Segundo acto – Cena 3

Os militares terminam de desmantelar o esqueleto de metal que sustentava as paredes de plástico da estufa. O Capitão aguarda uma resposta, olhando ora para as colunas de som, ora para o microfone que tem na mão. O Major, sentado à secretária, com as pernas cruzadas em cima do tampo da mesa, dá uma grande passa no seu charuto-bazuca e lança uma nuvem de dúvida em direcção ao seu subordinado que não sabe muito bem se deve continuar a insistir na comunicação. Gonçalo continua deitado no chão sem se conseguir mexer.

Major
Die Pantoffeln?

Capitão
[pausa]
Sim…

O Major lança outra nuvem de fumo, empestando o ar com o cheiro a charuto. O Capitão sua por todos os poros.

Major
Sabe o que quer dizer?

Capitão
[amedrontado]
O quê..?

Major
Die Pantoffeln…

Capitão
[hesita]
Eh… Os pantufas…?

Major
Os?!

Capitão
As!

Major
[exalando mais fumo]
Será?

Capitão
[desistindo]
Pois…

Major
Pois… [pausa] No nosso continente travam-se batalhas atrás de batalhas… quiçá na guerra mais importante da humanidade… nem que seja pelo facto de ser a guerra que se trava agora… e as guerras de hoje são sempre mais importantes que as de ontem. [pausa] Concorda?

Capitão
[confuso]
Com que parte?

O Major olha-o, admirado, como se reparasse nele pela primeira vez. Levanta-se e desata a rir às gargalhadas, pousando os punhos no tampo da secretária. Ele é realmente um fumador muito experiente. Com a sua bazuca Cubana metida entredentes, exala o fumo da ao sabor da percussão do seu diafragma – AH AH AH AH AH AH AH – e não se engasga uma única vez.

Major
Como é que um merdoso como você chegou a Capitão?

Capitão
[envergonhado]
Eh… [pausa] O meu pai era militar… e o pai dele, também.

Major
O pai dele era seu avô?

Capitão
[confuso]
Sim…?

Major
[tirando o charuto da boca]
Ainda perguntas!? Olha que caralho… [pausa] Verticaliza-te, sua minhoca! Era avô ou não era avô?

Capitão
Era, meu Major.

Major
[duro]
O pai era militar… o avô era militar… [pausa] Continua…! Se te crescerem tomates, pode ser que te volte a tratar por você!

Capitão
[à beira das lágrimas]
O a… a… avô era mi… militar…

Major
Essa parte já tinha percebido, florzinha!

Capitão
[gaguejando]
E… e… e… eu… se… se… se-se-segui a ca-ca-ca-carreira…

Major
E lá na Maçonaria não te ensinaram a pa-pa-pa-partir pe-pe-pe-pe-pe-pedra? Ou foi tudo com favores?! [desata a rir às gargalhadas] Valha-me Deus… [pausa] Quiçá a guerra mais importante da humanidade, nem que seja pelo facto de ser a guerra que se trava agora, e as guerras de hoje são sempre mais importantes que as de ontem. [levanta a voz] Concorda ou não?!

Capitão
Concordo, meu Major!

Major
COM QUE PARTE?

Capitão
É A GUERRA MAIS IMPORTANTE DA HUMANIDADE! E AS GUERRAS DE HOJE SÃO SEMPRE MAIS IMPORTANTES QUE AS DE ONTEM!

Major
E ISSO NÃO É A MESMA COISA?!

Capitão
DEPENDE DA SUA DISPOSIÇÃO, MEU MAJOR! SE O QUE LHE APETECE É HUMILHAR-ME, O MEU MAJOR IRÁ SEMPRE CONTRADIZER-ME!

Major
[voltando a pôr o charuto entredentes]
EXPLIQUE-SE!

Capitão
SE EU DISSESSE QUE É A MESMA COISA, QUE DE ALGUMA MANEIRA ATÉ É, O MEU MAJOR, COM ESSA PIROCA DE TABACO NA BOCA, IRIA DIZER QUE NÃO ERA A MESMA COISA!

Major
PIROCA NA BOCA!?

Capitão
SIM, MEU MAJOR!

Major
AH, VALENTE! VAMOS LÁ PARAR DE GRITAR, QUE EU JÁ ESTOU A FICAR CANSADO DA VOZ!

Capitão
SIM, MEU MAJOR!

Major
Ó HOMEM, FALE MAIS BAIXO!

Capitão
Sim, meu Major!

O Major volta a sentar-se, extenuado. Tira um lenço do bolso do casaco altamente patenteado e limpa a testa suada, sem nunca tirar o charuto da boca. Gonçalo começa a mexer a boca, falando bastante, mas sem se ouvir um único som.

Major
[rouco]
Bem… dizia que a guerra mais importante da humanidade trava-se no nosso continente e… [tosse] E nós es… es… [ataque de tosse] … estamos fora da equação. [pausa] Que vergonha! [pausa] Fora da equação e ridi… ridi… [novo ataque de tosse] … ridicularizados por iniciativa própria.

O Capitão não parece compreender esta última afirmação do Major, mas não se atreve a interrompê-lo. O Major apercebe-se da dúvida do Capitão, mas antes de se explicar, escarra agressivamente para o seu lenço. Depois dobra-o e volta a guardá-lo no bolso. Gonçalo continua no seu monólogo mudo.

Major
Os Pantufas…? [esboça um sorriso amargo] Quando a guerra não é nossa e queremos meter-nos nela, o que é que devemos fazer? Oferecermo-nos para a frente de batalha! Para a frente! E o que fizemos nós? Prestamos assistência logística, quando muito… e escolhemos um nome fofinho… [sacode a cabeça, envergonhado] Os Pantufas…

Capitão
Tudo indica que a escolha do nome foi um erro, meu Major.

Major
Tudo nas Forças Armadas portuguesas é um erro, meu Capitão.

Capitão
Pois… este foi mais um.

Major
Qual foi o erro?

Capitão
Bom… parece que no dia da formalização do apoio secreto das Forças Armadas Portuguesas ao Führer, o único oficial que falava alemão estava ausente… baixa médica. Um outro, para fazer um brilharete, disse que sabia alemão… Se soubesse, seríamos hoje Os Panteras… ainda por cima é igual… [pausa] Ele enganou-se na página do dicionário… com as pressas… agora somos Os Pantufas.

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