Portos interiores

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 1 Maio

Mês morto, mês posto. Neste reino nem distingo o suserano, presto vassalagem apressada e às cegas sem tempo nem para contar as baixas. A vibração do telefone no seu silêncio canta um desespero que rima com a incapacidade para atender. Nisto de desconseguir devo ser dos melhores.

Amigo dos antigos, senhor de brilhante curiosidade e sempre atento às respirações do mundo, descobriu a ligeireza da impressão digital. Tenho algures cartas oriundas da Macau de há trinta anos, lugar de onde o Ricardo [Salomão] mas reenvia agora em formato de livro, ainda que viva e faça viver ali na Costa de Caparica. «Mágica Macau» (ed. Gandaia Edições) contém, diz logo com pressa adolescente na capa, «comoções, emoções e outros sentimemas», essa unidade mínima de sentimento. Mas a meia centena de poemas em prosa vão muito além e colhem frutos de observação madura e acutilante «Dos Sítios», «Das Pessoas» e «Das Outras Coisas», sendo que pessoas, sítios e coisas se encontram e desencontram para além da arrumação. «As árvores crescem com as raízes que caem das folhas que caem no chão onde as árvores crescem.» Macau cresce muito no que de cidade vai caindo no peito dos visitantes. Acontecerá assim em cada ponto do mapa, mas acreditemos ainda no espírito dos lugares, no único que cada soma proporciona. Os portos são cruzamentos de lugares, pessoas e outras coisas e nenhum será igual a outro.

«Nós ficamos a ver, do lado de fora./ Olhamos milénios de gestos, mas só vemos paisagens.» Enganadoramente, não tem a ver nem com magia nem com sentimento. O viajante que saiba ficar aprenderá pelo amor a ler. Ou vice-versa.

Com muita dificuldade se descobrirá, mas este falso e brevíssimo guia da Cidade do Santo Nome de Deus será das mais fulgurantes introduções ao enigma. Macau a única foi apenas pretexto, ponte de papel, pequeno balão iluminado. «Numa rua que é porto interior atrás dos prédios com cais à beira mar. Avenida de carros e camionetas, serralharias e velhas estâncias de madeiras perfumadas jazendo na penumbra funda de armazéns de poeiras suspensas. Cais e mar nas janelas rasgadas das entranhas dos edifícios. Numa rua que é porto interior, os carpinteiros constroem caixões com formas de nenúfar.» Fico sentido que não mo tenhas dado para editar, Ricardo, mas isso é sentimema que se resolve à mesa e com um abraço.

Horta Seca, Lisboa, quinta, 6 Maio

Morreu o Cândido Ferreira. Conservo uma das mais emocionantes interpretações que me foi dado ver, para mais temperado com acesso aos bastidores, aos ensaios, meu velho fascínio pelo inacabado, pelo imperfeito, pelo espontâneo. O verbo fez-se carne e o tempo parou para que acontecesse teatro, esse cruzamento quântico das coisas.

Foi em «Comunidade», do Luiz Pacheco, com encenação do Antonino Solmer, sendo o chão e céu uma das máquinas de cena do João Brites, cruzamento de barco e gavetão. Mas o Cândido absorveu tudo e da massa fez totalidade. E o espectador siderado. A cada leitura do Pacheco lá me vem, lá me virá sempre o Cândido. Sem querer e por coincidência descobri o parvo texto que escrevi para a ocasião.

«Na tal noite estava marcada viagem no interior da cidade, ao interior do teatro. Inesperadamente vejo-me bater hesitante numa porta grande, fazendo ladrar um cão chamado “actor” e interromper movimentos de personagens em estado de orquestração. O frio tinha-se sentado na plateia. O tabuado era de madeira, assente sobre bancos, esperando uma geografia final de sinais incrustados. Tratava-se de um bastidor. Os gestos estavam incompletos, em construção. O cenário era sugerido pela voz, pelas vozes. Aqui escuro. Além uma máquina. Repete assim. Não, o sapato não. Entras daqui. Há qualquer coisa de ritual, de caboco em obra esboçada. Cheira à pólvora do demiurgo que molda gestos, olhares. Cheira ao hálito dos projectos trazidos aos tombos. São passos em volta.»
Saravá, Cândido.

Casa do Alentejo, Lisboa, sábado, 8 Maio

Lisboa não deu pelo novel festival literário 5 L (de língua, literatura, livros, livrarias, leitura). A cidade ansiava por regressar a si, portanto a espreguiçar-se ao Sol, explodindo em milhentos regressos, peças, concertos, gritos e assim.

Mas não aconteceu comunicação e a que existia era de uma dolorosa infantilidade («Ler é fixe», com a mãozinha armada em roqueanrole, a sério?). Alinhámos por razões de amizade e outras estratégicas, contribuindo com Pessoa em cabo-verdiano para deitar a língua de fora ao Dia da Língua; com o nonsense do mano Luis [Manuel Gaspar] para celebrar aquela ideia de cidade que se esvai entre os dedos, como as ruínas da Solmar; com os muitos recomeços que a Ana [Freitas Reis] injecta no sangue dos seus versos. Não consegui deixar de me sentir estrangeiro, ainda que na mesa das funções. Os gestos de encontro saem-nos desajeitados e hesitantes, não nos foi permitida ainda a festa que deve acontecer em cada arremesso, tudo me surgiu deslassado apesar do esforço e alegria dos autores e dos apresentadores, a Inês [Fonseca Santos] e o João [Soares], e até o vírus deu ar de graça ao projectar-se na Linha de Sombra impedindo a Odi Marítimu de levantar âncora.

Lisboa, terça, 11 Maio

O Sporting ganhou. Não foi apenas o futebol, o futsal, o hóquei em patins, o ténis de mesa: venceu as probabilidades, o dinheiro, a má vontade, a descrença, a batota, o anti-jogo, a arrogância, a piadola, o mau perder, as faltas e as faltas de jeito, os velhos do Restelo e de Alvalade. Contra tudo e contra todos, por saber fazer com inteligência e coração, em cada um dos que vestem a camisola, treinador que pensa e sorri, capitão que corta e marca com peito e alegria, no guarda-redes que defende como quem ataca, no sangue e fresco do meio campo, centro da inteligência e do coração, por saber correr e sofrer nas laterais, por se transcender enquanto equipa dentro e fora de campo, por cruzar inteligência e coração. Por ser o clube de Peyroteo e Yazalde, que jogavam com y (na foto da infância), além dos tantos queridos, aparecidos e desaparecidos. E por ser redonda a bola.

20 Mai 2021

Lembrar Edward Said

Olho para estes dias a ferro e fogo no Médio Oriente e imagino como o Edward Said viveria a irracionalidade que nessas terras se compraz.

Said, mais conhecido pelo célebre “Orientalismo”, era um intelectual para quem entender o mundo pressupunha – anota David Barsamian no prefácio ao livro de entrevistas que saiu no mesmo ano da sua morte, em 2003 e que conheço na edição brasileira, intitulada “A Pena e a Espada” – encontrar «um equilíbrio entre dissonância, consonância e discordância» e que «por esse prisma complicado» se via não como «uma única pessoa corente, mas como várias coisas diversas».

A sua disposição é ainda mais suspeita, este intelectual palestino, professor de Literatura Comparada na Universidade Columbia, que fez livros que desmantelaram arreigados mitos ocidentais sobre o (médio) oriente e foi um defensor abnegado da causa palestina mas, ao mesmo tempo, o primeiro a dizer que não reconhecer Israel era um disparate, gostava de se definir como um ser marginal e atreito a uma completa ausência de centro, declarando que se sentia como «um feixe de correntezas fluidas»: «Prefiro isso à ideia de um eu sólido, à identidade à qual atribuem tanto significado; (…) os seres humanos não são recipientes fechados, mas intrumentos pelos quais outras coisas fluem».

“A Pena e a Espada” é um livro de uma lucidez mordaz (não porque ele seja ácido, simplesmente nunca se evade de pensar para além das evidências), que se hoje fosse lido pelos seus compatriotas e pelos israelistas talvez servisse de travão ao fanatismo que os encarniça: «Na minha infância, era possível mudar de um país – Líbia, Jordânia, Síria, Egipto – e cruzá-los por terra. Era possível fazer isso. Todas as escolas que frequentei quando garoto eram cheias de gente de raças diferentes. Era completamente natural para mim frequentar uma escola com arménios, muçulmanos, italianos, judeus e gregos, porque aquele era o Levante e essa foi a maneira como cresci. O divisionismo e o etnocentrismo que encontramos agora são um fenómeno relativamente recente que me é absolutamente estranho. E eu o odeio. (…)Em muitos dos meus textos recentes oponho-me à ideia, presente em muitas das agendas intelectuais e políticas dos oprimidos, de que quando chegassem ao poder iriam descontar tudo nos outros. Isso é absolutamente contrário à ideia de libertação. É como se parte do privilégio de vencer fosse o direito de descontar nos outros. Vai directamente contra a razão da própria luta; não posso dizer que concordo com isso. Essa é a outra armedilha do nacionalismo, ou do Fanon chamava a “armadilha da consciência nacional”. Quando esta se torna um fim em si mesma, quando uma particularidade étnica ou racial ou a “essência” nacional, em grande medida inventada, vira a meta de um civilização, cultura, ou partido político, você sabe que esse é o fim da comunidade humana e que estamos diante de outra coisa».

Essa outra coisa é o coração das trevas que por aquelas bandas lateja, até se reduzirem mutuamente a pó – pois que retaliação caberá a um fantasma?

Saliente-se que Said fundou em 1999 com o seu amigo Daniel Barenboim, maestro argentino-israelita, uma orquestra de  jovens  do Egipto, Síria, Líbano, Tunísia e Israel, a “Diwan Oriente-Ocidente” (Barenboim, que ofendeu judeus quando, em Israel, ousou tocar Wagner – o “compositor de Hitler” – e que emocionou palestinianos ao doar o seu Steinway ao Conservatório de Ramallah [que agora tem o nome de Edward Said], destruído pelo Exército israelita, tinha uma admiração profunda pelo amigo com quem partilhou concertos de Mozart, Beethoven, Schubert e Rossini.).

Vale muita a pena ler este “A Pena e a Espada”, bem como o seu livro magnífico sobre os intelectuais, “Representações do Intelectual” ou o seu último ensaio, aliás póstumo, “Sobre o Estilo Tardio”, reflexões na arte e na literatura.

No livro de entrevista, às vezes somos nocauteados com evidências que deixámos escapar, por “erros de simpatia”, como esta, sobre Camus:

«Não menosprezo o seu talento como escritor; Camus é um excelente estilista, certamente um romancista exemplar em muitos aspectos. (…) Mas o que me incomoda é ser lido fora de seu contexto, da sua história. A história de Camus é a de um “colon”, um “pied noir” (…) Os seus romances, na minha opinião, são verdadeiras expressões da situação colonial. Mersault, em “O Estrangeiro”, mata um árabe, a quem Camus não dá nome nem história. Toda a ideia do final do romance, segundo o qual Mersault vai a julgamente é uma ficção ideológica. Nenhum francês jamais foi julgado por matar um árabe, na Argélia colonial. Isso é mentira, é algo que ele inventou. Em segundo lugar, no seu romance, “A Peste”, as pessoas que morrem na cidade são árabes, mas não são mencionadas. As únicas pessoas que importavam para Camus e para o leitor europeu da época, e até de hoje, são os europeus.»

É duro, mas faz pensar. Como na generalidade tudo o que escreveu este homem de uma profunda racionalidade e cultura múltipla, que sabia amar o diferente e ser equidistante, embora nunca tivesse perdido de vista as causas.

20 Mai 2021

Aprender a andar na minha Holanda

A minha primeira perdição foi a fotografia aérea que dava a ver um dique com mais de trinta quilómetros no meio do mar. Constava de um dos livros de geografia que guardo ainda do liceu.

O dique, de nome Afsluitdijk, liga ainda hoje o norte da Holanda à Frísia e divide em dois o antigo Mar do Sul (Zuiderzee) que, há dois mil anos, era uma espécie de lago com origem num braço do rio Reno. A construção teve lugar entre 1920 e 1933 e passou a separar o novo mar interior, o Mar de IJssel, do Mar frísio (Waddenzee) que flanqueia as ilhas de Texel a Ameland. 

A palavra “perdição” é ambígua por natureza. Tanto se refere a uma pessoa ou coisa que desperta uma paixão irresistível por outrem como se refere a vício e até a condenação eterna. Por outro lado, designa ainda a figura da errância (uma pessoa perde-se, um pensamento perde-se, um mar perde-se, etc.). A palavra “perdição” ensina de facto a andar em muitas direcções. Por vezes ensina mesmo a voar.

E foi a voar muitas vezes sobre a Holanda que revisitei o abstracionismo geométrico de Piet Mondrian e as suas teosofias coloridas. Os campos, desenhados por polders de cromatismo sempre diferenciado e recortados por moinhos e canais, ilustram com concreta nitidez aquilo que é o neoplasticismo assim como o rasgo dos artistas que, a par de Mondrian, souberam cativar esta arte das raras proporções, casos de Theo Van Doesburg, Vilmos Huszar, Gerrit Rietveld, Georges Vantongerloo ou de Jan Wils. A paisagem é, de facto, uma enciclopédia de grande limpidez – que alimenta a errância, o vício e a própria paixão – e que sabe transformar o que parece abstracto em tangível, quase palpável.

Foi então que percebi que a minha Holanda é uma ilha. Incorporei-a, tal como a floresta incorpora a sua água, muito antes de ter conhecido o país com o mesmo nome. A minha Holanda é um conceito para a vida, um segundo perfil ou mesmo um contorno que me acompanha. Tudo começou no meu livro de geografia na pré-adolescência e, mais tarde, quando os aviões me levaram a sobrevoar (em ponte aérea de vários anos) o pequeno país onde haveria de viver durante uma década. O acaso e o fascínio atraem o nomadismo interior (a errância) e sabem convertê-lo em sedentarismo. 

O acaso tem o vigor das eclusas. São elas que permitem à água movimentar-se entre os diques sem que expluda para fora das margens. Pelo seu lado, o acaso permite que certas vivências aparentemente secundárias se esqueçam para que, depois, uma delas emerja e nos dê a sensação de uma coincidência ou até de uma surpresa. A minha Holanda começou por ser um puro acaso e, depois, porque nunca dele me esqueci, cresceu até se transformar num modo de me sentir em casa.

Sentir-me em casa foi-se tornando, ao longo dos anos, numa forma de realização que, hoje em dia, nada tem que ver com a geografia. Trata-se sobretudo de um território interior que foge aos encargos da confissão (malabarismo da cultura católica que transforma as pessoas em ecos palavrosos) e que desenha – com a geometria fina de um Mondrian amestrado – uma fronteira entre as correrias e as agendas correntes do mundo e o lugar onde eu sou.

Esta forma de liberdade é a minha Holanda. Ela advém de uma ideia de espaço que equilibra a água e a terra com as suas eclusas existenciais e que faz do tempo o sentimento misto próprio de uma perdição. Bem sei que o tempo é a passagem que funda o existir dos humanos no seu estado de devir e de transformação, mas o espaço, esse, é o esteio essencial que permite ao corpo sentir o seu peso sobre a superfície do planeta. 

Sentir a solidez do próprio corpo a vincar a terra é a comoção mais importante de uma vivência privada. Cada passo dado é sempre a metáfora da respiração toda de uma vida. E foi precisamente nesta minha Holanda interior que eu aprendi – e que ainda hoje aprendo – a andar.

20 Mai 2021

O homem que olhava fixamente o sol

Há que fragmentar o medo. Frequentar. Enfrentar bocadinho a bocadinho para que a coragem possa deixar-se ser pequena de cada vez. É nos pequenos gestos que não custam que devemos deter o olhar. Pequenos passos se não os conseguimos enormes como a enormidade do sentir evoca.

Há que frequentar o medo. De visita e passagem. Avançar em passo miúdo. Deixá-lo ser. Deixar-nos ter.
Passamos uns pelos outros, sem entender sequer a pele do rosto. A vida secreta da carne. Passar. Desfiar campos onde houve pensamentos. Porque os campos descansam na imanência percorrida do tempo. Pele da crosta à flor, de uma terra que atrai os corpos e neles almas em turbilhão uma espécie de arrepio do frio cósmico que habita a caixa pequena do crânio. Pequeno universo fechado a sete chaves. Pequena chave perdida, a de verdade.

A cidadela de luzes cénicas a afastar os perigos da noite. Uma encenação de vigilância. O que não dorme. Como um suceder de salas nocturnas de museu fechado. As pessoas, no que é visível, deitam-se cedo ou escondem-se portadas fechadas adentro. Qualquer passo, ecoa de longe num som cavo e único como se da última pessoa do mundo e anunciada de longe. Denunciada.

Os cantos misteriosos que tudo podem conter. Surpresas, sustos. Sair das muralhas da cidade, a luz a queimar as areias secas e estéreis, mas é o deserto preciso e necessário. A alucinação dos tapetes de água a iludir os sentidos, sempre. Quando a sede é muita. 
Quando há e se sabe, e a ilusão se há somente depois se soube. Por isso é o deserto sentido e cumprido como caminho planeado e já visto, já conhecido. Caminha-se, a economizar as águas do corpo como se para nada se sentir perdido. E voltar. Os lábios secos e os ossos doridos, os pés, aos muros da cidadela, a casa, aos confortáveis sentidos.

Persegue-me aquele que aquém da fronteira da infância, ao longo de anos encontrei petrificado a olhar o sol. Fixamente. De frente, como experiência literal de mergulho na cegueira. E depois rodava a cabeça levantada e dirigia-me um olhar verde, transparente e com uma espécie de sorriso no fundo que não sei se para mim que passava, ou restos vindos do sol. Não sei se já com o olhar esvaziado da possibilidade de ver. Invejava-lhe apenas a liberdade de parar num lugar qualquer sem se ater à esquadria do lugar ou a preceitos de arrumação do corpo no espaço público. Estava, simplesmente. Num lugar qualquer e sem paralelismo às paredes ou racionalização das diferenças utilitárias. O meio da estrada, como outro lugar qualquer. Ainda o vejo à distância dos anos como se do alto de uma janela para aquele tempo. O rosto nítido barbado de desleixo e impotência. Parado a olhar para o sol.
E se existiu existe. Senão sentido, lembrado. Não pode ter sobrevivido

O que diz da medida em que se é frágil, aquilo que abismalmente se sente, ou aquilo que resta em imagem sobrevivente e visível do exterior. O que diz da força diz da fraqueza? A terra do nunca é o lugar (de) onde se sonha maior… Maior do que nunca…Maior do que nunca por nunca ser.

Com medo da própria sombra que as suas palavras desenham. A fuga para outras. E outras. Como ilhas ínfimas em que os pés quase não assentam de tão mínimas as polegadas de solidez. O olhar errante. O burburinho voluntário da alma a tapar os ouvidos como pode. Que nada entre. Que nada surpreenda, fira, golpeie. Permaneça. Toque. Ao toque.

Venho encontra-lo igual, num recanto dos muros da cidadela. Ao lado do feixe de luz. Parado, arrumado agora como a cobrir-se da sombra fantasmagórica que ao lado subia pelas muralhas. Com o saco de plástico caído pela mão abaixo esticado e a conter um pequeno desconhecido. Fuma beatas que recolhe atrás dos passos dos outros. Acende e logo depois já terminou o curto prazer de fósforo. Deixo cair um cigarro novo e sei que não lhe escapa o gesto que nos protege a ambos. A ele a face a mim o medo.

Sei que o apanha. Depois. Escuro e clandestino. De olhos intensos. De tanto ter olhado o sol na minha memória de final da infância.

18 Mai 2021

O Brasil do nosso descontentamento

Quando a Filosofia Portuguesa de inspiração messiânica (muitos alegam que ela não existe, mas existe, seja lá em que contexto) se mantinha em modo de ideal pela perspectiva de um Quinto Império, tinha sem dúvida elementos promissores de inspiração humanista que não devemos esquecer. Falei de inspiração messiânica pois que esta Filosofia é muito especial e não se desenvolve propriamente em modelos helénicos, ou outros, e ainda Pinharanda Gomes nos fala de uma inovação quase psíquico – sincrética de uma Nação de nuvens e de vagas. «Desejado» eis o seu nome! Mas o nome de quem desejamos, atirámo-lo para o nevoeiro, e de tanto desejar, ganhámos tempo para aprender coisas do pensamento que certamente coroará a sua vinda. Tivemos todos estes sonhos e pensámos muitos mais na forma filosofante do corpo colectivo, e não obstante, a nossa Jerusalém Celeste, esse apregoado reino do Espírito Santo, entrelaçar de raças e de povos, é hoje uma incubadora de morte para o mundo em estado impróprio para reflectir um sonho que se tornou um estrondoso equívoco.

É deste Brasil que é preciso falar. O do berço dos fascistas que a Revolução amedrontou, o das cinturas militares, daqueles que vão literalmente “cantar para esta freguesia” que em busca de não se sabe bem de quê se sentem injustiçados por meros aspectos que não sabem verbalizar, da descarga incivilizada de uma sociedade onde a pobreza crassa e se estende ao martírio indígena que o decompõe, e dos muitos nazis fugidos à Europa e perdidos na mata Amazónica. Também é preciso falar da quietude dos que deviam falar e não o fazem, de uma massa de gentes que nós gostávamos, e que hoje, no meio da podridão, da morte e da mais perturbadora irracionalidade cívica, finalmente se calaram numa inércia que nos enche de espanto e de um memorável sentimento de traição. Este Brasil que está no mundo como um traficante de cadáveres e que nenhuma racionalidade se lhe chega, é sem dúvida o fim das ilusões de um princípio filosófico que fora nosso, e no qual mergulhámos como na morte de todas as ilusões.

Que um país de novecentos anos não deve por isso ser destituído da sua “arraia-miúda”- sabemo-lo bem – mas não é preciso o escrevinhar de prefácios com pretextos de comparação sem nexo pois que nada que nos define pode juntar-se a tais estatutos mesmo quando as coisas nos correm incompreensivelmente mal. Não há nenhuma semelhança entre aquilo que continuamos a ser e aquilo em que o Brasil se tornou, e os que carregam na tónica comparativa saberão certamente que nem toda a «Irmandade» funciona por reflexo, e que aqui não há mais «Festa» para os embustes. Nem tudo o que se vê e escuta na presente e convicta noção dos iniciados a pessoa tem alguma importância, são oportunidades a que responderam da pior maneira, mas Nós, temos importância. E não será desta maneira que crescerá mais proximidade, até por que já nos fizeram literalmente andar a reboque de um português que insistimos em não reconhecer com toda a justiça e mérito. Não ajustamos nada! Estamos há séculos ajustados às nossas contingências linguísticas e não a desejamos (a) cordar.

