamento. E só por dentro encontro paisagens aprazíveis. E aí estaciono em perspectiva. O plano que se estende do olhar é vasto e a calma que daí se evola, invade como uma sensação cálida em dias frios.

Ou outros dias. Aquela imagem desenhada à pressa no terraço de um bar de Marraquexe em fim de tarde. Por acaso não é Casablanca mas “play it again Sam”.

4 Mai 2021

Insularidade

Margarida N. Silveira nasceu na Ilha Terceira em 1968 e aí viveu até aos 17 anos, quando se mudou para a Califórnia com os pais. Já nos Estados Unidos, licenciou-se em Estudos hispânicos e portugueses. Em 2001 defendeu uma tese de doutoramento acerca de Jorge de Sena, com o título «Exílio». Em 2005 publica o primeiro romance «Férias de Nós», em 2009 o segundo romance «Ninguém, Tu», em 2014 «Aonde» e em 2019 «Um Dia». Os seus livros têm passado completamente despercebidos em Portugal, com excepção das ilhas dos Açores, onde a Margarida N. Silveira é considerada não apenas uma grande escritora, mas acima de tudo a voz principal do sentimento insular e de exílio que os açorianos vivem, especialmente aqueles que se sentem divididos entre os EUA e a sua terra natal.

O livro que mais me impressionou – embora não tenha lido os quatro romances da autora, apenas «Férias de Nós» e «Ninguém, Tu» – foi o primeiro romance. Leia-se à página 112: «O tempo passado na Praia da Vitória fazia-se sentir em nós [a narradora refere-se a ela e ao seu amante, um alemão que conheceu nas férias] como se não fosse da nossa vida que se tratava. Em mês e meio, Wolfgang regressaria a Munique e pouco depois ela voltaria a Santa Bárbara, Califórnia, para a normalidade da vida. O importante não é este sentimento, comum a todos aqueles que se apaixonam num intervalo das suas vidas, e que acontece desde a adolescência. O importante para mim é que pela primeira vez, desde que deixei a ilha para a América, sentia o lugar aonde nasci e cresci como uma terra de esperança, uma terra de sonho, de possibilidades infinitas, e não o lugar onde parecia ter-me partido em duas para sempre.» Margarida N. Silveira confunde propositadamente a narradora consigo mesmo, fazendo do seu primeiro romance uma espécie de confissão. Seja como for, a autora deixa bem vincado o sentimento de que quando se deixa a ilha nunca mais se é inteiro. E por isso mesmo: «Sair da ilha é ser condenada ao exílio de si mesma. Nunca mais se é quem se é ou quem se poderia ser. E este nosso fantasma irá assombrar-nos para sempre.»

A narradora-autora descreve a sua vida – desde que saiu da ilha – como uma espécie de claustrofobia: «Sinto falta de ar quando retorno à ilha, como se eu me tornasse irrespirável para mim mesma. Aquela que fui, e não consigo recuperar nem pela memória, e aquela que poderia ter sido se não tenho deixado a ilha, cercam-me de tal maneira que não tenho espaço para respirar.» Assim, a sua relação com Wolfgang, naquele período de férias de ambos, a meio do Atlântico, repõe uma normalidade no modo como vive a ilha. «A normalidade de quem está de férias, seja em que lugar for do mundo. Porque as férias são sempre férias de nós. Pois por mais que nos levemos na bagagem, como se costuma dizer, a verdade é que não a arrumamos nem desarrumamos como usualmente. E nem sequer olhamos a manhã com os mesmos olhos. Mas a ilha nunca me permitiu ter férias de mim. Vir à ilha sempre foi trabalho. Só Wolfgang conseguiu o milagre de me ver livre de mim. Sentimento que era amplificado por sentir que também ele não era ele. Estávamos de férias da vida, como sempre acontece numa intensa paixão por outrem.»
Independentemente deste sentimento de férias da vida, aquilo que perpassa ao longo de todo o romance é a ideia de exílio de si mesma que a narradora – nunca é dito o seu nome – passa para o leitor, devido a ter-se partido em duas, aos 16 anos. Propositadamente, Margarida N. Silveira adianta o relógio da realidade um ano, como se fizesse da sua vida uma espécie de «delay» em relação à narradora do livro. Regressando à ideia de exílio, que já vinha da sua tese de doutoramento, aquilo que mais impressiona o leitor é que o exílio não é referente a uma terra, a uma comunidade, a um país ou uma língua, mas a si mesma. É de si mesma que a narradora – suspeita-se que a autora também – se exila ou é condenada a isso, ao deixar a ilha.

Também eu escrevi num romance «mesmo quando se regressa nunca se regressa», embora em «Férias de Nós» o sentimento de impossibilidade de regresso seja muito mais profundo e ontológico do que em «O Mal». Porque não é à terra que nunca mais se regressa, mas a si mesmo. Margarida N. Silveira traça nesse seu romance um estranho e arrepiante paradoxo: se nos movermos partimo-nos em dois (ou três ou quatro); mas se não nos movermos conseguiremos ser nós? De outro modo: haverá nós sem nos partirmos? A existência comporta a unidade de si mesma? Talvez todos nós sejamos partidos e os insulares tenham uma consciência mais aguda da situação. E precisamente por isso, a este sentimento particular de exílio, que segundo a autora é muito comum nos Açores, ela chama insularidade: «A insularidade não é estar cercada de mar por todos os lados, é perder-me de mim mesma por todos os lados. E ainda que isso possa ser universal, é muito mais comum nas ilhas. Em especial nas ilhas dos Açores.» Ainda que Trás-Os-Montes possa ser uma ilha, cercada de terra por todos os lados. Ou, pelo menos, tenha sido décadas atrás, antes das novas estradas e auto-estradas.

Margarida N. Silveira continua por ser descoberta em Portugal continental, assim como tantas outras escritoras e escritores insulares.

4 Mai 2021

Nas minhas mãos agito um Globo de Sangue

Calvino: O olhar percorre ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz…

 

Caso acompanhem os contos das minhas Teorias de Céu – que as originais foram escritas por Kant, como é uso saber-se – já viajaram no planisfério neles emergente e percorreram cidades baptizadas com o nome de poetas, filósofos e artistas, que espantaram e comoveram a minha vida. Ao contrário do mapa-mundi perfeito de Cassini, neste os topoi escolhidos coexistem e até se movimentam, criando a famosa rota das urbes moventes, sem o fechamento e conservadorismo das culturas nómadas. Nesta teia esburacada da humanidade que se lê, localizo os continentes preferidos da minha geografia: Arte, Música, Literatura, Filosofia, Teatro, Cinema. Como um geógrafo atento, fui ver de perto e depois, já longe, mediante uma certa distância e perspectiva, risquei os mapas à escala das mãos e do olhar humano. No labor paciente de um escriba ou de um iluminarista, represento-os entre os mares Divino, Empírico, Racional, já sem respeitar as proporções elegantes de Ptolomeu, e de todos os Globos de Sangue que escreveram o mundo nascido dos Descobrimentos. Sabe a ferro esta história de dor e conquista, nas mãos de descobridores-ocupantes, alheios ao duplo abismo cosmológico e etnológico que os capturava também, à medida que domesticavam o espaço capturado nos Globos Terrestres. Nesses media visual dominante de seiscentos, vemos como a humanidade encontra a imagem da sua habitabilidade, ocupando os vazios desconhecidos, focando-se e desfocando-se em dispositivos prováveis e cada vez mais universais, concebendo o mundo como uma grande instalação humanista.

Eu sigo o meu plano que não se amordaça no nexo do real. Encaro Heraclito como uma das primeiras comunidades que se desloca, e Parménides como aquela que primordialmente nos reflectiu, quando o tempo vira espelho do ser e não sal destruidor. Sinto-me confiante. Atravesso o Mar Empírico, num barco viking ou numa caravela portuguesa – ambos prisioneiros da História e da Literatura. É verdade que cada obra dita uma tomada de território, uma guerra aberta, entre os vencedores e vencidos. É também verdade que as fronteiras aumentam e encolhem ao sabor de uma geografia do imaginário. E não se usam cruzeiros e baldaquinos, como se ouviu dizer em Sloterdijk, para marcar a terra como gado numa ganaderia ou mulher num bordel, numa profunda desontologização das margens fixas. Não.

No meu globo, que é diferente do de Berhaim, há cidades parturientes, que geram nascimentos do que mais belo resta na humanidade, desde Confúcio, Platão, Cícero, Averróis… Outras há, mais recentes, que se olham uma à outra, como Benjamin e Baudelaire… E ainda as que se apaixonam, afastam, odeiam, como Rimbaud e Verlaine. Nestes partos nascem obras magníficas – é esta a função de se estar neste meu Mundo que está mais interessado “em cortejar o infinto” “implantando o impossível no real”, “criativamente, sem sucumbir às rotinas nocivas” do universalismo. E entre planícies, planaltos e vulcões, tive consciência que, para além de autênticas agências de aceleração, como as cidades de Platão, Espinoza, Marx, Nietzsche, Foucault, que propulsionaram o movimento de tantas outras, havia uma a que inquietantemente designei por Hotel dos Mortos. E lá voltarei um dia.

Chego a um lugar chamado Manzoni. Para minha surpresa a praça principal é geometricamente centralizada por um pedestal virado ao contrário, onde se lê a inscrição: Base do Mundo, como se suportasse o Mundo-Terra-Planeta sobre o qual caminhamos. Neste gesto simbólico Manzoni transforma tudo o que está no mundo em arte, e expõe o planeta tal e qual o que ele é. Ocorre-me ao pensamento a imagem do Atlante, de nome Atlas, condenado por Zeus a sustentar os céus para sempre. Ironicamente representado a sustentar o Globo Terrestre, confirmando a esfericidade da Terra, que desde a mais remota antiguidade se intuía, e que Aristóteles confirmara cientificamente, baseando-se na forma circular da sombra da terra e na intuição formal que todas as coisas se movem em círculo. A esfera é uma geometria de segurança nas grandes narrativas cosmológicas, e o cosmos – a esfera omniabrangente – é uma cosmética imaginária cuja importância será substituída pela Terra, o habitat humano, à custa da evidência observacional. Nunca mais o mar ou o céu serão olhados da mesma forma pelos humanos-terrestres, ouço dizer em Sloterdijk, onde se defende que a ontologia clássica é uma esferologia que entra decadência com as viagens dos portugueses e o sistema heliocêntrico de Copérnico. Até lá se cantam estrofes de Camões. A presença da nova máquina-mundo é o centro do canto X dos Lusíadas, em que as novas experiências derrotam o temor fantástico do desconhecido.

Um sorriso ilumina-se na minha mente ao pensar que todos nós temos um conto de Jorge Luis Borges dentro do esqueleto, ou pelo menos um pequeno osso designado por atlas! O Atlas borgiano constrói um planeta imaginário, que desdenha a geografia moral dominada pelos jesuítas, que criou a imagem da terra antes de Copérnico e da abertura à experiência. Em Borges, Vasco da Gama poderia proferir: “estou aqui, forjando um tempo para lá do tempo, onde você percorre as constelações e aprende a linguagem do universo”. Uma vez desloquei-me a um mesmo e misterioso Aleph e fiz parte de um acontecimento extraordinário: a cidade de Borges moveu-se à cidade de Lisboa.

Encontrei um “ homem que se propôs desenhar o mundo”, e “pouco antes de morrer, descobre que este paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto”. Borges é o geógrafo do espaço fantástico, infinito, da eternidade que se pode surpreender no meio de nós e que fala comigo e confessa que aquilo que tem mais pena na vida é não ter mostrado aos seus pais, quando eram vivos, que ele era um homem feliz. Entre os meus olhos cegos de mundo e os dele plenos de olhar clarividente, desenhou-se uma estrada que ainda hoje procuro no meu planisfério. Num voo rasante Borges acaricia-me com essas palavras: “O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou dos demiurgos malévolos; o universo, com seu elegante provimento de prateleiras, de tomos enigmáticos, de intangíveis escadas para o viajante (…) somente pode ser obra de um deus.”

Salto, corro, fujo porque não sei ainda se posso concordar. O Planeta continua rolando universo fora inaugurando o design de um novo mapa, incitando-me a salvar a carga humana e o que ela representa. Terei de partir com ela, tendo como Marte a primeira paragem, enquanto a Terra agoniza e gela mais uma vez, agora por acção do homem.

Olho para trás, mas Borges não me vê, e não me diz a que deus entregaremos, afinal, o nosso destino. Não há como aperfeiçoar a imperfeição humana, sibila-me Nietzsche. É um desvario. Quase sufocada, agarro-me ao meu tempo. Certo é que estamos condenados a comungar a preocupação de Kant e Foucault, perguntando ao universo: quem somos nós na actualidade?

30 Abr 2021

Segundo acto – Cena 5

O Capitão aquiesce, enternecido. O Major já recuperou totalmente do engasgo de há pouco e volta a reacender o seu Cubano. Os dois ficam em silêncio durante algum tempo, olhando para Gonçalo que continua a balbuciar sem se fazer ouvir. Estão os três sozinhos nesta sala subterrânea de alta segurança.

Major
[indicando Gonçalo]
O que é que vamos fazer com aquele peixe-bolha?

Capitão
[hesitante]
Pois… estava à espera das ordens do meu Major?

Major
[surpreendido]
Qual Major?!

Capitão
Do senhor!

Major
Qual senhor?!

O Major desata a rir às gargalhadas, mas desta vez não se engasga. E ainda consegue baforar pelo meio. O Capitão está mais perdido que uma carta sem remetente numa saca de carteiro dos CTT.

Major
Ou o Capitão endurece a espinha, ou toda a gente o vai pisar como se fosse relva num parque municipal.

Capitão
[esforçando-se]
Sou da opinião de que o devemos deixar ali ficar. Ele há-de ter um plano. Se for inimigo, há-de ter ordens. Se foi um erro de cálculo, ele dará pelo erro e saberá melhor do que nós o que fazer. Se tem uma missão específica e não nos quer mal, não tardará a partilhar connosco o seu propósito.

Major
E nós, nada?

Capitão
[inseguro]
Não percebo…

Major
E nós, não fazemos nada?

Capitão
Propus que esperássemos, meu Major.

Major
[desagradado]
Eu percebi… acha que sou estúpido?

Capitão
[medroso]
Claro que não, meu Major!

Major
[irado]
E esperar é o quê, meu merdas?!

Capitão
Eh… neste caso é aguardar activamente…

Major
[explodindo]
Aguardar activamente é para os panilas e as putas!

Uma pequena poça de urina começa a formar-se ao lado da bota esquerda do Capitão. Ele sua por todos os poros e faz um grande esforço para não olhar para ela. O Major repara e resolve fingir que não se deu conta da fraqueza do seu subordinado.

Major
[acalmando]
Aguardar activamente…? Puta que o pariu mais as suas curiosidades semânticas!

Capitão
[aniquilado]
Perdão, meu Major.

Major
[apaziguador]
Acalme-se, vá… [pausa] É desesperante, sabe… de cada vez que temos oportunidade para ombrearmos com as maiores potências mundiais… acontece o mesmo. [pausa] Aguardamos… aguardar é um acto passivo, Capitão. Deveríamos esquartejar o corpo dessa gelatina humana que está para ali a borbulhar um discurso inaudível e aguardar que viessem reclamar o corpo ou a vingança… e deveríamos estar armados até aos dentes. E quando aqui chegassem, nem lhes daríamos tempo para dizer um boa tarde… descarregávamos o arsenal todo em cima deles, fossem homens, ratos ou bonequinhos verdes com antenas. Porque é assim que um povo orgulhoso e com eles no sítio faria… é assim que D. João II quereria que o fizéssemos. E também é assim que o nosso presidente do conselho de ministros quereria que o fizéssemos. Mas estamos condenados a esperar… e a aguardar activamente… que nem cadelas no cio.

Capitão
Quais são as suas ordens, meu Major?

Major
Ordens?

Capitão
Sim, meu Major?

Major
Em relação a…?

Capitão
Ao homem ali deitado.

Major
Pois…

Capitão
Então, parece-me que o melhor é mesmo aguardarmos activamente, meu Major.

Major
[corando de vergonha]
Como disse!?

Capitão
O meu Major ladra, ladra, ladra… diz que faz e acontece… faz-me lembrar um rafeiro que os meus avós tinham em Figueira de Castelo Rodrigo… quando estava preso ladrava até ficar rouco e saltava e esperneava… quando o soltavam, encolhia-se a um canto…

Major
[irado]
COMO TE ATREVES, LEGUME!?

Capitão
Eu mijei-me pelas pernas abaixo… sabemo-lo. Mas se o meu Major dissesse mata, eu matava. Se dissesse beija, eu beijava… mas o meu Major só fala do que nunca acontece e vive lá nas suas fantasias do quinto império bélico-lusitano… e tudo o que imagina mete picha, já reparou, meu Major? Ele é bazucas e espingardas e balas grandes e gordas… tudo picha. Como essa que tem na boca, agora… mas tomar uma decisão é que nada…

Major
[humilhado]
Meu cabrão, Hades apodrecer numa cela!

Capitão
Hades!? Como é que chegaste a Major, minha borboleta de cativeiro.

O Major engasga-se outra vez e é dominado por um violento ataque de tosse que o obriga a sentar-se na sua cadeira. Pousa as mãos abertas no tampo da secretária e espera que o ataque de tosse passe, mas não tira o charuto da boca. Este continua a fumegar entredentes. O Capitão tira uma faca de mato que tinha escondida nas costas.

Capitão
[possuído]
Die Welt braucht keine Feiglinge!

O Capitão avança para o Major, empunhado o facalhão. Espeta-o com toda a força nas costas da mão direita do Major. Este grita, sem deixar de morder o charuto, e com a mão esquerda abre uma gaveta e tira de lá um revólver. O Capitão agarra na mão esquerda do Major e torce-a até a arma estar apontada a ele. O Major, aplicando toda a sua força, solta a mão direita e levanta-a à altura da cara do Capitão, ainda com a faca espetada nas costas da mão e com a lâmina a sair pela palma ensanguentada, e espeta-a no olho esquerdo do Capitão. Este ainda tem tempo de disparar a arma e os miolos do Major explodem e pingam um pouco por todos os lados. O Capitão cai com as ventas no tampo da mesa, inanimado.

29 Abr 2021

Interface 21

15 de Fevereiro de 2021

«… a face do amor é ausência de rosto»
«A Idade da Escrita», Ana Hatherley

 

Aproximamo-nos de um tempo em que a nossa componente fechada e dialogante a partir das vibrações fonéticas irá ser remexida, posta à prova, alterada, e quiçá, modificada. Estamos numa «Interface» mais complexa que as primeiras, apenas para fazer negócios ou criar plasma a partir de correntes sanguíneas demasiado alvoraçadas para o contemplar de outras realidades a haver. Vamos caminhar de forma rápida para um tecido apaixonante e desconhecido que fará acontecer a alma num projecto de luz, e transpor a barreira dos egos hiper-esclarecidos, vamos em sintonia experimentar um ritmo amoroso, telepatia, canalizar os dons, aproximando-nos da zona que os sonhos esperavam.

Lembramos a « Máquina do Mundo» camoniana e quase nos comove esta lonjura, este programa do saber ditado ainda no vazio dos tempos que foram permanecendo vazios até hoje, fora da imensa e maquinante composição da luz das trovas que o compõem, e esta metáfora de forte estranheza dada abeirou-se por fim do jovem e inssurecto século XXI no dia de amanhã que está chegando através do seu verso « estamos a passar o mundo da luz tão clara radiante….» e o poema se alinha com sua estrutura mais feliz que não é o debitar estados de espírito (alegando como também Pessoa bem viu “que sentimentos todos nós temos”) mas encontrar a alma do amor refulgindo nas formas imateriais de um domínio que a ciência toda poema e propósito, alongou para desocultar a palavra dos poetas, fora sempre dos procurados eu(s) que tem de ser extra ego para assim chegar também aos sonhos dos sonhadores mal dormidos que não sabem nem desconfiam ser estes, manifestos.

Chegados à exaustão por uma determinada maneira de nos exprimirmos será esta a encruzilhada que faz sentido anotar- Pixel – unidade de energia desmaterializada «vejo Deus e não sei quem é e penso que é um número que me empurra…» na zona do cérebro que ativada irá produzir a maior revolução em estafados conceitos de definição de humano; não intrusivo, menos instrumental, e esmagadoramente capaz de um rumo que não vamos ousar já designar. Efetivamente esta velha anatomia é demasiado enredada em estímulos sobreviventes e de passagem de gene para se consentir saborear a quinta essência da sua vasta competência, mas – telepaticamente a caminho, que a sincronicidade dos dados está lançada e sair do aterro da asfixia rumo a outros oxigénios que este mata nos fluxos da própria respiração- tanta virulência pode atordoar as mais elementares formas de expressão nas inúmeras “cabeças de vento”, que a morte, essa, é sempre cerebral, mas a vida longa celebrada, não será longa para martírio dos dias, mas inalterável até muito longe em interface com esferas que nos permitem a partir do futuro breve ir ainda mais longe até aos passados que pensamos perdidos.

