Segundo Acto – Cena 2

Gonçalo está sozinho na estufa. Continua deitado na mesma posição, sem se conseguir mexer. A mesma luz alaranjada ilumina continua a iluminar o interior da construção de plástico no palco. Uma nuvem de fumo branco começa a formar-se no tecto da estufa, espalhando-se lentamente por todo o espaço. Não há movimento no exterior, tudo escuro para lá das paredes. As luzes fluorescentes começam a tremular à medida que a nuvem de fumo fica cada vez mais densa. Uma das portas abre-se e entra uma MULHER trazendo na mão uma garrafa de espumante.

Atrás dela vem GONÇALO com duas flutes. Os dois sentam-se no chão de pernas cruzadas. Ela mexe a boca, como se articulasse um pequeno discurso com princípio meio e fim. Ao rematá-lo, os dois desatam às gargalhadas. Riem-se até às lágrimas, com os espasmos faciais a que têm direito, incluindo o sobe-e-desce dos ombros a acompanhar… mas não emitem qualquer som. Ela serve o espumante e pousa a garrafa. Os dois sorriem um para o outro e brindam, chocando os copos. Nada. Não há qualquer som. Não reparam no Gonçalo deitado a um canto da estufa.

Continuam a conversa e a risota insonoras. Os dois aparentam estar bem bebidos, estão cada vez mais próximos um do outro. As suas bocas estão prestes a tocar-se.

Gonçalo
[alarmado]
Podes olhar para mim?

Nenhum deles olha para o deitado. Não o ouviram. Acendem-se luzes de serviço para lá das paredes de plástico. Começa um vai-vem de silhuetas no exterior da estufa.

Gonçalo
Podem roer as minhas unhas? [pausa] Alguém…? [pausa] Eu não as sinto… nem me consigo mexer. Mas já lá vão umas horas sem as comer… A ansiedade, o batimento cardíaco acelerado, suores… às vezes…

A porta volta a abrir-se e entram quatro cientistas com os seus fatos de protecção integral, as máscaras, as toucas, as viseiras, as luvas e os óculos. Não vêem o Gonçalo deitado, nem o Gonçalo que está envolvido em acrobacias de natureza sexual com a mulher da garrafa de espumante.

Gonçalo
Mas eu estou aqui no chão sem me mexer, sem sentir o corpo, como se estivesse ausente dele… e tenho os circuitos neurais do cérebro totalmente dedicados à tentativa de consumar o acto de roer… quase que sinto as pequenas pontas das unhas que entretanto cresceram a raspar nos meus lábios…

Ao sinal de um dos cientistas, todos tiram o capuz do fato, as máscaras e os óculos. Um deles é Gonçalo, uma deles é a mulher do espumante. Os quatro perscrutam a estufa, enquanto inspiram profundamente, como se degustassem o ar aparentemente rarefeito daquele espaço de plástico.

Gonçalo
Deve ter uma qualquer relação com a sexualidade, esta coisa de querer sentir as unhas nos lábios antes de as roer… os preliminares da activação do sistema de recompensa…

O casal de acrobatas luxuriosos já se deslocou em direcção a uma parede, arrastando-se pelo chão, sem nunca desgrudar as bocas.

Gonçalo
As crises de abstinência… o vício de boca… meter os dedos, os cigarros… o gargalo de uma garrafa… Só queria que viessem aqui, que pegassem na minha mão e a metessem na minha boca. [pausa] Talvez ela caia mal a larguem… um de vocês podia segurá-la, enquanto eu satisfazia o meu vício. [pausa] Podem usar o meu cinto… põem-no à tiracolo e prendem-me o braço , como se estivesse engessado… apertam bem, para que a mão não saia da boca. Mas… também não podem apertar demais… ainda me engasgo com os meus próprios dedos…

O movimento de silhuetas no exterior da estufa é cada vez maior, os únicos sons audíveis são os que estão para lá das paredes de plástico que começam agora a serem rasgadas militares com fardas de outros tempos. Os plásticos das paredes duplas da estufa são arrancados com brutalidade. Nem o casal de minhocas concupiscentes que se arrasta em direcção do deitado, nem os quatro cientistas desmascarados reparam na destruição em curso.

Gonçalo
Já sei… apertam o suficiente para que a mão fique encostada aos lábios… e, de cada vez que eu quiser roer, abro a boca e, com a ajuda dos dentes e da língua, deixo entrar o dedo com a melhor unha do momento… Imaginem um tetraplégico com comichão no nariz e sem ninguém que o acuda… [pausa] … é assim que me sinto agora. Acho que até já me mijei… não sinto nada, mas cheira-me a urina já de algumas horas.

Já não há paredes de plástico, só a estrutura de metal que as sustentava e que já está a ser desmontada pelos diligentes militares. Para lá da estrutura de metal, no fundo do palco, está uma secretária com um gravador de bobinas com colunas de som e um grande microfone prateado. Dois militares de alta patente aproximam-se da secretária. O mais graduado senta-se à secretária, cruza as pernas em cima da mesa e acende um charuto. O outro, fica em pé, ao lado da mesa, e pega no microfone pela base e carrega no botão para falar.

Capitão
Die Pantoffeln nennen das Kehlsteinhaus… [pausa] Die Pantoffeln nennen das Kehlsteinhaus… [tempo] Hörst du?

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