Nada se fundará de promissor que interesse referenciar se estas vozes de estadistas menores, ludibriados, consumidos e consumados na nossa consciência, insistirem em fazer-se ouvir. – Não, não somos irmãos! Já não somos sequer, família.

Um Padre António Vieira merece que contemplemos outras coisas e que solucionemos este presente, que para ambas as partes é de opróbrio e equívoco gigantesco. E se «brasileiro é ainda um português à solta», na bela expressão de Bandeira, sejamos dignos dos nossos melhores, que nós não vamos deixar que atraiçoem os seus sonhos que se revelaram a única solução.

Sentimo-nos, no entanto, tristes e incrédulos perante o ceifar de vidas quotidianas, aos milhares, num país que algures ousámos sonhar como uma perspectiva de redenção. Para eles, o mais profundo pesar. Ninguém merece o abandono a que foram votados.

18 Mai 2021

A essência da literatura

No seu ensaio «O Espaço Desarmado», pequeno livro de 133 páginas, a escritora nova-iorquina Alice Barnes faz uma análise da literatura – talvez até uma análise do acto de escrita –, buscando o seu fundamento. Escreve: «A carta é a essência de todo o texto literário e de pensamento. Toda a literatura ou tratado é uma carta escrita para nenhures dentro de nós. Escrita para nos socorrer. A carta é uma esperança.» Curiosamente, esta designação não nos mostra o carácter original da carta, mas sim a do texto literário. Pois, é sabido, a origem da carta é encurtar o espaço entre as pessoas, o espaço entre um eu e um outro. Mais do que uma forma de comunicação, a carta é um mecanismo de aproximação, a primeira máquina de aproximação à distância. Mas Barnes põe-nos a ver esse objecto, esse mecanismo que é a carta, de um outro modo. Leia-se: «O que é factualmente uma carta? Palavras escritas e enviadas de um a outro. Que diz factualmente uma carta? Dá informações, pede informações, faz pedidos, concede-os, revela segredos, pergunta por dúvidas muitas vezes tormentosas, responde a essas perguntas, faz confissões, cobra dívidas, salda-as… Enfim, a carta faz tudo ou quase tudo o que se faz na vida. O que caracteriza a carta, acima de tudo, em relação a qualquer outro modo de comunicarmos as palavras, é o tempo.» Barnes enfatiza a questão do tempo e não do espaço na definição de carta e, de certo modo, baralha-nos as contas. Pois, como escrevi atrás, estamos habituados a entender carta como um mecanismo de encurtar distâncias ou de aproximar «distantes». Ou seja, como uma forma de anular ou enfraquecer o espaço. Assim, e até pelo título do livro de Alice Barnes, «O Espaço Desarmado», ficamos perplexos com esta enfatização do tempo e não do espaço no mecanismo da carta. Veja-se como Alice Barnes nos mostra o tempo como característica fundante e fundamental do mecanismo da carta: «O tempo que as palavras que se enviam têm: 1) a sua durabilidade, pois ficam ali guardadas para serem relidas continuamente por quem a recebe, por vezes até ao desespero, até à exasperação; 2) a sua ponderação, pois quem a escreve tem tempo de ponderar nas palavras que vai inscrever no papel. Uma carta pode ser o relato daquilo que está a acontecer longe daquele a quem a carta é enviada. Pode e é, a maioria das vezes. De facto, a carta dá notícia do longínquo, pretende encurtar a distância que separa quem escreve de quem lê, daquele que está no centro dos acontecimentos daquele que está longe deles. A carta desarma o espaço. Como? Com tempo.»

Ou seja, a carta encurta o espaço entre os correspondentes, mas ela mesma é tempo. Melhor: a sua natureza é temporal; tanto pela capacidade de se poder repetir e repetir até à exaustão a leitura das palavras, como a possibilidade de se pensar e pensar antes de enviar as palavras escritas. Leia-se à página 79: «A carta leva um coração a outro. Transporta de aqui para ali em palavras, por vezes em continentes de diferença, o amor que se sente.

A carta não relata apenas o que está a acontecer a alguém para outrem. A carta tem a intenção de aproximar, de unir ou de manter a união entre os correspondentes. Mas em si mesma ela é tempo. O que subjaz a uma carta é o tempo.

O tempo que somos e o tempo dos outros. A carta obriga-nos a uma relação privilegiada com o tempo, connosco mesmos, como mais nenhum mecanismo consegue fazer. A carta congela o tempo. Faz durar para sempre um momento que o seu leitor nunca viu. E é da consciência deste durar para sempre nunca presenciado que nasce a ambição da literatura, o seu fundamento.»

Alice Barnes, ela mesma, tem uma obra de ficção que se chama «Carta A Um Amante Para Que Nunca Esqueça Que Me Perdeu», em que a narradora escreve uma longa carta – na esteira de «De Profundis», de Oscar Wilde –, contando o encontro entre ela e o seu amante; e depois o desencontro, devido a um acto ignóbil perpetrado por ele. Amante este que rapidamente se arrepende, mas que a narradora não desculpa e, ao invés disso, escreve uma longa carta – o livro tem mais de trezentas páginas –, que no fundo é um romance, onde expõe o seu amante à sua própria ignobilidade. A quem é dirigida a carta? Ao amante mesmo, tal como De Profundis. O livro é maravilhoso e para além das ligações evidentes ao livro de Wilde, é também traçada uma ligação com um poema de Marina Tsévtaieva, «Tentativa de Ciúme» – poema que surge no livro – que vos deixo aqui numa versão minha, a partir de várias línguas que não a russa:

Como é a tua vida com outra mulher?
Mais simples, não? Uma simples braçada!
Minha memória recua,
alcança no horizonte

uma ilha flutuante
(mas no céu e não nas águas).
Alma e alma! Vós sereis irmãs
mas não amantes!

Como é a tua vida com uma mulher
vulgar, sem divino?
Agora que destronaste a tua rainha
e tu mesmo renunciaste ao trono,

como é a tua vida? Que fazes?
Não sabes? E como te levantas?
Pagando o preço da banalidade imortal,
e ficando mais pobre?

“Basta de sustos e de suspeitas!
Hei-de arranjar um lar!”
E como vai a tua vida com essa mulher,
tu que foste escolhido para mim?

A comida é mais apetitosa?
Não te queixas se enjoares?
Como é a tua vida com uma pobre coitada –

tu, que pisaste o monte Sinai?
Como é a tua vida com uma qualquer,
uma mulher deste mundo? Diz-me – agradável?
A vergonha, como as rédeas de Zeus,
não te fustiga a testa?

Como é a tua vida? A tua saúde?
Vai indo, não? Como cantas?
Como enfrentas a consciência imortal
que te assalta, pobre homem?

Como é a tua vida com um acessório
de plástico? O preço é caro, não?
Depois do mármore de Carrara,
como é a tua vida com um bocado

de gesso partido? (Deus talhou-a
de um bloco e estilhaçou-o?)
Como é a tua vida com uma qualquer,
tu, que conheceste Lilith?

O teu apetite satisfez-se? E agora que a lascívia
não exerce mais poder sobre ti,
como é a tua vida
com uma mulher deste mundo,

sem um sexto sentido? És feliz?
Não? Nesse poço sem fundo do mundo
como é a tua vida, meu amor?
Pior do que a minha vida com um outro homem?

No fundo, não será também este poema uma carta? Independentemente de concordarmos ou não com Alice Barnes no tocante à carta ser a essência da literatura, a verdade é que a escrita dela merece toda a nossa atenção. Acima de tudo, as suas reflexões proporcionam-nos prazer e alguma perturbação.

18 Mai 2021

Em Espanha, no México e Molucas

A nau San Antonio comandada por o capitão Jerónimo Guerra chegava a 6 de Maio de 1521com 55 tripulantes ao porto das Muelas em Sevilha, após ter-se perdido da armada durante a procura do Estreito. História bem arquitectada e ensaiada ao longo da travessia do Atlântico, que acusava Magalhães de mandar matar os capitães Mendonça e Quesada, e abandonar Juan de Cartagena e o padre na praia de San Julián.

Sabendo do pacto feito ainda em Sevilha entre os capitães castelhanos, Diego de Barbosa, ao ver preso o capitão Álvaro da Mesquita, homem de confiança e primo de Fernão de Magalhães, como genro na Casa de Contratación de las Indias tentou sem êxito contestar a versão apresentada.

Por o Imperador Carlos V estar ausente de Espanha, era regente o Bispo Rodriguez da Fonseca, que sabendo o ocorrido ao seu provável filho Juan de Cartagena, logo enviou um barco para o ir buscar. Sob cárcere manteve o caído em desgraça da Mesquita e colocou a esposa de Magalhães em prisão domiciliária com o filho Rodrigo, o qual viria a falecer em Setembro de 1521 e sua mãe Dona Beatriz em Março de 1522. Tudo devido ao venenoso português Estêvão Gomes, que referia estar Magalhães a pensar atraiçoar o Rei de Espanha e trabalhar para Portugal. Fora um dos instigadores da revolta da tripulação do San Antonio a 8 de Novembro 1520, durante a travessia do Estreito, quando preso o capitão Álvaro da Mesquita, a nau maior e a mais abastecida fugia da armada e retornava, decorrendo a viagem pelo Atlântico sem problemas.

Fim do Império Azteca

Já no México, Hernán Cortês a 26 de Maio de 1521 preparava o cerco à capital dos Aztecas, Tenochtitlán, com 844 soldados, 84 cavaleiros e 50 mil tlaxcaltecas.

Os espanhóis em 1492 abordaram o continente americano nas primeiras viagens de Cristóvão Colombo, ficando pelas ilhas das Antilhas onde ergueram povoações, mas essas colónias eram atacadas e arrasadas pelo guerreiro povo maia, ao qual pertenciam os aztecas.

O povo maia habitava a Meso-América desde 2500 a.n.E. e a sua gloriosa cultura manteve-se até ao século XIII, quando constantes lutas internas dentro da Confederação marcaram o início do declínio de um dos mais civilizados povos do mundo. Florescera quatro mil anos, numa confederação de cidades independentes ligadas na religião, cultura e escrita comum. Cada cidade possuía um governo próprio, fazendo alianças quando o perigo aparecia.
Colombo ao explorar a costa das Caraíbas chegava a 28 de Outubro de 1492 à ilha de Cuba, mas só em 1511 os espanhóis a conquistavam, instalando aí o poder administrativo do Novo Mundo.

No entanto, sondagens à costa mexicana só foram feitas em 1518 por Juan de Grijalba, não descobrindo um bom local para aportar. Tivera uma resistência feroz dos índios, que mataram muitos dos seus, mas trouxe um bom carregamento de ouro e notícias das riquezas existentes. Instou o Governador de Cuba Diego Velásquez a realizar aí uma nova expedição e este escolheu Hernán Cortês, pois acompanhara-o nas missões de pacificação de São Domingos e na conquista de Cuba.

A 23 de Outubro de 1518, Cortês nomeado capitão recebeu as instruções para a perigosa missão de explorar o continente, mas a hesitação de Velásquez levou Cortês à ruptura. À revelia partia a 18 de Fevereiro de 1519 em direcção à costa do Golfo do México com onze barcos, cem marinheiros, 500 soldados, doze canhões, 18 cavalos e uma matilha. Em Abril, no lugar de Vera Cruz desembarcaram e daí marcharam pelo litoral para Norte, onde Cortês mandou fundar a Vila Rica de La Vera Cruz a 22 de Abril de 1519 e como quartel-general ergueu um forte, casas e a igreja. Daí escreveu a Carlos V a pedir carta régia para a cidade e a ruptura com o governo de Cuba, afim de estabelecer um novo poder. Para ter suporte legal criou o cabildo (associação de famílias nómadas) a 8 de Julho, a quem Cortês delegou os poderes que Velásquez lhe entregara. No dia seguinte, o novo poder fazia de Cortês o alcaide, chefe de justiça e capitão general.

A tentativa de sublevação de alguns espanhóis a pretender regressar a Cuba, levou-o a encalhar e desmontar os navios e daí, com eles empreendeu a marcha para o interior até Tenochtitlán, capital dos Aztecas (actual cidade do México).

A 8 de Novembro de 1519, o Imperador Azteca Moctezuma II, aconselhado pelos sacerdotes a não os confrontar, foi recebê-los e convidou-os como hóspedes para ficarem no centro da cidade, num enorme palácio com espaço para alojar os exércitos espanhóis e seus aliados índios. Dias depois, convidava Cortês a visitar a capital, que contava com 300 mil habitantes.

A situação para os espanhóis piorou bastante no ano de 1520 e após grandes mortandades e acontecimentos tristes, encontrava-se agora Cortês, a 26 de Maio de 1521 a cercar Tenochtitlán. Sitiada por 79 dias, a resistência terminou a 13 de Agosto, com a capital em total ruína. Assim, o Império Azteca, existente desde 1325, expirava três anos após a chegada de Cortês.

Até às Molucas

Morto Fernão de Magalhães em Mactán a 27 de Abril de 1521 e em Cebu degolados os capitães Duarte Barbosa e Juan Rodriguez Serrano a 1 de Maio, a expedição não foi abandonada apesar dos trágicos acontecimentos. Fugiam agora a caminho das Molucas, mas com uma insuficiente tripulação a rondar os 115 e a Concepción incapacitada para navegar, foi a nau desmontada, retirando-lhe o aproveitável, como os pregos, e queimada no dia seguinte. Restavam dois dos cinco barcos iniciais, comandando o piloto João Lopes de Carvalho a nau capitã Trinidad e Gómez de Espinosa a Victoria, mas em vez de seguirem directos para Sul, pois as Molucas ficavam na linha do Equador, desorientados, vaguearam em ziguezague e afim de obter mercadoria para as trocas, dedicaram-se ao corso. Daí chegarem ao Brunei a 9 de Julho, fazendo apenas breves saídas a terra para abastecer, mas vinte dias depois estavam as naus cercadas por dezenas de barcos indígenas. Na refrega, foram as armas de fogo a salvá-los, conseguindo capturar o filho do Rei de Luzon (a maior ilha das Filipinas) que por ali andava. Perderam-se alguns tripulantes, então em terra e entre outros o filho brasileiro de Lopes de Carvalho, preteridos por ouro na troca com o príncipe, querido do sultão do Brunei. A 16 de Setembro, devido aos desatinos como piloto e capitão, Carvalho foi substituído por Gómez de Espinosa, que passou a comandar a armada e cedeu a nau Victoria a Juan Sebastián de Elcano.

Partiam a 27 de Setembro para Sudeste, desfazendo o errado rumo até então tomado e daí dar à baía de Butuán, na parte Norte da ilha de Mindanao, onde encontraram um junco chinês que ia para Maluco e os levaram à ilha de Tidore, onde chegaram a 8 de Novembro de 1521, sendo bem acolhidos por o sultão Almanzor.

Meses antes aí morrera envenenado Francisco Serrão, que vivia nas Molucas em Ternate e como homem de armas desse sultão viera em guerra à inimiga Tidore. Na mesma altura, encontrava Magalhães a morte, ficando assim por realizar o encontro combinado entre ambos para as Molucas.

17 Mai 2021

O Jogo das Escondidas – 30 primeiros capítulos

Deve afirmar-se que o céu é, sem dúvida, corruptível.
Cristoforo Borri
Collecta Astronomica, 1631

 

Macau, 1923


I

Benedito Augusto naufragou duas vezes. E duas vezes sobreviveu. Por isso gosta de lembrar, a quem o escuta, que há uma velha lenda dos marinheiros que diz que, no terceiro naufrágio, se alcança a imortalidade. Apesar de acreditar que tal possa ser possível, nunca o tentou comprovar. Hoje prefere a terra ao mar, Macau em vez dos mares do sul da China. De resto, em Benedito Augusto nada é o que parece. Desde logo, esse não é o seu verdadeiro nome. O de nascimento, de que não há registo, ficou perdido em Lisboa. Desde que apareceu em Macau que é conhecido como padre Augusto, mas nada garante que, pelo caminho, desde que percorreu os mares e as terras da Ásia antes de chegar a Macau, não teve outros nomes e outras vidas.
O tenente Félix Amoroso sondou-o com o olhar, intrigado. De cabelo preto, com uma pequena barba onde já despontavam alguns cabelos brancos, o padre Augusto vestia uma cabaia de ganga escura. A sua face era morena, com grandes olheiras, que salientavam ainda mais uns olhos negros incandescentes. Era um mistério. Mas, mesmo assim, era o mais precioso agente do tenente. Falava cantonês, inglês, francês e, claro, português. Como pretenso padre, jesuíta segundo dizia, penetrava em lugares interditos a outros ocidentais. Ouvia atrás de portas que se fechavam a sete chaves quando outros as tentavam ultrapassar. Sabia perscrutar a alma dos outros como ninguém. Defendia-se, dizendo que sendo o Diabo a origem de todos os males, o seu objectivo era vencê-lo. O Diabo tentava todos os seres humanos. Por isso, saber o que cada um queria não era um pecado. Saber os segredos dos que queriam o Mal era uma acção ao serviço de Deus. Mesmo que pago pelo vil metal que corrompia os homens. Amoroso não sabia se a argumentação do padre era verdadeira ou falsa. Mas isso era, para já, indiferente. Ele era-lhe útil.
Benedito Augusto levou aos lábios o copo de cerveja que tinha à sua frente. Depois de, com evidente prazer, saciar a sede, disse, sorrindo:
– Não sou ninguém, meu caro tenente. Posso ser toda a gente. Gosto de ser invisível. Como um anjo disfarçado no reino das trevas.
– Ou um diabinho mascarado no mundo dos que se julgam anjos.
– Se isso o conforta…

II

Félix Amoroso gostava que Benedito Augusto continuasse a ser invisível. Olhou à volta. Estavam numa espécie de taberna tão escura que apenas se viam sombras recortadas pela luz mortiça de umas lâmpadas de óleo que não eram limpas há muito tempo. Ninguém se importava. Os que ali estavam queriam que as suas faces passassem despercebidas. Marinheiros com tatuagens, com sinais e rugas que eram fruto de passados impossíveis de descobrir, trabalhadores das docas, piratas. Homens que tinham tentado descobrir o paraíso e que tinham escorregado no seu caminho. Por desejo dos outros. Ou por culpa própria. A vida era um contínuo labirinto. E nem todos queriam descobrir a saída dele.

Ali, naquela pequeno local sem nome junto ao Porto Interior, desenhavam-se traições e conspirações. Marinheiros sôfregos de terra firme vinham gastar o dinheiro das suas aventuras legais ou ilegais. Ou procurar uma mulher, antes de voltarem ao mar. Mas todos falavam baixo. Um grupo de homens chineses estava sentado num recanto. As suas faces dificilmente eram visíveis. Na mesa que ocupavam, uma chama de uma vela movia-se com a sua respiração. Bebiam, enquanto pareciam esperar alguém. Também ali estavam alguns homens solitários, quase todos ocidentais, perdidos nos seus pensamentos e na vida.

Era de uma conspiração que Benedito Augusto queria falar ao tenente Amoroso. Escutara-a ali. Às vezes o tenente tinha a sensação que o padre Augusto tinha um tom ressentido. Muitas vezes sarcástico, mas outras vezes parecia alguém que se queria vingar. Dos outros, de si próprio, do que vira e do que algures fizera ou deixara por fazer. Como ele, sabia que não havia inocência no mundo. Como quase todos os portugueses, tinham, ao longo dos séculos, perdido demasiado tempo e energia a sobreviver. Ele próprio o sabia. Sobrevivera a La Lys, durante a Primeira Guerra Mundial, antes de rumar a Macau. O tenente tinha um perfil esguio, quase duro, mas aparentava uma doçura e elegância no olhar e na sua forma de falar e sorrir. O seu bigode estava bem aparado. A cor morena ganhara contornos dourados por causa do sol. Apresentava sinais de fadiga e falta de horas de sono nos seus olhos amendoados. Apesar de habituado à linguagem das armas, movia as mãos com delicadeza.

III

Talvez por isso, quer Benedito Augusto, quer Félix Amoroso, embora parecessem vir de mundos diferentes, tinham tanto em comum. A sua semelhança aproximara-os. Ou um segredo, que, receosos, ambos partilhavam.
– Meu caro Amoroso. Eram dois homens. Um, chinês. O outro deveria ser europeu ou americano. Falavam inglês, mas o ocidental, apesar de ser loiro, era de outro país. Nunca o tinha visto. Conversavam em sussurro, num canto. Eu, por acaso, estava na mesa mais próxima, com um pirata que quer reformar-se. Eles falavam de Macau e da sua venda.
– Da venda de Macau?
– Sim, segundo o ocidental, Portugal vai vender Macau à Alemanha. É um segredo, mas isso vai realizar-se brevemente. Parecia preocupado em arranjar dinheiro para comprar a simpatia de quem era importante em Macau para que tudo corresse sem problemas aqui, depois do Governo de Lisboa anunciar a venda.
Amoroso franziu a testa. Nunca tinha ouvido nada sobre esse assunto.
– E não soubeste mais nada? De onde vinha o chinês?
– Ele costuma estar por aqui. Tem um barco. Acho que ou é pirata ou, então, faz contrabando. De arroz, de ópio, de seda. Mas deve dar-se bem com as autoridades e com as tríades, porque não parece ter receio de nada. É preciso que existam piratas para que se justifiquem gastos e custos de muita gente, da administração às empresas de seguros marítimos, não é verdade?
– Achas que isso é assim?
Benedito Augusto fez um esgar:
– Hoje é difícil ser puro e inocente.
– Como pretenso padre, deverias acreditar nisso.
– Sou padre. Formei-me num colégio jesuíta. Conheci a sua história. Aprendi muito com eles. Sabe como foi, já lhe contei, tenente. Tive de fugir de Portugal, quando chegou a República. Queriam enforcar os padres, como eu, nos candeeiros. Acabei por vir parar aqui. E o tenente, porque veio para Macau?
– Para descansar da guerra, meu caro padre. Dos pesadelos e dos fantasmas.
– E encontrou paz aqui?
– É mais fácil falar com os deuses aqui do que em Lisboa.
Félix Amoroso encolheu os ombros. Fungou:
– O que me dizes é muito vago. Que posso eu investigar com isso?
– Saber se há fumo no meio do fogo, não? Descobrir quem é o ocidental. Deve andar por aí. Quanto ao resto eu acabarei por saber.