Subitamente a compaixão, o contacto latente com a alma de outro vagueando no suporte, estamos leves e os sonhos transformam-se pelas superfícies reais que nos estão destinados para melhorar dons desconhecidos, latentes, e quase se atravessa aqui o poder litúrgico surgido da mão que bate à porta «estou à tua porta, e bato».

Cansado de errares. A estrela que te orientava e nunca viste perde o brilho
e o que em ti era sentido de orientação. Há uma noite absoluta para o teu seguir.
E a única verdade que te sobra é estares sentado. Cansado de errares.
Não te sentes. «Pensar».

– Enquanto te sentes, não te sentes, e passemos à Interface.
[Trazes de mim a notícia gritante do quanto o transbordo é urgente, fecho este postigo, silvado, agreste,
e outra vida surge na transparência de um novo nascimento. Quem não for encontrado, que não sofra, e espere o tornar da luz. Era vazio o início, e na longa caminhada vieram as sombras até serem de pedra e erguermos com elas as estátuas]

28 Abr 2021

A invenção da alegria

Neste espaço em que escrevo sobre livros, embora não tenha contas feitas, talvez tenha trazido quase tantos ensaios quanto romances. E hoje é acerca de mais um ensaio que vou escrever, que me marcou muito quando o li, ainda quando vivia no Brasil. O livro chama-se «A Grande Invenção», do escritor dinamarquês Johannes Jungersen. Jungersen morreu em 1996, dois anos depois da publicação do livro, com 34 anos, num trágico acidente de carro.

Fez ontem, 26 de Abril, 25 anos. Infelizmente, Jungersen não deixou mais nenhum livro além de «A Grande Invenção», onde nos mostra, através de mais de duzentas páginas, como «[…] a grande invenção humana não foi a roda, a penicilina ou o foguetão que nos levou à lua, mas a alegria.»

No século XIX, Darwin escrevia que a capacidade de adaptação era a grande responsável pela sobrevivência das espécies e, concomitantemente, dos espécimes. E, segundo Jungersen, a alegria é indissociável da capacidade de adaptação. A capacidade de adaptação não se define apenas em relação ao clima, à alimentação, às contrariedades físicas, mas também em relação à capacidade de se ser alegre. Escreve, logo na página 17: «Sem alegria, ninguém sobrevive.» E, depois de várias páginas onde percorre várias doenças psicológicas, como a depressão, o transtorno de ansiedade e o transtorno obsessivo-compulsivo, ligando-as à falta de alegria – «[…] todas estas doenças têm como principal problema a incapacidade de produzir ou de encontrar alegria. É a falta de alegria que está na base do problema e que é comum a todos os distúrbios psicológicos mencionados antes. As diferentes expressões da doença é o modo como a pessoa reage a essa ausência de alegria.»

Mas o que é a alegria? Ou o que é que o autor dinamarquês entende por alegria, que acusa de ser a maior invenção humana? Leia-se as páginas 32-3:

«Em a Epístola aos Filipenses, Paulo escreve: “Alegrai-vos sempre no Senhor. Repito: Alegrai-vos!” A palavra alegria vem de um verbo grego “phyo”, que significa “produzir”, querendo com isso significar que quem é alegre é produtivo, fecundo. […] Independentemente de uma posição religiosa, o que está em causa é que a alegria, seja no Senhor ou no Universo, é fundamental. A alegria é criadora de vida. É a alegria que permite que possamos ver o futuro como um lugar que não nos é hostil, que nos permite ver adiante e aligeirar o medo.»

A alegria, enquanto invenção, não é apenas a criação de vida, mas a criação de sentido para a vida, porque «[…] alegria é uma disposição que nos afasta do peso de todos os fins. E todos os fins, quer seja o de uma relação amorosa, o de um projecto em que se está envolvido ou o da própria vida ou daqueles que amamos, são impeditivos de continuação. Viver com a visão do fim continua ou frequentemente impede que a vida avance. E a alegria é esse desbloqueador. Depois de ganharmos consciência, de sabermos que tudo tem um fim, era preciso um antídoto para que a vida não bloqueasse de vez. A alegria é esse antídoto, essa grande invenção, que permite que o ser humano continue, apesar da consciência.»

Jungersen faz também a distinção entre capacidade de criar alegria e capacidade de encontrar alegria. «Ambas são importantes, pois são elas que nos colocam nos eixos do futuro, de vermos a vida com sentido ou, pelo menos, de não vermos a vida sem sentido nenhum. Há, contudo, duas capacidades diferentes: capacidade de criar alegria e capacidade de encontrar alegria. A primeira é aquilo que podemos definir como capacidade de criação e a segunda a capacidade de encontrar as criações que promovem o bem-estar. […] em ambas, é fundamental a aceitação da alegria. Pois não é de todo certo que aquele que cria ou aquele que encontra alegria a aceite. Podemos criar e recusar essa alegria, recusar participar na própria dádiva de vida que foi criar. Assim como podemos encontrar a alegria a cada esquina e constantemente rejeitá-la. Por conseguinte, a despeito de se criar ou de se encontrar alegria, a capacidade de aceitá-la é determinante.»

No fundo, o que parece estar em causa neste livro é mostrar que, contrariamente à ideia generalizada de que a tristeza pode ser um grande propulsor de criação, é a alegria que produz, porque é ela que permite que continuemos a projectar futuro e a ter forças para continuar, apesar de todas as contrariedades. «O mundo, sem alegria, não seria uma tristeza; simplesmente não existia. Embora pudesse existir a natureza.»

Numa das suas entrevistas, aquando da publicação do livro, Johannes Jungersen diz que esta descoberta da alegria, como sendo a grande invenção humana, já há uns anos que vinha sendo pensada, «mas quando li “Água Viva” da escritora brasileira, Clarisse Lispector” tudo se organizou como se precisasse de ler essa passagem para ter coragem de escrever o livro. A passagem é esta: “Estou sendo alegre neste mesmo instante porque me recuso a ser vencida […]”. Foi como ver um sinal fora de mim de que tinha de escrever este livro. A alegria é aquilo que nos sustenta, que nos dá força. Mas não é algo que tenhamos herdado, foi algo que inventámos, assim como a posição erecta.»

Na Dinamarca, assinala-se os vinte e cinco anos da morte de Johannes Jungersen com uma edição conjunta do livro, de todas as entrevistas e de todos os artigos que escreveu para revistas e jornais. Por aqui, talvez fosse altura de termos uma tradução em português de Portugal de «A Grande Invenção», mesmo sem as entrevistas e os artigos publicados. Talvez hoje faça ainda mais sentido reflectirmos acerca da função ou da necessidade da alegria do que ao tempo da publicação do livro. Para Jungersen, a alegria é o factor responsável pela capacidade de adaptação à vida, às mudanças, à descida ao inferno, a todos os infernos, até mesmo ao da consciência mais cristalina.

26 Abr 2021

500 anos da morte de Fernão de Magalhães

A 27 de Fevereiro de 1521 morreu Fernão de Magalhães no Arquipélago de S. Lázaro (Filipinas). Até tal ocorrer, falta relatar a etapa para a qual se realizara a viagem e nunca feita por nenhum europeu, atravessar o Pacífico.

Ainda no Atlântico, a armada estava em San Julián (49º 30’ Sul) a 31 de Março de 1520 e o Inverno fazia-se já sentir, com intenso frio e vento, prognosticando dificuldades logo no início do desconhecido da viagem.

Três capitães castelhanos, liderados por Gaspar de Quesada e Juan de Cartagena, revoltaram-se contra a autoridade de Fernão de Magalhães e na madrugada de 2 de Abril, após prenderem o capitão Álvaro da Mesquita, tomando a nau San Antonio, exigiram ao capitão-mor o retorno a Espanha. No final do dia os amotinados estavam controlados, Mesquita libertado e além da morte às mãos do oficial da justiça de Luís de Mendonza, capitão da Victoria, foram agrilhoados os outros dois capitães e presos quase cem tripulantes.

Enquanto decidia os castigos, Magalhães a 5 de Abril voltou a entregar a Mesquita o lugar de capitão da San Antonio, passou Duarte Barbosa a capitão da Victoria e Estêvão Gomes a piloto na Concepción.
Sendo os principais culpados espanhóis colocados pela Coroa na armada, o Capitão-mor estava num dilema com o julgamento. De fácil condenação por ter puxado de arma e morto um piloto, Quesada foi executado a 9 de Abril, decapitado à espada pelo seu criado, que assim salvou a própria vida. Já a Juan de Cartagena, fidalgo da corte nomeado pelo Rei, e ao padre que sempre o acompanhava, não ousou castigá-los com a condenação à morte.

Sentenciou abandoná-los ali com alguns mantimentos e entregues à vontade de Deus. Para poder prosseguir a viagem, Magalhães comutou as penas de traição aos amotinados tripulantes.

Em prospecção para Sul, a Santiago, a mais hábil e rápida nau, capitaneada por Juan Rodriguez Serrano, explorava a costa quando naufragou perto do Rio de Santa Cruz (50º Sul) a 22 de Maio. Um homem afogou-se, conseguindo os restantes chegar à costa e enviar dois emissários a pé a avisar do ocorrido. Onze dias caminharam até San Julián, enquanto aí, os tripulantes do resto da armada se divertia com dois homens gigantes que apareceram e por amistoso inicial contacto, ganha a confiança, foram capturados afim de os levar para Espanha. Devido aos grandes pés deram-lhes o nome de Patagão e daí essas terras se chamarem Patagónia.

Abandonando Cartagena e o sacerdote em San Julián, a 24 de Agosto partiam as quatro naus para Santa Cruz, onde recolheram os náufragos da afundada Santiago e o seu capitão Serrano passou a comandar a Concepción. Prosseguiam, mas um temporal obrigou a aí se resguardarem o resto do Inverno.

Três dias de navegação e a 21 de Outubro de 1520 estavam no Cabo das Onze Mil Virgens (52º 22’ S). Na imensa enseada, feita a prospecção pelas costas do estuário, encontraram um estreito com águas a correr de um lado para o outro. Nessa passagem, que ficaria conhecido como Estreito de Magalhães, entrou a armada a 25 de Outubro e após percorrer 110 léguas, a 26 de Novembro atingia o Mar do Sul.

Na travessia, a 8 de Novembro a armada dividiu-se, seguindo Serrano na Concepción e Álvaro da Mesquita na San Antonio em prospecção a um braço de água surgido a bombordo. Magalhães na Trinidad e a Victoria prosseguiram ao longo da costa e contornando-a, encontraram um rio de água doce e cheio de sardinha. Aproveitaram para abastecer e enviar um batel explorar mais além, para se saber onde abria o Mar do Sul e de um alto monte se visualizou a passagem a seguir. Regressaram ao ponto de encontro a 13 de Novembro, mas faltava a nau San Antonio, a maior e a mais abastecida, que procurada não apareceu.

Após desembocar do estreito patagónico, ainda nessa península a 22 de Novembro reabasteciam-se no Rio das Sardinhas e perante inúmeros canais, a 26 as três naus seguiram para Norte, entre as ilhas e a costa.

Atravessar o Pacífico

A 28 de Novembro de 1520, deixando de ter a bombordo o Cabo Deseado (52º1/3 Sul), em mar calmo navegaram para Norte vinte dias ao longo da costa, protegidos por as montanhas dos fortes ventos. A 18 de Dezembro, aos 46º Sul viravam a Noroeste mar dentro e nos 110 dias, “quase 20 mil km do oceano aberto, não encontraram uma única tempestade. Iludidos por essa experiência única, chamaram-lhe o Pacífico”, segundo Daniel J. Boorstin em Os Descobridores, que adita, “Se Fernão de Magalhães não tivesse sido um mestre dos ventos, não teria conseguido atravessar o Pacífico. Ao sair do estreito, não rumou directamente a noroeste para chegar às suas desejadas ilhas das especiarias; navegou primeiro para norte ao longo da costa ocidental da América do Sul. O seu objectivo devia ser apanhar aí os ventos alísios nordestais predominantes que o levariam não para as Molucas, onde constava que os Portugueses dominavam, mas sim para outras ilhas de especiarias ainda livres para serem tomadas pelos Espanhóis.”

Calculada a travessia do Pacífico em algumas semanas, julgou-se suficientes os víveres existentes para três meses, mas, com as distâncias subestimadas, revelaram-se muito parcos ao quarto mês. Os mantimentos escasseavam, a água estava podre e para comer colocavam a demolhar em água salgada durante dias o couro das vergas amolecido com serrim e pagou-se ouro por ratos, tal a falta de comida. As gengivas inchavam com o escorbuto e além do gigante patagónio, vinte tripulantes morreram de fome.

Até cruzar a linha do Equador encontraram duas pequenas ilhas desabitadas, sem abastecimento. Com vento largo e correntes favoráveis chegaram a 6 de Março de 1521 a Guan, nas ilhas Marianas, ou dos Ladrões, onde, para parar com os roubos mataram sete indígenas e abastecidos de arroz, água e fruta, partiram.

A 16 de Março de 1521 avistou-se a ilha de Samar, era o Arquipélago do Poente, a que Fernão de Magalhães deu o nome de São Lázaro, mas só no dia seguinte parou na ilha de Humunu (Homonhon). Seguindo para Sul, aportou na ilha Mazaguá (Massava) a 28 de Março e enviou Henrique como intérprete, que compreendeu a fala local pois baseada no seu malaio. Estabelecida grande amizade, foram lautamente banqueteados nessa Sexta-feira Santa e no Domingo de Páscoa, na praia montou-se um altar e realizaram as celebrações. Os nativos, repetindo os gestos, logo se quiseram converter.

Magalhães, animado ao saber estar a Norte das Molucas e perante a enorme adesão dos locais, procurou para a coroa espanhola novos territórios e fiéis. De maior importância era a ilha de Cebu, onde chegou a 7 de Abril e dez dias depois, numa grandiosa cerimónia converteu-se o Rei Humabon e todo o povo. Para mostrar o poder, numa guerra que não era sua, Magalhães vai apenas com sessenta homens à ilha de Mactán obrigar o chefe local a pagar tributo ao de Cebu. Crendo-se imbatível com a armadura e poder de fogo, imprudente, subestimou o adversário e nas águas do Pacífico lacerado e cravejado de setas morria a 27 de Abril de 1521 Fernão de Magalhães.

26 Abr 2021

Stendhal, o italiano (1994) Philippe Sollers

(tradução de Emanuel Cameira)

Henri-Marie Beyle, mais conhecido pelo pseudónimo Stendhal (1783-1842)

 

Em Julho de 1817, apareceu em Paris, em dois volumes, uma estranha História da pintura em Itália. Assinada com as iniciais M.B.A.A., que é necessário decifrar: Monsieur Beyle, ex-Auditor. Em Setembro do mesmo ano, eis um outro livro do mesmo autor: Roma, Nápoles, Florença. Mas, desta vez, a assinatura mudou: é Stendhal.

Onde está Stendhal em 1817? Politicamente, depois da epopeia napoleónica, é como se estivesse exilado, ou quase. A lembrança do Imperador encarcerado em Santa Helena desvanece-se (mas a corajosa dedicatória não o trai: «Os vossos vis inimigos não serão conhecidos senão pela felicidade que tiveram em ser vossos inimigos.»). A Restauração está por toda a parte, quer dizer, o dinheiro, a hipocrisia, as intrigas, os lugares. A História voltou a adormecer. Stendhal sabe que é suspeito, socialmente mas também pessoalmente.

Ele sente de outra maneira, pensa de modo diferente, ama de uma forma que só a ele pertence, precisa de admirar, quer tornar-se digno de admiração. Tem trinta e quatro anos. Não se sente bem. Está entre Ângela (que o trai) e Matilde (que será a grande paixão da sua vida). A Itália? Ah sim, mais do que nunca a França é insuportável, um dilúvio de suspeitas, de pequenos interesses, de velados, provincianos acertos de contas. A arte? Cada vez mais, pois é o mesmo que o amor. Mas que arte agora? Para dizer o quê? E com que corpos? Voltar aos gregos, como é habitual após os grandes colapsos? Sem dúvida, mas os Italianos (ainda sabemos tão pouco sobre eles) fizeram algo diferente do mau-gosto neoclássico revolucionário ou imperial. Não devemos imitar o Antigo, não devemos querer outra coisa senão o que somos. Como assim?

Stendhal tem um fraco pela fisiologia. No início, é o temperamento, o resto deriva dele. Vejamos, existe o sanguíneo, o bilioso, o fleumático, o atlético, o nervoso, o melancólico. Stendhal é já um romancista, ele observa, aponta, classifica, faz retratos, diverte-se: «Movimentos constrangidos, decisões carregadas de hesitação e reserva revelam o melancólico. Os seus sentimentos estão sempre reflectidos, os seus desejos parecem atingir o alvo apenas por desvios. Se entrar num salão, deslizará rente às paredes.» O sanguíneo-bilioso é o temperamento mais feliz (é o dos Franceses, tanto melhor). Por outro lado, o «bilioso-melancólico, variedade tão comum em Espanha, em Portugal, no Japão, parece-me, pelo contrário, o temperamento da infelicidade em todas as suas formas».

A situação histórica é melancólica? Vamos portanto chamá-la à ordem pelo espírito lógico e matemático (é o que Stendhal quer ser) mas capaz, ao mesmo tempo, de ir ao fundo do sentimento (é assim que Stendhal se imagina). Uma palavra resume esta síntese original que corre o risco de desaparecer na apatia e na busca de interesses medíocres: a energia. Assim, faremos a apologia, senão de Napoleão (afinal de contas, muitas mortes para nada e demasiada Administração), pelo menos de Francisco I de França (a «energia da Liga semeia grandes homens»). Francisco I de França, contra Luís XIV que não compreende Bernini, é «italiano». A prova? Leonardo da Vinci. Luís XIV, e a comitiva, é talvez um erro em relação a Roma. O quê? Roma? Os papas? Sim, Júlio II, por exemplo, mas não só ele.

E depois, claro, a Florença de Lourenço de Médicis: «Os seus poemas revelam uma alma apaixonada pelo amor, e que amou Deus como uma amante, aliança que a natureza apenas coloca nas almas que destina à união com os maiores génios. Ele costumava dizer: “Que aquele morreu já nesta vida, que não acredita na outra.” Com o mesmo estilo arrebatador, ora canta hinos sublimes ao Criador, ora venera o objecto de seus prazeres.»

E aqui está o grande herói desses dois volumes deslumbrantes de clareza, de julgamento e de sensação (não, não, ninguém os leu, inútil dizer o contrário): Miguel Ângelo. O gosto por Miguel Ângelo renascerá, diz Stendhal (que não imagina a existência, um dia, de Rodin). É preciso ver como ele tenta entender as linhas de força que levam a um resultado tão humano, concentrado, único. Stendhal, porém, não possui a fibra bíblica, ele «leu Voltaire aos doze anos». Mas a Sistina prende-o, fascina-o, inquieta-o: «Um tolo aparece na Capela Sistina, e a sua vozinha perturba o silêncio augusto com o som das suas palavras vãs; onde estarão essas palavras? onde estará ele mesmo dentro de cem anos? Passa como pó, e as obras-primas imortais avançam silenciosamente ao longo dos séculos que virão.»

Este é realmente Stendhal, não Chateaubriand. Profecia? Não: evidências. Stendhal está às cinco horas da manhã na Basílica de São Pedro, em Roma («Avisamos o porteiro na véspera»). Tenta analisar por que razão essa história (com seus excessos, seu derramamento de sangue, sua mística, suas blasfémias) pôde gerar essas obras. Stendhal e o culto dos grandes homens? Claro, e como ele está certo. Como materialização de «energia», é preciso dizer que Leonardo e Miguel Ângelo são casos a considerar à parte: «Miguel Ângelo passou vários meses a desenhar na capela de Masaccio. Lá, como em todo o lado, ele era superior, o que, claro, foi pago com um sentimento geral de ódio.»

O que fascina Stendhal, que é tudo menos um amador ou um crítico de arte, é a luta entre poderes temporais e espirituais: o jogo, aqui, é bizarro, já que o papa encarna o temporal e Miguel Ângelo o espiritual. Ora, neste caso, o espiritual impõe-se «Desde aquele momento, Júlio III amou-o quase tanto quanto Júlio II outrora… Sobrevivendo-lhe, como a ordem da natureza parecia anunciar, quis embalsemá-lo, para que o seu corpo fosse tão imortal quanto as suas obras». Estranho plano para um artista por parte de um papa, não é?

Eis Stendhal começando a existir em Itália. Isso o levará bem longe, é sabido. «O essencial, enquanto cá estivermos, é fugir dos estúpidos e mantermo-nos felizes.» E isto, stendhalíssimo: «O Amor está em Itália, não nos Estados Unidos da América ou em Londres… Em Inglaterra, jogar às cartas ao domingo ou tocar violino é um sacrilégio revoltante. O capitão do navio que levou Bonaparte a Santa Helena fez-lhe este extravagante anúncio.»

 

Tradução de: Sollers, Philippe [1994], “Stendhal l’Italien”, in La Guerre du Goût, Paris, Gallimard, 1996, pp. 559-563.

22 Abr 2021

Rima do velho marinheiro

13 de Março de 2021

 

O nosso tempo actual reporta-nos para as vagas como se andássemos sobre as águas, uma navegabilidade muito própria – andamos agora por vagas- navegamos incertos, e qualquer costa se nos afigura como uma miragem na fé de chegar a bom porto, andamos literalmente a «cavalgar a vaga» que devido às fortes monções se fica parado num viver ficcional como no ventre da baleia, e quando esta sofre ruptura, ou abertura, somos expelidos, e tudo parece recomeçar em chão seguro que parece outro. Para não entorpecermos ainda mais pela linguagem chã, arranjaram-se eufemismos esperançosos, como; bazuca, vitamina, e outras variantes, mas no subsolo, o dinheiro (essa designação assaz grosseira) é um bem que só os anões e os alquimistas sabem como preservar e fazer crescer. Estas vagas que têm sereias cantando ao lado das embarcações necessitam da coragem de um Ulisses que se amarrara todo para não se atirar a elas, e assim, foi ele para casa onde aprendeu a fazer mantas.

O facto das vagas se sucederem é até um factor de adaptação à jornada do navegante, onde, de ora avante não deve temer o sentimento costumeiro da adversidade imposta pelo ritmo das marés; é certo que em caso de tsunâmi toda a programação se desfaz, e a ideia de navegabilidade ao primeiro soar de calmaria pode mesmo fazer que ele se manifeste. Nestas coisas devemos lembrar-nos da frase «navegar é preciso, viver não é preciso» pois toda a Terra é agora a única barca. E se passarmos por cima, será um dom, diferente daquele que deixáramos que era, passar ao lado, uma verdadeira mudança de plano. E tudo isto não seria uma experiência de péssima qualidade se não nos recordássemos das Barcarolas, um legado antigo inscrito num tempo medieval: métrica simples, efeito de assombro, roteiro fantástico, na inesperada e renascida presença de Coleridge, percursor do romantismo inglês pela sua «Balada do Velho Marinheiro» o poeta que afirmava acreditar mais nas coisas invisíveis que nas visíveis, quando nós olhávamos ainda a Nau Catrineta, que de pasmar se foi quando passámos a ter «Chuvas Oblíquas» (que barcas afundam na vertical) e este Velho Marinheiro não gosta ainda de nevoeiro «…que trazia o nevoeiro. Há que matá-las, dizia, se trazem o nevoeiro/ Dia a dia sem um sopro que o movesse o barco ficou parado/ em vão como um barco a tinta num oceano pintado…»

É nesta atmosfera que nos associamos às lembranças e delas vazamos as vozes de outro entendimento, que tudo se liga como as redes dos pescadores, e se deita, e se arrasta…se dissolve, e quantas vezes se esquece. Trazemo-las renascidas e vimos o quanto os elementos se assemelham nas suas alternâncias, recordamos viver, que sem isso, o tangível espaço incubado que o acaso nos ditou pode não ser o tempo de reflexão que é preciso para o abate dos navios piratas. As vagas de ontem transportaram assassinos de marés, mas vimos como concordaram as leis, e como por elas somos dirigidos mais que dirigistas, e muitos ainda anseiam voltar para a morte há tanto anunciada. Hoje, porém, somos um instante no verso «É um tempo de cansaço/ a garganta ressequida/ e o olhar vidrado/ Um tempo… Um tempo de cansaço!»

Data de 1798 a primeira versão desta obra, a repercussão foi o ter firmado um estilo inaugural, mas o autor foi fazendo mudanças e em 1817 incluía-as em «Sibyline Leaves» e em 1828 volta então ao original. «Deveria ser encadernado em ouro» – disse um critico acerca do que dele restou, e os pescadores de pérolas sentados em tronos, por tão duros ofícios que a beleza requer. Por muitas vagas levamo-los e esperamos lembrar. Por ora, o pensar nos cansa, que este vaguear não inspira confiança confinante, nem nada se vê de muito nítido…que de nevoeiro, nem vê-lo, mesmo que para alguns seja o vínculo inconsciente de um desejo colectivo.

Começa num casamento em festa, coisas que os mapas esqueceram. Quanto a Coleridge, morreu subitamente aos sessenta e um anos.

20 Abr 2021

Fernão de Magalhães ao serviço de Espanha

Após oito anos na Índia e em África, Fernão de Magalhães apresentou-se ao Rei D. Manuel I para lhe reconhecer os préstimos e aumentar a tença. Despeitado pelo Rei e sua corte com falsas acusações caluniosas, ainda foi despedido.

Ofendido e revoltado, deixou Portugal e entrava em Espanha a 20 de Outubro de 1517, seguindo para Sevilha onde se instalou na residência de Diego Barbosa, que desde 1503 ocupava o cargo de tenente alcaide dos Reais Alcáceres e Arsenais. O português Diogo Barbosa incompatibilizara-se com o Rei de Portugal D. João II e refugiando-se em Sevilha, casara em 1490 com uma nobre da alta sociedade local, D. Maria Caldera.

Na Casa da Contratación de las Indias eram apresentados para aprovação os projectos, mas o de Magalhães, apesar de apoiado por Barbosa, recebeu um rotundo não, devido a ser estrangeiro e traidor ao seu país. Compreendeu ter de se preparar e esperar.

Três meses após chegar a Sevilha, com 38 anos Fernão de Magalhães casou-se em Dezembro de 1517 com Beatriz, filha de Diego Barbosa e de D. Maria Caldera e irmã de Duarte Barbosa, cuja amizade com Magalhães vinha do tempo da Índia.

A Casa da Contratação aprovou no início de 1518 o projecto de Magalhães, após averiguar em Lisboa sobre a sua experiência, e crucial foi o parecer anterior favorável do Cardeal Cisneros e o investimento do Bispo de Burgos Rodriguez da Fonseca, cuja família, entre outras firmas, patrocinava a inaugural viagem, para nas seguintes poder recolher os fabulosos lucros das especiarias.

Audiência Real

A morte do Rei Fernando, o Católico, a 23 de Janeiro de 1516, levou o Cardeal Jiménez de Cisneros a assumir a regência de Espanha e quando, proveniente da Flandres Carlos, o futuro Rei, com 18 anos desembarcou nas Astúrias a 4 de Novembro de 1517, o Cardeal, apesar de muito doente, foi ao seu encontro, falecendo a 8 de Novembro.

As Cortes reuniram-se na capital Valladolid e a 7 de Fevereiro de 1518 era Rei de Espanha Carlos I, que recebeu em Audiência a 8 de Março Fernão de Magalhães, acompanhado por o escravo malaio Henrique, mostrando-o como um indígena proveniente das terras onde a viagem chegaria. Para explicar o projecto usou um planisfério, fabricado por Pedro Reinel, onde apontou a localização do estreito, 42º de latitude Sul, a dar entrada no Mar do Sul e a posição das ilhas das Especiarias, a passar no meridiano oposto ao de Tordesilhas, na zona espanhola. O acordo foi firmado a 22 de Março, sendo nomeado capitão-mor da armada.

O Bispo de Burgos arranjou cinco velhas naus, que precisaram de uma total reparação. Os preparativos prolongaram-se, sendo difícil encontrar marinheiros pois, a viagem era incerta e o soldo pequeno, não atraindo os espanhóis a embarcar numa aventura de inúmeros perigos. Eram precisos 234 tripulantes e para colmatar essa falta, apareceram homens de muitas nacionalidades, dos quais 36 portugueses. Para o bem-estar na viagem, além do abastecimento normal, Magalhães aprovisionou barris de Jerez.

Embarcaram contrariados os castelhanos, capitães, contadores, responsáveis da justiça e a gente principal, por terem a dar-lhes ordens um português como capitão-general e pessoa de maus fígados.

A armada era composta por a nau capitã Trinidad, de 110 toneladas, onde seguia Magalhães e como piloto da sua confiança Estêvão Gomes, sendo acompanhado do cunhado Duarte Barbosa e do primo Álvaro de Mesquita. A San António, a maior das naus era comandada por Juan de Cartagena, que substituíra Rui Faleiro, então demente, sendo familiar do Bispo de Burgos tornou-se também feitor-mor da armada; a Concepción, de 90 toneladas, tinha como capitão Gaspar de Quesada; a Victoria, de 85 toneladas, capitaneada por Luís de Mendonza e a Santiago, a nau mais pequena de 75 toneladas, entregue a Juan Rodriguez Serrano. Estabelecidas regras como navegar em conserva, afim de não se perderem uns dos outros, deveriam seguir a nau Trinidad, que durante o dia hasteava a bandeira de capitã e à noite levava acesa um tocha.

Singrar ao vento

Do porto de mar de San Lúcar de Barrameda partia Fernão de Magalhães a 20 de Setembro de 1519 com a armada sob a protecção de Santa Maria da Vitória.

Seis dias navegaram as cinco naus e ao amanhecer de 26 de Setembro atingiram o porto de Santa Cruz na ilha de Tenerife, Canárias, a 28º Norte do Equador. Após troca de alguns marinheiros, levantaram de Tenerife a 3 de Outubro.

Em conserva singraram em bom mar dias, passando à esquerda de Cabo Verde (15º N) levando o vento pela popa cruzaram as costas da Guiné até que em frente a Serra Leoa, 7º Norte, caiu uma calmaria. Retidos, num clima tropical com torrenciais chuvas, dias passaram, senão semanas, até chegarem os ventos de Leste-nordeste e desfraldando as velas, após atravessar o Equador rumaram as naus firmes para Sudoeste. Então o fidalgo capitão Juan de Cartagena, altivo e desrespeitoso questionou o capitão-mor sobre a escolha do errado rumo.

Insubordinação contra a sua autoridade, Magalhães não admitiu e logo o destituiu, colocando-o preso na nau Victoria à guarda de Luís de Mendonça. Nomeou António de Coca para capitão do San António, substituído por Álvaro de Mesquita após aportarem a 13 de Dezembro na baía de Guanabara, Rio de Janeiro. João Lopes de Carvalho aí passara na feitoria cinco anos e vinha buscar o filho mestiço, agora com 7 anos. Duas semanas em descanso e abastecidos, no dia seguinte ao Natal continuaram para Sul, atingindo o Cabo de Santa Maria, na foz do Rio de La Plata, a 10 de Janeiro de 1520. Ficaram um mês a percorrer em vão por onde Solis julgara estar a passagem para o Mar do Sul.

Partindo a 2 de Fevereiro, alcançaram a baía de San Julián (49º 30’ Sul, a meio da Patagónia) a 31 de Março. No dia seguinte foi celebrado o Domingo de Páscoa com uma missa e na madrugada de 2 de Abril duas naus amotinaram-se. Magalhães fora avisado pelo sogro em Sevilha para ter cuidado com os capitães castelhanos, pois traziam um acordo entre eles de se revoltarem se fossem despeitados pelo português Capitão-mor.

Seguia agora Cartagena preso na Concepción, cujo capitão da nau Gaspar de Quesada o libertou e num batel com trinta homens armados foram à San Antonio e apanhando todos a dormir, prenderam o capitão Mesquita. Ficou Quesada como capitão da San Antonio e Cartagena passou a comandar a Concepción. Os rebeldes controlando três das naus, enviaram à capitã Trinidad um batel com a missiva a apelar à desistência do capitão-general de continuar a viagem e retornarem a Espanha. Prendendo os quinze homens do batel, Magalhães mandou nele embarcar o responsável da justiça (alguazil) Gómez de Espinosa a levar à Victoria uma carta para Luís de Mendonza se render. Este ao reagir mal foi morto, sendo logo a tripulação desarmada por os homens de Barbosa, que se apoderaram da nau.

Fernão de Magalhães, agora em superioridade, bloqueou a entrada da baía às duas naus amotinadas. Surpreendidos, sem poder fugir, os revoltosos renderam-se ainda a 2 de Abril de 1520.

19 Abr 2021

Segundo acto – Cena 3

Os militares terminam de desmantelar o esqueleto de metal que sustentava as paredes de plástico da estufa. O Capitão aguarda uma resposta, olhando ora para as colunas de som, ora para o microfone que tem na mão. O Major, sentado à secretária, com as pernas cruzadas em cima do tampo da mesa, dá uma grande passa no seu charuto-bazuca e lança uma nuvem de dúvida em direcção ao seu subordinado que não sabe muito bem se deve continuar a insistir na comunicação. Gonçalo continua deitado no chão sem se conseguir mexer.

Major
Die Pantoffeln?

Capitão
[pausa]
Sim…

O Major lança outra nuvem de fumo, empestando o ar com o cheiro a charuto. O Capitão sua por todos os poros.

Major
Sabe o que quer dizer?

Capitão
[amedrontado]
O quê..?

Major
Die Pantoffeln…

Capitão
[hesita]
Eh… Os pantufas…?

Major
Os?!

Capitão
As!

Major
[exalando mais fumo]
Será?

Capitão
[desistindo]
Pois…

Major
Pois… [pausa] No nosso continente travam-se batalhas atrás de batalhas… quiçá na guerra mais importante da humanidade… nem que seja pelo facto de ser a guerra que se trava agora… e as guerras de hoje são sempre mais importantes que as de ontem. [pausa] Concorda?

Capitão
[confuso]
Com que parte?

O Major olha-o, admirado, como se reparasse nele pela primeira vez. Levanta-se e desata a rir às gargalhadas, pousando os punhos no tampo da secretária. Ele é realmente um fumador muito experiente. Com a sua bazuca Cubana metida entredentes, exala o fumo da ao sabor da percussão do seu diafragma – AH AH AH AH AH AH AH – e não se engasga uma única vez.

Major
Como é que um merdoso como você chegou a Capitão?

Capitão
[envergonhado]
Eh… [pausa] O meu pai era militar… e o pai dele, também.

Major
O pai dele era seu avô?

Capitão
[confuso]
Sim…?

Major
[tirando o charuto da boca]
Ainda perguntas!? Olha que caralho… [pausa] Verticaliza-te, sua minhoca! Era avô ou não era avô?

Capitão
Era, meu Major.

Major
[duro]
O pai era militar… o avô era militar… [pausa] Continua…! Se te crescerem tomates, pode ser que te volte a tratar por você!

Capitão
[à beira das lágrimas]
O a… a… avô era mi… militar…

Major
Essa parte já tinha percebido, florzinha!

Capitão
[gaguejando]
E… e… e… eu… se… se… se-se-segui a ca-ca-ca-carreira…

Major
E lá na Maçonaria não te ensinaram a pa-pa-pa-partir pe-pe-pe-pe-pe-pedra? Ou foi tudo com favores?! [desata a rir às gargalhadas] Valha-me Deus… [pausa] Quiçá a guerra mais importante da humanidade, nem que seja pelo facto de ser a guerra que se trava agora, e as guerras de hoje são sempre mais importantes que as de ontem. [levanta a voz] Concorda ou não?!

Capitão
Concordo, meu Major!

Major
COM QUE PARTE?

Capitão
É A GUERRA MAIS IMPORTANTE DA HUMANIDADE! E AS GUERRAS DE HOJE SÃO SEMPRE MAIS IMPORTANTES QUE AS DE ONTEM!

Major
E ISSO NÃO É A MESMA COISA?!

Capitão
DEPENDE DA SUA DISPOSIÇÃO, MEU MAJOR! SE O QUE LHE APETECE É HUMILHAR-ME, O MEU MAJOR IRÁ SEMPRE CONTRADIZER-ME!

Major
[voltando a pôr o charuto entredentes]
EXPLIQUE-SE!

Capitão
SE EU DISSESSE QUE É A MESMA COISA, QUE DE ALGUMA MANEIRA ATÉ É, O MEU MAJOR, COM ESSA PIROCA DE TABACO NA BOCA, IRIA DIZER QUE NÃO ERA A MESMA COISA!

Major
PIROCA NA BOCA!?

Capitão
SIM, MEU MAJOR!

Major
AH, VALENTE! VAMOS LÁ PARAR DE GRITAR, QUE EU JÁ ESTOU A FICAR CANSADO DA VOZ!

Capitão
SIM, MEU MAJOR!

Major
Ó HOMEM, FALE MAIS BAIXO!

Capitão
Sim, meu Major!

O Major volta a sentar-se, extenuado. Tira um lenço do bolso do casaco altamente patenteado e limpa a testa suada, sem nunca tirar o charuto da boca. Gonçalo começa a mexer a boca, falando bastante, mas sem se ouvir um único som.

Major
[rouco]
Bem… dizia que a guerra mais importante da humanidade trava-se no nosso continente e… [tosse] E nós es… es… [ataque de tosse] … estamos fora da equação. [pausa] Que vergonha! [pausa] Fora da equação e ridi… ridi… [novo ataque de tosse] … ridicularizados por iniciativa própria.

O Capitão não parece compreender esta última afirmação do Major, mas não se atreve a interrompê-lo. O Major apercebe-se da dúvida do Capitão, mas antes de se explicar, escarra agressivamente para o seu lenço. Depois dobra-o e volta a guardá-lo no bolso. Gonçalo continua no seu monólogo mudo.

Major
Os Pantufas…? [esboça um sorriso amargo] Quando a guerra não é nossa e queremos meter-nos nela, o que é que devemos fazer? Oferecermo-nos para a frente de batalha! Para a frente! E o que fizemos nós? Prestamos assistência logística, quando muito… e escolhemos um nome fofinho… [sacode a cabeça, envergonhado] Os Pantufas…

Capitão
Tudo indica que a escolha do nome foi um erro, meu Major.

Major
Tudo nas Forças Armadas portuguesas é um erro, meu Capitão.

Capitão
Pois… este foi mais um.

Major
Qual foi o erro?

Capitão
Bom… parece que no dia da formalização do apoio secreto das Forças Armadas Portuguesas ao Führer, o único oficial que falava alemão estava ausente… baixa médica. Um outro, para fazer um brilharete, disse que sabia alemão… Se soubesse, seríamos hoje Os Panteras… ainda por cima é igual… [pausa] Ele enganou-se na página do dicionário… com as pressas… agora somos Os Pantufas.

15 Abr 2021

Da desinquietação. Pág. 1

Abro e folheio aleatoriamente e chamo ao lugar onde parei: página um. Qualquer das outras poderá ser a seguinte desde que deixei que ter a obsessão da cronologia por impotência de a arrumar. Não a si própria, mas aos vestígios que proliferam a requerer quase uma outra vida para arrumação. Trouxe aqueles pequenos livros empoeirados e com um persistente odor a mofo e capa em papel ágata, da casa de Z. Fazem lembrar alguns cadernos em que escrevia diário antigamente. Sempre diferentes, sempre inacabados, mas a esta distância venho a descobrir-lhes um certo anacronismo em que sempre acabaram por espelhar a mesma inquietude.

Nunca soube como chamar a cada um: caderno das ou de inquietações, da inquietação ou inquietude. Ou livro, palavra mais curta. Ali tão quieto cada um deles, como pessoa em secreta ebulição. E fico num swing entre hesitações antes de o abrir. E cortar a direito nas coisas que conseguiu abrandar. Fechadas nas páginas com objectos em cima como pedras sobre o assunto. São muitos. Esse caderno. Como um ser de muitas cabeças. Uno e divergente.

Da desinquietação. Espantosa inversão de sentido. Coisas da minha avó Maria Antónia – achava. Não me venhas desinquietar. A dizer deixa-me sossegada. Ou a dizer mais profunda ânsia de se ser deixado na inquietação própria. Irredutível ou necessária.

Ser inquieto é estar na negação da quietude. Desinquietação é a dupla negação que deveria na lógica matemática afirmar essa quietude. Mas não. Cresci com essa inversão de sentido, uma espécie de semente adormecida a germinar lentamente num quase paradoxo que talvez tenha contribuído para esta necessidade das palavras que encontraram refúgio em cadernos.