IV

O tenente tirou um envelope do bolso e passou-o discretamente para as mãos de Benedito Augusto.
– Está aí tudo o que te é devido.
– Confio em si.
Colocou o envelope no interior da cabaia. E voltou a dar um gole na cerveja. Amoroso sentiu-se, por momentos, incomodado. O chão estava muito sujo. Tal como a mesa e os bancos onde estavam sentados. Este era um local de trânsito, entre o mar e terra firme. Os mais endinheirados, depois, deveriam ir para os bordéis, ou para casas de ópio e de jogo na Rua da Felicidade. Onde as portas, como o desejo, eram vermelhas.
Diziam que esta era a cidade dos pecados. Como se o resto do mundo fosse diferente. Era um porto onde alguns se escondiam do passado e outros se refugiavam das incertezas do mar. Sentiu-se esgotado, estranhamente desperto e sem sono. Lá fora, a cidade dormia tranquilamente. Ouviu a voz do padre Augusto:
– Em Macau não deveríamos olhar para o sol. Cega-nos com sonhos irrealizáveis.
A sua voz era calma e segura. Reconfortante, para quem não o conhecia nem poderia desconfiar dele. O tenente respondeu:
– Deus, às vezes, está ausente em parte incerta.
Era o que acontecia ali, onde apesar da presença das força de segurança portuguesas, as sociedades secretas controlavam as ruas e os becos.
– Deus deixa-nos ver. E decidir. De dia vemos o que os outros nos querem deixar ver. De noite podemos vislumbrar o que devemos ver. As sombras iluminam mais do que a luz.
Amoroso sorriu com as palavras do padre Augusto, um homem tão sombrio como a escuridão da noite. Sentia que ele queria destruir o mundo que conheciam, para que fosse possível construir, a partir das suas ruínas, um outro. Queria uma nova ordem que restabelecesse o equilíbrio entre o céu e o inferno. Como se tal fosse possível. Augusto voltou a falar:
– Talvez seja o momento de mudarmos tudo. Não podemos ver para lá do horizonte, mas sinto que algo se aproxima. E não é bom.
O tenente Amoroso pensou, por momentos, na chinesa Ding Ling. Ela poderia ser um futuro bom, se acreditasse que isso ainda era possível.

V

Por isso não escutou as palavras do padre Augusto, que soavam a despedida:
– Lembra-se do jogo das escondidas, tenente? Em crianças, contávamos até cem, com os olhos fechados, antes de podermos ir à procura dos que se tinham ido esconder. Trouxemos esse jogo de Portugal para Macau. E continuamos a jogá-lo aqui. Mas, às vezes, fechamos os olhos e não fazemos intenção de descobrir quem está escondido. E escondemo-nos tão bem que temos medo de voltar a aparecer.

2.

Os olhos de Ding Ling eram negros. Tão escuros como a cor do seu cabelo, comprido, mas enrolado e travado por agulhas vermelhas. O cheongsam branco, com dragões verdes nas mangas, que vestia, ajustava-se perfeitamente ao atraente corpo da chinesa. Nos dedos anelares cintilavam anéis de jade verde e de ouro com esmeraldas. Caminhou até junto do tenente Félix Amoroso, entre a nuvem de fumo que se movia muito devagar dentro da sala. A luz das lâmpadas de gás era ténue, mas mesmo assim era visível o brilho hipnótico dos seus olhos. Algo que Amoroso bem conhecia. A sua voz era aveludada e acolhedora:
– Deseja um chá, tenente?
– Se tal for possível.
Ding Ling aproximou-se de uma jovem chinesa, a quem fez o pedido. Esta retirou-se sem falar e sem olhar para o tenente.
– Os seus empregados são todos assim, silenciosos como gatos, menina Ling?
– Gosto do silêncio. Traz-me conforto e segurança.
Em grande parte da “Noite Tranquila”, na discreta casa de jogo e de ópio de Ding Ling, na Calçada das Verdades, quase não se escutava o ruído das conversas. Quem procurava a tranquilidade tinha de a procurar. Os seus clientes eram selectos. Tal como as cortesãs que ali se encontravam. E isso tinha um preço. “Porque tudo na vida tem um preço”, dizia, sem emoção visível, Ding Ling. Amoroso sentiu o odor do fumo do ópio que vinha do piso superior e que se misturava com o do tabaco. Ela fez sinal para subirem. Ele seguiu-a até a uma pequena sala, onde se sentaram junto a uma mesa de madeira de cerejeira.

VI

– Que te traz desta vez a esta humilde casa, tenente?
– Julgo que o sabe, menina Ding. A morte de João Carlos da Silva, um dos secretários do Governo, que apareceu morto esta manhã perto da porta deste estabelecimento.
– Um trágico acontecimento, tenente.
– Ele era um frequentador assíduo da “Noite Tranquila”, não era?
– É verdade, tenente. Esteve aqui ontem à noite, saíu daqui vivo, e foi encontrado morto na calçada, a uns metros daqui. Assassinado com golpes de faca. O meu funcionário chamou a polícia. Nada tenho a esconder das autoridades portuguesas. E todos temos a ganhar se tratarmos do assunto discretamente.
João Carlos da Silva, um secretário do gabinete do novo governador de Macau, Rodrigo José Rodrigues, que fora nomeado em Janeiro pelo Governo português. Silva, e residia há muitos anos em Macau, era conhecido pela sua paixão pelo jogo e pelas cortesãs que eram mestres na arte da sedução na casa dos prazeres de Ding Ling. Era um homem frágil e inseguro, segundo se dizia. Mas muito competente no trabalho. A mulher, depois de poucos meses em Macau, deixara-o e regressara a Lisboa. Levara a filha de ambos, ainda criança. Ele ficara e nunca mais conseguira criar uma família. E isso era um ponto fraco para quem estava no centro do poder.
Independentemente da investigação da polícia, Amoroso decidira ir até a um local que conhecia bem. Essa era a sua missão em Macau: ver o que os outros não viam e alertar o comandante militar da ilha da Taipa ou o Governador. Ouviu a voz de Ding Ling:
– O senhor Silva era um homem muito querido aqui. Um excelente cliente. Ninguém desejaria a sua morte.
Amoroso olhou para ela e sorriu. Ele próprio era um bom cliente daquele local.
– Claro.
Tentou manter alguma frieza, mas sabia as suas fraquezas quando estava perto de Ding Ling.
– Achas que a morte dele foi um mero azar do destino ou tem alguma implicação maior?
– O senhor Silva tinha uma posição sensível na administração portuguesa de Macau. Por isso todos os cenários são possíveis.
– E pensas que algum de nós poderá ter a ver com a sua morte?
– Querida Ling, tenho de fazer uma escolha entre ti e a razão da morte dele? Ou entre ti e a menina que estava, eventualmente, com ele?
– Não te peço tanto. Embora muitas vezes na vida tenhamos de fazer escolhas difíceis ou que nos parecem impossíveis.

VII

Amoroso sentiu o aroma do chá, que entretanto tinha sido colocado na mesa. Era reconfortante, aquela hora. Durante o dia poupava o corpo ao álcool. E a noite ainda não tinha chegado.
– Quem era a menina com que ele estava ontem à noite?
– Com a Li Bei. Sabes quem é. Temos estado lado a lado desde pequenas. Caminhámos juntas. Navegámos juntas. Matámos juntas. Partilhámos coisas que não imaginas. Dormi com ela durante anos.
O seu olhar denotou prazer ao dizer isso. Só para ver a reacção de surpresa do tenente.
– Ficarias admirado com as mudanças que uma cabeça pode sentir depois de passar uns dias na cama com ela. Vim de Xangai para aqui com ela. É como se fosse minha irmã.
Ding Ling, conscientemente, despertava-lhe o desejo. Ele nunca tinha estado na cama com Li Bei. E não sabia que elas tinham essa relação tão forte. Afinal não a conhecia tão bem como julgava. Amoroso tentou afastar da memória as suas noites com a chinesa.
– Diz-me, ninguém se aproximou do reservado do senhor Silva ontem à noite?
– A Li Bei tratou do seu conforto. Como sempre fez. Ele saiu daqui, antes do sol nascer. Ninguém ouviu nada, até se encontrar o corpo caído na rua. Mas diz-me, tenente Amoroso, porquê essa interesse? Desconfia de algo?
– O senhor Silva tinha informações que poucas pessoas têm em Macau. Temos um novo Governador. Esta morte não poderia ser mais inoportuna.
Ling Ding fechou os olhos. Disse apenas:
– É verdade.
Ela tinha, para além daquela casa de prazeres, uma frota de juncos e lorchas e um centro de distribuição no Porto Interior, onde guardava as mercadorias que vinham de várias cidades da Ásia. Herdara todo esse negócio do seu tio, em circunstâncias trágicas e que um ano antes fora muito falado em Macau. Desde então o negócio prosperara. Falava-se que os seus interesses se tinham alargado ao contrabando de ópio e que ela tinha agora ligações à tríade do Bando Verde. Tudo rumores sem confirmação. Mas Macau era uma cidade pequena. Reinava a inveja. E em locais assim os segredos nunca poderiam ser bem guardados. Quando a questionara sobre isso, ela respondera de forma impassível: “Uma cidade portuária precisa do comércio para sobreviver”. Nada poderia ser mais verdade.

VIII

Amoroso ouviu outra vez a voz dela:
– Quando cheguei a Macau só trazia duas coisas, a tristeza e a necessidade de encontrar uma via para voltar a reconciliar-me com a vida. Na verdade tudo é um pouco assim. Estamos preparados para seguir em frente. Vês isso quando contemplas a natureza. A força da vida é tremenda, é algo perfeitamente assombroso.
– Tu és uma força da natureza.
– Não seria sem a tua ajuda.
Ding Ling não precisava de dizer mais nada. O segredo que ambos compartilhavam não poderia ser dito em voz alta. Era uma história que não deveria ser confidenciada a outras almas. Talvez por isso Amoroso não conseguisse viver sem vir ter com ela. A vida seria diferente se não tivesse vontade de sentir os espinhos das rosas mais belas e misteriosas. Ela aproximou-se e roçou os lábios pelo pescoço de Félix Amoroso. Ficou assim durante algum tempo, antes de dizer:
– Que desejas mais, tenente?
Ele não conseguiu responder. O corpo quente de Ding Ling colara-se ao dele e aprisonara todos os seus movimentos e pensamentos. Ela colocou a sua mão na dele e puxou-o para uma pequena porta que estava escondida atrás de um biombo de laca, com fundo preto e imagens de uma batalha, colocado no canto da sala. Entraram num quarto muito pequeno, quase só ocupado por duas camas de pau preto, que dava para dois fumadores e por uma mesa comprida em cima dos quais estavam dois cachimbos de ópio e outros utensílios.
Ding Ling tirou-lhe as roupas e fez com que ele se deitasse numa das camas. Depois também tirou o seu vestido. Sentou-se junto a ele e, depois, soergueu-se para lhe beijar os lábios e, depois, todo o corpo. Muito devagarinho. Ele sentiu o corpo dela, fechou os olhos e abandonou-se. Mais tarde, o ópio trouxe-lhe o resto do repouso que tanto procurava. Só se levantou já os raios de sol irrompiam por Macau. Estava sozinho. A cama de Ding Ling estava vazia. Fora um sonho maravilhoso.

IX

3.

Somos o que não somos. Tal como as coisas não são o que parecem. O tenente Félix Amoroso sabia isso, porque a sua vida mais recente era o resultado desse enigma eterno. Mas não era isso que o incomodava agora, quando estava prestes a entrar no edifício da Avenida Almeida Ribeiro onde se situava o escritório de Joaquim José Palha, comerciante de vinhos e facilitador de negócios. Tinha outras aptidões muito elogiadas, como ser uma voz escutada junto de alguns dos mais importantes comerciantes da comunidade chinesa. Alguns deles dominavam o mundo do jogo. Palha era um homem ambicioso. Alguém tinha dito que o caminho até ao cimo conduz-nos mais para baixo, mas até agora ele tinha estado imune a esse destino. Amoroso subiu até ao primeiro andar, onde uma jovem secretária chinesa lhe abriu a porta da sala onde Palha o esperava.
Este estava sentado, atrás de uma grande mesa de madeira. Nas paredes viam-se prateleiras com livros diversos, muitos deles de Direito e de História. Palha parecia inquieto. Com a mão esquerda, brincava com uma ampulheta. Quando viu o tenente, colocou-a na mesa, e a areia fina que estava no compartimento superior começou a cair no inferior. Como que a mostrar que o tempo tinha começado a contar. Olhou para Amoroso com ar inquiridor. Disse, afavelmente:
– Bem-vido tenente Amoroso. Sente-se, por favor. Sei que, como eu, é um homem com o tempo contado. Por isso não o demorarei.
– Quando me pediu para vir aqui fiquei com dúvidas sobre o que desejava. Não frequentamos os mesmos círculos. Nem temos interesses coincidentes.
– Não estaria tão certo, tenente. Macau é uma cidade pequena. Todos se encontram. E todos dizem mal dos outros assim que estes viram as costas. Não é diferente em Portugal. Somos mestres na arte do fingimento e da inveja. Imagino que sabe isso. Mas estamos condenados a viver uns com os outros. E a garantir que Macau sobrevive. Por isso os nossos interesses acabam por ser mais ou menos comuns, não lhe parece?
Para além de comerciante, Palha era também membro do Leal Senado, eleito pelo Centro Republicano Eleitoral, grupo político criado há poucos anos. A política, em Macau, pouco ou nada tinha a ver com o que se passava em Lisboa. A capital de Portugal estava longe e o seu frágil braço apenas era visível nas decisões do Governador.

X

Lisboa não conhecia a realidade de Macau nem os interesses e necessidades de quem lá vivia. A cidade era um ponto pequeno e longínquo no mapa do Império português.
Palha era um homem poderoso. A sua voz era dominadora. Os seus olhos, frios e cintilantes, contrastavam com um sorriso terno mas firme, que sublinhavam as palavras. Tinha uma cerrada barba preta e vestia um fato de linho claro, de corte perfeito.
– Vou ser franco e directo consigo, tenente. Está em Macau desde quando? 1919, 1920?
– 1920. Desde há três anos.
– É verdade. Nada é já uma surpresa para si. Já percebeu que, de um momento para o outro, tudo o que construímos pode ruir. Lisboa não sabe e não percebe nada. Porque, para além da pequena política pacóvia onde se vai afogando, também está mais preocupada em sobreviver. Nada que admire um português. Somos todos náufragos em busca de uma bóia. E à espera de uma sereia.
Deu uma risada.
– Percebeu o que se passou neste último ano? A nossa situação é muito débil. Portugal já não é uma potência que imponha respeito.
Amoroso recordava-se. Macau estivera à beira do precipício. E ainda não estava salva. Não caíra porque a sua capacidade de sobrevivência era semelhante, ou mesmo superior, à de Portugal. Quando estava com um pé no abismo, um milagre, um acontecimento inesperado ou um homem providencial mudava o sentido do vento. Até ao início de 1923, Macau fora palco de uma sublevação sem precedentes. Que tivera a ver com a frustrada tentativa do general Ch’en Chiu Ming eliminar Sun Yat-sen. A agente de Ch’en, uma mulher irrascível chamada Wong Pik-wan, viera para Macau para incendiar os ânimos. Nessa altura as forças nacionalistas mais radicais proclamavam que a China deveria reaver rapidamente a soberania sobre os territórios ocupados pelas potências estrangeiras. Macau era um alvo fácil. Todos temiam um ataque à cidade, a partir da China continental. Fora mesmo, nesses meses, criado um Corpo de Voluntários da Defesa Civil. A confusão era total. O então governador, Henrique Correia da Silva, estava em Hong Kong, de regresso a Lisboa.

XI

Depois de um incidente na Rua da Felicidade, em finais de Maio de 1922, entre um soldado do contingente moçambicano e uma cantadeira, a indignação popular dirigida por Wong desembocara no Largo do Chip Seng, com os soldados portugueses cercados. As espingardas Mauser acabaram por fazer o resto – dezenas de manifestantes foram mortos. O próprio Sun Yat-sen, que sempre recebera o apoio dos republicanos em Macau, e por isso tinha o coração dividido, esteve prestes a apoiar os revoltosos depois do massacre. Mas uma tentativa de assassínio na sua própria sede de Governo, fez com que, na fuga de Cantão, Macau surgisse como uma boa alternativa de refúgio.
Poderia oferecer a paz que Macau necessitava. Negociações entre as autoridades portuguesas e os representantes de Sun tinham-se iniciado e fora mesmo oferecido ao fundador da República chinesa um empréstimo substancial para salvar as falidas finanças do Kuomitang. Alguém acabou por denunciar a tentativa de acordo em Hong Kong e isso foi o fim das ilusões. Mas as autoridades portuguesas tinham ganho tempo e a sublevação esmorecera. Wong ainda se movera na cidade flutuante de juncos do Porto Interior e no Bazar, mas, perdida a aposta, regressara a Cantão. Palha interrompeu as recordações de Amoroso.
– Por essa altura, tomou conta do seu novo posto, não foi tenente?
– Mais ou menos. O chefe da polícia secreta foi demitido por ser, no mínimo, conivente com as acções da senhora Wong. Mas eu não sou o novo chefe da polícia secreta.
– Eu sei. Mas é a sua sombra. Só responde perante o Governador e o chefe militar de Macau, não é verdade?
Amoroso não disse nada. Olhou para a ampulheta de Palha. A areia fina continuava a cair.
– E a senhora Wong, sabem dela?
– Sun Yat-sen retomou o controle de Cantão. Ela está em fuga. Não deve ter muito futuro.
Em 1923, Macau recuperara a normalidade. É certo que as tríades dominavam, como sempre, os negócios subterrâneos. Na cidade flutuante do Porto Interior ninguém conseguia impôr a lei. Os piratas cirandavam, à vontade, nas águas circundantes. Mas o jogo estava a regressar às regras não escritas e observadas por todos. Para sobreviver era preciso não ouvir, não ver e, sobretudo, não actuar. Havia uma aparência de sossego como há mais de um ano não existia.

XII

Palha acariciou os braços da firme cadeira de madeira, cerejeira segundo parecia, como se ela fizesse parte dele.
– Sabe de onde veio esta cadeira, tenente?
– Não imagino.
– Pertenceu a um director da VOC, a companhia das Índias holandesa e, depois, a um director da East India Company. Tem cerca de 150 anos. Sempre foi muito cuidada. Não é só confortável. É um símbolo de poder. Esta madeira influencia-nos na forma como exercemos as nossas acções. Temos de saber como nos sentamos nela, precem dizer-me os seus antigos proprietários. E eu esforço-me para merecer essa confiança.
O seu olhar era malicioso. Continuou:
– Temos um novo governador, o doutor Rodrigo Rodrigues. Ele vai precisar de homens que o ajudem a compreender o mundo em que vivemos. Homens como ele precisam de outros como o tenente. Para os protegerem do mundo. Acha que essa é a sua missão, tenente?
Palha parou um pouco. Virou a ampulheta, mostrando que tinha tempo. Continuou a falar:
– Eu acredito nesta cidade. E se há alguém capaz de a tornar melhor é você. Disse-me uma vez que a força de um homem vê-se no momento em que ele se confronta consigo próprio. Em que ouve vozes na sua cabeça, argumentando que está certo, porque alguém está errado. Saber a diferença, nesse momento, é o que faz um oficial. O que faz um homem. Sinto que sabe fazer essa escolha. A certa, é claro.
Olhou fixamente para o tenente. Este sabia o que Palha estava a querer dizer. Mais do que aconselhar o novo governador, queria que o convencesse das ideias do comerciante para o território.
– Eu sei que será o homem certo para essa missão. Como foi capaz de fazer tudo para proteger a sua amiga Ding Ling durante os tumultos do ano passado.
O seu olhar era amistoso, mas as palavras soavam como lâminas. E o tenente sentiu um arrepio na espinha. Porque sabia o que queria que ele recordasse. Palha chantageava-o com um fantasma que nunca iria repousar ou dormir. Uma ferida que nunca poderia cicatrizar.

XIII

4.

O silêncio convida-nos a reflectir. Nesses raros momentos escutam-se coisas que normalmente não se costuma ouvir. Os suspiros do vento, o chilrear dos pássaros, as batidas do coração. Sente-se a aproximação silenciosa dos gatos. “Tigre sentado, dragão escondido”, dizia-se na China. Eles, sem se moverem, passam despercebidos. Uma sábia lição de vida, pensou Ding Ling. O calor de início de tarde ajudava-a a apreciar essa ausência de ruído. Estava quase inerte, sentada na varanda do primeiro andar do “Noite Tranquila”. Bebia em pequenos goles um chá morno e usava um leque para criar uma pequena brisa. Por baixo, na rua, alguns corpos arrastavam-se silenciosamente, mais por necessidade do que por vontade.

Quase sem dar por isso recordou Cantão e uma das vezes que fora à ópera, com o seu pai. Tinham ido ver “Dai Loi Hwa” (“ A Filha do Imperador”), a história de uma jovem princesa, Changping, que é forçada a esconder-se num mosteiro para não ser presa pelo exército dos inimigos da sua família. Mas é traída por todos e não pode confiar em ninguém, até que encontra um homem leal e bravo, Zhou, a quem fora prometida em casamento. A tragédia está-lhes destinada. Cercados pelo poder que os oprime, na noite do seu casamento, ela vai provar o seu amor por ele. Juntos tomam veneno, e morrem, no jardim do palácio onde se conheceram. Nunca esquecera aquela história.

Como se ela fosse um fantasma que pesasse sobre toda a sua vida. Talvez fosse. Mas o seu destino era concluir uma missão. Só não sabia se terminaria em tragédia.

Antes da hora de almoço, estivera numa pequena casa, na Travessa dos Santos, onde uma facção do Bando Verde tinha a sua discreta sede macaense. Lá estavam Wang Du, Wu Fei e Yao Wong. E, claro, Li Bei. O assunto era sensível e deveria permanecer secreto até à acção. O Kuomitang de Sun Yat-sen, confrontado com uma permanente guerra na China, estava numa difícil situação financeira e Ding Ling poderia ajudar a resolver parte do problema.

Um dos seus agentes, funcionário do Banco Nacional Ultramarino, soubera que um importante valor em ouro e em moeda estrangeira de vários homens de negócios seria remetido, em breve, de Macau para a sede do Hong Kong and Shanghai Banking Corporation.