Quando se enceta a lenta tarefa de desfazer uma casa que pertenceu, encontramos todos os registos de uma vida. Agora, em casa de Z, encontro mais coisas da avó. Ela, que era pouco tolerante em certas coisas, sempre as manteve dentro de modelos próprios e inalterados. Uma métrica que pouco deve ter reajustado no curso imprevisto da vida.

Mas continha as suas impressões inabaláveis numa certa cerimónia, em que defendia os seus de um olhar que parecia imaginar mais intolerante do que o que lhe era próprio. Nessa cerimónia, dizia sempre aquela frase de delicadeza que se esperava de cada situação. Um elogio. Ou uma pergunta discreta que desvendava uma opinião crítica sem o querer. Aos noventa, de figura cada vez mais pequenina, um pouco mais mal disposta com a vida, talvez por o tempo ter determinado que as suas preocupações maiores não teriam resolução. Mas sempre atenta, sempre disposta a arranjar-se para sair. Ela que me perguntava sem perguntar, quando às vezes mergulhava o seu olhar naturalmente dirigido para fora, num abismo de perplexidade, o que é que eu sou. E eu nunca lhe soube responder, mas acompanhava-a momentaneamente na solidão daquela pergunta, num abismo estanque de vizinha do lado. Tão perto e tão distante. Volto sempre a este pensamento quando me lembro dela. Mas também são assim os cadernos da desinquietação. Que falam sempre do mesmo. Como pessoas próximas que nunca se fartam, ou aprendem a tolerar.

Curiosamente, como eu sabia, ao percorrer-lhe o capítulo que faltava folhear, nada se lhe encontra que deixe margem a uma indiscrição. Somente roupas, e essas tão pessoais na sua memória do corpo e nos olhos de quem lembra, as suas roupas do luto e outras e coisas de antiga casa sua. Nada que espelhe uma alma que não tinha necessidade de se exprimir.

Dele, ao contrário, tudo em todos os objectos conta uma história. Do desassossego congénito que se escoava na apropriação de objectos, de gostos, de curiosidades divergentes ou cumulativas, pela excessiva organização que se vê ter um dia perdido o rumo e se dispersou pelo insignificante esquecendo o resto. Numa ausência de critério ou numa dramática insuficiência do tempo que nunca lhe permitiu chegar ao essencial. Tudo isso desvendado da sua clausura. Pelas escolhas, pela confusão e pela eterna incapacidade de arrumar ou viver as coisas. Mas isso sou eu a pensar vendo de fora como um filme cheio de avanços e recuos no tempo e a procurar ir entendendo nele uma história confusa. Nesta incontornável indiscrição com que lhe revolvemos cada centímetro impregnado na casa. Mas não consigo deixar de pensar que também é esse o respeito que quem já não está, merece. Este desfiar de coisas, quase nunca partilhadas, como última homenagem, antes de se esfumarem, muitas delas, num sopro de dispersão para sempre. Que tem que ser.

Não há como querer fugir. Estendo a mão finalmente para um dos cadernos. E depois lembro-me que Z, a quem não faltavam cadernos novos, nos deixou os desabafos mais compulsivos numa série de talões de supermercado.

Há o que se escreve por necessidade. Procura-se o que estiver na urgência à mão. Coisas que fluem livres e delicadas ou tumultuosas a desfazer-se no ar imediato se não agarradas a um suporte qualquer. Acerco-me sempre de uma certa melancolia quando penso neles e vou desfiando objecto atrás de objecto.

Deixa-se para trás o tempo. Deixa-se um lastro em que mesmo as pegadas se podem desvanecer até à invisibilidade. Ou deixam-se marcas indeléveis. Mas em tudo se depende sempre da qualidade do registo e da qualidade do impresso e da qualidade do suporte. Do olhar da memória do outro. Sempre a existência depende do outro.

Também. Deixa-se um rasto feito de desperdícios ou de fragmentos preciosos. Se houver para quem. Deixa-se parte de nós, do tempo e do que fomos, mas o que se pode não o que se quer. Ou deixa-se o que os outros deixam deixar.

Há olhares como o estado do tempo. Secam e pulverizam ou apagam. Outros regam, generosos. A razão é fria. Mas pode servir-se da linguagem do afecto nos gestos, nas palavras e quando necessário suave nos cortes. O sentir é complexo de ingredientes. Uma massa quente ou uma nuvem evaporada de turbilhões que queimam como lava.

Sais de fruto, paracetamol ou cecrisina. Em efervescência em água num copo de salto alto. Receitas ilusórias para a indisposição. Que se instala em dados momentos do dia. Sem razão aparente, consciente, ou com todas as razões. Ou então, champanhe.

13 Abr 2021

Segundo Acto – Cena 2

Gonçalo está sozinho na estufa. Continua deitado na mesma posição, sem se conseguir mexer. A mesma luz alaranjada ilumina continua a iluminar o interior da construção de plástico no palco. Uma nuvem de fumo branco começa a formar-se no tecto da estufa, espalhando-se lentamente por todo o espaço. Não há movimento no exterior, tudo escuro para lá das paredes. As luzes fluorescentes começam a tremular à medida que a nuvem de fumo fica cada vez mais densa. Uma das portas abre-se e entra uma MULHER trazendo na mão uma garrafa de espumante.

Atrás dela vem GONÇALO com duas flutes. Os dois sentam-se no chão de pernas cruzadas. Ela mexe a boca, como se articulasse um pequeno discurso com princípio meio e fim. Ao rematá-lo, os dois desatam às gargalhadas. Riem-se até às lágrimas, com os espasmos faciais a que têm direito, incluindo o sobe-e-desce dos ombros a acompanhar… mas não emitem qualquer som. Ela serve o espumante e pousa a garrafa. Os dois sorriem um para o outro e brindam, chocando os copos. Nada. Não há qualquer som. Não reparam no Gonçalo deitado a um canto da estufa.

Continuam a conversa e a risota insonoras. Os dois aparentam estar bem bebidos, estão cada vez mais próximos um do outro. As suas bocas estão prestes a tocar-se.

Gonçalo
[alarmado]
Podes olhar para mim?

Nenhum deles olha para o deitado. Não o ouviram. Acendem-se luzes de serviço para lá das paredes de plástico. Começa um vai-vem de silhuetas no exterior da estufa.

Gonçalo
Podem roer as minhas unhas? [pausa] Alguém…? [pausa] Eu não as sinto… nem me consigo mexer. Mas já lá vão umas horas sem as comer… A ansiedade, o batimento cardíaco acelerado, suores… às vezes…

A porta volta a abrir-se e entram quatro cientistas com os seus fatos de protecção integral, as máscaras, as toucas, as viseiras, as luvas e os óculos. Não vêem o Gonçalo deitado, nem o Gonçalo que está envolvido em acrobacias de natureza sexual com a mulher da garrafa de espumante.

Gonçalo
Mas eu estou aqui no chão sem me mexer, sem sentir o corpo, como se estivesse ausente dele… e tenho os circuitos neurais do cérebro totalmente dedicados à tentativa de consumar o acto de roer… quase que sinto as pequenas pontas das unhas que entretanto cresceram a raspar nos meus lábios…

Ao sinal de um dos cientistas, todos tiram o capuz do fato, as máscaras e os óculos. Um deles é Gonçalo, uma deles é a mulher do espumante. Os quatro perscrutam a estufa, enquanto inspiram profundamente, como se degustassem o ar aparentemente rarefeito daquele espaço de plástico.

Gonçalo
Deve ter uma qualquer relação com a sexualidade, esta coisa de querer sentir as unhas nos lábios antes de as roer… os preliminares da activação do sistema de recompensa…

O casal de acrobatas luxuriosos já se deslocou em direcção a uma parede, arrastando-se pelo chão, sem nunca desgrudar as bocas.

Gonçalo
As crises de abstinência… o vício de boca… meter os dedos, os cigarros… o gargalo de uma garrafa… Só queria que viessem aqui, que pegassem na minha mão e a metessem na minha boca. [pausa] Talvez ela caia mal a larguem… um de vocês podia segurá-la, enquanto eu satisfazia o meu vício. [pausa] Podem usar o meu cinto… põem-no à tiracolo e prendem-me o braço , como se estivesse engessado… apertam bem, para que a mão não saia da boca. Mas… também não podem apertar demais… ainda me engasgo com os meus próprios dedos…

O movimento de silhuetas no exterior da estufa é cada vez maior, os únicos sons audíveis são os que estão para lá das paredes de plástico que começam agora a serem rasgadas militares com fardas de outros tempos. Os plásticos das paredes duplas da estufa são arrancados com brutalidade. Nem o casal de minhocas concupiscentes que se arrasta em direcção do deitado, nem os quatro cientistas desmascarados reparam na destruição em curso.

Gonçalo
Já sei… apertam o suficiente para que a mão fique encostada aos lábios… e, de cada vez que eu quiser roer, abro a boca e, com a ajuda dos dentes e da língua, deixo entrar o dedo com a melhor unha do momento… Imaginem um tetraplégico com comichão no nariz e sem ninguém que o acuda… [pausa] … é assim que me sinto agora. Acho que até já me mijei… não sinto nada, mas cheira-me a urina já de algumas horas.

Já não há paredes de plástico, só a estrutura de metal que as sustentava e que já está a ser desmontada pelos diligentes militares. Para lá da estrutura de metal, no fundo do palco, está uma secretária com um gravador de bobinas com colunas de som e um grande microfone prateado. Dois militares de alta patente aproximam-se da secretária. O mais graduado senta-se à secretária, cruza as pernas em cima da mesa e acende um charuto. O outro, fica em pé, ao lado da mesa, e pega no microfone pela base e carrega no botão para falar.

Capitão
Die Pantoffeln nennen das Kehlsteinhaus… [pausa] Die Pantoffeln nennen das Kehlsteinhaus… [tempo] Hörst du?

8 Abr 2021

Mudam-se os tempos

Passamos de moda como esta casa, este casaco, nada resiste à mudança do tempo.
E estas mortes todas em nosso pensamento!?
São páginas de livros e não malha de ferro, e quando o vento sopra vão voando
Da mesma fonte que a malha do guerreiro se contraiu no fogo estranho
Rebuscamos a casa e está tudo mudado- do ciclo de outrora nem um marco-
E assim os dias se fazem outros
Com todos aqueles votados ao abandono
Verticais como as colinas, os que se elevam partem cedo. São deles as mudanças e todas as vitórias
Por eles se alcançam
Desenlaçar, mudar de rumo… sede, sempre do mundo
Não ter o dever de amar, que amor não há no vale profundo.
No entanto, saber vingar o mal, e depois mais lúcido, não mais importar
O destino inútil do sepulcro.
Trajar o manto viajante, que em cada jornada o tempo muda
Deixando as vozes castigadas no desaire de falar ao submundo
Não há chão que a raiz não rebente, e onde há explosão
Chove ternura, que o tempo frio de gastar o solo, secou, e as áridas paragens são de lume.
Deixar os sentidos em paz, tomar outras dianteiras
Não vestir o amor para se ter somente o reflexo de quem o nomeia
Vamos embarcar! Rosários de contas não há, o destino mudou,
Na telepatia das fontes
É um país novo a Terra inteira. Passámos de moda a projectar o novo.
Gastámos as línguas – litúrgicas boas-vindas – nos velhos andrajos das modas
Há gente que passou o tempo de se conservar em nós como ideia, terno efeito, consciência, são os equívocos da grande teia.
Não há comoção que interprete tanto desaire breve na languidez de uma era extinta de promessas.
Que a liberdade é sentir de maneira vária em tons regrados, e mesmo assim não ter receio de ser vermelha e ter os lábios molhados.
Nenhum arco-íris se desfez na sua imprecisão, e as grandes coisas são ainda aquelas que nos fabricam o pão.
Passamos todos de moda, passados de mão em mão, e o tempo gera memórias, mas não há certeza que dite que são a nossa história
Ronda insolente o destino, que ficar na vida em espelho vestido para um tempo fechado é acto tributário, e ninguém se veste da época do seu instante banal, se a si se consentir ser divino e animal.
Nesta abertura do acaso somos das modas, vencidos, que moda rege e renega as contingências dos mitos.
Do amor que não há fizemos coagulações, somos derivados de enfartes, fartos das mesmas pulsões.
É um chão macio este que muda- muda a seiva, muda o sítio – e não há lugar para as vestes dos fantasmas indistintos. Que as vontades mudam, desnudam, o que a moda tapara.
São as conclusões douradas! Ciclos abstratos, e a nossa longa cauda de símios disfarçados.
«E se o mundo é composto de mudança» toda a água se disfarça quando nos banhamos, numa luz, que em nós algures nos dança. A água gela nas veias. E não há quase minério, tão só a moda de andar de pé no cimo das ideias
Bípedes a motor, consagrámos a corrida, mas ninguém nos diz da moda dos quatro membros por terra, quando forjarem a nossa saída
Depois da queda do mais recente Adão, não voltaremos a colher às árvores, mas a subir a elas, nós que a moda desfez e refez em modos vários, iremos como os animais utilizar as manobras de ir ao topo dos ciclos vegetais. Talvez como os felinos
E mudam-se os tempos nas feras vontades, e muda-se o estar aqui e não estar mais, e o que esquecêramos nos trará um recomeço quando muitos de nós forem arrebatados pelas vogais da Aurora.
«Do mal ficam as mágoas…» mas não na lembrança, que recordar os males é não ter esperança, e movidos e sem defeito atravessaremos as trevas só para lhes dizer adeus.
Também não houve bem, nem há saudade, a missão governou o governado, e se amor bastar, é certo o lenho da nossa sua imensidade

( Camões no coração até morrer)
Máquina do Mundo.
Eis-te revisitada.
Mudando.
Mudada.

29 Mar 2021

Fernão de Magalhães em Goa e Malaca

A nomeação do estratega e génio militar Afonso de Albuquerque para Governador da Índia permitiu assentar, ente 1509 e 1515, supremacia política, militar e comercial portuguesa no Índico, mais à base das armas e não como o seu antecessor, por diálogo e tratados de cooperação comercial. As reprimendas que o Vice-Rei D. Francisco de Almeida lhe dera quando ainda estava sob o seu comando, levaram-no como Governador a temperar o carácter e agressividade.

Devido à escassez de portugueses, surgiu-lhe a ideia de criar um sistema em rede formando um império por portos com feitorias e fortalezas espalhados estrategicamente pelo Oceano Índico e tornar vassalos os soberanos, dividindo com eles os lucros. Para minimizar a pouca população portuguesa necessária para ocupar esses lugares, Albuquerque fomentou o casamento dos seus homens com nativas locais. Já o sistema de Cartaz provinha de 1502 e o mare clausum, que, “segundo parece, já vigorava antes da hegemonia portuguesa naquele oceano, impedia o trânsito de qualquer embarcação não cristã que não fosse portadora de um salvo-conduto, passado e autenticado pelas autoridades portuguesas”, refere Joaquim Candeias Silva.

Escapando de Malaca, Fernão de Magalhães e Francisco Serrão chegaram a Cochim, já o Governador Afonso de Albuquerque tomara posse a 29 de Outubro de 1509 e preparava-se para ir conquistar Goa aos muçulmanos de Bijapur. Ambos participaram nessa expedição e o êxito inicial em Fevereiro de 1510 só foi total a 25 de Novembro, dia de Santa Catarina, padroeira dos marinheiros. Goa era a primeira conquista territorial na Índia feita pelos portugueses e logo se tornou a capital do Estado Português do Oriente.

Após Goa tomada, seguiram os dois amigos na armada de Albuquerque com seiscentos portugueses para Malaca, onde, resgatados os companheiros aprisionados desde 1509 e recebido o pagamento das compensações, dizimaram os navios ali ancorados, conquistando o porto de Malaca a 10 de Agosto de 1511. Afonso de Albuquerque aí mandou erguer o forte ‘A Famosa’, deixando nele trezentos portugueses.

Em Malaca, Magalhães comprou o escravo Henrique (o malaio Panglima Awang, que traduzido significa chefe dos moços, segundo Luís Filipe Thomaz), com quem passou a viajar, seguindo ambos com Albuquerque para a Índia, pretendendo regressar ao reino.

AS MALUCO

Em 1511, o Oceano Pacífico abria-se assim aos portugueses pelo Estreito de Malaca e se a atracção material no comércio seria ir à China, mais importante era realizar uma “expedição destinada ao descobrimento das Molucas, ou ilhas da especiaria. António de Abreu, que a comandava [partiu em Dezembro de 1511 de Malaca com Francisco Serrão], esteve primeiro num porto de Java, depois em Amboina, e visitou em seguida as ilhas de Banda, donde regressou a Malaca. O seu companheiro Francisco Serrão foi mandado prosseguir na mesma empresa; naufragou numa das ilhas do arquipélago de Banda; tendo salvo, porém, as armas, conseguiu intimidar os naturais, e fazendo-se à vela numa embarcação indígena, chegou finalmente a Ternati e a Tidor, das Molucas propriamente ditas, onde pouco depois os Portugueses se estabeleceram”, segundo António Sérgio. Já C. R. Boxer refere, a exploração que os portugueses “souberam fazer da inimizade endémica entre os sultões de Ternate e de Tidore lhes permitiu alcançar uma posição dominante no comércio de cravo-da-índia das Molucas.”

Maluco, como na altura os portugueses chamavam às Molucas, era a fonte do cravo e da noz-moscada e em Ternate, uma das suas cinco ilhas principais, Francisco Serrão fez residência e tornou-se feitor. Daí enviava missivas ao amigo Magalhães dizendo ser esta uma viagem de muitos proveitos. Adiantava, pelos seus cálculos, estarem estas ilhas das Especiarias na parte de Castela. António Sérgio complementa, “Das viagens contínuas entre Malaca e as Molucas, resultou o conhecimento de numerosas ilhas. Foram assim conhecidas Bornéu, Celebes, (Gomes de Sequeira, 1518), e Papuásia (D. Jorge de Meneses, 1527). Em 1518 mandou o Governador da Índia a D. João da Silveira que visitasse a costa de Coromandel, seguindo para o Norte, chegou às bocas do Rio Ganges; de aí desceu pela contracosta, tocando em vários dos seus portos.” Era o reconhecimento do Mar de Bengala, no Oceano Índico.

Com lugar comprado num junco de mercadores chineses em Pegu (hoje em Myanmar, na costa do Mar de Bengala), o feitor Jorge Álvares saiu de Malaca em Junho de 1513 para os mares da China até Lin Tin, ilha no delta do Rio das Pérolas. Do outro lado do Oceano Pacífico, no já baptizado continente Americano, a imensidão de água foi visualizada a 25 de Setembro desse ano por Nuñez de Balboa ao subir ao cume de uma montanha em terras do actual Panamá. Dias depois molhava os pés nessas águas que baptizou de Mar do Sul. Faltava encontrar a passagem marítima a ligá-lo ao Atlântico.

INVEJAS E CALÚNIAS

Fernão de Magalhães recebia mil réis por mês como escudeiro de D. Manuel antes de embarcar para o Oriente, onde entre 1505 e 1512 se revelara um valente soldado e marinheiro exemplar, e “regressado à metrópole, conquistou um lugar na corte, andando no livro dos moradores da casa de El-Rei [D. Manuel] com bons foros”, segundo António Sérgio.

Pouco depois de chegar a Portugal, alistou-se na armada do IV Duque de Bragança D. Jaime, que pretendia no Norte de África conquistar Azamor e custeava a expedição para se penitenciar de em 1512, num acesso de ciúmes, ter apunhalado a esposa Dona Leonor de Gusmão. Para ser representada à partida, Gil Vicente escreveu a tragicomédia Exortação da Guerra e a batalha ocorreu a 3 de Setembro de 1513, saindo vitoriosos os portugueses que aí construíram uma fortaleza.

Em Marrocos, numa das constantes e diárias escaramuças, Magalhães foi ferido numa perna, ficando coxo para o resto da vida. Nomeado quadrilheiro-mor, caiu em desgraça devido à distribuição em Março de 1514 de despojos, sendo acusado de se apropriar de parte do gado e o vender aos mouros. Regressou a Portugal e apresentou-se em 1515 a D. Manuel, acompanhado por o escravo malaio Henrique, pedindo um aumento da pensão por os serviços prestados. Na audiência, o rei, rodeado por delatores a espalhar falsidades sobre o íntegro e leal soldado marinheiro, tratou-o mal, sem consideração alguma e despediu-o do serviço de Portugal.

Sem reconhecimento e despeitado por D. Manuel e sua corte, Fernão de Magalhães a 20 de Outubro de 1517 chegou a Castela zangado e magoado com o seu país. Após anos ao serviço na Índia Portuguesa, vinha oferecer a sua experiência e conhecimento a Espanha com o projecto de navegar pelo Oeste até às ilhas das Especiarias. Era regente de Castela o Cardeal Jiménez de Cisneros, cuja idade e sabedoria o colocaram à frente dos assuntos de Espanha.

Fernão de Magalhães resumia a sua vida até então com duas frases: desde miúdo andei perto de corvos com plumagem de pomba e sempre tive ao meu lado a honra e a miséria, mais que a desonra e o luxo.

29 Mar 2021

Primeiro acto – Cena 7

Gonçalo vai até ao fogão buscar a cafeteira. Regressa ao seu lugar, enche as duas chávenas e pousa a cafeteira no chão.

Valério
Não precisas de ninguém para te destruir, graças a Deus.

Gonçalo
Não me estou a destruir.

Valério
[fazendo beicinho]
Estás um bocadinho…

Gonçalo
Um bocadinho, sim.

Valério
Pronto… [pausa] Tu és um sapo com cauda de escorpião.

Gonçalo
Um sapião…

Valério
Escorpiapo. [pausa] Aliás, és o escorpião às tuas próprias costas.

Gonçalo
… às costas de sapo.

Valério
Pois… Ainda nem a meio vais e já te estás a matar.

Gonçalo
Ela usou um telefone diferente.

Valério
A minha aluna?

Gonçalo
Sim.

Valério
Talvez… [pausa] Já estás a mudar de assunto.

Gonçalo
Vale mesmo a pena continuar no outro? [pausa] Quando reparou que se tinha enganado, apagou a mensagem.

Valério
É possível.

Gonçalo acende mais um cigarro e oferece um a Valério. Saboreiam a primeira baforada em silêncio.

Gonçalo
O que significa que ela tinha o teu número noutro telefone.

Valério
Quis que eu ficasse curioso… com um número desconhecido. [pausa] Se calhar, arrependeu-se e apagou a mensagem.

Gonçalo
Arrependeu-se?

Valério
De ter enviado de outro número.

Gonçalo
E o que é que fizeste?

Valério
Depois de ter descoberto o mesmo número no site de engate? [pausa] Mandei uma mensagem…

Gonçalo
Do teu telefone?

Valério
No site e no telefone.

Gonçalo
E…?

Valério
Fiquei a olhar para o telefone… durante algum tempo apareciam três pontinhos, que iam e vinham… mas não recebi nenhuma mensagem.

Gonçalo
E no site?

Valério
Nada.

Gonçalo
E voltaram a ver-se nas aulas?

Valério
Voltámos. Ela é bastante discreta… e continuou discreta.

Gonçalo
Hmm… [pausa] E se não era ela?

Valério
A do número desconhecido?

Gonçalo
Sim.

Valério
Era ela.

Gonçalo
Não gravaste o número.

Valério
Gravei, pois.

Gonçalo
Não. Tu disseste que quem quer que tenha enviado a mensagem apagou-a passado pouco tempo… e que viste depois um número no site que te pareceu o mesmo número da tal mensagem apagada.

Valério
Mas a pergunta era a mesma… o mesmo assunto, a mesma fotografia do quadro com as datas e horários…

Gonçalo
E?!

Valério
Só poderia ser de alguém da faculdade…

Gonçalo
[interrompendo]
Certo… mas não sabes se é realmente a mesma pessoa do site.

Valério
É, é!

Gonçalo
Não foi isso que disseste ainda há pouco.

Valério
O que é que eu disse ainda há pouco?

Gonçalo
Que a fotografia não era muito boa e que não dava para perceber bem como era a cara dela…

Valério
Mas era a cara dela… e era da faculdade. Da minha faculdade… a única da zona.

Gonçalo
E quantas alunas há na tua faculdade que possam encaixar naquele perfil?

Valério
[pausa]
Muitas…

Gonçalo
Pois…

Valério
Mas é muita coincidência.

Gonçalo
Muita ou pouca… não interessa. Querias que fosse ela, tinha piada ser ela… pronto.

Valério
E tu queres muito que não seja.

Gonçalo
[sorrindo]
Os factos não mentem.

Valério
É isso que fazes a ti próprio…

Gonçalo
Na escrita?

Valério
Também… tudo o que tem alguma piada, ou ameaça fugir do teu controlo, cortas. Nada sobrevive. Às tantas, tudo é deserto à tua volta… já nem voltas para trás, sabes lá de onde vieste… e desistes. Tornas a começar de novo, traças um caminho… tudo o que vai rebentando cortas, arrancas, queimas… seja erva daninha ou um rebento de uma árvore… vai tudo a eito… e quando te dás conta de que essas ervas e esses rebentos é que eram interessantes, já é tarde… dás-te conta que estás outra vez no deserto e não sabes como voltar para trás… nem te lembras onde começaste. E volta tudo ao mesmo.

Gonçalo
[pausa]
Já lhe tentaste ligar?

Valério
À minha aluna?

Gonçalo
Sim.
Valério
Mas tu ouviste o que eu acabei de dizer?!

Gonçalo
Ouvi, pois!

Valério
E então?

Gonçalo
Foi a única coisa de jeito que disseste a propósito da minha escrita…

Valério
Da falta dela, neste caso.

Gonçalo
Isso… eu pus em causa a tua fantasia, ficaste alterado e resolveste disparar com “é isso que fazes a ti próprio?”.

Valério
Não foi com má intenção.

Gonçalo
Eu sei que não… por isso é que eu te perguntei se já lhe tentaste telefonar. Quanto mais falarmos do assunto, mais acutilante te tornas.

Valério
[pausa]
E se eu telefonar e descobrir que não passa de um engano meu? Perco a acutilância e tu perdes um bom crítico.

Gonçalo
[sorrindo]
Mas a tua felicidade é mais importante do que a minha escrita, meu amigo.

Valério
Mentiroso.

Gonçalo
Pois sou. [pausa] Vais ligar?

Valério
Quando chegar a casa.

Gonçalo pega nas duas chávenas e na cafeteira leva-as para o lava-loiça. Valério acende outro cigarro e vai ter com o amigo. Encosta-se ao balcão. Gonçalo passa por água as chávenas e depois a cafeteira. A manhã já vai avançada, o dia promete muito sol.

Valério
Acho que já não durmo cá.

Gonçalo
Também já não há muito para dormir.

Valério
Pronto…

Valério vai até ao bengaleiro, tira o seu casaco e veste-o. Assegura-se que tem as chaves do carro no bolso. Bate continência ao amigo e sai, fechando a porta atrás de si. Gonçalo volta à sua cadeira e acende outro cigarro.

25 Mar 2021

As toxinas do crocodilo e o Marcial Desassobio

Meu caro Marcial, quem escreve expõe-se. Triste é quando se é intencionalmente mal interpretado, numa teima de moscardo zangado porque picou a sombra do burro e esta não lhe aceita a dança.
Neste mundo fragmentado e de novo tribal, o ser humano converte-se num animal agressivo, quando encarniçado pelas hordas. Foi infelizmente o teu caso.
Vamos só discutir dois ou três pontos do teu imenso disparate.
Primeiro, esclareçamos a questão do conceito de “lugar de fala”, como locus social. Lastimo ter de lembrar-te, este conceito não nasceu com a Djamila Ribeiro, de quem tenho o livrinho. É uma coisa remota, e o conceito foi manejado por Pierre Bourdieu, Foucault, Butler e Orlandi, por exemplo; simplesmente houve agora uma patética “apropriação” exclusivista para as questões rácicas.
Eu ESTAVA A ESCREVER UMA CRÓNICA E NÃO UM ARTIGO CIENTÍFICO sobre a genealogia do conceito, e numa crónica atalhamos. Ademais, o meu foco não era exactamente o conceito mas O SEU RETORNO EM FARSA E CARICATURA e a sua triste aplicação no caso Janice Deul-Marieke Lucas Rijneveld. Porque nem tudo tem a ver com a raça; lembro-me de como ficavas inflamado como jovem simpatizante da Renamo em relação ao que se passava no teu país e como te sentias oprimido e condicionado pelo partido no poder, e aí punhas a coisa, certeiramente, no campo da política.
Bom, avisava o Marx: aquilo que é trágico volta depois adulterado como farsa. O que o meu texto visava era esta leitura com que a horda deturpa o conceito (escrevi logo ao princípio da crónica: «Essa falácia que se chama “lugar de fala”, TAL COMO ESTÁ A SER ENTENDIDA, significa, de modo caricato…»), e não a sua justeza no lugar apropriado.
De resto, quem de bom senso pode ser contra o “lugar de fala” quando se trata de dar a voz ao que estava subalternizado, silenciado? Ninguém. Creres que eu pensaria de outra forma, choca-me. Afinal, o que ouvias tu nas/das minhas aulas?
Explica-me a lógica tinhosa disto: A AMANDA GORMAN ACEITOU A HONRA QUE SER CONVIDADA POR UM PRESIDENTE BRANCO PARA ESCREVER UM POEMA PARA A OCASIÃO INSTITUCIONAL MAS DEPOIS SÓ PODE SER TRADUZIDA POR UM BRADA? Escapa-me alguma coisa, ou estão a chamar parvo ao Biden? Afinal ela estava apenas a PROCURAR A VANTAGEM e não a ter a partilha sincera de uma cidadã republicana e democrática?
E sim, a noção de “lugar de fala” (ainda não tinha esse nome, evidentemente), é muito mais antiga. Está logo no Homero, que construiu os elementos da verosimilhança que o Aristóteles cristalizaria em conceito. Quando alguém fala no Homero começa por dizer “o lugar de onde vem” e “o que faz”, e as epopeias dele eram considerados verdadeiras enciclopédias sobre os vários místeres, a pesca, a caça, a estratégia da guerra, e até a medicina, como explica Ezra Pound: «As qualidades literárias em Homero são de tal ordem que um médico já escreveu um livro para provar que Homero havia sido um físico no exército. (As suas descrições de certos ferimentos e dos seus efeitos, têm sempre tamanha precisão que dir-se-iam extraídas do relatório de um médico legista.)
Um outro universitário, um Francês, demonstrou aproximadamente que a geografia da Odisseia estava completamente correta; não a geografia dos livros e das cartas, mas a que poderia descrever um marinheiro que faz cabotagem, quando faz um “périplo” por exemplo.
» Cada um emitia o seu saber, a partir do seu “lugar de fala”. Vês?
E de vez em quando, na Ilíada ou na Odisseia, lá aparece alguém a reivindicar o direito e a atenção para o seu “lugar de fala”, porque só ele pode falar do seu lugar e da sua origem. Aqui colheu Aristóteles as regras para a construção de personagens e a verosimilhança. Um mecânico de automóveis não fala como um psiquiatra, a personalidade de um tipo que cresceu numa cubata acusa (até na linguagem) mais traços duma fomeca secular que a de quem cresceu em Sommershield. Se não percebeste isto então é porque não soube, na disciplina de Dramaturgia, ensinar-te cabalmente a fazer as “relações”. Erro meu. Embora amortecido pela resistência de quem sempre se precipita a falar muito antes de pensar, projectando em vez de escutar (característica que pelos vistos manténs), e insiste em não entender que APRENDER É COMEÇAR A FAZER RELAÇÕES ENTRE COISAS QUE ANTES PARECIAM DESLIGADAS.
Entretanto, as coisas mudaram muito desde o Homero para cá e a nossa auto-percepção ou a dimensão do que seja o outro na pluralidade que nos constitui e mesmo na nossa cultura política também. Ademais, há dois mil e quinhentos anos de literatura que nos ajudaram a pensar e a vivenciar uma horizontalidade nas práticas de relação, que vão da desconstrução das anacronizantes hierarquias políticas, até à emergência de novos instrumentos de vinculação ao outro, como a educação para a empatia, etc., etc. Portanto, hoje já somos capazes de normalmente nos metermos no lugar do outro, a polpa do que seja a humanidade cresceu muito em fruta & género, e a literatura mais não é que isso. EU POSSO, SIM, SENTIR A INJUSTIÇA QUE RECAI SOBRE OS OUTROS e falar dela, adoptar como minha a dor do outro.
Tu é que, com pézinhos de lã, fugiste ao que era relevante sabermos e que se relaciona com o foco do que denunciei. TU ÉS A FAVOR DE QUE A AMANDA SÓ POSSA TER UM TRADUTOR NEGRO? Assume.
Olha o que disse esta semana uma escritora negra sobre a matéria:
«A ideia de que autores negros não devem ser traduzidos por brancos implica uma posição recíproca inaceitável: a de que, como mulher negra, não me é reconhecida a capacidade (mais ainda, o direito) de traduzir, por exemplo, Rousseau ou Flaubert. Essa é uma capacidade literária. O género, a cor, o meu contexto familiar não são o que me qualifica para traduzir Toni Morrison, nem o que me desqualifica para traduzir Pushkin. Não me sinto numa posição intrinsecamente privilegiada para traduzir livros de autoras negras e, quando se trata de escolher tradutores para os meus livros, basear-me nesse critério seria uma ingenuidade sem cabimento e um paradoxo. Imaginar que só uma mulher negra pode traduzir o que escrevo sugere que só uma mulher negra poderá compreender essa tradução e, portanto, que só posso ser entendida por leitoras negras. Considero tão difícil fazer-me entender a uma tradutora negra como a um tradutor branco. A tradução representa uma esperança na possibilidade de ser compreendida por aqueles que não se assemelham comigo. A tradução constitui a semelhança. Aproxima-nos. Sou feita do que li, graças a muitos tradutores: o seu género e cor de pele são indiferentes. O pronunciamento em questão preconiza na verdade uma hostilidade à literatura: é contra a possibilidade de a imaginação criativa romper as inibições, o ponto de vista e a sensibilidade limitada do ‘eu’.»
Quem é a autora? Djaimilia Pereira de Almeida – autora de “Esse Cabelo” (um livro extraordinário, que aconselho), de “Luanda, Lisboa Paraíso” e de “As Telefones” – citada no artigo de Isabel Lucas que saiu no Ipsilon, abordando este mesmo estúpido debate.
A Djaimilia tem toda a razão. Os que acham que o Mia Couto não pode escrever um romance sobre o Gungunhana não.
Não me digas que a Djaimilia é uma traidora!? Ai Jesu!
O QUE É ACONSELHÁVEL PARA UMA BOA DIGESTÃO DO MIA E DA DJAIMILIA É UMA DOSE DE PÓ DE MÚMIA MISTURADO COM RUIBARBO SECO, TODOS OS DIAS, ISTO EM NÃO CONSEGUINDO O ÚNICO REMÉDIO IDEAL QUE É O DE TER UM IDÊNTICO RITMO DE TRABALHO AO DO AUTOR DE AS MULHERES DE CINZA.
Porque o que se passa na realidade é isso: uns trabalham os outros poupam-se. E o que é que esta singela questão tem isto a ver com pretos e brancos, meu Deus? Trata-se de disciplina.
E tu, estarás à altura de compreender cabalmente a voltagem e as vertigens de Heidegger, ou Sloterdjik, sendo negro? Se tu achares que não, estás simplesmente a amputares-te, e lamento por ti. E como raio interpretar o Gregor Samsa, da Metamorfose, do Kafka, se nenhum de nós é insecto? Foi um dos maiores espectáculos de teatro que vi na vida. Suponho que tu com as tuas novas ideias não enfrentarias o desafio. Que pena!
Vamos ao segundo ponto, ESTE GRAVE, para te dizer francamente, foste “foleiro”, uma maneira simpática de chamar-te desonesto. E o segundo ponto é o fulcro do que se pretende com a “tua” resposta: difamar-me e sujar o meu nome.
Albert Manguel, a propósito do Holocausto discute uma injunção que devemos extrapolar para o Racismo. Pergunta ele: aquele horror então fazia parte da minha história pessoal, mais do que a minha história como ser humano?
Nunca aceitei esta chantagem. Honrar as vítimas deve fazer parte da nossa memória, mas não colonizar a minha identidade. Porque, PESSOALMENTE, NÃO TENHO CULPAS NO CARTÓRIO. Eu não me confundo com os horrores praticados no passado por gente a quem eu não deleguei nada, nem tem qualquer carta minha a assegurar-lhe o direito de me representar – compreendes, ou é demasiado subtil?. A minha identidade, construi-a sempre ao arrepio da memória do horror: por acaso, o melhor amigo da minha vida era negro (morreu), casei com uma sobrinha da poeta Noémia de Sousa (terei de explicar que não era branca?), vivo com uma indiana e tenho filhos mestiços, tive sempre escolhas que me dificultaram a vida porque nunca escolhi o conforto e preferi ser útil, em terras que pouca gratificação tinham para me oferecer.
Sou o único inquilino do meu prédio que não foi assaltado. Sabes porquê? Porque os guardas sabem que em minha casa só há livros e vêem que em minha casa entram pretos, que a minha porta se abre sem barreiras nem discriminações. Publiquei livros e centenas de artigos a corroborar esta minha atitude. E agora, do nada, porque não me leu devidamente nem me leu no fluxo mas apenas mal e fragmentariamente, aparece um ex-aluno a chamar-me LEVIANAMENTE negacionista? Devias ter vergonha, Marcial.
E para que quiseste tu, meu querido (tu sabes que sou um tipo de afectos) ter o gesto suicida de descer a escada pelo corrimão (é bom sentir a velocidade no cabelo, não é?) não prevenindo o risco de encontrares a cabeça de um prego levantada?
Na semana passada escrevi uma crónica (estiveste tão ocupado a ouvir e a colheres contributos à esquerda e à direita, que não tiveste tempo para a ler) onde se dizia, preto no branco, isto: «(…) a Lusofonia não passa da simulação das erecções de um anão ao espelho. Eduardo Lourenço já disse tudo sobre esta matéria no seu devido tempo, mas como os políticos portugueses não têm mais nada a oferecer senão retórica agarram-se à miragem. É pior: Portugal deixou em Moçambique para cima de 90% de analfabetos. Foram os moçambicanos quem, na ânsia de dar um cimento comum a um mosaico com mais de duas dezenas de línguas, ensinou 50 % dos seus concidadãos a ler e a falarem português. NÃO SEI SE HÁ UM MODO SUAVE, DELICADO, PARA EXPLICAR QUE UMA HERANÇA DE 90% DE ANALFABETOS POSSA CONSTITUIR UMA OFENSA IRREPARÁVEL COMETIDA PELO COLONIALISMO PORTUGUÊS.»
O azar que tu tiveste! Isto é a atitude de um negacionista? Como é que mesmo antes de te ter lido te desminto? Será mau olhado? Medita se não foste completamente ridículo ao chamares-me negacionista?
(Engraçado, alguns portugueses que leram a minha crónica também me devem ter chamado uns nomes feios!)
Pior, comparas-me ao Gobineau, em trazendo-o completamente a despropósito à liça! Que delírio é esse? EU NÃO SOU UMA TELA ONDE SE PROJECTA O PASSADO DA MINHA RAÇA. EU NÃO TE CONFUNDO COM O SHAKA. Onde é que eu, meu estupor (chamo-te o que chamo aos filhos, quando me zango com eles) defendi alguma vez a superioridade da raça branca? Vejo que interiorizaste que “os brancos são todos iguais”; na sanha de tudo generalizares revelaste-te um belo racista.
Em múltiplas crónicas minhas no Savana, durante anos, eu zurzi forte e feio nas ilusões da “cultura ocidental”, no “neo-colonialismo”, e nos tristes equívocos dos países ex-colonizadores com as colónias. O que é que tu não leste aí? Como é que de repente, num truque de magia, sou negacionista? Esta acusação, magoa-me, avilta-te, e foi-te soprada.
Foi como negacionista que me dispus sempre a ajudar os alunos e a fornecer-lhe os livros de que precisavam para qualquer disciplina? Foi isso que apanhaste nas conversas que tinhas comigo? Ou eras uma coisa pela frente e outra nas minhas costas?
Passa-se que não se tolera em Moçambique posicionamentos que não sejam a “preto e branco”. Quem mostra que existem nuances está lixado. Aí, o estômago de alguns mostra-se sensível como o estômago do Estaline que se engasgava quando encontrava o cabelo de um careca no seu leite. Será que ofendia por ser branco, português? Mas apresentar livros, fazer prefácios, escrever catálogos para artistas moçambicanos já me era autorizado e solicitado – não é contraditório? Ou aí só se aproveitavam, “tiravam vantagem”? SOU EU E O BIDEN: DOIS PARVOS.
Eu unicamente procurei EXERCER O MEU “LUGAR DE FALA” (deste conta que em Moçambique sou minoria?), procurando o debate, a conversa, às vezes risonhamente, outras vezes mais ironicamente, o intento foi sempre participar na cidade e suscitar uma discussão crítica, saudável. Tu, não sei porquê, nunca aproveitaste essas janelas que eu abria, e agora de repente, falas de “gota de água” e chamas-me “negacionista”. Simplesmente porque NÃO ENTENDESTE uma ironia?
Repito a primeira frase da crónica: «Essa falácia que se chama “lugar de fala”, tal como está a ser entendida, significa, de modo caricato, que eu como branco não posso falar da injustiça cometida sobre um negro (pois sei lá eu do que falo), que a galinha não pode falar da terrível cárie do lobo, que só a mulher pode falar autenticamente do seu castigo em engomar a roupa da família e que só o monge trapista poderá falar do silêncio.»
Como se pode inferir daqui que eu sou negacionista? Com que abstruso raciocínio? É de facto descomunal o peso dos fantasmas na vossa cabeça, capazes de verem placas tectónicas a dançar o tango debaixo da cama onde repousam os chinelos da empregada doméstica.
Hás-de um dia contar-me QUEM TE INSTRUMENTALIZOU NESTA TAREFA (de te expores ao ridículo), ó meu escritor sem livros.
Vamos à última questão controversa (a de saber se existem ou não culturas superiores a outras) porque auxiliar da difamação – dirigida a mim, que nunca fui sobranceiro e sempre tratei as pessoas e os alunos de igual para igual e que na verdade sou um pachola, o contrário de um tipo arrogante.
O teu intuito era fomentares o ódio em relação a mim? Foi nisso que te tornaste?
Contudo, nesta matéria tão inflamável em tempos de um relativismo cobarde, digo-te que subscrevo esta “fala” do Sponville, que se me afigura de uma meridiana clareza:
«O que então explicámos aos nossos alunos da Alliance Francaise é o seguinte: Não acreditem que dizer que “todas as civilizações se equivalem” seja defender os direitos humanos. É exatamente o inverso. Por uma razão simples e forte: se todas as culturas se equivalessem, já não podíamos dizer que uma cultura respeitadora dos direitos humanos é superior a uma cultura que não os respeita.
É aqui que as duas proposições que eu evoquei, a verdadeira, “todos os homens são iguais em direitos e dignidade”, e a falsa, “todas as civilizações são iguais em facto e em valor”, são, não apenas logicamente independentes, mas logicamente incompatíveis: porque se a primeira é verdadeira, se todos os homens são iguais em direitos e em dignidade, então, uma civilização que respeita a igualdade de direitos e a dignidade de todos os seres humanos é superior a uma civilização que as viole.
Por exemplo, uma civilização que pensa que os homens e as mulheres são iguais em direitos e dignidade está acima de uma civilização que pretende fechar as mulheres em situações de opressão e de inferioridade. Por exemplo, uma civilização democrática é superior a uma civilização tirânica ou totalitária. Por exemplo, uma civilização que respeite as liberdades individuais é superior a uma civilização que não as respeita. Por exemplo, uma civilização secular, onde todos têm o direito de escolher a religião ou a falta de religião, é superior a uma civilização integrista ou fundamentalista, que pretenda impor a mesma religião a todos.
»
É ou não claro, o que ele diz? É aquilo em que acredito. E tu, em que é que acreditas?
Mais importante do que esta polémica idiota, idiota, idiota, e mais triste, Marcial, é a morte de um grande poeta, o polaco Adam Zagajewski, no dia em que te leio a atacares-me. Há um poema vital dele que diz tudo o que eu gostaria de ter-te ensinado:
NA BELEZA CRIADA PELOS OUTROS: Só na beleza criada pelos outros/ existe consolação, na música/ e nos poemas dos outros./ Só os outros nos podem salvar, /mesmo que a solidão tenha o sabor/ do ópio. Não são o inferno, os outros,/ se os espreitarmos de manhã, quando/ têm a testa limpa, lavada pelos sonhos./ Por isso cismo muito sobre a palavra/ que hei-de usar, «ele» ou «tu». Cada «ele»/ é uma traição a qualquer «tu», mas,/ em troca, um poema de alguém fielmente/ oferece uma fresca, moderada conversa.»
É isto? Só a beleza criada pelos outros, pelos outros culturais, pelos outros civilizacionais, pelos outros que nos evadem da paranóia com que invariavelmente a nossa cultura nos sitia, é que nos salva e inscreve no nosso âmago a necessidade da conversa. E isto está muito para além das raças.
Quando nós não queremos sair do nosso quintal, do nosso charquinho, ficamos sem dar conta atoleimados por causa das toxinas que se exalam do cérebro do crocodilo. Ai, o crocodilo, Marcial, que grande dádiva da Mãe Natureza para a humanidade! Até dá sapatos, já viste? Que se metem debaixo da cama e parecem terramotos de grau 9, se olhados depois de uma carraspana!
E deixa lá a Europa apodrecer na sua decadência, África apodrecer nas suas guerras, deixa lá as hordas – tudo o que interessa está nas pessoas, embora não tanto no seu lugar identitário mas no COMO introduzem algum senso comum no lugar da fala.