XIV

Iria num vapor, guardado por homens armados. Mas isso era algo que não era um problema impossível de tornear. As águas do delta do Rio das Pérolas e do Mar da China estavam repletas de juncos de piratas, ao serviço de todos os interesses. Não seria difícil a Wang Du, que tinha estreitos contactos com muitos deles, conseguir um grupo suficientemente forte para assaltar o barco que transportaria os valores. Restava saber quando e onde. O seu agente no BNU descobriria o segredo.
Os pensamentos de Ding Ling foram cortados pela voz de Li Bei:
– Desculpa interromper-te, irmã. Está lá fora um estrangeiro que diz querer falar contigo.
– Quem é?
– Diz chamar-se Maximilian Wolf e traz uma proposta que quer discutir contigo.
Ding Ling não estava com disposição para conversas que necessitavam de excessiva concentração. E estava farta de homens com propostas de negócios. Mas acabou por dizer:
– Diz para esperar por mim no escritório.
Li Bei retirou-se e, depois, Ding Ling caminhou até lá. Quando entrou deparou com um homem alto e loiro, de olhos azuis, que estava de pé com as mãos colocadas atrás das costas. Vestia um fato de linho azul e, assim que a viu, retirou o chapéu que usava. A voz era áspera, talvez fruto de anos de consumo excessivo de álcool de pouca qualidade.
– Menina Ding Ling, presumo…
– É verdade. E o senhor é Maximiliam Wolf…?
– Max, se desejar. Um humilde homem de negócios alemão sediado em Hong Kong e de visita a Macau.
Ding Ling sentou-se atrás de uma pequena secretária e fez sinal ao alemão para se sentar à sua frente. Ele assim fez. A voz da chinesa tinha um tom desconfiado:
– Diz que tem uma proposta para me fazer. Muitos o fazem, senhor Wolf. Que negócios tem, então, para me propôr? Tenho fornecedores dos melhores produtos que posso colocar à venda. Que posso não ter?
Max fez um sorriso malicioso. Cruzou as pernas, para ficar mais confortável.
– Não se importa que eu fume, menina Ding?
– Esteja à vontade.
Ele assim fez. Colocou um cigarros entre os lábios gretados e acendeu-o. Depois de apreciar o fumo a entrar nos pulmões, e de o expelir, disse:
– Eu não lhe venho vender produtos. Ou melhor, venho ajudá-la. Se o desejar, claro.

XV

Ding Ling semicerrou os olhos. Questionou-o:
– Ajudar-me? Eu não preciso de ajuda. Tenho vários negócios estáveis e rentáveis.
– Menina Ding, eu sei que é inteligente. Que prevê o futuro, antes de muitos outros. Admiro-a. Mas talvez não saiba o que se move para lá do horizonte e que poderá cair como uma bomba em Macau.
– Que facto é esse, senhor Wolf?
– Max, pode começar a chamar-me Max. Como sabe, há quem diga que a realidade deste local frágil é mais interessante do que o mito que se criou à sua volta. A cidade do pecado, dizem, sequiosos de um prazer imaginado servido por mulheres que ora são sereias, ora deusas. Enquanto jogam a vida e a riqueza que pilharam algures. Eu sei que os homens desta terra são duros. Não temem navios de piratas, nem os das potências coloniais. Não têm medo de armas. Não têm medo de espadas e punhais. Será que não há nada de que possam ter medo?
A voz de Max Wolf era pausada e agradável. Mas os seus olhos eram frios como punhais. Há muito que Ding Ling não sentia um arrepio na espinha como naquele momento. Ele continuou:
– Sabe, menina Ding, dentro de poucas semanas será anunciada a venda de Macau à Alemanha.
Ela estremeceu.
– Como sabe isso?
– Tenho as minhas fontes. Muito credíveis. Porque eu represento alguns interesses alemães nesta parte do mundo. Não do Governo alemão. Mas de empresas alemãs, que estão desejosas de avançar para aqui, a seguir a esse anúncio. Como imagina, os que defendem a presença portuguesa, ou os que têm ligações a eles, passarão a ter mais problemas para lucrarem com os seus negócios. Nova administração, interesses diferentes, se me é permitido dizer.
– E isso, o que tem a ver comigo?
Wolf bateu com as pontas dos dedos no tampo da mesa. Ding Ling não gostou do ruído.
– Tudo, é claro. Sei que é uma voz escutada em Macau. Tem amigos, bons, junto das comunidades chinesa e portuguesa. Amigos e clientes. Pode aliciá-los para que a presença alemã aqui não seja recebida com desconfiança ou, mesmo, com resistência. É certo que os militares alemães não são como os portugueses. Não são fracos e têm mais meios, em termos de armas e navios de guerra. Será muito mais difícil para quem quiser resistir às novas autoridades.

XVI

Antes que Ding Ling pudesse responder, Wolf continuou:
– Assim, menina Ding, se se aliar a mim, tem tudo a ganhar. Se se opôr, terá tudo a perder. Os seus amigos portugueses não terão nenhum poder. Fugirão, que nem ratos, como se costuma dizer, à primeira oportunidade. Para Goa. Para Lisboa. Para qualquer lugar. Os portugueses são filhos do mar.
Ding Ling pestajenou, nervosamente:
– Percebo o seu ponto de vista, embora não o partihe completamente. Mas, já agora, diga-me: e, se decidir ajudá-lo, que ganho efectivamente?
– Ganhará dinheiro e reputação. Posso resolver-lhe um problema que sei que a absorve. Precisa de dinheiro para financiar as actividades do Kuomitang. Eu posso ajudá-la nisso. Tenho acesso a fundos suficientes para que fique muito bem cotada junto de Sun Yat-sen. Com quem, diga-se, também queremos ter boas relações. Dinheiro não é uma questão para nós.
– Nós, quem?
– Para mim e para as pessoas que represento.
Há muito que Max acabara de fumar o seu cigarro. Acendeu outro.
– Não a quero apressar muito, menina Ding. Mas não tenho muito tempo. Preciso de resultados, de forma breve. Ou seja, necessito de uma resposta sua dentro de dois, três dias. Que lhe parece?
– Tenho de reflectir.
– Sim, eu sei como são os chineses. Jogam com o tempo. O problema é que, nós, os ocidentais, estamos sempre a olhar para o relógio. Espero pois uma resposta rápida. E, sendo assim, não a ocupo mais nem lhe tiro tempo para a sua profunda reflexão. Que sei que será a mais sensata.
Max fez um sorriso sarcástico. Levantou-se e colocou o chapéu na cabeça. O brilho dos seus olhos era mortal. Fez uma ligeira vénia e saíu.
Pouco depois, ainda Ding Ling estava de olhos fechados, a tentar pôr ordem nos seus pensamentos, Li Bei entrou.
– Diz, querida irmã.
– O alemão já saíu. Mas, recordei-me, já cá tinha estado.
Ding Ling franziu os olhos.
– Quando?
– Na noite em que o senhor Silva foi morto. Estiveram a conversar os dois, com ar pouco amigável, antes do senhor Silva ter ido ter comigo. Este estava muito nervoso. Fumou mais ópio do que o habitual.

XVII

5.

Da magnífica varanda do hotel Boa Vista, o tenente Félix Amoroso observava a Baía da Praia Grande, onde alguns juncos indolentes navegavam ao sabor das suaves ondas e do vento. Estava encostado a um dos pilares, imerso na vista, a fumar. Ali criava-se a errada sensação que o tempo não tinha fim. Mas, como aprendera com os chineses, o ciclo da vida era como a das estações. Não era um caminho contínuo rumo a um futuro que queríamos descobrir e, se possível, conquistar. Ouviu um ruído e isso fez com que caminhasse até encontrar um homem sentado num cadeirão a ler um jornal. Era o novo Governador de Macau, Rodrigo José Rodrigues. Aproximou-se dele e saudou-o:
– Boa tarde, senhor Governador. Não o tinha visto.
Este sorriu, salientando mais a sua face esguia. Tinha o cabelo e o bigode negros e usava uns óculos redondos onde se refugiavam uns olhos inquietos.
– Sente-se aqui, ao meu lado, tenente Amoroso. Estava a ler o “Diário de Notícias”, que aqui chega com largo atraso. Mas é uma boa forma de saber algumas coisas que vão acontecendo em Lisboa. E o tenente, não me diga que veio ver a sessão de poesia organizada pela minha mulher? Eu já lá estive, mas agora é a parte mais social, que dispenso.
– Sei que a senhora Rita Margarida Rodrigues é uma distinta poetisa.
– Há quem o afirme. Eu não serei o melhor juiz em causa própria. Mas, sinceramente, também penso o mesmo.
Falava pausadamente, como se meditasse cada palavra. Às vezes levava a mão aos óculos num gesto mecânico ou nervoso.
– Que bela vista, não é verdade, tenente Amoroso?
– É verdade, senhor governador. Presumo que daqui tem uma outra visão de Macau. Talvez um pouco diferente da que tem desde o Palácio de Santa Sancha.
Rodrigo Rodrigues fez um esgar:
– Do lugar do poder tem-se sempre um olhar diferente sobre o mundo. E que nem sempre é real. Perde-se, muitas vezes, o contacto com a poeira. É por isso que quem quer dirigir bem, tem de se rodear de pessoas competentes. E atentas. Eu dependo de homens como você.
Agarrou num copo de vinho branco que estava na mesa e levou-o à boca. Bebeu um pouco, antes de continuar:
– Desde que aqui estou já percebi que Macau vive longe de Lisboa. O relógio aqui marca horas diferentes das de Portugal. E lá decide-se sem se conhecer o que se faz aqui.

XVIII

Amoroso fungou. Aproveitou para para confrontar Rodrigo Rodrigues com as notícias que começavam a circular:
– Diz-se, senhor governador, que há quem em Lisboa defenda a venda de Macau. Para evitar despesas e chatices.
– Fala-se agora disso aqui? Essa é uma história muito antiga. Já vem do tempo da monarquia. O Oliveira Martins falou disso. O Eça de Queiroz também. Mas agora parece que ganhou nova alma para nos atormentar os dias e as noites em Macau. Pelo que li aqui no “Diário de Notícias” foi tema de um debate muito aceso entre um deputado, o senhor Jaime Leote do Rego e o ministro das Colónias, o senhor Domingos Leite Pereira. Tudo por causa de um artigo que saiu num jornal americano, que dizia que o Governo português estava em negociações com a Alemanha para a venda deste território. O Governo português desmentiu. Sabe o que disse o ministro? Está aqui!
Notava-se alguma irritação na sua voz. Agarrou no jornal e leu uma frase que sublinhara a tinta azul:
– Diz o ministro: “Portugal não está em condições de alienar seja o que for do seu património. Não o quer fazer e, nem o fará nunca, pois que não está em circunstâncias de alienar seja o que for dos seus territórios”. Se o ministro o diz, deve ser verdade.
– Pode não ser, senhor Governador. Disseram-me que há alemães que já estão a operar em Macau como se o negócio estivesse feito.
– Penso que não esteja. Mas, nunca se sabe. Portugal tem os cofres com aranhas e certificados de dívidas bolorentos lá dentro. E sabe como é: quem controla a dívida de um país, define as suas decisões. A nossa dívida não tem fim. Já nem se sabe quando começou. E o que resta para vender? As colónias…
Amoroso observou:
– Mas não há fumo sem fogo, não é verdade senhor Governador? A menos que saiba algo que não queira, ou não possa dizer, esse é um assunto que interessa a quem vive aqui. Seria muito diferente ter um governo alemão ou continuar com um português em Macau.

XIX

– Também penso assim, tenente. O que acha do assunto?
– Os alemães têm interesses coloniais. E os ingleses não têm já interesse nisto. Dominam Hong Kong e parte de Xangai. Têm a Índia. Os alemães sim, cobiçam um império. Conhece a cerveja Tsingtao, senhor Governador? Está à venda em Macau e a história começa aí. No final do século XIX as forças navais alemãs tomaram conta da Baía de Jiaozhou, de um porto que conhecemos como Tsingtao, como concessão colonial. Os alemães estabeleceram-se lá e construíram a sua pequena Baviera. E criaram mesmo essa cerveja, que lhes lembrava as suas raízes. Mas, no início da Primeira Guerra Mundial, os alemães foram afastados dali pelo Exército Imperial Japonês, aliado dos europeus e americanos na Ásia. Não surpreendeu que a cervejaria alemã passasse a ser japonesa. No ano passado foi acordado que o porto voltasse à posse da China, mas a situação ainda é confusa. Desde que perderam a concessão Berlim quer ter um entreposto comercial nesta zona. Macau era um pitéu para eles degustarem com salsichas.
O Governador deu uma risada e voltou a agarrar no jornal.
– Pelos vistos este foi um debate interessante, à nossa maneira, é claro. Veja o que o deputado Leote do Rego, verdadeiro herói republicano que muito prezo, disse sobre a notícia: “Esse jornal pode ser lido por 60 milhões. Tem 22 edições por dia. É um jornal importante, não há dúvida visto que os jornais se fizeram eco dele. Eu entendi que devia chamar a atenção de S. Excelência para o jornal, não para provocar um desmentido, porque não era preciso que das cadeiras do Poder se viesse dizer que o Governo não pensava em alienar qualquer porção do território português, mas se poder afirmar aqui que o coração português se tinha amargurado, como de facto se amargurou, com a notícia que veio nesse jornal. Essa afirmativa já foi feita por um estadista espanhol por outra forma. Que Portugal é igual à colónia inglesa de maior importância. E até já se foi mais longe, dizendo-se que uma grande nação tinha aqui encravada uma feitoria britânica”.

XX

Fez uma pausa, antes de continuar:
– E o deputado Agatão Lança aproveitou para trucidar a política externa portuguesa. Veja o que ele disse, sobre a nossa delegação em Washington: “O consulado é um quarto de hotel, onde habita o nosso representante e diz que Portugal é tão pequeno que cabe no seu bolso do colete”. E mais: “Os nossos interesses na América do Norte estão exactamente melhor defendidos na época do Verão, isto é, quando o nosso Ministro em Washington vai gozar as delícias do clima em outra terra, ficando a legação entregue ao nosso ministro do Brasil”. O futuro de Macau parece bem entregue, não?
– Que lhe posso dizer, senhor Governador, que já não saiba?
– Foi por isso que fugiu de Lisboa e se refugiou aqui, tenente?
– Foi um conjunto de razões. O aroma pouco agradável do panelão onde se misturam interesses pessoais e negócios foi outro.
– Compreendo. E os chineses, o que acharão?
– Para já estão em lutas internas. Como se provou até há pouos meses aqui. Mas não deverão achar piada a uma eventual venda. Ou correm connosco daqui, ou negococeiam com quem já estão habituados a viver.
– Isso não é apenas uma mentira que contamos a nós próprios?
– Os chineses e os portugueses criaram um clima de entendimento quase perfeito aqui. Excepto os mais radicais ou nacionalistas, há um equilibrio estável. Nem nós os incomodamos nos seus negócios. Nem eles nos chateiam.
– Já agora, aproveito para lhe colocar outra questão, tenente. Acha que a morte do senhor secretário João Carlos da Silva pode estar ligada a todas estas movimentações?
– Pode estar. Afinal, muitos podem estar interessados no que se decide em Lisboa ou Santa Sancha. Ter lá um ouvido atento dá jeito. Para já coloquei os meus melhores informadores em campo.
Rodrigo Rodrigues dobrou o jornal e fitou Amoroso:
– Parece-me bem. Convém estarmos atentos. Já agora, se não se importa, tenente, gostava de saber a sua opinião sobre um assunto.

XXI

O Governador prosseguiu:
– Estou a pensar em reforçar o sentimento nacional em Macau. Foram os republicanos que recuperaram o nosso maior poeta, Luís de Camões. Passaríamos a fazer, no dia de Portugal, uma romagem à gruta de Camões. Acho que isso é importante. Vivemos tempos de decadência. Como aqueles que Antero de Quental ou Guerra Junqueiro transportaram para linhas escritas em “Casas da decadência…” ou na “Pátria”. Ou que Viana da Mota sintetizou na sinfonia “A Pátria”. Como dizia Teixeira de Pascoaes: “neste momento Portugal é um mistério, é impossível a gente calcular o que virá a ser dele”. Honrar Camões é um sentimento de revolta republicana. Sabe, em 1880, por ocasião das comemorações em louvor de Camões, o “Diário de Notícias” distribuiu gratuitamente 30 mil exemplares de “Os Lusíadas”. Era a crise que fazia com que se procurassem respostas no passado. Esta crise pode fazer com que voltemos a acreditar no futuro de Portugal.
Amoroso respondeu apenas:
– Parece-me uma excelente ideia, senhor Governador.
Foram interrompidos pela chegada de duas mulheres. Rodrigo Rodrigues levantou-se e Amoroso fez o mesmo.
– Querida, já acabou?
Ela sorriu:
– Já sim, foi excelente.
– Quero apresentar-vos o tenente Félix Amoroso. Faz parte do departamento de informações de Macau. E esta é a minha mulher, dona Rita Magarida Rodrigues, e esta uma amiga que já aqui fez, a dona Sofia Ramos Palha, esposa do senhor Palha.
Amoroso olhou para esta, que, em contrapartida, não afastou seu o olhar, percorrendo o corpo do tenente. Não teria mais de 30 anos. Menos cerca de 20 do que o seu marido. Tinha a pele clara e o cabelo e olhos castanhos. O nariz arrebitado e os ohos pequenos denotavam alguém com uma curioidade latente. O Governador disse:
– Temos de ir, não é verdade, querida?
Ela fez um gesto com a cabeça, em sinal de concordância. Sofia Palha seguiu com eles. Mas não se coibiu de olhar para trás e voltar a mirar o tenente Amoroso.

XXII

Macau engana-nos, dizia Benedito Augusto com voz matreira. Parece que o sexo está sempre visível. Mas isso não é verdade. Nem sempre o vemos. Sabemos que ele está por ali, em todo o lado, sempre à espreita. Olhou para o tenente Félix Amoroso, tentando avaliar a sua reacção. Este parecia não notar que uma vaga parte destas afirmações também estavam dirigidas a ele. Benedito sussurrou:
– Há algo maligno nestas ruas. Uma coisa estranha, uma escuridão onde se movem sombras. Almas perdidas que não se querem salvar.
Ele falava do sexo. Insinuava também que João Carlos da Silva morrera por causa dele. Por excesso. Enquanto muitos outros continuavam a viver por causa dele. O tenente contornou o copo de cerveja com os dedos, antes de dizer:
– Nunca sentes desejo, Benedito?
– Sou mais forte do que ele.
– Mas o sexo tenta-te…
– A vida é um conjunto infinito de tentações. Saber escolher as que fazemos é a forma de concretizarmos a nossa vitória sobre elas.
Falando assim Benedito escondia o passado e, depois, esclarecia o presente:
– Sim, acho que o senhor Silva foi morto por causa do sexo. Não tem a ver com qualquer conspiração política que se desenvolve nas sombras desta cidade.
– Há uma conspiração?
– Que acha, tenente? É ingénuo? Sente-se no ar, entre os fortes aromas das comidas orientais e a conservadora cozinha portuguesa. A conspiração transpira, como os picantes mais fortes. Veremos o que acontece, mas alguém está à espera de ganhar, e muito, com o que se pode vir a passar.
Benedito Augusto e Félix Amoroso bebiam cerveja e comiam arroz com galinha numa taverna chinesa na Rua da Felicidade. Antes, o tenente tinha estado a jogar fan-tan com marinheiros chineses, até que o padre chegou e o afastou do vício. Dissera-lhe:
– O vício causa-nos alucinações e, depois, conduz-nos ao abismo.
– Tenho outros vícios piores, Benedito.
– Eu sei. Conheço-os.
– Mais do que eu desejaria.
– Sabe, tenente, não é por mal. Faz parte de mim e do que faço. Saber é poder. Mas diga-me, jogar não lhe faz desenvolver um sentimento de culpa?

XXIII

– Sentir-me-ia culpado se não jogasse. Meu caro Benedito, a vida é um jogo, todos o dizem. Um jogo viciado, com cartas marcadas, porque sabemos como acaba. Estes, pelo menos, são mais indecifráveis. Nunca sabemos se ganhamos ou perdemos. Mas sonhamos que é possível vencer. E só isso que importa.
Amoroso sorriu ao dizer estas palavras.
– Elucide-me, Benedito. Porque diz que João Carlos da Silva morreu por causa do amor, ou do sexo?
– Há algo que me intriga. Sabe, o alemão, que se chama Maximilian Wolf, esteve ontem à noite com Ding Ling.
– Esteve? Não sabia.
– Imagino que não. A sua querida amiga não lhe disse nada. Mas sabe como é. As mulheres têm sempre segredos. Não sei do que falaram, mas o que sei é que o senhor Silva e o alemão estiveram lá na noite em que ele foi assassinado. Discutiram. Um pirata que conheço viu-os. Não percebeu o que diziam. O alemão saíu e não voltou. E o Silva foi ter com Bei Li, a amiga de Ding Ling.
– Como sabes?
– Uma das raparigas de Ding Ling, Xiao Yi, contou isso ao pirata que me confidenciou isso. Ele oferece-lhe muitas prendas, depois de cada assalto. Diz que, um dia, a levará dali para casarem. Ela acredita e vai-lhe contando coisas que acontecem ali. É uma fonte que não se esgota. Tudo se sabe nas noites de sexo, álcool e ópio em Macau.
– Só que tudo aponta para que o alemão possa ter assassinado o Silva. Talvez este estivesse a espiar o Governo, para saber mais coisas sobre o que pensam os portugueses ou o que sabem sobre essa ideia de Macau poder ser vendida aos alemães.
– E o alemão voltava dois dias depois à cena do crime?
– Sim. Para vir ter com Ding Ling é porque há uma conexão. Mas, é sempre arriscado, regressar ao local de um crime.
– Tenente, vá por mim. Silva tinha fome de sexo. Desde que a mulher o deixou, vivia sozinho. Ia ali, à casa dos prazeres da menina Ding. Mas seria só isso?
O tenente acariciou o queixo. Nada era claro. Mas agora precisava de saber mais. Junto de Ding Ling. E encontrar o alemão.

XXIV

– A dúvida é a nossa vida, tenente. Nem sempre é fácil distinguir os verdadeiros sentimentos dos falsos. Porque tudo se compra e se vende. Num mundo em desordem moral todos estão dispostos a vender-se. Talvez até a sua amiga.
– Nem todos, padre.
– Acredita mesmo nisso, tenente? Pense em si.
Amoroso sentiu as palavras como um murro no estômago. Bebeu mais um gole de cerveja. Sentiu vontade de sair dali e entrar na “Noite Tranquila” para falar com Ding Ling. Confrontá-la com o que Benedito lhe dissera. Por momentos sentiu-se atraiçoado pela mulher que fnalmente conseguira acalmar os seus ânimos. Com sexo e ópio, Ding Ling domara a sua fúria. Sentira-se amado. Agora parecia outra vez um náufrago. Benedito abanou a cabeça:
– Não é caso para tanto, meu caro tenente. Não é preciso manter uma relação conflituosa com a realidade. Sabe que quanto maiores são as nossas debilidades, mais vastos costumam ser os nossos planos. A menina Ding sabe os seus pontos fracos. Como é que se diz? O seu calcanhar de Aquiles. E você sabe que ela sabe isso. Por isso aumenta as expectativas. Não o faça.
Amoroso não respondeu. Os seus olhos concentravam toda a sua fúria, mas o corpo ia deixando de estar tenso. Estava a acalmar-se, o que era a melhor solução. Falaria com Sing Ling depois, quando a tempestade se concentrasse toda dentro de uma garrafa. E a pudesse atirar para o mar, para que fosse apenas aberta noutras latitudes. Foi buscar mais duas cervejas.
– Tsingtao, meu caro Benedito. Para não nos esquecermos do que é importante. Continuo a achar que esse alemão nos levará até ao assassino do secretário Silva.
– Pode ser que tenha razão, tenente. É uma questão de paciência.
Amoroso olhou para Benedito Augusto. Sentiu-se desconfortável. O padre leu-lhe o pensamento. Sabia que quanto mais um homem te conta, mais perigoso te tornas para ele. E quanto mais perigoso és menos opções tens no futuro. Tinha que evitar que Amoroso pensasse que ele poderia ser seu inimigo.