24 Mar 2021

Os equívocos de António Cabrita – “Lugar de Fala” por Marcial Macome

Faz muito tempo que acompanhamos em silêncio o debate sobre o lugar de fala no meio dos escritores Moçambicanos. Acompanhar em silêncio esse debate fez com que no dia 4 de Março 2021 nos deparássemos com um texto da autoria do escritor português António Cabrita (nosso antigo professor na ECA-UEM), esse artigo o consideramos a gota de água que faltava para o copo transbordar e nós os mendigos tenhamos possibilidade de provar um pouco da gota de água em disputa entre “os tubarões” da literatura.
Decidimos romper o silêncio sobre a questão de “lugar de fala” e a questão da identidade (futuramente) no contexto da literatura em Moçambique e tomar posicionamento, afinal um desses sábios já diziam: “Quem cala consente.” Toda alusão que faremos aqui sobre Antônio Cabrita tem haver apenas com o texto publicado com o título “O lugar-de-fala”.
Cabrita começa seu texto da seguinte forma:
“Essa falácia que se chama “lugar de fala”, tal como está a ser entendida, significa, de modo caricato, que eu como branco não posso falar da injustiça cometida sobre um negro (pois sei lá eu do que falo), que a galinha não pode falar da terrível cárie do lobo, que só a mulher pode falar autenticamente do seu castigo em engomar a roupa da família e que só o monge trapista poderá falar do silêncio.” (Texto disponível no Link: https://hojemacau.com.mo/2021/03/04/o-lugar-de-fala/ )

Para fundamentar seu argumento, ele recorre ao episódio da jovem escritora holandesa Marieke Lucas Rijneveld, que desistiu de traduzir o poema recitado por Amanda Gorman na cerimônia de tomada de posse de Joe Biden, depois da polémica levantada por Janice Deul. Vale lembrar que Janice, segundo Cabrita, defendia que o tradutor de um poema destes devia ser como Gorman, “um artista local, jovem, uma mulher assumidamente Negra”. Lembra o autor que Marieke Lucas Rijneveld já ganhou o International Booker Prize e ela havia sido escolhida pela editora Meulenhoff para traduzir o poema Hill We Climb, “escolha que a americana aceitou com regozijo”.
Para Cabrita, “o lugar de fala” esqueceu-se de duas qualidades essenciais ao humano e que são anteriores à sua origem étnica ou à braguilha do seu género:
a) aquilo que em sociologia se chama «compreender com» e,
b) o que é fulcral ao equilíbrio inter-relacional no quotidiano e nas sociedades, ou seja, «a empatia».
Mais do que isso, o professor também pontua que o lugar de fala exclui a possibilidade de lugar de juízos universais e “abole o que é intrínseco à nossa própria formação” passando-se assim da “autenticidade” da cultura do outro no multiculturalismo para a morte do outro, que para ele não passa de um álibi para nossa falta de curiosidade quanto ao diverso. Lembra o autor que: “mesmo as noções de identidade mais integristas estão reféns, por incapacidade de manifestarem-se senão por constraste a outras. Uma boa fábula para esta doença seria a do homem cuja maior ambição fosse caiar a sua sombra para que ela desaparecesse e afinal descobrisse a meio da sua missão que ela agora se projecta no branco da cal.” (CABRITA, 2021. Link disponível no rodapé) .
O autor volta a verossimilhança aristotélica para chamar “o lugar de fala” de tolice e como uma moral excludente pois no seu entendimento isto já estava posto no processo de construção de personagens, mas não se dando por convencido, o autor recorre a um vídeo do filósofo Paulo Ghriraldelli onde este explica o que supostamente há de errado no “lugar de fala” segundo seu entendimento, Cabrita conclui este ponto afirmando que “quem reclama a atitude exclusivista de uma pertença étnica, está a assumir um lugar de subalternidade, para desde esse palanque reclamar os seus direitos. É absurdo.”
Durante esta nossa curta vida no mundo já participamos de várias mesas de discussões académicas, congressos científicos, políticas e de outras naturezas. Uma coisa que aprendemos dessas experiências é que desqualificar qualquer que seja o argumento ou luta com base em adjetivos pejorativos é sinónimo de insegurança, intolerância, medo, despreparo ou aquela máxima “a melhor defesa é o ataque”. ( não pretendemos com isso dizer que este seja o caso).
Gostaríamos de sublinhar que nossa análise não irá se focar no caso já mencionado da polémica tradução, mas sim em elementos que do ponto de vista conceptuais são problemáticos nos argumentos apresentados por Cabrita.

O que é “lugar de fala” ?
No meio académico são várias as definições de “lugar de fala”, principalmente nas discussões do movimento feminista, poderíamos trazer várias referências para o melhor entendimento do que é realmente lugar de fala, mas por considerarmos o texto da filosofa brasileira Djamila Ribeiro (RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?: Belo Horizonte, 2017) bem didático iremos recorrer a ele para explicar o que realmente é lugar de fala.
Segundo Ribeiro (2017), lugar de fala não diz respeito a negar as experiências individuais, tampouco é um olhar essencialista, pelo contrário, refere-se ao reconhecimento do “locus social”, convidando a uma reflexão sobre as dificuldades de atravessar barreiras imposta por esse lugar do outro. Lugar ou posição de fala, não se refere necessariamente a indivíduos dizendo algo, trata-se de um conceito que parte da perspectiva de que as visões de mundo se apresentam desigualmente posicionadas. Para Ribeiro: “não estamos falando de indivíduos necessariamente, mas das condições sociais que permitem ou não que esses grupos acessem lugares de cidadania.” Em outras palavras, “lugar de fala” refere-se aquilo que Mbembe (2016) chamou de reconhecer o carácter provinciano do seu discurso.

Diante desta didática explicação vemos que os ataques a “Lugar de Fala” apresentados por Cabrita são resultados de uma incompreensão do conceito e um comportamento negacionista e individualista adoptado logo no primeiro parágrafo do seu artigo; por outro lado, elas ignoram um factor muito importante que é a dimensão histórica e sociológica da coisa. Para analisar o racismo não basta situá-lo como um fenómeno individual, ontogénico muito menos como característica universal da espécie humana, é preciso ter em conta a perspectiva sociogénica, o racismo integra um complexo sócio-histórico que está na base de formação da subjetividade (Sobre isto ler: Frantz Fanon, Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos).
O negacionismo (do francês négationnisme) conduziu a nosso ver a ausência de uma noção clara nos argumentos de Cabrita do que é realmente o “lugar de fala”. O autor não apresentou nenhuma noção de “lugar de fala”, apenas partiu para os ataques, chega ao nível de apresentar os supostos problemas do “lugar de fala”. Há em seus argumentos uma tentativa forçada de definir lugar de fala a partir de Aristóteles, mas este raciocínio não chega a ser concluído, dissolve-se no vazio.
Esta postura negacionista não nos é recente, muitos autores no naturalismo sempre se comportaram de igual maneira, sem argumentos metodológicos afirmaram a superioridade da raça branca. A corrente Polygénisme inaugurada por John Atkins (1685-1757) e depois desenvolvida na França no século XIX com figuras como Jean-Baptiste Bory de Saint-Vincent, Louis-Antoine Desmoulins e Georges Pouchet eram especialistas do negacionismo.
Em 1855 Arthur de Gobineau publicou uma obra com o titulo Essai sur l’inégalité des races humaines. Nesta obra ele apresenta três raças humanas e sua devida classificação, segundo ele, a primeira raça a branca, seria a superior, as duas outras, neste caso a negra e amarela seriam raças inferiores. A maior parte dos argumentos de superioridade da raça branca que ele apresentava eram fundamentados por uma visão biológica, metodologicamente esvaziada, sem sistematização, consequentemente do ponto de vista científico irrelevante. Vários autores negacionistas do naturalismo, historiadores, filósofos, poligenistas e monogenistas se basearam em teorias biológicas vazias de sistematização metodológica para discutir a ideia das raças. Basta visitar os trabalhos de autores como Luís Agassiz, Pierre Paul Broca, Spencer Sr John, Arthur de Gobineau, Tschudi e M. Squier, R. Ruffie Eockstedt para se ter uma ideia de como o negacionismo operou, uma autêntica “biblioteca colonial” negacionista, como diria o filosofo congolês Valentim Yves Mudimbe.
Foi contra estes negacionismos que figuras como Atenor Firmini, Cheik Anta Diop, Hannibal Price, Aimé Césarie, W.E.B DU Boi, Frantz Fanon, Achille Mbembe, Leopoldo Senghor, Leone Damas, Marcie Towa, Joseph Ki-Zerbo e muitos outros se posicionaram cientificamente para refutar teorias de supremacia racial, cada um do seu jeito, na sua área de actuação e no seu tempo. Aliás, basta procurar saber quais foram os motivos que levaram a UNESCO a publicar os oito volumes da História Geral de África.
O outro ponto que chamou nossa atenção no texto de Cabrita tem a ver com quotas, identidade e apropriação.
Segundo ele torna-se desnecessário exigir quotas sendo que existem direitos constitucionais. Escreve o autor que o “lugar de fala”: “torna-se então o palanque para dar voz ao fogo de artifício da rendição. É como nos embrulhamos na retórica, para pedinchar quotas, quando há direitos consagrados numa Constituição por cumprir.”
A nosso ver: “Uma civilização que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu funcionamento suscita, é uma civilização decadente.
Uma civilização que prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais, é uma civilização enferma.
Uma civilização que trapaceia com os seus princípios é uma civilização moribunda. A verdade é que a civilização dita “ europeia”, a civilização “ocidental”, tal como a modelaram dois séculos de regime burguês, é incapaz de resolver os dois problemas maiores a que sua existência deu origem: o problema do proletariado e o problema colonial; que, essa Europa acusada no tribunal da “razão” como no tribunal da “consciência”, se vê impotente para se justificar, e se refugia, cada vez mais numa hipocrisia tanto mais odiosa quanto susceptível de ludibriar.” (CÉSARIE, 1978, pag. 12).

Desdenhar as quotas seria a nosso ver assumir a incapacidade de resolver os dois problemas que Cesarié levantou e se refugiar num discurso hipócrita de direitos constitucionais para salvaguardar privilégios de raça herdados durante séculos de colonização.
Uma pequena revisão da história de Portugal e se quisermos dos países colonizadores poderia ajudar o professor a compreender a importância das quotas, o ajudaria também a compreender melhor como o processo das desigualdades se deu ao longo da história, a tal ponto, que se chegou ao nível da favelização dos países e dos povos autóctones.
À primeira vista poderíamos afirmar que o fim da colonização libertaria a subjetividade humana, ao nos referir a subjetividade humana nos referimos ao aparelho psíquico, modos de pensar, de sentir e desejar, infelizmente vimos a hasteagem de bandeiras, hinos e não a descolonização mental. O veneno da colonização não se expurga meramente com a saída de tropas Portuguesas em Moçambique e nem com a saída das tropas Francesas nas antigas colónias. Uma leitura da abordagem sociogénica de Frantz Fanon poderia ajudar o professor na compreensão da violência colonial.
Poderíamos lembrar que durante a abolição, em muitos países, incluindo Portugal, os senhores de escravos foram indemnizados, consequentemente essa riqueza obtida através de crimes contra a humanidade foi deixado de herança para os descendentes dos senhores de escravos, os mesmos que hoje ignoram seu lugar de privilégio ou foram assolados de uma amnésia (cheira-nos ao surgimento de uma nova pandemia, alertem a OMS); por outro lado, os escravizados foram deixados sem nenhum tipo de assistência nem reparação histórica, isso foi feito em nome da constituição que o professor defende. Quotas são uma tentativa de reparação histórica causada pelos crimes que os brancos colonizadores e racistas cometeram aos negros e a outros grupos subalternizados pelo regime colonial com objectivo de criar e acumular riqueza que ficou de herança para seus actuais descendentes.
A Declaração Universal dos direitos Humanos foi criada no dia 10 de Dezembro de 1948, mas até 1974 as tropas portuguesas ainda matavam, submetiam as pessoas ao trabalho forçado em Moçambique ou já se esqueceu? Nas colónias francesas esse movimento de retirada das tropas começou em 1960, mas já havia uma constituição francesa que garantia os direitos aos cidadãos em 1791, embora restritos, mas havia, será que os negros Africanos que França ainda maltratava eram diferentes dos homens franceses o que os tornava diferentes?
As maiores guerras que o mundo viveu tinham como objectivo o cumprimento dos interesses constitucionais. A colonização portuguesa tinha como pano de fundo salvaguardar os interesses do império e foi com base nesse argumento que Portugal se tornou o que é hoje, fruto de crimes contra a humanidade em nome dos direitos do império, ademais, os criminosos foram recompensados e até tem estátuas em praças públicas terá se esquecido disso o professor?
Mas para uma contextualização e aprofundamento da história sobre o cumprimento da constituição, vou usar dados do Brasil (que também foi colónia portuguesa).
Foi com base na lei que no dia 15 de Outubro de 1827 foi criada a primeira lei de educação no Brasil, entretanto essa lei ao que sabemos não contemplava negros, negros não podiam ir à escola. No dia 18 de Setembro de 1850 criou-se a lei nº 601 que foi também conhecida vulgarmente como a lei das terras, no entanto negros não podiam ser proprietários de terra; 1871 cria-se a lei do ventre livre, lei que considerava livres todos os filhos de mulheres escravas nascidas a partir daquela data, no entanto as crianças trabalhavam porque eram proibidas de frequentar escolas e áreas públicas; em 1885 cria-se a lei sexagenária que considerava livre quem alcançasse 60 anos, quantos negros chegavam a essa idade com as suas condições de vida e de trabalho que estavam submetido?; 1888 abolição, depois de 388 anos de escravidão é que se proclamou a abolição, se é que se aboliu, convenhamos foram apenas sofisticando os métodos da escravidão; 1890 cria-se a lei dos vadios e capoeiras, os que perambulavam nas ruas, sem trabalho ou sem residência que pudesse ser comprovada iam para cadeia. Será que estes seres eram realmente livres? Não precisamos fazer nenhum exercício filosófico para perceber qual era a cor da população que era na sua maioria carcerária, basta lembrar da cor da população que não tinha direito de terra e nem podia estudar, será que hoje mudou alguma coisa?; 1968 criou-se a lei do Boi, segundo nos consta essa foi a primeira lei de quotas, no entanto engana-se quem pensa que essa lei de quotas era para o “povinho” (negros), essa lei era para filhos de donos de terras que podiam ter vagas em escolas técnicas e nas Universidade; não se esqueça da lei de 1850 anunciada anteriormente, reveja-a; 1988 nasce a actual constituição do Brasil, resumindo precisou passar 488 anos para que uma constituição dissesse que negros e branco são todos pessoas e que racismo é crime.
Convém lembrar que a situação de estigmatização e marginalização: “[…] É partilhada pela maioria dos Estados Latino-americanos, o que explica que a teoria chamada de descriminação positiva, avançada pelo sociólogo W.E.B.Du Bois, no inicio do século XX nos EUA, faça ainda hoje debate no Brasil, por exemplo, sob forma de acoes afirmativas. E, de outro lado, que só em 2003, com o presidente Inácio Lula da Silva, se tenha introduzido, em termos legais a obrigatoriedade de estudos de história da africana e dos afrodescendentes nas escolas.” (Buanaissa, 2016, p.52)

Para não lhe cansar, professor, vamos parar por aqui, creio que num futuro muito próximo teremos a possiblidade de falar da questão da identidade e da apropriação pois no nosso entender também existem alguns equívocos na colocação da noção de apropriação, até lá recomendo rever a concepção de identidade de Aimé Césarie (Discurso sobre a negritude), Éduardo Glissant (Poéticas da diversidade), Achille Mbembe (Crítica da razão negra), Felwine Sarr (Afrotopia) e a nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, Visualizando o corpo: teorias ocidentais e sujeitos africanos.
E como sei que tanto o professor como eu somos amantes da poesia, o que acha de substituir a leitura de “Os Lusíadas” por “Diário de retorno a um País Natal”?
Não será “Os Lusíadas” uma discrição identitária? Sendo, deixa ela de ser uma poesia?
Não são a Ilíada e a Odisseia de Homero discrições identitárias?
Como bem disse Césarie seguir o rumo pelo viés da identidade não é virar as costas ao mundo, muito menos se separar do mundo, nem se atolar numa sorte de solipsismo comunitário ou no ressentimento. Universal sim, não pela negação, mas pelo aprofundamento das nossas singularidades, faz tempo que Hegel mostrou o caminho.