XXV

Ding Ling aproximou-se de Félix Amoroso e beijou-o ao de leve. Os olhos de ambos cruzaram-se como se estivessem a preparar-se para um duelo. Estudavam-se, como numa dança de morte. A luz estava demasiado fraca para poderem escolher claramente qual o caminho a seguir. O ruído que se ouvia era de feridas que se tinham aberto e gritavam pela cicatrização. Mas, tal como depois da chuva que cai, leve mas interminável, era preciso que o sol secasse os mal entendidos. Ambos sabiam isso. Ding Ling sentou-se de pernas cruzadas numa cadeira de bambu, como sempre fazia antes de partir para a batalha. Disse:
– A cidade flutuante é a alma de Macau. Os portugueses, outrora senhores do mar, preferem hoje o chão sólido da terra, os portos aos barcos. Talvez por isso tivessem deixado de ser aventureiros.
Ding Ling fez um sorriso enigmático, depois de dizer tudo isto. Continuou:
– Tu ainda não sabes se preferes uma coisa ou a outra, querido tenente.
Os olhos negros da chinesa eram impenetráveis. Mas, por fim, os seus lábios abriram-se um pouco e isso fez com que a sua face se tornasse mais amigável e atraente. Ela, sedutora, ergueu-se da cadeira e olhou para os seus anéis antes de dizer:
– Há homens que preferem não saber a verdade.
– Eu não sou como esses homens que conheceste. Ou que conheces.
O tenente Félix Amoroso soava ríspido, mas era como um cubo de gelo prestes a derreter-se perante o primeiro sorriso da chinesa.
– Eu necessito de saber a verdade. Que acordo fizeste com Max Wolf?
O fumo que vinha do andar inferior do “Noite Tranquila” cruzou, por escassos momentos, o espaço entre ambos. Foi o suficiente para que Ding Ling ganhasse um pouco de tempo. Serenamente, respondeu:
– Prefiro ser jade, ainda que despedaçada, do que um tijolo, ainda que intacto. A minha integridade é espiritual. Sou leal a quem tenho de o ser. Não troco isso por interesses materiais, querido tenente.
O fumo ficou mais espesso. E ameaçou tornar-se sufocante. Amoroso inspirou fundo. Sentiu raiva contra si próprio e tentou recuperar o sangue frio:
– Que te propôs ele?

XXVI

Os olhos dela fecharam-se devido ao fumo. Pegou num leque que estava em cima da mesa e abanou-o. O fumo dispersou-se e Ding Ling agarrou numa garrafa de vodka russo e virou-se para Amoroso:
– Queres?
Face ao silêncio dele, ela encheu dois copos e, depois de lhe entregar um, levou o seu aos lábios e disse, sarcasticamente:
– Sem vodka, a que é que se resume a conversa entre as pessoas?
Riu-se e bebeu mais um gole. Nunca parecia ficar embriagada. Mantinha sempre a serenidade. Era a protagonista da paz onde não havia lugar para ela. Disse:
– Há gente sem alma e sem espírito. Tudo muda mas, na verdade, nada muda no mundo. Ele propôs-me uma coisa simples: aliciar gente importante para a sua causa em troca de vantagens materiais para mim e para o Kuomitang.
– E tu, que respondeste?
– Disse que ia pensar.
– E já o fizeste?
– Já o tinha feito antes da proposta. Não lhe respondi. Nem lhe responderei. Tudo nos separa. Não pode haver falsas tréguas entre nós. E os portugueses não são para aqui chamados, como sabes. Só me interessa o futuro da China.
O respeito de Ding Ling estava reservado para os raros homens e mulheres que se poderiam cruzar com ela na sua luta e que a poderiam derrotar. Nunca pediria tréguas, nem através do sexo. Amoroso sabia, por experiência própria, isso. As paixões dos homens sempre tinham sido armas forjadas em louvor das suas necessidades. Os dela não eram assim. Quanto a paixões reais talvez tivesse tido uma, ou dias. Talvez tivesse por Li Bei. Talvez tivesse por ele. O seu amor era outro. Se o Governo soubesse o que verdadeiramente a movia, que era incendiar o mundo, já a teriam silenciado. Mas ela era a senhora que oferecia o prazer a quem o desejava. Poucos poderiam desconfiar que ela não era água. Era fogo.
Ali, numa atmosfera de aromas chineses e de fumo de cigarros e de ópio, ela observava e tomava notas mentais sobre o que via. Para futuro uso. Às vezes parecia meditativa e deixava-se manietar por uma quase melancolia. Aí recorria ao corpo de Li Bei para pacificar a sua alma. Mas se Amoroso aparecesse numa dessas noites, ele seria a paz num conflito sem tréguas entre dois corpos. Talvez houvesse outro mistério qualquer por detrás dos seus olhos guerreiros.

XXVII

Qual era o seu passado? Desde a sua infância, Ding Ling tinha um estranho talento para o silêncio. Mesmo quando ria.
– Qual é o teu plano, doce Ling?
– A verdadeira informação tem um preço, querido tenente. Mostra-me, primeiro, qual é o teu verdadeiro objectivo.
– Isso também tem um preço.
– Não é difícil saber, querido tenente. Uma mulher consegue guardar silêncio. Os homens falam como tolos na primeira taverna que encontram.
Os olhos dela brilharam intensamente, antes dele dizer:
– O que é que tenho de te dar pelo teu silêncio, se te contar os meus segredos?
– Eu não digo nada.
– Eu também não direi o que seja sobre os teus.
– Enquanto me amares guardarás os meus segredos, eu sei. E eu sei que me amas por causa dos meus segredos.
Disse tudo isso numa voz doce, como se estivesse a contar uma história idílica muito antiga. E com um sorriso que faria com que alguém, menos apaixonado, perdesse o controle. Amoroso cortou o silêncio:
– Só preciso de paz.
– Não há paz onde há quem mande e quem obedeça. Onde não há liberdade e há necessidade de a obter. Estou comprometida numa guerra.
– Então eu confiarei em ti e nós sempre nos compreenderemos. Mas porque não continuas a dizer mentiras, se não há Inferno para ti, doce Ling?
– As mentiras são necessárias, porque as pessoas são tolas. Insensatas. Tu foste soldado. Agora és espião. Que vieste fazer para Macau? Contar baixas, remendar botas, escrever cartas de amor? É isso que os soldados fazem no meio de uma trégua. Em Macau sonhavas encontrar essa paz, essa pausa na tua vida entre o inocente e ingénuo que foste antes da guerra e o que és agora. Sobreviveste e começaste a pensar no que era importante para ti. Precisavas de paz. Cansaste-te. Vieste para Macau ser fiel a ti mesmo, mas ainda não deixaste de estar cansado.
– Por amor fazem-se coisas terriveis. Sabes algo sobre isso?
Os olhos dela tentaram esconder o que lhe ia na alma. Mas isso era impossível. Depois Ding Ling disse:
– Falas como alguém que viveu tudo e não tem medo de nada.
– Sobrevivi a uma guerra.
– Eu também. E estou no meio de outra.

XXVIII

– Responde-me, doce Ling: quem poderá escutar os cantos da sereia do alemão? Tu?
– Duvidas de mim?
Ding Ling respondia como se a ferida tivesse voltado a abrir-se. E a desconfiança tivesse regressado. A voz de Amoroso soou doce:
– Não, nunca o faria. Mas preciso de saber quem ele poderá aliciar.
– Eu também quero saber isso. Mas para isso é preciso começar por perceber o pensamento dos homens que aqui em Macau já se juntaram a ele. Poderá ser por medo do poder que diz ter. Ou medo dos canhões alemães. Mas pode não ter nada a ver com isso. E ser algo que desconhecemos.
– Ele move-se numa direcção que promete caos sem fim. Macau sempre foi um porto seguro para Sun Yat-sen. Poderá continuar a sê-lo no futuro. Com os alemães, apesar das promessas, nunca saberão. Nunca terão a certeza.
– Estás a defender Portugal e não os teus interesses.
– Às vezes não há diferença. Gosto de ser fiel a mim próprio.
– É isso que eu gosto em ti.
Ding Ling saíu por momentos da pequena sala e chamou Wei Zi, uma jovem chinesa que Amoroso conhecia há algum tempo. Era uma das favoritas da senhora que mandava no “Noite Tranquila”. Era pequena, de olhos amendoados e sedutores. Falavam em cantonês e Amoroso só percebeu algumas partes da conversa. Ding Ling dizia-lhe que era necessário saber tudo o que sabia um chinês que sabiam trabalhar para Max Wolf. Wei Zi ia acenando com a cabeça e, depois, virando-se para Amoroso disse com voz sedosa, num português arrastado:
– Ele vai contar-me tudo. Usarei todos os truques. Todos os prazeres que ele conhece. E os que desconhece.
O seu olhar era de uma inocência completa, como se o que dizia fosse algo insignificante. Sexo por informação.
Wei Zi fez uma vénia e saíu. Ding Ling disse então, virando-se para Amoroso:
– Ela vai contar-lhe a história de como teve de se esconder do tio, quando era ainda muito nova. Uma história que nunca contou a ninguém. E, depois, quando acordarem de manhã, vai confessar-lhe que ele é único. Diferente de todos os homens com quem se deitou. Ele estará vulnerável. Sabes, querido tenente, todas as derrotas do corpo dos homens começam na horizontal.

Amoroso sentiu uma vertigem. Muitas vezes queria ter uma visão impoluta da vida. Embora ele próprio não tivesse praticado sempre esse princípio. Bastava já ter frequentado muitas vezes a “Noite Tranquila” apenas pelo sexo. Mas custava-lhe usar certas tácticas. Doía. Olhou para Ding Ling. Esta fez um sorriso irónico e, depois, disse:
– Meu querido tenente, julguei que já sabias isto há muito tempo. Já não há Bem nem Mal.

XXIX

8.

Antes da primeira explosão, o céu estava límpido. As estrelas pareciam imóveis. O tenente Amoroso sentia uma pequena brisa fresca nas faces enquanto caminhava junto ao Porto Interior. Mas depois, numa fracção de segundo, tudo mudou. As estrelas focaram invisíveis e o aroma a queimado foi-se intensificando. Primeiro foi só uma explosão. Depois, muitas. O céu encheu-e de cores e as luzes ardiam em todas as direcções. O fogo de artifício iluminou os céus de Macau, de uma forma cada vez mais desordenada. Não era tempo de festividades. O tenente olhou para a zona de onde partiam os foguetes. Viu um clarão de fogo rente às casas. Estava junto à taverna onde se costumava encontrar com Benedito Augusto. Ouviu gritos e viu pessoas a correr, vindas das casas. O ruído tornou-se ensurdecedor. O tenente ficou ali, durante longos minutos, imóvel, a olhar para a cor do céu, até que apenas se passou a ver um clarão muito claro ao longe. O fogo deixara de tentar atingir a casa dos deuses celestiais.
Depois caminhou até à taverna. Sentou-se, pediu uma cerveja e esperou. Benedito, apressado, trouxe a notícia. A Fábrica de Panchões de Keng Cheng, que ficava no bairro de San Kiu, explodira. Apesar das tentativas para afastar estas fábricas das zonas residenciais, e de vários acidentes que tinham causado dezenas de mortes, só agora isso começava a ser feito, com a construção da primeira fábrica na ilha da Taipa. O fogo-de-artifício fazia parte da vida de Macau e dos chineses. E as fábricas de panchões tinham sempre trabalho. Eram fonte de riqueza. O fogo-de-artifício servira, desde tempos remotos, para afugentar inimigos na guerra ou para afastar a má sorte.

XXX

O vermelho e as faúlhas sempre foram bons presságios. E o fumo criava uma boa atmosfera, contava Benedito, que depois concluiu:
– Neste caso não foi. A explosão trouxe a má sorte a Keng Cheng. E à sua amiga, Ding Ling.
– O que é que têm eles a ver um com o outro?
– Tudo, meu caro tenente. A menina Ding e o senhor Keng jogam as cartas do Kuomitang e, diz-se, do Bando Verde. A explosão pode ter sido um acidente. É comum. Mas, neste momento, também pode não ter sido, não lhe parece?
Amoroso bebeu um gole da sua cerveja. Lembrou-se por momentos de um capitão, Álvaro Esteves, que conhecera na batalha de La Lys. Que ali morrera, como muitos outros. Era um homem que fora capaz de amar esse punhado de tempo a que chamamos vida. Cada dia, para ele, era uma forma de emoção, um tremor. Falavam, nas trincheiras, da nostalgia do campo, das dúvidas e do assombro que era a vida. “Sou um romântico”, dizia, com um esgar irónico. “Converto tudo em sentimentos”, concluia, enquanto cortava um pouco de chouriço para colocar no pão. Esperavam uma barragem de artilharia alemã. “Não sei como posso fazer uma descrição do que vi no mundo e do que o mundo fez comigo. A nossa vida está feita de muito pouco. Amar, gozar, sentir e celebrar os instantes, olhar várias vezes as paisagens e os pássaros para não esquecermos, e declinar até à velhice”, dizia, com a sensação que não chegaria a velho. Não chegou. O fogo-de-artifício assustara Amoroso. Lembrara-lhe esse amanhecer, quando o fogo de armas fora tão intenso que nada poderia sobreviver. Benedito Augusto olhou para ele e sentiu-o errático e triste. Disse:
– Quando temos dúvidas, a verdade é um bom início de conversa.
– O que seria das sociedades sem o uso da mentira?
– É verdade, o que seria de nós se não jogássemos com a mentira? Só isso nos permite evitar a derrota. Mas aqui só os fracassados irão ver os deuses. É por isso que gosto desta parte do mundo. Os anjos foram seduzidos pelo Diabo e caíram na terra. Ficaram aqui, corpos de carne e osso.
– Gosto de o ouvir padre. Tem a educação que eu nunca tive.
– E o tenente a vida que eu sempre desejei.

17 Mai 2021

Os homens que abrem caminho

Tinha dezasseis anos quando o meu pai morreu. Tinha dezasseis anos e alguma esperança de que o meu mundo estivesse finalmente a melhorar. Chegado de França com dez anos e portador de uma infância basicamente infeliz, Portugal constituía-se como um reduto possível de familiaridade no qual eu conseguiria limar os aspectos mais anti-sociais da minha personalidade e, finalmente, fazer amigos. Não foi de todo assim. Fui recebido com a estranheza a que os imigrantes são normalmente votados. Trazia ainda muita França em mim. Não era só o meu mau-jeito social que tinha de desbastar, era também a minha roupagem gaulesa, os meus modos demasiado reservados, algumas palavras que teimavam em não sair em português.

O facto de ter uma consola (ainda que pré-histórica) e um zx spectrum a cassetes ajudou a levar alguns amigos a casa. Pela primeira vez na minha vida, os miúdos não me viam apenas como o nerd sem jeito para jogar à bola ou andar de skate e cujo passatempo era falar apaixonadamente de astronomia e ficção científica. Eu era, ao lado disso, um nerd com brinquedos fixes. Numa altura em que Portugal corria já sem fôlego atrás de uma Europa orgulhosa da sua abundância, ter brinquedos fixes era um atributo social nada despiciendo.

Pouco a pouco, fui sendo convidado para aniversários, matinés com banda sonora de Europe regadas a sumol de ananás e idas à praia quando o sol algarvio começava a despontar. Passei de ser tolerado a ser aceite. Para um solitário como eu, que já tinha feito contas à vida e ao futuro e que aspirava socialmente, no máximo, a não morrer virgem aos quarenta e poucos, nada mau.

Quando o meu pai morreu, eu tinha acabado de experimentar a adolescência na sua componente de excessos irresponsáveis. Era quarta-feira de cinzas e eu estava de ressaca. Tinha saído na sexta, no sábado, na segunda e na terça e em cada um desses dias eu tinha bebido mais do aquilo a que estava habituado. Pela primeira vez na minha vida, tinha contacto, ainda que muito difusamente, com o conceito de ressaca. Pela primeira vez na minha vida, percebia o significado de «dia seguinte».

O meu pai morreu em casa, nos meus braços. Demasiado repentino, demasiado cedo. Tínhamos finalmente descoberto o filão de uma linguagem comum. Já não passávamos um pelo outro no corredor como dois estranhos que se cruzam numa estação de comboios. Vê-lo partir assim, antes de ser possível recuperar as centenas de abraços que não demos e todas as ideias que não trocamos, arrancou um bom pedaço de mim. O edifício não cai apenas porque se vota parte dele ao abandono e se cola o restante com cuspo.

Há uns dias morreu-me um amigo, o Cândido. Tive a sorte de conhecer e o azar de não o ter conhecido há muito mais tempo. Era um homem maior do que o corpo que habitava (e não era nada pobre em corpo, diga-se de passagem) e morreu cedo. Teve a sageza de privilegiar sempre na sua vida a generosidade e o acto de distribuir o que fosse com as mãos abertas em flor. Era uma espécie de líder tribal que conseguia congregar à sua volta novos e velhos, família e amigos, conhecidos e desconhecidos com uma autoridade natural que decorria de uma espécie de budismo heterodoxo, súmula escolhida a dedo daquilo que a vida lhe tinha posto diante em cada momento. Actor portentoso, talvez a Comunidade do Pacheco tenha sido o texto que mais prazer lhe deu levar a cena. Não por acaso: se há uma palavra que o Cândido abraçaria com aqueles braços capazes de envolver o mundo e o levar ao peito seria essa mesmo. Comunidade. À Blau, à Marta e ao Ivo, o meu abraço possível. Até já, camarada, e quando estiveres com o meu pai diz-lhe que já faltou mais.

14 Mai 2021

Da vida como brasa

Serei o único nababo que ao acender o cachimbo, macia e estultamente, se queima?

Muito mais do que eu, o Pasolini há-de ter esmaltado com o lume algumas estrias nos dedos imprevidentes porque não há dúvida que a vida lhe esteve sempre em brasa, que o seu sopro nunca deixou esfriar o escândalo, que o vento nele era uma liga de fogo «num ventre vivo».

Lê-se este livro póstumo de Pasolini, editado pela Barco Bêbado, e percebe-se porque, sinaliza-o Claudio Magris num artigo em que os compara, Montale se irritava com ele.

Pasolini e Montale representam os dois pólos da atitude face à escrita e à vida. Um apostava numa escrita impessoal e era céptico quanto ao poder que a poesia lograsse para mudar a vida; aliás à própria vida não atribuía mais do que uns 5% de presença e convicção. Pasolini, pelo contrário, era da linhagem de Rimbaud, vivia a 120% do seu potencial e a escrita nele só tinha sentido como operador da mudança. Mesmo eivada de contradições e do vestígio das derrocadas que a existência arma, a poesia era-lhe um modo expedito de fazer respirar a acção que urde uma moral focalizada pelo dissídio, ou na razão poética e anti-burguesa.

A poesia é, para o autor de “Poesia in Forma di Rosa”, esse pleito onde a consciência acede à sua própria percepção e restaura a contigência duma voz (de um rosto) exumada pela sua inscrição política. Ademais, ele tinha uma vocação plectórica que o fazia tocar vários carrinhos: poeta, contador de histórias, dramaturgo, cineasta, romancista, cronista político, ensaísta, e, provocatoriamente, gostava de fazer de “ponto” intrometido e desarvorado no palco de todas as revoluções. Este “Who is me – Poeta delle Ceneri” (Poeta das cinzas), bem o demonstra.

Um dia, cinco anos depois do seu assasinato, Enzo Siciliano, o autor de uma das suas biografias, descobriu o rascunho deste longo “poema biobibliográfico”, e, apesar de não estar acabado, considerou que à obra incabada não faltava o ímpeto que merecia a publicação.

Tinha razão, o poema tem nervo e no seu modo digressivo, “reticulado” (um bom achado da posfaciadora, Rosa Maria Martelo, para falar do mecanismo desta escrita) faz uma espécie de panorâmica sobre a vida, com flexões desde a infância, às ilusões revolucionárias e à justificativa de passar da poesia para o cinema (o filme “Teorema” tem no poema uma boa e alentada sinopse), numa fluência em que as modulações reflexivas, as concretíssimas pinceladas campestres, a trama dos amores e das perseguições judiciais que aí se desencadearam (Pasolini foi alvo de vários processos), a discussão sobre as formas estéticas e os valores morais, se enredam numa textura verbal sempre à beira de pegar fogo. Porque este é um homem de um realismo iracundo que conversa interpelando o leitor, nesse tu cá, tu lá, que fazia dos poemas de Pasolini um pensamento coral.

Não tinha razão Montale quando acusava Pasolini de um excesso de pathos, como se erguesse um ego contra o mundo; na verdade, para o poeta rival, como prevenia Deleuze, «Escrever não é contar as lembranças, as viagens, os amores, os lutos, sonhos e fantasmas. Ninguém escreve com as suas neuroses. (…) A literatura só se afirma se descobre sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal.»

É neste sentido que o emocionado Moravia, nas exéquias de Pasolini, falou da enorme perda de um “poeta civil” – exactamente no mesmo sentido com que Pound definia o “poeta como antena da raça”. Pasolini usava a sua vida, narrava-a, como quem encarna o modo coral da sua época e do tecido social que ele sentia em perda.

Este poema de trinta páginas, que faz o balanço de «um peixe fora da rede», chega a ser brutal na análise e na auto-derrisão dos factos narrados, quer na relação com o pai, sempre ambivalente no ódio e na compaixão, quer na traição dos camaradas comunistas, aburguesados, que chegaram a matar-lhe o irmão por fanatismo de facção, quer na própria relação de artista com o seu público («A burguesia italiana, a verdadeira, a/ que compõe verdadeiramente a Itália/ experimentou um ódio profundo por aquele mundo subproletário:/ o ódio pela diversidade/ um ódio indistinto e global por mim e pelas minhas personagens./ Com o meu primeiro filme, que se intitula “Accattone”, /aquele ódio transformou-se num verdadeiro e real sintoma de racismo.», pág. 21).

Nada escapa à lucidez e ao crivo do poeta (que na altura da escrita do poema viajava pela América e era alvo de processos judiciais contra a iconoclastia de “La Ricotta”).

E, antecipando-se ao seu tempo, o poema apontava o dedo à biopolítica que corrompia pela base as alternativas existenciais e políticas e anteviu os perigos da massificação das massas («Caros americanos, não pacifistas, e não espiritualistas, /ou seja, a enorme maioria bem-pensante,/ o vosso deus é um idiota/ como qualquer cidadão médio/ que deseja com todas as suas forças e com todo o seu espírito/ ser como todos os outros (…)», pág. 22).

Expressivamente, Pasolini reclama uma alocução directa que diz preferir às volutas do estilo: «Também este caso te contei/ num estilo não poético/ para que não me lesses como se lê um poeta. / Assim decaiu a estima pela poesia, típica/ das infâncias que acreditam no eterno…» (pág. 29), mas esta é uma meia-verdade, pois como o poeta lembra na página seguinte: «Apenas o amor por aquela língua do não-eu, que se exprime/ com igual direito, igual força do eu/ dá ao poeta/ a capacidade.» (vês, Montale?). Daí que ao fim de trinta páginas deste aluvião ou ossário afinal polposo o leitor se sinta agarrado – e também por força do bom ritmo com que a tradutora, Ana Isabel Soares, soube dotar o texto.

«E hoje, dir-vos-ei, não é só preciso comprometer-se com o escrever, / mas com o viver:» é isto, nem mais.

14 Mai 2021

O leme secreto

Num dos muitos inspirados serões da rue du château em Paris – corriam os anos vinte do homónimo século – Marcel Duchamp, Jacques Prévert e Yves Tanguy inventarem o chamado “cadáver esquisito”. Cada um escreveu uma sequência de palavras, antes de enrolar a folha e passar ao outro. Resultado: um enunciado em que se perdia a noção de autor – anátema que perseguiu boa parte das teorias do século XX -, em que se parodiava a noção de controlo e em que, finalmente, se atingia uma expressão de desejado vínculo espontâneo. Poucos dias se passaram e Yves Tanguy com a ajuda de André Masson transpuseram a ideia para imagens. 
 
Seis décadas depois, conheceste em Amesterdão um artista polaco chamado Henryk Gajewsky que te convidou a participar num projecto intitulado “networking”. A ideia baseava-se numa gravação em cassete que rodava entre as moradas de vários artistas. Cada um gravava o que achava por bem – voz, leituras, sons de paisagens, misturas, ecos, palavras, narrativas curtas, devaneios, etc. – e enviava ao seguinte que constava da lista. O trajecto, sempre inacabado, viria depois a ser exposto com apoio de material visual (lembras-te de um violoncelo em que o arco tinha luz e de uma miscelânea final que faria lembrar um desengonçado concerto da Meredith Monk). 
 
No caso do cadáver esquisito, o diagnóstico situava os males da modernidade (imposição de alto controlo a partir das máquinas, da violência, da velocidade e das linguagens técnicas) e virava-se contra eles ao jeito fugidio de todas as vanguardas da época. No caso do networking de Gajewsky, a acção enfatizava bem mais a ininterrupta interacção em rede e menos os efeitos da linguagem, entendidos como arma fosse contra o que fosse. O resultado era e foi, neste último caso, uma surpresa sem carga de manifesto, mas tão-só de júbilo estético. E isto apesar de Gajewsky ser, na altura, estávamos nos derradeiros anos da guerra fria, um exilado político. 
 
Os dois casos aqui evocados ilustram dois modos de nomadismo que marcaram o século XX. Um primeiro instrumental e contestatário e um segundo essencialmente paródico (e capaz de assimilar e de truncar tudo o que as vanguardas haviam produzido até ao final dos anos setenta). A identidade do século XX como que avançou de múltiplas resistências a poderes muito claros (violentíssimos e verticais) para a era do paradoxo – que chega até aos dias de hoje – em que os poderes se diluem e avolumam, organizando-se também eles em rede. 
 
Tens razão quando afirmas que o poder é, hoje em dia, uma espécie de polifonia: um vasto conjunto de vozes que irrompe de todo o lado, não se detectando, na maior parte das vezes, de onde provém e para onde segue. É uma toada que desejaria subjugar ou imobilizar tudo o que mexe e que se impregna em todos nós, pobres mortais. Como escreveu Barthes, na sua famosa Lição (1977), é discurso de poder todo aquele “que engendra a culpa e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o ouve”. Os poderes fazem parte da teia humana. Eles são o grande parasita do maior predador do planeta, o que quer dizer que passaram a estar muito para além das galáxias políticas e das (muitas) redomas dos costumes. Até estas linhas, dirás tu a sorrir, serão um pequeno apêndice de poder. 
 
Hoje tudo se tornou em cadáver esquisito: as imagens que se atropelam na net, a informação e as suas “fake news”, o constante palimpsesto publicitário e até mesmo as contaminações pandémicas. E a arte passou a ser – sei que é o que pensas – uma recolecção em viagem que procura atravessar e radiografar estes vaivéns sem fim, tentando que as suas marcas falem por si. E o que restará, por fim, à literatura? Dirás: ser o leme secreto que há-de incitar os resíduos de todas estas vastas operações a reorganizarem-se no seu próprio silêncio.

13 Mai 2021

Terceiro acto – Cena 2

Gonçalo continua absorto na sua nuvem de fumo, há qualquer coisa de mágico na forma como o fumo se espalha pela divisão, iluminado pelo luar que vem da janela. Os pássaros nocturnos vão picando o ponto na noite silenciosa que se adivinha lá fora. Ouve-se uma descarga do autoclismo, depois água a correr do lavatório. A porta do fundo abre-se, Valério entra, volta a fechá-la atrás de si e aproxima-se da mesa. Abre o frasco de tremoços e trá-lo consigo de volta ao seu lugar.

Gonçalo
Lavaste as mãos, fofa?

Valério
Claro, meu amor.

Gonçalo levanta-se e vai buscar duas tigelas a um dos armários por cima do balcão lava-loiça. Depois pega num dos pacotes de batata frita e regressa ao seu lugar. Abre o pacote e deita algumas para uma das tigelas. Valério já mastigou alguns tremoços e usa a outra tigela para as cascas.

Gonçalo
Foram jantar e…?

Valério
E… [longa pausa] Não sei exactamente quando é que foi, mas sei que foi cedo… que me esqueci de que estava a falar com uma mulher com metade da minha idade…

Gonçalo
[interrompendo]
Uma mulher. Muito bem!

Valério
[confuso]
O quê?

Gonçalo
Por isso é que te esqueceste da idade dela… olhas para ela como uma mulher.

Valério
Hmmm… pois. [pausa] Estava completamente babado a ouvi-la… no meu babete interior [ri-se]. Ela é inteligente… tem a voz aveludada… e cheira tão bem, valha-me Deus. [pausa] Mas depois lembrei-me de como fomos ali parar… e lembrei-me da idade dela… e comecei a gaguejar. [pausa] Acho que ela notou… e até achou piada. Entrámos no carro… ela queria ir dançar. Mais um lembrete: já não danço. É da idade. Ela pediu-me para tentarmos noutro dia… beijou-me. [pausa] Foi sair com umas amigas, deixei-a à porta de um bar… depois fui para casa.

Gonçalo
E porque é que estás com o ar mais deprimido do mundo?

Valério
É uma boa pergunta…
Gonçalo
Pois é.

Os dois ficam novamente em silêncio. Gonçalo acende dois cigarros ao mesmo tempo e dá um ao amigo. Agora contemplam a nuvem de fumo e os estranhos padrões mutáveis que ela vai formando. Valério volta a olhar para o texto de Gonçalo. Hesita antes de falar.

Valério
[indicando o texto]
Talvez o sentido mais alargado de que falava, essa coisa mais impenetrável e absoluta, já lá esteja… [pausa] Eu sou demasiado analítico… por isso é que me pedes para ler os teus textos. [pausa] Está lá alguma coisa… isso é certo. E pelo simples facto de não falares dela, torna-se quase palpável… Há uma força qualquer… não sei apontá-la, confesso. Mas pressentimo-la a cada frase. E não estou a falar deste texto em particular… falo da tua escrita em geral. [pausa] Às vezes parece totalmente superficial… irónica, muitas vezes sarcástica… mas… lá está… do nada pregas-nos uma rasteira e passamos a ver tudo com outros olhos… é interessante… muitas vezes essas rasteiras vêm tarde no texto, mas mesmo assim, quando acontece, revemos tudo num ápice, desde o início, com outros olhos… até ao ponto da rasteira… e percebemos que o que quer que nos tenha feito tropeçar já lá estava desde início… e era tão óbvio… mas estava muito bem disfarçado.

Valério volta a reler algumas passagens. Gonçalo termina o seu cigarro e acende outro com a beata do quase defunto. Depois serve-se de mais vinho.

Valério
O truque é… [interrompe-se] Não há truque, eu sei… da tua parte. Para quem lê, sim, pode passar por truque… mas isso não é mau… [indica o fumo dos cigarros] É como estas nuvens de fumo… há algo de fortuito nas formas… imperfeições, às vezes parecem inacabadas, outras parecem ter sido excessivamente elaboradas… mas aconteceram assim, formaram-se assim… e é precisamente nesta aleatoriedade que reside a beleza destas nuvens de fumo, não é?

Gonçalo
É… acho que sim.

Os dois ficam durante algum tempo a admirar as nuvens de fumo que se espalham novamente pelo tecto. O luar está ainda mais intenso.

Valério
Vais continuar?

Gonçalo
O Joãozinho Neo-Nazi?

Valério
Isso era um título com tomates!

Gonçalo
Também acho… [pausa] Vais vê-la outra vez?

Valério
Pois que não sei…

Gonçalo
Acho que devias…

Valério
Eu acho que não. [pausa] Ela vai querer dançar… eu vou querer ficar-me pelo jantar… Isso aguenta-se durante uns meses… e depois? Eu quero ler… quando muito ir ao cinema… e chega. E depois? [pausa] Às tantas ela farta-se, começa a dar-se conta dos anos que nos separam… gosta muito de estar comigo, mas… e eu não digo nada, deixo andar… e ficamos assim, durante algum tempo, até os ventos da paixão amainarem… [os dois desatam à gargalhada]. Que azeiteiro…!

Gonçalo
Até Os Ventos da Paixão Amainarem… o novo romance de Valério R…

Valério
Prefiro ir dançar!

Gonçalo
E achas que ela é como tu…? [ri-se] Que vai deixar andar até os ventos da paixão amainarem…?

Valério
É bem visto… Não sei. [pausa] Mas sei que não vou esperar que chegue até aí. E já percebi que ela quer dançar e sair… e vai querer que eu conheça os amigos e as amigas… Deus me livre e guarde!

Gonçalo
Se calhar ela sabe como és e não vai insistir.

Valério
Vai, vai… não tenho a mínima dúvida.

13 Mai 2021

Apagar a Bedeteca de Lisboa

Horta Seca, Lisboa, sexta, 23 Abril

Nunca mais voltei ao Palácio do Contador-mor. De vez em quando chegavam-me notícias dos Olivais. Não me lembro de uma boa, mas a minha memória tem vontade própria. Ou tinham tornado as salas de exposição em armazém, uma necessidade imperiosa. Ou tentavam encerrá-la, incendiando a indignação do Ruben de Carvalho, na Assembleia Municipal. Ou desatavam a distribuir os originais em depósito como se aí viessem os bárbaros. Afinal, os bárbaros estavam bem instalados. Nem decidiam nem saíam de baixo. Tanto que entregaram às autoridades sem esboço de resistência livros atentatórios da moral e dos bons costumes. Uma chamada do José Marmeleira desinquietou-me: a moribunda Bedeteca cumpria por estes dias 25 anos e o Público queria saber das razões para o «desaparecimento» (https://www.publico.pt/2021/05/02/culturaipsilon/noticia/bedeteca-bela-historia-apagou-1960529).

Pensei em pegar em cartaz, newsletter, exposição ou livro e discorrer em direcção ao pôr-do-sol. Pensei em divertir-me desafiando em duelo pequenos e médios funcionários da vida e outros arrotadores de postas de pescada. Pensei em reflectir a fundo sobre a ausência de estratégia cultural em gestão autárquica feita ao sabor de modas. Andando por estes dias a lidar outros fantasmas, por causa de uma ilusão chamada futuro, desapeteceu-me. Mas a conversa perturbou-me a ponto de me fazer espreitar umas fotos e reler uns textos. Hesito em deixar aqui a introdução ao longo relatório que entreguei ou pedaços da carta de despedida, entre recordar o entusiamo dos objectivos ou a emoção do corte com projecto bastamente identitário. Por causa das pessoas, deixo a carta, quase por inteiro.

«Fiquem descansados que outras imagens me atormentaram nos momentos-chave, mas, no caso da banda desenhada, colecciono duas ou três. As primeiras são vinhetas do Tintim, na América e no Tibete. Primeiro a vertigem de atravessar entre dois arranha-céus, num álbum que andou comigo cada segundo de alguns meses da infância. Depois veio o hino à amizade de um nome que, gritado, faz tremer todo o bem-estar pequeno burguês de uma estância de férias. Vertigem e grito perturbador foi o que voltei a encontrar, muitas páginas mais tarde, na prancha de Muñoz e Sampayo, em Viet Blues. Afinal, havia vida e carne e política nos quadradinhos.

É só por isso que os projectos valem a pena: há pessoas por detrás das coisas e das obras. Há vida antes da morte. O gesto estético só me interessa se estiver ligado à vida e à carne dos dias. Não é tanto a questão desirmanada da fantasia escapista contra a força de intervenção rápida do neo-realismo. Trata-se de encontrar a força ténue do acto criativo: uma interrogação que pode explicar; um momento que pode iluminar; uma imagem que pode dar a ver; uma ficção que nos pode mudar a vida. Ou não.

Alguma coisa mudou, entretanto, no horizonte da bd nacional. Começo pelo modo como esse ser viscoso chamado opinião pública olha as histórias aos quadradinhos. Muito preconceito e confusão haverá ainda – o que, segundo os ensinamentos da História, pode ser bastante produtivo –, mas a bd está decididamente na agenda da atenção mediática. A massa crítica aumentou consideravelmente. Mais artigos, mais livros, mais gente a discutir e a fazer.

Mais formação. Há páginas de frenético entretenimento e de arriscada pesquisa pessoal. Um olhar mais próximo diria que aumentou a autoestima dos criadores. Não está ainda consolidado um sistema, mas vão surgindo obras a ritmo razoável, com importantes visões plásticas e experiências narrativas. É óbvio que está tudo por fazer. O projecto da Bedeteca é totalitário. Importa tudo e todos tocar. Até agora falhou, mas o lastro da utopia contamina algumas vontades. Vai ser possível fazer mais, por uma razão simples, se simples fossem as razões: possuímos excelentes criadores e alguns bons investigadores.

Sem vontade política era impossível ter nascido a Bedeteca de Lisboa. Devo um primeiro agradecimento a João Soares e a Tomás Vasques. [Acrescento aqui e agora a Manuela Rêgo e a Maria Calado. De todos conservo a amizade.] É injusto não enumerar em seguida cada um dos nomes que a partir deste impulso inicial ajudaram a construir. Mas porque foram, felizmente, bastantes é impossível escrever aqui os milhares de agradecimentos que desejava. No jardim do Palácio florescem verdadeiros livros de solidariedade, de inútil beleza, de utilidade permanente. Se alguma coisa aprendi terá a ver com as pessoas, humanas e individualizadas. Também com a vida e as várias mortes que ela contém. Ao Júlio, um abraço. Devo mais abraços. Alguns são de uma intimidade que fere, outros são públicos e notórios. Àqueles que tentaram e continuarão a tentar destruir, é-lhes também devida uma palavra. Obstáculos, mesmo os que têm origem na má-fé, podem (quase) sempre transformar-se em oportunidade.

E, se é verdade que meios inquinados como a função pública só oxigenam graças de ao empenho e generosidade de uns quantos (nenúfares), também não é menos verdade que se encontra a torto e a direito a mediocridade, a preguiça mental e o atavismo (pântano). A todos agradeço.

São de ordem política e pessoal as razões que me levam a tomar esta decisão. Politicamente, a equipa que me convidou saiu. Ora eu, não sendo funcionário camarário, e portanto descomprometido com uma ética de instituição, devo demitir-me também. Empenhei-me na campanha eleitoral, na exacta medida das minhas capacidades e desilusões. Achei que havia um projecto de cidade e de cultura que merecia continuação. Lisboa não concordou. A outros a tarefa de dar corpo a outras ideias. Porque esta ideia (de cultura e bd, por exemplo) é política. Pessoalmente, qualquer explicação passa pela palavra cansaço.

É isso: troco de lugar. Quase nada se altera no rumo das coisas, antes lhe dá consistência. A Bedeteca é um ponto luminoso na vida da cidade. Os novos responsáveis pela vida cultural da cidade reconhecem-no e afirmam a vontade em mantê-lo exactamente assim: luxuriante e perturbador, conservador e reflexivo.» [Risos, muitos e desbragados]

12 Mai 2021

Henry Fielding

«Diário de uma viagem (por Lisboa)» – preposição designativa – virar as páginas que «a Lisboa» é o título de um livro já com sombras no roteiro pois que se passa em 1754. As crónicas de viagem têm sempre muitos incidentes e uma narrativa que se procura factual para registo das sensações que vão dando corpo ao viajante. Mas Fielding, enceta-a por recomendação médica o que é bem diferente de uma aventura, mesmo assim, ela nunca perde o tónus de um velejar cheio de peripécias e Lisboa lá para o fim não é bem tratada pelo autor, cidade onde veio a falecer.

Quase sempre as ditirâmbicas histórias de cada um nos desinteressam na proporção que entusiasmam o narrador, os seres da primeira pessoa enfatizam acontecimentos que dão para nenhures e a menos que estejamos diante de alguém dotado para fazer da experiência pessoal um arquétipo da identidade colectiva, nos interessará então o que de si mesmo nos contar. Nós, que em versão oral já temos de escutar cada um no seu delírio pessoalíssimo, queremos que a escrita não reponha aquelas vozes mergulhadas em si mesmas pela inércia do egocentrismo. Mas a nós, pessoas singulares, acontecem-nos coisas dignas de registo e por isso o dever de participar no historial colectivo do relato dos factos. Partirei da sincronicidade.

O quarteirão dos ingleses a Campo de Ourique fora algures um local bonito e extremamente aprazível, a casa de Almeida Garrett estava aqui enquadrada mas foi destruída para urbanização habitacional de um político, menor, que estes políticos poderiam bem ter ido viver para Xabregas e outros locais. Arquitetonicamente feio, começou a destoar da paisagem que já vinha definhando com o fecho do Hospital Inglês que neste momento se encontra entaipado porque vai nascer uma coisa daquelas tão grandes que ninguém diz exactamente o que é, mas foi deste Hospital com encanto único, que algures via o cemitério de uma das suas janelas ladeado por frondosas árvores, e me parecia então nitidamente um puro jardim. Sempre passei por ele, mas por respeito à comunidade nunca entrei, mantinha-se solenemente um local de silêncio que a minha curiosidade não desejou desbravar, aqui tão perto, rasante aos meus caminhos, havia um local intacto onde só a lua me mostrava os contornos do arvoredo.

Acontece que por estranhos acasos tinha revisto nestes dias «Uma Viagem a Lisboa» a propósito de nada, apenas me veio de novo parar às mãos o singular livro, e com gosto o reli e foquei-me em algumas passagens, e quando na manhã serena de Primavera, após este revisitar, subia a rua do lado do Jardim da Estrela se me depara aberta a porta, entro então como que guiada por nuvens frescas matinais: estava no jardim! Entrara pela parte das lápides do século XIX que não davam aquela penumbra do sentimento da morte, e na rua que subia, o nome de Henry Fielding com uma seta para a esquerda, guiada assim, deparei-me então com um lindíssimo mausoléu sem arrebatamentos estéreis que a morte não precisa de coloridos vivos, de dignidade e beleza, impressionantes. A morte acontecera no dia em que nasci, o encontro, quase no aniversário de Fielding, e das rosas, sempre inglesas, um inefável perfume percorria o espaço mais bonito de toda a redondeza. Tudo estava à escala humana, desde as árvores que me pareciam frondosas vistas de fora, aos mármores, às flores, sem aquelas ameaçadoras raízes que quebram o solo no da Estrela ali ao lado. Tudo era gentil em meu redor. E mais encantos existiam; outro seu livro « Amélia». E naquela manhã, foi ali mesmo que resolvi um problema que a índole elegantíssima do meu interlocutor assim me facultou. Há dias que são como sonhos, somos guiados.

No reino da manifestação há que se ser abençoado, o mesmo que contemplado, pois que os felizes momentos são grandes demais para o nosso estreito entendimento, mas um poeta, por o ser, só o será de forma plena pela consciência de que as leis que o regem são bem diferentes das de muitos outros. As mais vivas coisas não fazem barulho. A Casa Fernando Pessoa ali ao lado é asséptica ao maravilhoso, e neste instante tive pena que ele não estivesse aqui, perto da sua primeira essência. Por momentos tudo faz sentido havendo um lado luminoso que não desiste de nós.

Parabéns, Henry Fielding.
Ele era parecido com Voltaire, talvez que estes seres se assemelhassem no seu registo temporal, e seria aqui encontrada a frase do entendimento “é preciso cultivar o nosso jardim”. – Sempre estivemos tão perto! Mas há sempre um tempo para os seres se encontrarem. E quem sabe ainda se desde sempre estamos unidos?!

12 Mai 2021

Não sermos o que fazemos

You know the nearer your destination The more you’re slip slidin’ away
Paul Simon

 

Faltam menos de dez minutos para o concerto da Lisbon Poetry Orchestra, um colectivo poético-musical que tem a caridade de me albergar como um dos seus. O camarim onde estou, partilhado com músicos e outros que como eu irão dizer poemas ficou miraculosamente vazio, com a excepção da minha presença. Percebo a vozearia nos corredores vinda dos meus colegas e amigos que naturalmente denuncia a excitação que antecede a entrada num palco. Deveria estar também assim, e estou. Mas um ínfimo instante, não mais do que um nanosegundo, foi o suficiente para me deixar assombrar por uma pergunta: “Como é que eu vim aqui parar? “

Na altura não tive tempo para responder. Agora tento, à medida que os dedos se movem pelo teclado com uma autonomia veloz que só me lembra as famosas descrições das experiências “fora do corpo”. A pergunta não se refere apenas à situação em que me encontrava: tem a ver com uma questão maior, quase existencial. Ou seja: nada da minha vida me preparou para entrar num palco e enfrentar plateias. Mas gosto e, ao que parece, não me safo mal.

Por outro lado, também escrevo, sou jornalista e tenho uma série de outras actividades em que me regozijo, muitas vezes díspares entre si.

Como é que vim aqui parar, então? Não sei, ou melhor, suspeito. Mas este frenesim quase renascentista ainda é mal compreendido pela maior parte das pessoas. Percebo: estamos habituados a rótulos que nos apaziguam, a pistas e a uma estranha lógica que me parece perversa e que poderia ser traduzida pelo postulado “diz-me o que fazes, dir-te-ei quem és”. E quando se faz muitas coisas quem aparentamos que somos é incompreensível para quase toda a gente.