Resgatar nossa memória significa resgatarmos a nós mesmos
do esquecimento, do nada e da negação, e reafirmarmos
a nossa presença ativa na história pan-africana
e na realidade universal dos seres humanos.

Abdias Nascimento – Panamá, 1980

Referências:

Buanaissa, Eduardo Filisberto. O paradigma libertário de Severino Nguenha: uma encruzilhada. São Paulo: Outras Expressões, 2016.
CÉSARIE, Aimé. Discurso Sobre o Colonialismo, Paris: Presense Africana,1978.
FIRMIN, Joseph Auguste Anténor. De l’Égalité des races humaines: anthropologie positive. Paris: Librairie Cotillon, 1885.
GOBINEAU, J. Arthur. Essai sur l’inégalité des races humaines. Paris: Éditions Pierre Belfond,1855.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1936.
António Cabrita https://hojemacau.com.mo/2021/03/04/o-lugar-de-fala/
data de acesso 15 de março de 2021 as 2 horas.

22 Mar 2021

Bian Que e a ciência médica na China

O rosto espelha o interior do corpo, abertura para o mestre de medicina chinesa fazer a história da saúde do paciente pelos quatro processos de diagnóstico médico, referenciado já no ano de 501 a.n.E. Começa o olhar a inspeccionar, Wang (望), ouvir no som do falar e o cheiro do corpo, Wen (闻), com o questionar, Wen (问); fora do rosto, a confirmar o diagnóstico, medir o pulso, Qie (切).

Os problemas de saúde não se localizam num determinado ponto do corpo mas provêm do desregular, ou da interrupção dos fluxos energéticos que nele circulam por os meridianos verticais (jing) e horizontais (luo) a ligar em pares os órgãos yin com as vísceras yang.

A medicina chinesa tem um saber de milénios registado desde o século III a.n.E. no Tratado de Medicina Interna do Imperador Amarelo (Huangdi Neijing), o Livro dos livros de Medicina, ainda hoje usado, onde a filosofia do funcionamento do corpo humano está apresentada ao nível orgânico, com conexões à Astronomia, Geografia, Climatologia, …

A Prof. Ana Maria Amaro refere, “Com o século XI a.C. e a chamada época Chau (周) [dinastia Zhou (1046-256 a.n.E.)] começou o segundo período da História da Medicina chinesa, o período filosófico, já integrado na época histórica do Celeste Império. Este período recebeu a designação de filosófico, em virtude de serem os métodos usados pelos facultativos desta época, essencialmente indutivos, baseados numa espécie de Filosofia comparativa.

Apesar do domínio da Filosofia sobre todos os raciocínios médicos, que, deste modo, eram essencialmente teóricos, parece ter sido, esta, a época áurea da Medicina chinesa e aquela em que mais se desenvolveu a Medicina aplicada, ainda liberta das superstições com que o Taoísmo [aqui referido como religião criada no século II e não, Filosofia do Dao] viria a inundar, mais tarde, o Celeste Império. Supõe-se ter sido, apenas, cerca de 430-350 a.C. que a própria Ciência se organizou na China. Viveu, neste período, o famoso médico, comummente conhecido por Pin Chéok (扁鹊) [em mandarim Bian Que], tomado como um representante, mais ou menos lendário, desta nova fase.”

Primeiro médico

Bian Que (扁鹊, 407-310 a.n.E.), de nome Qin Yueren, nasceu em Cangzhou (Mozhou na Prefeitura de Bohai, hoje distrito de Renqiu, província de Hebei) no ano de 407 a.n.E. e na adolescência, durante dez anos foi protegido do grande mestre Chang Sangjun, com quem se iniciou como aprendiz. Revelando ser um excelente discípulo, o mestre transmitiu-lhe os conhecimentos médicos e tempos depois, Chang Sangjun sentindo aproximar o fim da vida entregou-lhe as receitas secretas.

Lendário médico, Bian Que ficou conhecido como grande autoridade em Acupunctura e Moxibustão, especialista em doenças dos sentidos (olhos e ouvidos) e ter rara sensibilidade para medir o pulso e diagnosticar. No entanto, dizia ele serem os seus dois irmãos mais velhos muito melhores pois, adivinhavam a doença ainda esta não se manifestara. Exerciam Medicina antes do tempo da profissão de médico.

Numa viagem de Bian Que pelo Estado de Qi, actual província de Shandong, ao visitar o Rei, o duque de Huan (374-357 a.n.E.), olhou para a face deste e percebeu haver ali um problema de saúde, ainda ligeiro, apenas na pele. Enviou aviso ao rei para se tratar, pois se não o fizesse o mal expandir-se-ia e traria problemas. O preconceituoso rei logo pensou: . Retirou-se sem ligar importância aos conselhos. Após semanas, Bian Que visitou o rei para saber como estava e olhando-o, avisou ter o mal já passado da pele para a carne. Era necessário tratar-se senão a cura seria depois muito mais difícil. Sentindo-se bem, o rei continuou a não acreditar, abandonando o médico o palácio desanimado por não ser escutado.

Dias passaram e regressou o médico à corte Qi e vendo o rei disse-lhe ser já o problema profundo, pois entrara no estômago. Sem se sentir mal, o rei continuou sem tomar precauções.

O duque Huan e Bian Que cruzaram-se na rua uma semana mais tarde, mas o médico continuou a andar sem lhe ter ido falar e este enviou um emissário a saber das razões de tal atitude. Bian Que explicou ser agora a abordagem à doença desnecessária pois, se para resolver o problema na pele era suficiente uma pomada, quando entrou na carne bastava usar as agulhas de acupunctura e chegado ao estômago curava-se com umas ervas-medicamento. Com o problema já nos ossos, não havia remédio. Após cinco dias, o Rei Duque Huan (Cai Huan Gong) sentiu dores no corpo e mandou chamar Bian Que, que desaparecera por saber nada mais poder fazer. Passados cinco dias, o rei morreu.

Outra história ocorreu no Reino Guo, onde hoje é Baoji, na parte Oeste da província de Shaanxi. Quando Bian Que aí chegou, o príncipe regente acabava de falecer. O médico logo foi ao palácio e questionando sobre os sintomas que levaram à morte, percebeu poder trazer à vida o príncipe. Com a permissão do rei, o médico observou o paciente e auscultando o pulso concluiu estar este em coma. Conjugando moxibustão e acupunctura com outros tratamentos, recuperou o filho do rei.

No período da vida de Bian Que foi escrito o Tratado de Medicina Interna do Imperador Amarelo (Huangdi Neijing), que nele está referenciado e a ele ligado. A partir do seu método escreveu Nan Jing, ‘Clássico do Imperador Amarelo e as 81 Dificuldades’ usado depois na Escola dos Meridianos de Energia.

“É atribuído a Pin Chéok (扁鹊) o Livro clássico versando problemas difíceis, Nan Keng (难经) [Nan Jing], onde discutiu, com grande mérito, várias designações de doenças nervosas, sobretudo a epilepsia, distinguindo-a das simples convulsões, embora fossem, então, referenciadas pela mesma palavra e registadas pelo mesmo símbolo gráfico”, segundo Ana Maria Amaro, que refere, Pin Chéok, “Médico da Corte, para todas as enfermidades, foi tragicamente assassinado por instigação de Lei Si, médico-chefe do Palácio Imperial, que invejava os seus triunfos inigualáveis.” Tal História ocorreu em 310 a.n.E. no Estado Qin, reinava Wu Wang (310-307 a.n.E.) quando este, numa prova de levantamento de pesos, ao erguer um ding, caldeirão de bronze, deu um mal jeito nas costas e o médico do Palácio, Li Xi [Lei Si], não o conseguiu tratar. Como na altura Bian Que viajava nesse reino foi chamado e por massagens acompanhadas com uma efusão de ervas medicinais curou o Rei Wu. Este logo o contratou como médico da Corte, mas Li Xi para se vingar mandou matar Bian Que, um dos mais brilhantes médicos que houve na História.

Recentemente foi encontrado num túmulo Han na prefeitura de Chengdu, província de Sichuan, um livro em bambu com 920 tiras e vinte mil caracteres cuja autoria se atribuiu a Bian Que, a que se chamou Tian Hui Yi Jian. Tinha nove partes sobre como tratar da saúde humana e uma outra, a dos cavalos. Nele encontra-se já registada as seis vias terapêuticos (6 Zhi) usadas para curar.

15 Mar 2021

Era uma vez uma sombra que fugiu da parede…

“Os poetas , como os cegos, podem ver no escuro”
Jorge Luis Borges

Entrei numa gruta sem saber onde estava. Os gritos do imperador ecoavam de dor, enquanto os seus olhos se derramavavam nas sombras da sua concubina preferida, reminiscências daquelas que Platão aprisionara na sua caverna. Simulacros lançados na indifinida coreografia que iria reger o ocidente e o oriente, ao compasso de incertas dramaturgias entre transcendência e imanência. Deitei-me, fechei os olhos e disse para mim mesma: daqui não saio, daqui ninguém me tira. O real ensopado de mil chuvas e corroído por mil vermes ficava de fora. Eu ficava dentro, no lugar onde todo o espaço explodia e se guardava no meu olhar, qual porto onde ancorava um desejo antigo, muito antigo de cinema, antropologicamente antigo e aparelhado pelas mãos de Dédalo. Uma vontade de ver imagens correndo em continuidade e animadas pelo vento.
O cinema era o Outro, deste outro tempo anterior que já não estava ao alcance da minha mão, mas do encantatório Rosebud sussurado por Orson Welles, hipnotizando o fundo do meu pathos. Fui afectada pelos ecrãs dos cinemas, viajei por muitas cidades cinematográficas desde Griffith, Lang, Ford, Mizoguchi, Renoir… foram dias felizes. Na verdade as metrópoles mais belas da carta-khôra destes meus contos, são acontecimentos, metamorfoses semânticas, rasgos no céu e no devir. Como os gregos, nada somos se não vivemos numa cidade e, diferentemente deles, o que nos atrai, contemporaneamente, é o desvio do que já aconteceu e nos conduz para mais longe, na direcção de um não acontecido – o horizonte poético da potência. As minhas cidades são erguidas pelos artífices e artesãos da arte e porta voz de uma energia urgente e inadaptada, e as cinematográficas rompem a parede onde estão as sombras, passam para o real e para o sonho de uma sombra, percorrendo a extensa região de Píndaro.
Eclipsando a importância da Sagrada Família ou da Casa Milá de Gaudi, as notas em sol triste, que ecoavam num beco, atrairam-me como uma fêmea com cio para a cave escura onde Tete Monteliu improvisava ao piano. Connosco o clube ficou com 3, 4 pessoas no máximo, numa total escuridão. Embora o jazz fosse um país que conhecia há muito, e do qual podia desenhar o mapa quase de olhos fechados, lembro-me bem como fiquei emocionada. Tudo o que interessava naquele momento eram as mãos que inquietavam aquelas teclas num misteroso processo, improvisando.
É esta a figura do trabalhador que habita as cidades do meu planisfério. O que contraí o síndrome de improvisar como um actor, um músico, um filósofo, e de inventar como um cientista, ensaiar como um pensador… Neste síndrome, vários sintomas sem causa e sem resposta, disparam, emergem, contaminam as sombras negras daquela cave, revelando um corte, uma inadequação, uma esperança, uma guerra. Suspeitava, claro, da violência com que tudo se arquitectava, o que confirmei nas inúmeras visitas que fiz como viajante, a Brecht, Godard, Viola, onde grandes revoluções foram projectadas. Pouco a pouco, o trabalho das sombras fez de mim testemunha de um passe de magia em que o logos foi conquistado pela imagem, soltando-a agora da black-box e expandindo o que o cinema, afinal, nunca pôde prometer. Por todo o lado, o reflexo narcísico e predador invade territorialmente o mundo, numa expansão imperial sem precedentes, na rede, na white-box dos museus, no teatro, nas instalações, nas televisões das casas, nos computadores, nos telemóveis… e, confesso, até tenho medo que a hybris tecnológica mobilizada pela imagem, se torne tão omnipresente que nos possa cegar.
Voltei à gruta onde encontro Winona Ryder, imóvel durante 30 minutos, enquanto Bob Wilson ajusta as luzes até a imagem de Dias Felizes desaparecer na escuridão. Fecho os olhos e vejo o último plano de Trás os Montes de António Reis: um homem afasta-se em profundidade na paisagem como se fosse parte de um tempo sem ponteiros. Quem é o outro inventado pelo cinema quando devolve, não a coisa em si, mas a coisa constituída de inesperadas qualidades da mediação? O que muda agora, quando a sombra que se solta da parede continua presente na sua travessia, mesmo quando abandona a projecção numa sala de cinema?
Já de partida, e sem resposta, sonho com Diotima que nasce do negror clássico e me traz numa caixinha de berlindes a memória de Eros. Mais do que deus da ligação, ele é aquele que é capaz de tornar visível o que não está ligado, aparelhando tecnicamente a circulação das imagens, transformando-as na mais poderosa carga de afecção do mundo actual. Como ser intermediário, Eros captura o síndrome da visibilidade irreversível, num movimento de sombras nunca visto. Identifica os sintomas num mundo agora prometido ao Maelstrom de Poe, que é preciso, se calhar, preencher com imagens que não eram previsíveis ou que estavam ocultas e desligadas no anterior regime de virtualização do mundo. Imagens que são agora o que nos securiza na grande queda da vida e se soltam e correm em todo o terreno possível.
Ao contrário de Platão, que temia que a escrita matasse a memória, eu, afinal, não temo que as imagens ceguem o mundo. Sei que os corpos terão de levar para longe, muito longe, esta carga, em subtis remediações de imagens neste mundo medial. Mas nunca esqueço que Murnau ainda é a cidade onde encontro a mais bela e triste aurora…

13 Mar 2021

Banalidades de base (1985) Stewart Home

(tradução de Emanuel Cameira)
Na imagem, da esquerda para a direita, os fundadores da IS em Cosio di Arroscia (Itália, 1957): Giuseppe Pinot-Gallizio, Piero Simondo, Elena Verrone, Michèle Bernstein, Guy Debord, Asger Jorn e Walter Olmo.

No Ocidente, o tempo sempre foi linear. Contudo, é preciso esperar até à revolução burguesa do século XVIII para que se lhe associe uma noção dinâmica de progresso. Mal a burguesia se instalou no poder, os efeitos de tal ligação fizeram sentir-se em todas as áreas da vida. Nas artes, teve isso tradução numa fetichização da “originalidade” na forma de inovação estilística. O resultado foi que o racionalismo do século XVIII tornou-se o romantismo do século XIX que, por sua vez, tornou-se o modernismo do século XX. Convém sublinhar que estas “inovações” sempre foram de estilo e nunca de conteúdo. Ou seja, foram essencialmente ocas e, sob as aparências de superfície, não houve nenhuma mudança.

Tendo olhado para as categorias num sentido lato, voltaremos a nossa atenção para as subdivisões elaboradas pelos historiadores de arte, com as quais ganham a vida. A primeira subdivisão modernista com algum relevo é o futurismo, que foi essencialmente uma fusão do cubismo com o expressionismo e com as ideias de Alfred Jarry. A obsessão futurista com o choque, a originalidade e a inovação celebra o movimento como um produto típico da sociedade burguesa. Era absolutamente natural que os futuristas desenvolvessem, a partir de tais critérios, o amor pela velocidade, pelas máquinas e pela guerra.

Devido à exigência burguesa de uma contínua, pseudo-mudança, o futurismo foi rapidamente superado pelo dadaísmo enquanto força artística. O dadá foi basicamente o futurismo com algo mais: mas onde o futurismo equilibrou os seus aspectos negativos com a crença no progresso tecnológico, o dadaísmo abraçou uma pespectiva totalmente niilista. A negação niilista atingiu o seu auge com o Clube Dadá, em Berlim – após o qual o seu niilismo foi negado pelos dadaístas parisienses, que o rebaptizaram de surrealismo.

Os surrealistas alcançaram a sua negação do niilismo dadaísta racionalizando o irracional com fragmentos mal-digeridos do marxismo-leninismo e da psicanálise freudiana. Onde o dadá havia destruído a linguagem da alienação elaborada por Sade, Lautréamont e Rimbaud – o surrealismo ergueu esses pornógrafos da alma humana como libertadores do desejo reprimido.

À medida que o surrealismo se transformou em academicismo, foi substituído por novos grupos de vanguardistas. O primeiro deles, o Movimento Letrista, foi fundado em 1946 por Isidore Isou – um romeno a viver em Paris. Os Letristas identificaram a criatividade como o impulso humano essencial e, em seguida, definiram-na apenas em termos de originalidade. Inicialmente, os seus interesses eram literários e assemelhavam-se a obras menores de poesia concreta. Isou acreditava que havia substituído todas as estruturas estéticas e ressistematizado as ciências da linguagem e do signo numa única disciplina a que chamou “hipergrafologia”.

Os Letristas de esquerda, liderados por Guy Debord, interromperam uma conferência de imprensa de Charles Chaplin no Hotel Ritz de Paris, no Verão de 1952. Isou denunciou-os nos jornais, o que resultou no corte da ala esquerda com o corpo principal do movimento, renomeando-se como Internacional Letrista e emitindo o seu próprio boletim “Potlatch”.

As principais actividades da Internacional Letrista eram a “deriva” e a “psicogeografia”. A primeira consistia em deambular pela cidade seguindo as condições impostas pela arquitectura. Foi uma tentativa de encontrar tipos de arquitectura desejados inconscientemente. A psicogeografia era o estudo e a correlação do material obtido a partir da deriva. Foi usado para traçar novos mapas emocionais de áreas existentes e planos para cidades utópicas.

Embora o Movimento Letrista fosse principalmente um fenómeno literário e a Internacional Letrista se preocupasse sobretudo com o urbanismo, existiam outros grupos cuja energia se concentrava na pintura. COBRA foi um desses movimentos, formado em 1948 pelo Grupo Experimental Holandês, o grupo dinamarquês Spiralen e o belga Bureau Internationale du Surréalisme Révolutionnaire. O trabalho do COBRA foi uma reacção europeia ao Expressionismo abstracto. O movimento durou três anos e foi parcialmente reconstituído quando Asger Jorn, um ex-membro, fundou o Movimento Internacional para uma Bauhaus Imaginista, em 1953. Jorn foi apoiado na formação da Bauhaus Imaginista – que foi criada em oposição à Nova Bauhaus, de Max Bill – por Enrico Baj que, à época, era o principal farol do Movimento de Arte Nuclear.

A Arte Nuclear foi fundada, em 1951, por Baj e Sergio D’Angelo. Os seus membros provinham de vários grupos italianos de vanguarda, incluindo o MAC, o T e o Grupo 58. Também incluiu como membros, ou colaboradores próximos, ex-futuristas, dadaístas e surrealistas (por exemplo, Raoul Hausmann). Entre 1953 e 1956, não parece haver uma distinção clara entre a filiação na Bauhaus Imaginista e na Arte Nuclear. E a adesão parece ser a única coisa que diferenciou a Arte Nuclear e os Espacialistas – um grupo milanês que, tal como o COBRA e os Artistas Nucleares, experimentava um estilo europeu de pintura abstracta.

Em Setembro de 1956, realizou-se uma conferência em Alba, Itália, para reunir membros da vanguarda europeia. Na realidade, isso significava membros da Internacional Letrista, da Arte Nuclear e do Movimento Internacional para uma Bauhaus Imaginista. Antes do início da conferência, deu-se o rompimento com o representante belga Christian Dotremont, ex-surrealista e antigo membro do COBRA. Enrico Baj foi excluído no primeiro dia e a conferência confirmou a cisão com os Nuclearistas. A reunião deu azo a um acordo que serviu de base para a unificação, em 1957, da Internacional Letrista e da Bauhaus Imaginista. Os grupos amalgamados adoptaram o nome Internacional Situacionista.

A Arte Nuclear, assim como o Movimento Letrista de Isou, continuaram a desenvolver as suas próprias teses e ignoraram a formação da Internacional Situacionista (IS). Na verdade, 1957 – o ano de fundação da IS – mostrou o momento alto das actividades dos Nuclearistas. Foi nessa altura que publicaram o seu manifesto Contra o Estilo, cujo signatários incluíam Piero Manzoni, Yves Klein e pelo menos um membro do Colégio de Patafísica. O manifesto postulou que toda a invenção se transforma em convenção: é imitada por razões puramente comerciais, razão pela qual devemos iniciar uma vigorosa acção anti-estilística em prol, permanentemente, da “outra” arte.