Há pouco tempo um amigo contou-me uma história divertida mas que é exemplar a este respeito. Numa promoção televisiva para apresentação de um júri que iria presidir às escolhas de uma famosa gala da estação, apareciam as fotos dos ilustres jurados acompanhadas de uma legenda: fulano de tal, cantor; fulana de tal, actriz e assim por diante. Acontece que um dos elementos do júri era Vasco Graça Moura – poeta, escritor, político, tradutor, gestor, letrista…enfim, muitas coisas. O responsável da legenda, perante esta dificuldade, não hesitou e saiu-se com esta hilariante amenidade: “Vasco Graça Moura, intelectual de múltiplos talentos”.

Esta ontologia da profissão – és o que fazes, mais uma vez – é limitadora e para mim contrária à ideia de liberdade que possuo e persigo. A vida não é planeada e à medida que nela avançamos as surpresas e descobertas são ainda mais gratificantes. Já aqui escrevi uma vez que o diletantismo é seriamente subestimado. O diletante é o verdadeiro amador, o que ama aquilo em que está empenhado em amar. Que isso confunda os outros é apenas reflexo de uma cultura em que a especialização parece ser o garante de responsabilidade. Não é.

Como é que eu vim aqui parar a pouco mais de meio do caminho da minha vida, para parafrasear o padroeiro desta coluna? Não sei, amigos e esse não saber é bom. Mas sei isto: quando numa ocasião social me dirigem a pergunta da praxe, “Então o que fazes?” já consigo responder sem medo ou hesitações: faço o que gosto. E isso, amigos, é o meu humilde troféu que é só meu. E é por essa possibilidade que vim aqui parar.

12 Mai 2021

Um homem difícil

Nunca trouxe aqui a este espaço biografias, mas apenas por mero acaso. Há algumas biografias que foram importantes para mim enquanto leitor, como o caso da biografia de Heidegger, de Rüdiger Safranski, «Between Good and Evil», a biografia de Wittgenstein, de Ray Monk, «The Duty of Genius», a biografia de Fernando Pessoa, de Robert Bréchon «Um Estranho Estrangeiro» – aguardo expectante a nova biografia de Pessoa, de Richard Zenith –, a biografia de Atatürk, de Patrick Kinross «Atatürk: The Rebirth of a Nation» e a biografia anterior de Robert Mitchum, de Lee Server, «Baby, I Don’t Care». Eu mesmo escrevi uma biografia, a de Manoel de Oliveira, «A Morte Não É Prioritária». Mas a biografia que me traz aqui hoje é a de Jefferson McCormack. Uma biografia acerca do grande actor de cinema Robert Mitchum, intitulada «Um Homem Difícil». Julgo que se gosta de uma biografia por duas razões: por que gostamos da escrita e, principalmente, porque gostamos do biografado. De modo geral, é o biografado que nos leva a ler a biografia e não o biógrafo. E assim também aconteceu neste caso. Gosto muito de ver Mitchum no ecrã, desde que vi pela primeira vez aos 17 anos o filme «The Night of The Hunter».

O que esta nova biografia traz de novo não são factos, mas as reflexões do seu biógrafo, que casam na perfeição com a vida e a carreira de Mitchum. São por demais conhecidas as piadas do actor Robert Mitchum. Relembro aqui quatro, que já conhecia do livro de Server e que McCormack também cita na sua biografia. A primeira, nos anos 50:

«Ir para a escola para aprender a ser actor é como ir para escola para aprender a ser alto.» Segunda, em meados dos anos 80: «Hoje toda a gente faz jogging, é uma moda. Não tenho nada contra. Já tentei algumas vezes, mas entorno sempre o whisky.» Terceira, também nos anos 80: «Estou completamente em desacordo quando dizem que a marijuana vicia. Fumo marijuana todos os dias há 30 anos e não sou viciado.» Quarta, nos anos 60: «Se alguma vez representei nos meus filmes, não me dei conta disso.» Estas passagens, por si só, dizem muito acerca do homem que foi Mitchum. Um sentido de humor apurado e um modo de estar de desafio constante. McCormack diz-nos:

«Quando foi contactado para filmar, aos 25 anos, propuseram-lhe que fizesse uma operação ao nariz, ao que ele respondeu de pronto: “Muito obrigado, mas não tenho quaisquer problemas com o nariz, respiro perfeitamente.” E desde cedo ficou claro para a indústria do cinema que Robert Mitchum não seria nunca um produto. Ou se adaptavam a ele, ou teriam de o deixar ir embora. Adaptaram-se. Pelo menos, adaptaram-se o que puderam.»

Outro dos relatos que mostra bem a personalidade de Mitchum prende-se com uma entrevista que ele dá a uma jornalista inglesa quando estava a filmar com Jane Russell «His Kind of Woman» (1951). A jornalista pergunta-lhe se ele gosta do filme e ele diz que não, que gosta de estar a filmá-lo, com Jane Russel, mas que não gosta do filme. A jornalista insiste, pergunta-lhe por que diz isso, ao que ele responde: porque é um péssimo filme. Devido a este modo de ser, foi sempre «poupado» às actividades de promoção dos filmes, pois acabava sempre por fazer do contrário do que seria esperado.

No grande ecrã ficou conhecido como a alma do «film noir». Como actor, tinha a posição diametralmente oposta à da famosa escola «actor studio». Por isso dizia que nunca representava. Aquilo que ele fazia nos filmes era reagir à situação em que estava. Como aparece na biografia de McCormack: «Como posso fingir representar outra pessoa, se não sei quem sou. Corro o risco de me representar a mim mesmo, sem o saber. Por isso mantenho as coisas simples em frente à câmara: ajo consoante o que me parece adequado à situação.»

Este modo de se expressar, fazia com que Robert Mitchum se destacasse de todos os seus colegas. Havia sempre um fundo filosófico nas suas palavras. McCormack escreve: «Mitchum tinha a capacidade de dizer a verdade através de paradoxos e ironia. Era quase sempre assim que se expressava, pelo menos em público. Nunca mentia, mas não era capaz de dizer as coisas de modo directo. De modo directo, só conseguia dizer “sim” e “não”. Acerca do “talvez”, dizia que era o único modo que conhecia de poder mentir directamente sem que o levassem a mal.»

Robert Mitchum era um leitor compulsivo, principalmente poesia. Embora também lesse regularmente romances. Não era a estrela de cinema a que estamos habituados. Era tímido, preferia ficar em casa a ler ou a ouvir música. McCormack escreve: «A noite, para Mitchum, mais do que ser uma parte do dia, mais do que tempo, era um local. Um local onde ele se sentava a ler, a beber, a pensar.» Além de assistirem a alguns dos filmes de Mitchum, aconselho-vos a lerem a biografia de McCormack.

11 Mai 2021

Algodão doce

Duas da manhã. Sete da manhã ou onze da noite. Naqueles dias fora do meu bairro, a janela de A. M. E fumar cigarros clandestinos quando não está ou dorme. Suponho que podia perder-me aqui, nesta janela. Com a casa desconhecida e invisível para trás. Como a olhar um único e gigantesco néon de Ginza, da janela de um hotel central.

Um olhar sem obstáculo sobre a transparência do que sinto como a da garrafa de Sun no parapeito. Podia perder-me aqui para sempre na intermitência daqueles anúncios imparáveis e que se sucedem circulares, á espera da figura preferida ou do caracter misterioso na paisagem urbana nocturna, com o céu acima e tudo o resto, dezenas de andares abaixo. Aqui. Olho a janela ampla e panorâmica como se sobre todo um ecrã de vida. Estranha e não vivida o que é bom. No outro ano aqueles anúncios não estavam lá. Blade Runner, disse. Penso no filme “Lost in translation”, não tanto na história mas simplesmente no título. Sempre. A propósito de todas as palavras ditas. Ouvidas. Por dizer.

Das luzes significantes. Vistas ouvidas e mentidas. Sempre em parte perdidas e sempre parte de uma tradução. Fumo escondida por detrás ou para lá da cortina espessa e penso aqui para sempre. Um pensamento sedutor e tentador, esse. De nos perdermos de tudo. Um dia. Só porque tudo se solta. E para sempre, aqui ou algures em movimento slow motion. Olho a paisagem urbana e já não é. Agora outra e a mesma estranha irreverência de se apresentar como sempre, como nunca. Para sempre. E, claro, uma coisa para nunca. Tudo dorme em volta como no meio da escuridão do campo. Janelas a perder a conta com luzes esparsas, desconhecidas, intermitentes no horário. Sobre a mesa, agora uma outra garrafa e a mesma sensação de sempre iguala a nunca. Podia perder-me aqui. Ali. Olho a janela e hoje já não é. Nem Tóquio, nem uma imagem de “Blade Runner”. Mas as margens inalcançáveis da tradução, ainda e sempre que as palavras caírem. Como fotogramas soltos do fio narrativo. Cansa-me a verdade e a mentira.

Escrevo para distrair a insónia possessiva tentando não invejar pensamentos alheios. E num cansaço demasiado para querer verdades nas palavras que se soltam simplesmente a tentar ocupar este espaço imenso em que me sinto isolada. Espaço a mais sem mim. Perdida numa tradução demasiado livre. E com terra queimada pelo meio.

Penso. Aquelas pessoas que nascem pequenas e ficam. E sentem o mundo de pessoas e objectos, do tamanho errado durante uma vida inteira, sem chegar a abarcar o que do mundo se desenvolve acima do seu nariz. Uma permanente desadequação. Jovens tribos urbanas como as nascidas e sempre em transformação no bairro Harajuku em Tóquio, como bandos de pássaros coloridos, de Lolitas doces extra doces ou góticas e que não se relacionam fora da sua espécie. Um microcosmos protector e defendido do real. Sabe-se lá com que olhos espreitam para fora do grupo, do bairro. Expressão de liberdade ou diferença ou identificação na pertença a uma tribo carinhosamente escolhida a partir de heróis de fantasia. Alienação ou fuga aos próprios e desconhecidos personagens privados. Rejeição de si ou do mundo em geral?

Entro. Aliso a saia em tule rosa e sento-me de pernas firmemente juntas, sapatos de plataforma, fluorescentes ajuizados e encostados e costas direitas. Poiso a bolsa de pelúcia de urso polar anão e lilás sobre os joelhos e faço o ar de menina discretamente rebelde mas seráfica acima do pescoço. Tantas selfies se não fosse a entrevista eminente. A enervar ligeiramente, as vísceras secretamente num burburinho estranho sem pássaros e as vozes na cabeça a repetir o discurso ensaiado para enfrentar perguntas invisíveis. O currículo sobre a mesa e o olhar informe do ser ali ao fundo como se numa galáxia distante a olhar por cima dos telescópios. Apetece-me um chocolate, um tweet, desespero por uma selfie, hashtag: ursinhonoantrododragão, hashtag: primeiroemprego, hashtag nãoseisequeroisto hashtag vidareal. Hashtag: nãopossoiragoraaoTwitter. Hashtag: precisodasminhasamigas. Hashtag: entrevistaaoespelho. A minha cabeça não para de tweetar em hashtags. De dentro da bolsa o zumbido discreto das notificações, porque a vida não pára, idêntico ao que vem do lado de lá da secretária. Também o indivíduo ali à frente, sentado de costas voltadas, nas suas funções de recrutamento a tweetar mentalmente: hashtag estecromosaídodaestratosfera. Não posso deixar de fazer uma selfie quando sair. Mas talvez consiga apanhá-lo a ele também, distraído. Embora sem chapéu, podia parecer um quadro à Magritte.

E finalmente, sempre de costas voltadas, contudo, o indivíduo levanta um braço e diz: próximo. Avanço nas plataformas de borracha com cheiro a pastilha elástica e espero que se volte mas ele continua. Uma vista de olhos aos papéis, analisados rapidamente, e só depois, afinal, me encara, mas é através do espelho à sua frente que me olha, fazendo um movimento complicado do braço a indicar que devo sentar-me mesmo assim. Tinha algumas perguntas padrão, pouco empenhadas e talvez já alguém para o lugar. Fico a enfrentar-nos a ambos no espelho. Melhor assim, talvez. Cada um no seu personagem mediado pela superfície plana. A tornar mais virtual e seguro o que de real na verdade nada tinha.

11 Mai 2021

V Centenário da morte de Fernão de Magalhães

Descobrira o Estreito para passar do Atlântico ao Pacífico e a 26 de Novembro de 1520, já nesse oceano com três naus iniciou a travessia, crendo ser a sua imensidão dois terços menor e daí, a fome e escorbuto a dizimar a tripulação. Em 16 de Março de 1521 avistou o Arquipélago Poente, chamando-o de São Lázaro devido à rápida convalescença dos homens, de novo com acesso a boa água doce, vegetais frescos e fruta, trocadas por bugigangas à passagem por as inúmeras ilhas. Quando aportou em Mazaguá (Massava) a 28 de Março, o intérprete Henrique no seu malaio compreendeu a fala local e estabeleceu entendimento e como prova de amizade, à delegação foi oferecido um lauto banquete. Quebravam assim o forçado jejum de Quaresma, apesar de ser Sexta-feira Santa. Ao inteirarem-se estar próximo do destino, a saúde da tripulação ressuscitou, tal como o ânimo de Fernão de Magalhães ao entender encontrar-se a Norte das Molucas.

No Domingo de Páscoa saía da nau pela primeira vez o capitão-mor para assistir à missa realizada na praia, onde se colocou o altar. Em cortejo triunfal, à frente com pompa iam os porta-bandeiras em trajes cerimoniais, seguindo o imponente Fernão de Magalhães envergando uma reluzente armadura. Realizadas as celebrações, imitando os indígenas os gestos, logo ali todos se converteram. Tamanha adesão entusiasmou-o a procurar novos fiéis e territórios para a coroa espanhola e daí chegar à ilha de Cebu, maior e de mais importância, a 7 de Abril. Para aportarem foi exigido o pagamento da taxa, mas um mercador muçulmano ali a negociar, conhecendo a fama guerreira dos europeus, desaconselhou o Rei Humabon a afrontá-los, pois sofreria terríveis consequências. Dez dias depois, numa grandiosa cerimónia converteu-se o rei e o povo. Embriagado com os sucessos e para provar a sua invencibilidade, Magalhães assumiu o comando de uma acção a obrigar o vizinho regedor de Mactán Lapulapu a pagar tributo ao Rei de Cebu, já súbdito de Carlos V. Prescindindo de ajudas, com apenas sessenta homens em três batéis atravessou o pequeno estreito e foi atacar os milhares de nativos que na praia os esperavam com dardos e lanças de bambu.

Estava maré baixa e uma barreira de pedras impossibilitou a aproximação dos botes à costa, ficando sem distância suficiente para a varrer à chegada com tiros de arcabuz e bestas. Assim desembarcaram para a água quarenta e nove soldados com pesadas armaduras e no penoso caminhar para terra logo sobre eles caiu uma multidão com pedras, setas e lanças, irada ao ver as suas cabanas incendiar. Rodeados e com dificuldades de manobra, apesar de matarem alguns com lança e à espada, muitos iam conseguindo feri-los pelos pontos vulneráveis das armaduras. Vendo a batalha perdida, ordenou o embarque e para travar a perseguição, deixou-se para trás com mais seis que o vieram socorrer e na água combateram, possibilitando aos outros escapar e recolherem aos batéis. Reconhecido o chefe inimigo, sobre ele viraram todas as atenções, o que permitiu a fuga aos já feridos companheiros, sem possibilidade de ajudar o capitão-mor. Sobre Magalhães caíram com grande ferocidade os guerreiros e após lhe acertarem com uma seta no rosto, colérico este trespassou a lança no corpo do atirador, mas ela ficou presa e sem conseguir desembainhar a espada, por ter o braço direito ferido, ficou desarmado. Derrubaram-no e caindo de bruços, sem se levantar devido ao peso das vestes e ferimentos, ficou indefeso à mercê dos nativos.

A 27 de Abril de 1521, sacrificando a própria vida para proteger e salvar os companheiros, morria Fernão de Magalhães na ilha de Mactán, Arquipélago de S. Lázaro (hoje Filipinas). Numa luta não sua e sem interesse para a importantíssima viagem que realizava, com ele morreram oito homens, sendo-lhe cortada a cabeça e colocada sobre uma lança como troféu.

Perdida a áurea de invencibilidade, o desânimo instalou-se na tripulação. Não se ponderou fazer uma expedição de retaliação e apenas se procurou conseguir, em troca de sinetas, contas de vidro e veludos, resgatar o cadáver de Fernão de Magalhães, o que até isso foi recusado.

Desastre total

Desapareceu , lamentou o fidalgo aventureiro italiano de Vicenza António Pigafetta, autor de uma das crónicas da viagem e que em Mactán saíra ferido por uma seta envenenada.

Sem capitão-mor, de volta a Cebu foram então os cargos redistribuídos, mantendo-se Serrano capitão da Concepción, agora com a chefia da armada, voltando Barbosa a capitão da Trinidad e a nau Victoria capitaneada por o português Luís Afonso de Góis.

Duarte Barbosa logo para si tomou o escravo Henrique, que segundo o testamento de Fernão de Magalhães, por sua morte ficaria livre. Mal tratado, para se libertar Henrique urdiu um plano com o Rei de Cebu, desacreditado da invencibilidade dos intrusos e também descontente com o comportamento dos europeus, que piorou com a falta de Magalhães. A ideia era usar o manjar preparado para receber o capitão-mor após a vitória e convidar os espanhóis para um banquete, a homenagear o defunto e entregar-lhes os presentes.

A 1 de Maio de 1521, em Cebu comparecendo 26 da tripulação, confiantes e sem temor saltaram para terra, seguindo a confraternizar. O convite para alguns entrarem na zona de vegetação mais densa e uma estranha movimentação observada por Gómez de Espinosa, levou-o a avisar João Lopes de Carvalho. Ambos se esgueiram para o batel e foram para a nau capitã, ficando aí alerta. Mal subiram a bordo, logo se ouviu grande gritaria em terra e confirmada a emboscada, Carvalho levantou a âncora, aproximando a nau da costa à distância do tiro das bombardas. Na praia apareceu conduzido Serrano, atado e ferido, suplicando que parasse o fogo para lhe pouparem a vida e questionado sobre os outros, referiu terem sido todos degolados, excepto Henrique, que se juntara aos ilhéus, segundo narrou Pigafetta, que da nau assistiu. Sem dar ouvidos, Carvalho mandou içar as velas e deixou o seu compadre capitão Juan Rodriguez Serrano em terra. Assim, nesse dia 1 de Maio de 1521, em Cebu morreram mais de vinte tripulantes, entre os quais Duarte Barbosa, cunhado de Magalhães.

A 6 de Maio de 1521 chegava a Sevilha a nau San Antonio, que durante a travessia do Estreito a 8 de Novembro 1520 desertou da armada, trazendo preso o capitão Álvaro da Mesquita, e sob comando de Jerónimo Guerra retornou ao porto das Muelas com 55 tripulantes; já o patagão que vinha nessa nau não resistiu à viagem.

Não muito longe do Arquipélago de S. Lázaro, na China por essa altura o Imperador Zhengde falecia a 20 de Abril de 1521, o Embaixador Tomé Pires saía de Beijing e na costa ocidental do Pacífico, a 27 de Junho os mercadores portugueses enfrentavam numa batalha naval a armada imperial chinesa. Jorge Álvares, o primeiro português que em 1513 viera de barco à China, ficou ferido e onze dias depois falecia a 8 de Julho de 1521 na ilha de Lin Tin, no delta do Rio das Pérolas.

10 Mai 2021

De Pequim para a alma americana

O primeiro filme que vi da realizadora chinesa Chloé Zhao foi o “The Rider”. Um conto no faroeste contemporâneo que segue a vida de um cowboy num momento de crise. O clássico percurso do herói em busca de significado é introduzido com uma poderosa abordagem emocional e pontua instantes de reflexão com outros de grande empatia.

Uma personagem que nos leva para dentro interpretada por um ator amador que é, ele mesmo, um verdadeiro competidor de rodeios. A dimensão psicológica e intimista do filme permite-nos palmilhar várias questões sobre género e identidade no coração da América. Agora, mais conhecida por Nomadland e os seus inúmeros Óscares, Chloé apresenta-nos uma história com uma estrutura menos clássica mas que recorre a esta técnica de recrutar atores que são a personagem que interpretam. Não é o caso da personagem principal, mas é o caso da maior parte das personagens que surgem no filme. Contudo, a experimentação de Chloé não acaba na técnica de filmagem e de construção das personagens. Sabendo que é pequinense, surge uma questão muito imediata “mas como é possível, uma chinesa descrever com tanta precisão problemáticas da identidade colectiva americana?”. Naturalmente, Chloé teve formação no estrangeiro e viveu em Los Angeles e depois Nova Iorque. Não se propôs, certamente, a explorar estes temas sem neles imergir. O seu trabalho, contudo, deixa bem claro como uma visão externa é tantas vezes mais lúcida do que uma visão interna. Esse distanciamento, tão útil para se abordar diversos tópicos com perspetiva diferentes, sofre, em simultâneo, de uma total ausência de enquadramento. Esse desenquadramento pode ser visível, por exemplo, na sua falta de agendas. Por vezes, em alturas em que os cunhos ideológicos se enfatizam em tudo o que é manifestação pública, é também bom lembrar que a arte não tem que cumprir essa missão. A sua missão não é conduzir pensamento, é antes expor-lhe desafios e envolver os sentidos, mais do que a razão. A jornada de uma mulher pelo luto coincide com as notáveis paisagens do Oeste americano. Se, por um lado, podemos ver a personagem a recusar-se a viver de uma forma que lhe seria mais confortável, por outro, há um sentido de auto-exclusão social intencionado, reforçado e assumido ao longo da breve narrativa. Ela é, como tantos outros nómadas que fazem daquele um estilo de vida, uma refugiada do mercado laboral. Com essa escolha vem a precariedade. Estas são pessoas que se apercebem que existir é suficiente até porque, na maioria dos casos, elas padecem de um incurável sentimento de perda. Não penso que o filme queira, em algum momento, desculpabilizar o estado do mercado laboral. A crueza da exposição sente-se em forma de tensão em todo o filme. Esta desenvolve-se, não em torno do conflito entre personagens mas antes do conflito da personagem principal com todo o seu ambiente. Ela não lhe é cúmplice. Fern não precisa de uma companhia que a volte a tornar estática. O movimento é agora a única realidade possível. Não há glamour em defecar numa carrinha mas há glamour em viver à margem das regras. Viajar como se o que interessasse não fosse o destino mas antes a forma como se viaja – dentro de um permanente pôr-do-sol do deserto. A luz que acaba mas não sem antes projetar um tipo de deslumbramento que qualquer um de nós pode apreciar com todo o luxo dos próprios sentidos.