Concluiu que o Impressionismo ajudou a pintura a livrar-se do tema convencional; mais tarde, o cubismo e o futurismo eliminaram a necessidade de reproduções realistas dos objectos; e a abstracção, finalmente, aboliu os últimos traços da ilusão representacional. Um novo – e derradeiro – elo completa hoje esta cadeia: nós, pintores nucleares, denunciamos, a fim de a destruir, a última convenção, o ESTILO.

Em Março de 1962, a Internacional Situacionista dividiu-se em duas facções. A maioria dos Situacionistas estabelecidos na Europa do Norte – pouco mais de metade dos membros do movimento – romperam com a facção de língua francesa e formaram a Segunda Internacional Situacionista. Aqueles cujas actividades estavam centradas em Paris responderam “excluindo” do “seu” grupo os norte-europeus e tornaram-se – com efeito – uma organização periférica, à margem da extrema-esquerda francesa. Apoiando-se teoricamente em Paul Cardan, Henri Lefebvre e na Escola de Frankfurt, este agrupamento desenvolveu uma política baseada no conceito de “Espectáculo”. A ideia de que, sob o Capital, o consumidor é reduzido ao nível de um espectador passivo que observa a vida ao invés de participar nela. O Espectáculo é simultaneamente tratado como fenómeno generalizado e localizado. Ao oferecerem uma série de descrições coincidentes mas dificilmente padronizáveis, os Situacionistas Franceses foram incapazes de chegar a uma uniformização da sua construção teórica. Analisaram os vários movimentos do Espectáculo sem demonstrar qualquer relação entre eles. Felizmente, o tombo teórico daí resultante contaminou apenas uma muito pequena parte do movimento revolucionário.

Tradução de: Home, Stewart (1985), “Basic Banalities”, in Home, Stewart (ed.), What is Situationism? A Reader, 1996, Edinburgh/San Francisco, AK Press, pp. 103-106.

5 Mar 2021

Primeiro acto – Cena 4

Gonçalo levanta-se e vai até ao lava-loiças, pega num copo e bebe água da torneira. Na divisão ouve- se um copo cair ao chão e a desfazer-se em cacos.

Gonçalo
Parabéns!
Valério
[fora de cena]
Obrigado.

Valério abre a porta e quase que leva com o pano ensopado que Gonçalo lhe atira.
Valério
É um filme ou um livro?
Gonçalo
O quê?
Valério
“O Joãozinho Neo-Nazi vai à guerra”.

Valério volta a sair pela porta. Ouvimo-lo limpar os cacos de vidro. Gonçalo volta para a sua cadeira e serve-se de mais vinho, terminando mais uma garrafa.

Gonçalo
Estás a trocar tudo!
Valério
[fora de cena]
Peço desculpa, meu senhor. Você é tão prolífico que eu já não sei a quantas ando.

Valério sai com os cacos embrulhados no pano, fecha a porta com o pé e aproxima-se do caixote do lixo por baixo do balcão. Passa o pano por água e torce-o. Lava as mãos e regressa à sua cadeira.

Gonçalo
O neo-nazi é o que encontra uma máquina do tempo.
Valério
Pois é!
Gonçalo
O que vai à guerra, ainda não sei quem é.
Valério
Mas é um filme ou é um livro?
Gonçalo
Ainda não sei… é uma imagem… uma cena que me tem surgido algumas vezes… parece-me interessante. Mas é igual a milhares de outras.

Valério
Por ser igual a tantas outras, vais desistir? [pausa] E é igual em quê? Uma situação de guerra? O tal êxtase no meio de tiros e explosões?

Gonçalo
Não vou desistir! Partilhei uma ideia que me anda às voltas na cabeça… nem sei se a vou começar.
Valério
Acaba lá a história do neo-nazi e da máquina do tempo…
Gonçalo
Não gostas no cenário de guerra.

Valério dá-se conta de que o vinho acabou e lá vai ele à mesa abrir outra garrafa.
Valério
Já vais recomeçar!? Acabaste de dizer que é só uma ideia que te anda às voltas na cabeça… nem personagem tens.

Gonçalo
Está bem, mas eu partilhei-a… contei-ta para ouvir a tua reacção!!
Valério
E eu ouvi. e é uma boa ideia. E foi por isso que perguntei se era um filme ou um livro ou uma performance-instalação! Mas tanto pode ser o princípio, o meio ou o fim de alguma coisa… É ou não é verdade? Queres melhor terapeuta do que eu? Falas, falas… eu oiço-te, ajudo-te… mas há limites, caramba!

Gonçalo
Estás irritado porque o vinho está a acabar.
Valério
Não! Estou irritado porque tu esgotas a paciência de qualquer um com tanta insegurança. Quando o vinho acabar, vamos à garrafa de uísque que tens ali no chão, ao lado do caixote do lixo.

Valério regressa à sua cadeira com mais uma garrafa de vinho e volta a encher os dois copos., cambaleando durante a operação. Senta-se e acende um cigarro. Oferece um a Gonçalo e dá-lhe lume. Os dois dão uma longa baforada e ficam em silêncio durante algum tempo.

Valério
Porque é que puseste ali a garrafa?
Gonçalo
Para não a bebermos.
Valério
És tão atencioso…
Gonçalo
Ele está lá deitado… os outros andam de um lado para o outro com os aparelhómetros… usam todos máscara e viseira… é difícil ver-lhes a…

Valério
[interrompendo]
Isso na cena de guerra?
Gonçalo
Não…! Ai a minha vida.
Valério
Recomeças do nada…! Desculpa lá não ter tirado notas, meu anjo.

Gonçalo
Oh…!

Valério
“É difícil ver-lhes a cara…”, continua!
Gonçalo
Sim… e não é por estar de ressaca que ele não se consegue mexer.

Valério
Uau.

Gonçalo
Uau, o quê?
Valério
Porque é bom! Põe-nos logo a pensar… Estará fora do tempo, mas no mesmo espaço? Ou será ao contrário? Sente o corpo, não sente o corpo?

Gonçalo
Foste tu que escreveste a história?!
Valério
[rindo]
Se tivesse sido eu, teria sido publicada!

Valério desata a rir às gargalhadas quando se apercebe de que Gonçalo ficou ofendido com a brincadeira.

Valério
‘Çalinho, ‘çalinho…

Valério aproxima-se do amigo e dá-lhe um beijinho na bochecha e uma cotovelada no braço.
Valério
Vá lá, meu querido… continua.
Gonçalo
[contrariado]
Ele sente o corpo! [pausa] Mas sente-o à distância… não muita… sente o corpo a uns metros… e em movimento… e dá-se conta de que alguns dos cálculos e medições estão também a ser feitos por ele próprio… quer dizer, ele está deitado, não se mexe, mas os números e as leituras aparecem-lhe como se ele estivesse em movimento. [pausa] Vê o que se está passar do ponto de vista de quem está deitado a um canto, como ele próprio está, naquele momento… mas vê também do ponto de vista de quem se movimenta pela estufa, olhando de um lado para o outro, lendo os aparelhómetros e anotando os números… Apercebe-se de que um dos cientistas que entrou na estufa, todo equipado, com máscara, fato, viseira e mais um par de botas… é ele próprio… mas no dia anterior. [pausa] O ele deitado vê o ele em pé no dia anterior… O ele em pé não vê o ele deitado nesse mesmo dia…

Valério
Repete lá isso!
Gonçalo
O ele deitado… [hesita] … vê o ele em pé no dia anterior. [pausa] O ele em pé… não vê o ele deitado nesse mesmo dia.

Valério
Escreveste assim?
Gonçalo
Não me lembro… [pausa] Acho que não.

Valério
É bom.

Gonçalo
[rindo]
Então, acho que sim!
Valério
É bom, tendo em conta o contexto! A seco, parece poesia manhosa… [declama] O ele deitado… vê!… o ele em pé… no dia anterior… O ele em pé… não vê!… o ele deitado… nesse mesmo dia.

4 Mar 2021

Primeiro acto – Cena 3

Valério serve-se de mais vinho enquanto o amigo continua os seus afazeres na divisão dos fundos.

Valério
Um aluno consultor…

Valério desata a rir às gargalhadas, entornando vinho na camisa, nas calças e no chão. Pousa o copo no chão e vai buscar um pano ao balcão de madeira, perto do lava-loiças.

Gonçalo
[fora de cena]
O que é que disseste?

Valério
Nada!

Gonçalo
[ainda fora de cena]
Um aluno consultor!

Valério
Tens ouvidos de tísico!

Valério limpa a camisa e as calças com o pano molhado. Gonçalo regressa da divisão dos fundos e volta a sentar-se na sua cadeira.

Gonçalo
Sabes que eu tenho livros publicados?

Valério
E…?

Gonçalo
Nada…

Valério
Eu disse que ias fazer birra!

Valério regressa ao seu lugar e volta a servir-se de vinho.

Valério
E disseste que as paredes são densas e desfocam bastante quanto explicaste que ele não conseguia ver muito bem o que se passava do lado de fora da estufa. Por densas, querias dizer espessas, embora, neste caso, densas seja perfeitamente aceitável como sinónimo. Mas ajudaria mais falar em espessura, ou mesmo em grossura, para dar mais ênfase à desfocagem que aludiste. Mas é como te digo, a densidade, aqui, e tendo em conta de que se trata de um conto de ficção-científica… [sorri] fica muito bem.
Gonçalo
[irritado]
Se fica bem, porque é que estás a… ?

Valério
[interrompendo]
Porque tudo o que tu fazes, escreves, contas, estudas, ouves, lês… tudo, tem de ter a minha aprovação!

Gonçalo abre a boca, chocado. Ameaça rir, mas a facada que levou não o deixa.

Valério
Não faças esse ar, é assim que nós os dois funcionamos! Lês uma crítica má a um livro que adoraste, sentes-te inseguro, será que ando enganado? e lá vens tu então, já leste isto? e ficas à espera que eu te dê a minha opinião. Porque se eu gosto, deve ser bom! E andas dias a chatear-me… já leste? já leste?… Mas és incapaz de me dizer olha, gosto de um livro de que toda a gente anda a dizer mal, achas que tenho um gosto duvidoso? Alguma coisa deve ter acontecido, andas inseguro com alguma coisa… e eu sei o que
é! Essa história do conto de ficção científica rejeitado traz água no bico, contigo é sempre assim… ando às apalpadelas até perceber se é o interruptor ou se o raio que o parta… e tu sempre à frente, armado em sonso, a mudar o braille das paredes! E isto começou porque não me perguntaste o que é que eu achava da tua primeira descrição de há pouco, a do cenário de guerra… foi ou não foi? Interrompi com uma piadinha e tu começaste logo a roer-te todo por dentro… ai, ele não deve ter gostado! E o menino pôs-se à pesca, a ver se eu mordia… ’tadinho de mim.. olha, sabias que uma vez me recusaram um conto… E o que me estavas a contar, chapéu! Portanto, já são dois boicotes seguidos…

Gonçalo
Boicotes!?

Valério
Seguidinhos, meu amigo! Mas tudo bem, quem fica a perder és tu, não vais saber o que eu penso da tua ideia para o novo livro, nem vais saber o que eu penso do teu conto recusado…

Gonçalo
[irónico]
Porque és tu quem aprova as minhas obras antes do editor!

Valério
Basta eu torcer o nariz a uma vírgula e adeus… são mais três meses de molho a bateres com a cabeça nas paredes.

Gonçalo
[irritado]
Porque és tu quem aprova as…!

Valério
Tu é que fazes por isso! Vê lá se foste descrever o orgasmo de guerra ao teu editor… Ah, pois é! Tens medo das tuas ideias…

Gonçalo
Tenho o quê?!
Valério
Borras-te todo… [Valério põe-se a escrever furiosamente num teclado imaginário.] “Um neo-nazi entra num bar”… ai, meu Deus! Um Neo-Nazi, porquê? Porque é que ele entra num bar? Ainda há quem entre em bares? E como é que ele entra? Porquê num bar? Porque é que ele entra onde quer que seja? Porque não “Um Neo-Nazi entra…”? Não, se calhar é só “Um entra…”! Não, não, isto não dá! Vou desistir… vou deixar de escrever, a minha vida acabou!

Gonçalo
Mas o que é que tem o eu ter medo das minhas ideias com o bypass ao editor?

Valério
Porque me tens em grande consideração…? Porque achas que eu sou um tipo inteligente e carismático…?

Gonçalo
Espera! Primeiro, explica lá isso de eu ter medo das minhas ideias!

Valério
[rindo]
Ai, agora temos ordem de trabalhos… sim senhor, vamos lá! Ponto número um, medo das tuas ideias… precisas mesmo que eu explique melhor!

Gonçalo
Acho que percebo o que queres dizer…

Valério
Vês, já estás a fazer o mesmo…! Percebeste perfeitamente o que eu quero dizer, mas estás a arranjar uma maneira de sair por cima, como se sempre tivesse sido evidente para ti que toda a gente sabe que tens medo das tuas próprias ideias. [pausa] Faz-me a pergunta! Achas que tenho medo das minhas próprias ideias?

Gonçalo
Oh!

Valério
Acho… mas das ideias boas! Das que te tiram o tapete, como “O Joãozinho Neo-Nazi vai à escola e no meio de uma aula de história distrai-se e tem um orgasmo de guerra”… e ficas borrado, porque sabes que aquilo é radioactivo e vens logo a correr… para quem? Para mim… para o teu paizinho que te quer tão bem!

Agora é Valério quem se levanta e sai pela porta do fundo. Gonçalo fica a sós, com o seu copo de vinho e as suas ideias.

25 Fev 2021

Tratar da nossa saúde

Isolar é a atitude indicada para prevenir o ser infectado por o Covid19, mas mesmo assim, este vai sempre um passo à frente. Daí, o remédio para combater as suas mutações, cujas vacinas trazem a esperança mas andam sempre um passo atrás, é investir na saúde, ter uma visão optimista e ser-se paciente, esperando o vírus desaparecer. A solução é tratar de fortalecer a saúde do corpo e da mente, para a qual é preciso criar um ambiente positivo, evitar tensões e conflitos, e abrir o espírito ao comum bem-estar interior.

Segundo A. da Silva Tullio, o jornalismo francês foi inventado como remédio para a cura dos doentes em França, pelo Dr. Theophrasto Renaudot, médico do Rei de França Luís XIII (1610-43). A História começa com o trabalho de um seu amigo genealógico, Pedro de Hozier, que andava pelas províncias de França e outros países para redigir a História da Nobreza (publicada mais tarde). Com as histórias genealógicas e outras das suas viagens coligia notícias que ia mandando aos amigos, entre os quais o Dr. Theophrasto Renaudot. Este começou a ler algumas dessas notícias durante as visitas aos doentes e estes melhoravam a olhos vistos e assim começou a correr a fama do doutor das notícias. Aos doentes já não lhes chegava escutar as notícias, mas também as queriam ler. Com o aumento de doentes, o médico necessitou de contratar copistas e aumentando o formato, colocou também notícias suas. Estava-se em 1630 e a tiragem corria já para os milhares, o que mostra a corrida dos doentes para este médico. Daí lembrou-se, se esse remédio curava os doentes, porque não estender aos sãos e como era amigo do cardeal Richelieu, conseguiu facilmente a licença régia, saindo em 30 de Maio de 1631 o primeiro número da Gazeta, com oito páginas. Jornal que contou com colaboradores como Richelieu, tornou-se o diário oficial do governo e com o título Gazete de France chegou até ao século XX.

O nome de Gazeta vem da moeda de cobre da República de Veneza, dos meados do século XVI, que era o custo de escutar as participações a relatar os avanços do cristianismo no teatro de guerra da Turquia.

Em Portugal, considerado o primeiro jornal português, a Gazeta começaria em Novembro de 1641 e vendia-se mensalmente por dez reis, mas já muito antes havia papéis volantes, relações e notícias avulso. Desde 1604 existia a irmandade dos cegos papelistas, onde eram apenas admitidos doze irmãos com vista para guiar e ajudar os cegos, livrando-os assim da mendicidade. Imprimiam e apregoando, vendiam os papéis noticiosos pela rua. Como muitas notícias eram censuradas, os que tinham vontade de saber mais dirigiam-se para determinados lugares da cidade (por exemplo, em Lisboa, Luís de Camões gostava de ir ao adro de S. Domingos), onde as pessoas se reuniam a determinadas horas, para escutar as licitadas novidades. Eram notícias tanto do reino, como do estrangeiro e de alguidar.

A Holanda teve desde 1605 uma publicação com as leis e ao mesmo tempo dava notícias da guerra e do comércio e a Inglaterra, no ano 1622 publicou a sua Gazeta semanal, política, comercial e literária.

Voltando a Portugal, em 1755, o terramoto deu-se a um sábado e a Gazeta saia às quintas-feiras. Pois a 6 de Novembro, a folha saiu pontualmente em Lisboa e relatava: “O dia primeiro do corrente ficará memorável a todos os séculos pelos terramotos e incêndios que arruinaram uma grande parte desta cidade; mas tem havido a felicidade de se acharem nas ruínas os cofres da fazenda real e da maior parte dos particulares”. As informações em cima partilhadas são de A. da Silva Tullio e foram publicadas em 1903.

Medicina preventiva

A História do ser humano é uma incessante procura de conhecer a Natureza, para como espelho nela se rever, sendo o princípio básico, pertencermos ao todo energético que faz o Universo. Nessa unidade, cuja energia vital Qi tudo rege, é por exercícios físicos a combinar com a química glandular e de respiração que o corpo é nutrido por canais de energia, os meridianos e vasos sanguíneos, oxigenando-o e fazendo-lhe a limpeza.

Outro método de purificar é trabalhar a respiração, prolongando lentamente o inspirar, primeiro enchendo os pulmões e daí levar o ar a preencher os espaços claviculares e seguir mais profundamente até ao estômago.

Parecendo já completamente cheio, há sempre espaço para mais insuflar e na plenitude, conseguir fazer uma pausa com o maior momento alcançável. Atestado, agora em sentido oposto, com a mesma lentidão expelir até deitar fora todo o ar e repete-se esse ciclo do respirar. Este o melhor exercício para elevar a robustez energética do corpo e esvaziar a mente, método associado à meditação para assegurar a saúde e cultivar o Espírito.

Outra natural terapia, para manter um corpo são em mente sã, é a ginástica praticada na antiga agricultura por quem com a Natureza trabalha e desde o plantar ao colher, todo o corpo é revitalizado. Após as colheitas, o festejar expressando emoções ao dançar com movimentos corporais a estimular a circulação do corpo, levando os dois braços para cima e num vira que vira, torna a rodopiar. Ao fim, os aplausos libertam foguetes de palmas e carregadas as energias, segue como novo. Em agradecimento à Natureza pelos produtos dados, as celebrações de oferecer sacrifícios ao Céu animam o espaço de Atenção, suspenso aos limites, a prestar respeito à unidade Universo.

O ser humano, em tempos que andava, qual criança, à descoberta da Essência da Natureza, ainda sem as formatadas adultas planificações para controlar e produzir, qual animal intuía os melhores alimentos para comer e após ingeridos, iam-se encontrando os efeitos, transmitindo-os oralmente.

Há cinco milénios, Shen Nong, um dos três Ancestrais Soberanos da China, ensinou a ferver a água antes de ser bebida e ingeria plantas selvagens para classificar quais as comestíveis e as venenosas. Contase ter sido num só dia envenenado 72 vezes, mas salvo por umas verdes folhas de um arbusto com flores brancas, o chá, que o desintoxicou. Utilizou as ervas medicinais como cura para muitas maleitas e melhorou as artes da agricultura, daí Deus da Agricultura. Já no Livro dos Poemas (Shi Jing) do século XII a.n.E., um sem número de plantas estavam classificadas.

O quotidiano caminhar é outra terapia, em marcha não molenga nem a correr, com herança ancestral à longa caminhada de peregrinação, massajando os pés, naquele tempo descalços, nas jornadas por calhaus redondos, ou anguladas pedras, quais agulhas pressionando as plantas dos pés, porta para trabalhar o corpo e seus órgãos, num exercício de libertar as tensões dos canais energéticos. Daqui evoluiu para as massagens e acupunctura, esta já praticada entre 6000 e 5000 anos antes da nossa Era por tribos neolíticas chinesas.

O problema do vírus só será resolvido quando tivermos o corpo nutrido com saúde para conseguir repelir todos os ataques a que quotidianamente está sujeito, pois segundo os mestres de Medicina Tradicional, não há doenças, apenas doentes.

22 Fev 2021