7 Mai 2021

Pessoa, Gandhi e as colónias

Há uma frase manuscrita de Fernando Pessoa sobre a figura de Ghandi, já parcialmente publicado por Richard Zenith na fotobiografia Fernando Pessoa (2008). Assim reza: “O Mahatma Ghandi e a única figura verdadeiramente grande que há hoje no mundo. E é isso por que, em certo modo, não pertence ao mundo e o nega”. O interesse pela figura de Gandhi pode ter sua origem no fato de a estada do independentista na Africa do Sul, entre os anos de 1893-1914, ter parcialmente coincidido com a permanência de Pessoa nessa colónia britânica. No entanto, no caso específico deste esboço o foco parece ser a tão indiana renúncia de si e esvaziamento do sujeito. Pessoa insinua que a tendência mística e acética é que está na base da luta pacifista pela emancipação do Mahatma.

Num imaginário encontro com Ghandi, Pessoa não lhe reprocharia a luta anti-colonial, mas talvez também não a elogiasse. Interessa-lhe a sua qualidade de herói dessubjetivado, vazio de si mesmo. E para Portugal, para o fim que lhe imaginava e atribuía, não só sabemos que queria heróis dessubjetivados, mas também as colónias não eram curiosamente necessárias. Num dos muitos projetos pessoanos de escrita (não apenas poemas e autores, mas ensaios, filosofias e sistemas), há um chamado Atlantismo, de 1915. Ficaram apenas os títulos de Secções do Manifesto, texto pouco desenvolvido e meramente tópico, ficamos com uma perspetiva abrangente das dimensões deste estranho “ismo”, contemporâneo de Orpheu. Alguns desses tópicos falam em “A conceção atlântica da vida” ou em “imperialismo espiritual”, um velho projeto de Pessoa que depois animará a Mensagem. outros mais duvidosos, sobretudo tendo em vista o contexto da Primeira Guerra, são “Germanofilia de alma, anglofilia de corpo”. O mais interessante a este propósito diz: “Inutilidade e malefício das nossas colónias”.

Este último tópico significa, antes de mais, a entrada em cena de Pessoa numa discussão da Primeira República e de antes, com antecedentes no pensamento de Oliveira Martins, e de outros intelectuais portugueses de Oitocentos, que advogaram a venda de Macau e sobretudo de Timor para com tal dinheiro investir em África, centro e foco do império a partir do final do século XIX. Em Pessoa estamos ainda muito longe da sensibilidade para a descolonização, historicamente trazida pela Segunda Guerra Mundial; mais perto estamos da conjuntura do tratado de Berlim de 1884 de redefinição e reforço do colonialismo em África do que com um real pós-colonialismo, para Portugal ainda muito distante.

Há que pensar que o império está habituado à consideração da sua própria fragilidade através dos intelectuais portugueses, sobretudo deste a Questão Africana e do Ultimatum até 1975, no que à cultura contemporânea interessa. É por esta razão que o projeto de um imperialismo da cultura, do espírito e da literatura para o qual o Atlântico pode ser o melhor símbolo (anunciando as nossas lusofonias de hoje) é uma imagem que simultaneamente esconde e revela a hipótese de um Portugal sem colónias. Esconde-o porque é uma forma de dar sentido a um império frágil e ao mesmo tempo prova a sua fragilidade porque dela deriva, revelando-a. Afinal, como as cartas de amor, todos os imperialismos são ridículos, e se todos são ridículos, antes se prefira o que dá mais gozo, que é o imperialismo de poetas:

“É um imperialismo de gramáticos? O imperialismo dos gramáticos dura mais e vai mais fundo que o dos generais. É um imperialismo de poetas? Seja. A frase não é ridícula senão para quem defende o antigo imperialismo ridículo. O imperialismo de poetas dura e domina; o dos políticos passa e esquece, se o não lembrar o poeta que os cante.

Dizemos Cromwell fez, Milton diz. E nos termos longínquos em que não houver já Inglaterra (porque a Inglaterra não tem a propriedade de ser eterna), não será Cromwell lembrado senão porque Milton a ele se refere num soneto. Com o fim da Inglaterra terá fim o que se pode supor a obra de Cromwell, ou aquela em que colaborou. Mas a poesia de Milton só terá fim quando o tiver o homem sobre a terra, ou a civilização inteira, e, mesmo então, quem sabe se terá fim.”

Pessoa sabia que o verdadeiro imperialismo era pôr os outros a ler os nossos poetas, enviar as falanges anterianas para invadir Cádiz ou talvez uma outra Ceuta qualquer. Cromwell só existe para que possa existir Milton, Vasco da Gama só existe para que possa haver Camões. E esse, imperialismo, em última instância, como queria Agostinho da Silva, é sem império e sem imperador. Que os países, seus mandos e impérios, possam no futuro ser vagos e coloridos símbolos, já sem referentes, de atitudes mentais, filosóficas e literárias é coisa que aguardamos com expectativa, porque há de ser o mais ridículo e útil dos gozos de mandar.

7 Mai 2021

Terceiro Acto – Cena 1

Gonçalo escreve à máquina, sentado na mesinha em frente à janela. Tem uma garrafa de vinho aberta e o candeeiro a petróleo aceso. A janela aberta por onde entra o luar e uma brisa nocturna. Gonçalo escreve com intensidade, a percussão das teclas é impiedosa. Batem à porta e Gonçalo assusta-se, como se acordasse de um pesadelo. Abre a porta a medo. É Valério, sorridente. Traz um saco de compras cheio e uma garrafa de vinho na mão. Ele avança para a mesinha, pousa a garrafa de vinho e tira mais quatro garrafas iguais do saco, para além de três pacotes de frutos secos, dois de batatas fritas e um grande frasco de tremoços. Valério repara no montinho de folhas dactilografadas, ao lado da máquina, e passa-lhes o polegar, avaliando a quantidade de texto produzida. Olha para Gonçalo e aquiesce com um trejeito de boca. Aponta para o montinho, como se perguntasse: “posso?” e Gonçalo aquiesce, também com um trejeitozito, como se respondesse “por quem sois!” Valério fecha a janela, pega no montinho e trá-lo até à sua cadeira de madeira onde se senta a ler. Gonçalo vai até à lareira, pega em duas pinhas e pousa-as lá dentro. Depois cobre-as com bastante caruma e acende-as. O lume leva o seu tempo a aparecer. Depois põe dois toros por cima do lume, não deixando que este se apague. Quando lhe parece que tudo corre pelo melhor, volta à mesa para abrir uma das garrafas de vinho. Pega no saca-rolhas…

Valério
[sem olhar para Gonçalo]
Abre já duas.

Gonçalo ri-se discretamente e faz o que o amigo lhe recomendou. Serve dois copos e trá-los para as cadeiras. Dá um dos copos a Valério e pousa a garrafa no chão. Olha para Valério.

Valério
[sem olhar para Gonçalo]
Não me pressiones. [agora fita Gonçalo] Se vais ficar a olhar para mim, paro já!

Gonçalo
Sim, senhor!

Gonçalo levanta-se a vai espreitar a lareira. Os toros ardem bem, nada a apontar. Gonçalo finge que mexe neles com a tenaz, aproveitando para olhar para Valério e adivinhar as reacções do amigo à leitura.

Valério
Pára!

Gonçalo volta aos seus toros ardentes, sem conseguir disfarçar uma gargalhada.

Valério
Ri-te, ri-te…!

Gonçalo vem sentar-se à mesa, olhando pela janela enquanto termina o vinho que tem no copo. Serve-se outra vez e tira a folha que está na máquina e põe-se a ler o que está escrito. Pega num pequeno lápis e vai tirando algumas notas. Quando acaba, vai até à porta do fundo, abre-a e sai de cena, fechando a porta atrás de si.
O tempo passa. Valério termina de ler e pousa as folhas na cadeira de Gonçalo. Serve-se de mais vinho da garrafa que está no chão e olha pensativo pela janela.
Gonçalo volta a entrar e vem sentar-se ao lado do amigo. Os dois ficam em silêncio durante bastante tempo.

Valério
[olhando a janela]
O Joãozinho Neo-Nazi…

Gonçalo
Hmm… [pausa] E…?

Valério
[medindo as palavras]
Estás no bom caminho… às vezes.

Gonçalo
[franzindo o sobrolho]
Às vezes…?

Valério
Calma… deixa-me pensar! [pausa] É interessante… mas fica sempre a sensação de que não acreditas no que estás a escrever e, às tantas, sabe-se lá porquê, boicotas-te… e boicotas a história. [pausa] Mas depois voltas a agarrar-nos… e isso até pode ser interessante… assim como está, digo eu… de boicote, recuperação… novo boicote, nova recuperação… é intrigante, não haja dúvida. As personagens são sólidas, apesar da pouca informação que nos dás delas… e isso é bom. Há mistério… há sensação de local… de sítio… embora estejam numa sala estéril… e isso também é bom. Mas quando estás a chegar às profundezas… a um significado mais alargado… a qualquer coisa mais impenetrável, mas mais absoluta, parece que tens medo… do escuro ou da falta de ar, não faço ideia… e voltas à superfície para nos pregares outra rasteira.

Gonçalo
O que é que queres dizer com…

Valério
[interrompendo]
Não sei! [pausa] Deixa-me pensar mais um bocadinho…

Gonçalo
Não se safa com uma segunda leitura?

Valério
[estranhando a pergunta]
Não se trata de safar. [pausa] É bom que na segunda leitura se mantenham as dúvidas e o mistério…

Valério saca do seu maço e oferece um cigarro a Gonçalo. Tira um para si e acende o isqueiro. Os dois ficam mais algum tempo em silêncio, saboreando os seus pregos fumantes.

Valério
[comprometido]
Fui sair com a minha aluna…
Gonçalo
[travesso]
É preciso chamar a polícia?

Valério
[sorrindo]
Para já, não.

Gonçalo
E como é que isso aconteceu?

Valério
[leva o seu tempo]
Foi…estranho.

Gonçalo
Estranho?

Valério
Sim… [pausa] Foi ela que me abordou… perguntou-me se eu a queria levar a jantar.

Gonçalo
Na faculdade?

Valério
Sim… à saída de uma aula.

Gonçalo
[sorrindo]
E tu, borraste-te todo nas calças…

Valério
Não… foi bastante natural, por acaso.

Gonçalo
Natural?

Valério
[rindo]
Sim, natural é uma palavra horrível… mas não me ocorre nenhuma melhor.

Gonçalo
Eu percebi… [pausa] E foram jantar?

Valério
Fomos, pois.

Valério levanta-se e vai até à porta do fundo, saindo de cena. Gonçalo fica sozinho, contemplando a nuvem de fumo que se espalha pelo tecto da sua cabana nas montanhas.

6 Mai 2021

Conjecturar vidas nos retratos

Um retrato trabalha em três frentes. Por um lado, investe na contenção da sequência temporal. Por outro lado, empresta vida a uma figura que se realizará através de um contorno inanimado. Por fim, propõe, no âmbito dessa construção (ou desse contratempo formal), a medida irreal que é dada, na dimensão linguística, à palavra eternidade. Esta tensão entre a duração segmentada e a promessa de abolição do tempo permite avaliar a sinopse de uma vida, como se um simples instantâneo pudesse decompor todas as intensidades e olhares que a comprimem.

Contar uma vida através dum retrato é uma caminhada entre a imagem e o poder da conjectura. Peirce reviu no conceito de “abduction” todo o imenso poder da conjectura. Para o autor, a conjectura é uma actividade humana da “thirdness”, o que significa que antecipa, prevê, constrói e projecta para o futuro a partir do que lhe é dado (e é, também, uma categoria que, como o autor sublinhou, está ligada ao “interpretante”, ou seja, encontra-se directamente conectada com o processar ilimitado das imagens que constituem, em cada instante, a encenação da consciência).

O poder de conjecturar não é apenas um poder de antecipação, ele é igualmente um poder de natureza poética, pois está ao seu alcance conceber o que antes nunca foi criado. Este lado criativo da ‘poiesis’ assegura a projecção de figurações originais e modelares sem tradução nas palavras. Trata-se de um misto de intuição e de previsão de algo que parece dado ou até óbvio. A conjectura é, pois, uma arte alheia à sintaxe conceptual e, por isso mesmo, capaz de trabalhar com hipóteses mais idealizadas do que racionalizadas. 
 
Todo este poder de organização, ao mesmo tempo sensorial, torna-se, a certa altura, metonímico, o que quer dizer que, devido aos efeitos da contiguidade, acabarão por criar-se na mente do observador diversas séries de realidades que decorrem das primeiras instruções geradas pela conjectura. Ou seja: o olhar coloca em movimento um leque vasto de informações que depois se aprofundam e detalham.

Este aprofundar conduz ao traçar de uma narrativa (mais circular do que linear) que, através de um processo poético-alegórico, nos acaba por sugerir algumas das intensidades chave da vida do retratado. Tal como Fernando Gil escreveu, “a conjectura constitui uma prática de liberdade. Ao fabricá-la o espírito manifesta-se – cito agora um filósofo, Fichte – como agilidade pura. A mente desarrima-se da tradição que a condiciona e enforma, para a sobrevoar e jogar a desarticulá-la”. Por outras palavras ainda: a conjectura “representa um momento breve de felicidade, entre o inconforto da situação cognitiva que a ela conduziu e a certeza antecipada que a sua comprovação evidenciará incompletudes”. Seja como for, a ausência de conjectura atrai desenganos, senão mesmo patologias.
 
Um exemplo curioso: em A carta roubada de Edgar A. Poe, o investigador policial Dupin procura no hotel onde habita o ministro D um importante documento desaparecido. Procura em cada milímetro sem se preocupar em estabelecer uma ordem prévia, como se procedesse a um inventário e não a uma selecção (“Vasculhámos o edifício inteiro, quarto por quarto, dedicando as noites de toda uma semana a cada um deles. Examinámos os móveis de cada aposento. Abrimos todas as gavetas possíveis” (…) “Nem a quinquagésima parte de uma linha nos passaria despercebida. Depois das mesas de trabalho, examinámos as cadeiras. As almofadas foram submetidas ao teste das agulhas. Removemos a parte superior das mesas…”). Pouco ou nada interessa o desenlace, embora, o ministro D ignorasse até ao fim o desaparecimento da carta e tivesse continuado a agir como se os segredos nela contidos ainda estivessem na sua posse. A ausência total de conjectura anda, deste modo, de mão dada com o desengano (o ministro D permanecia completamente nu na governação e no país, mas imaginava estar vestido a rigor).

Olhar um quadro e conjecturar é um ofício da poética e também um ofício mental. Um casamento arrebatado que, em princípio, habita todos os humanos com a devida naturalidade, embora com excepção para quem é polícia, sobretudo se tiver sido criado pela pena de Edgar A. Poe. Há lições que não se devem esquecer.


GIL, Fernando. Mediações- Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa. 2001, p. 286.
PEIRCE, Charles S.., Collected Papers of Charles Sanders Peirce, Vol II, The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts. 1978, pp.p. 211-213 (§8.313 e §8.315).
POE, Edgar A. A carta roubada. Editorial Presença. Lisboa. 2003 (1844).

6 Mai 2021

O silêncio de Deus

A infância é, para cada um de nós e à medida que a vamos abandonando, um lugar estranho e distante. Por muitos, um lugar desejado, mitológico, idílico, um paraíso perdido de que fomos expulsos sem remédio nem perdão. A tal “land of lost content” de que escreve o poeta AE Housman.

Para outros, em que me incluo, é diferente. Nem paradisíaca nem infernal, apenas uma etapa numa corrida que inevitavelmente irá terminar da pior maneira. Para aqueles que tiveram a sorte de a ter, a infância pode apenas ser – e agora chamo em minha defesa o meu poeta Larkin – um lugar de “forgotten boredom”. As mitificações da infância nunca me interessaram muito porque na verdade a minha utopia foi desde sempre a de ser velho, a de saber mais e poder fazer o que queria à beira da inimputabilidade. Não me levem a mal: adoro crianças e tenho gosto em ouvi-las e vê-las na sua bondade e crueldade em bruto. Mas prefiro ser o que sou agora mesmo.

No entanto, e como aconteceu a muita gente, não sou exactamente quem queria ser. Ou o que queria fazer. O leitor conhece a pergunta porque ainda está a ecoar na sua memória: “O que queres ser quando fores grande?”, perguntaram-nos tantas vezes nessa altura em que mal conseguíamos sustentar a nossa personalidade titubeante. E nós respondíamos, encostados aos nossos ídolos do momento ou às profissões que julgávamos mais aventureiras.

Pela minha parte, a escolha é sortida e foi evoluindo com a idade: piloto de Spitfire pela Royal Air Force em 1940 (sim, eu sei, não digam nada, obrigado), detective privado como o Philip Marlowe, vocalista de banda rock, realizador de cinema, diplomata, jornalista (esta lá consegui), escritor, dandy diletante (esta também, mais ou menos).

Mas reparava que muitos dos meus amigos tinham um fascínio comum: queriam todos ser astronautas. O como e o porquê não interessavam: apenas viajar pelo espaço. Tinha cinco anos quando vi a chegada do homem à Lua e também eu fiquei siderado por aquela extraordinária conquista. Mas não me chegava.

Até que há poucos anos descobri que também gostaria de ser astronauta. Corrijo: um astronauta chamado Michael Collins. Este homem, que morreu a passada semana aos 90 anos, foi para mim um exemplo e motivo de inveja. Integrado na missão Apolo XI – aquela que foi pela primeira vez à Lua – na companhia de “Buzz”Aldrin e Neil Armstrong, Collins foi o homem que ficou no Módulo de Comando orbitando a Lua enquanto os seus companheiros davam os pequenos passos para os homens e imensos para a Humanidade. Um trabalho essencial, rigoroso e discreto. Mas o que para mim é o mais sedutor: de cada vez que o Módulo de Comando orbitava a Lua o astronauta perdia o contacto com o controlo de missão em Houston durante mais de 40 minutos. Por causa disto chamaram-lhe “o homem mais solitário de sempre”, embora Collins não concordasse: ouvia música, bebia café, fazia o que queria durante aqueles minutos de “paz e sossego”, para citá-lo.

Nem terá sido esquecido. A cultura popular encarregou-se disso, às vezes com uma maldade injustificada como foi ter um tema dos Jethro Tull com o seu nome; outras de forma mais digna, como aconteceu na série The Crown.

Mas a questão mais bonita é esta: quantos de nós, quantos de nós experimentaram o silêncio puro, lá onde o som não se pode propagar? Mais: quantos de nós o suportariam, ainda por cima agora, em que o ruído é a divindade que se louva e pratica? O silêncio de Collins é o exemplo maior: um silêncio desejado, aceitado e perfeito para estar em condições de ouvirmos o outro e a nós próprios enquanto pairamos docemente sobre a cacofonia do nosso planeta.

Concordem comigo, amigos: poucos ou nenhum de nós serão astronautas. O silêncio, aquele silêncio, é inalcançável. Um lugar onde não existem respostas porque não existem perguntas. O silêncio de Deus.

5 Mai 2021

Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.

Teatro da Rainha, Caldas, terça, 20 Abril

As sessões do Diga 33, animadas pelo Henrique Dodecassílabo Fialho, são um refrigério. Um leitor que faz da inteligência uma casa onde recebe os seus convidados, no caso, a Rita [Taborda Duarte], que lhe respondeu da mesma maneira, quer dizer, expondo-se, explicando-se, dizendo-se. Sem merdas, desculpem que o diga, mas apetece. Gente de um lado e de outro, alguma que vinha já derramada de um encontro próximo e à mesa. Aconteceu por ali vida, o que não será dizer pouco. Estando nós para mais a celebrar regressos ao que não voltará a ser normal. Possa a poesia ser o corrimão destas escadas em vórtice. Possa a palavra ser mundo, que dizes, Rita? «O mundo não é feito de pessoas nem de casas nem de coisas/ menos ainda de afectos e sentidos. / O mundo é feito com palavras perfiladas/
como pedras/ sobre pedra/ em cima de outra pedra, ainda.// São de palavras de pedra as paredes do mundo:/direitas e exactas como um fio de prumo. //Se nos tiram a língua,/ as várias línguas que tem a nossa língua:/ esta língua com que te falo,/ a língua com que te beijo,/ esta mesma língua em que te digo esse nome que tu és,/ roubam-nos mais mundo ao nosso mundo.»

Fundição, Oeiras, quinta, 22 Abril

Até o mais escuro dos ateliers me aparece tomado pela luz. Assim com o esboço: mais do que revelar a ideia que desponta, o titubear antes do salto, portanto a potência, contém a mais livre e rude das espontaneidades. Se nos passos há caminho, naquela busca encontra-se logo logo horizonte. Daí que a oficina seja bastante mais do que bainha e bastidor, erro e ferramenta, suor e preguiça. É lugar de muitas subtilezas e espectáculos. «Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,/ Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,/ Olho e contenta-me ver». Com a mais infantil das atenções, entro, vindo do Tejo, no belíssimo atelier do Francisco [Vidal]. Correcção: no bairro do pintor.

A nave, em cujo canto repousam ainda restos das bombas, portanto destruição, que por ali em tempos se fabricavam, divide-se agora em jardim e cozinha, quadra de basquetebol e palco, carpintaria e estúdio propriamente dito. Imagino que possa ainda surgir, por conveniência, loja e laboratório. Por junto e à mão de semear. A arrumação casual das guitarras e das bolas, das serras e dos pincéis, cada detalhe diz do sagrado, da relação com o espiritual.

Sobre a decadência fabril e a fadiga dos materiais instala-se a cor gritante, abrindo vitrais iridescentes, atraindo a visão e pedindo paragem no tempo para que o corpo se permita ir atrás dos olhos. Exposição permanente, ainda mais essa. Encontram-se rostos da revolta e da afirmação, vítimas da violência, forma de os tirar da espuma dos dias para os instalar na memória política. Como ser negro com todas as cores, todas as letras? As grandes telas surgem compostas fragmentos e a pesquisa do Francisco está agora no cruzamento de técnicas mais pobres, a da impressão dos múltiplos, a da fotocópia dos fanzines, com o gesto dito puro da pintura. Talvez a cor não seja bem o tema, mas dividir a experiência assim é fazer logo autópsia do corpus vivo. De que falamos quando as catanas, lâmina e cabo, mão e corte, se alinham de modo fazer superfície que acolhe a imagem? No topo desalinhado, os bicos afiados e dissonantes não deixam de me perturbar, a pintura saindo do enquadramento, como se quotidiano procurasse o seu lugar de origem e nesse movimento nos ferisse. Deve ser por ali que se encontrará a identidade. Com risco e cesura.

Podia bem ter ido apenas pelo lugar, melhor, pelo encontro ali que há muito se adiava, mas havia razão prática: a capa para a «Ode Marítimu», versão em cabo-verdiano da brutal engenharia e celebração dos mares e portos em nós segundo Álvaro & Pessoa, ilimitado (algures na página). E no processo desencadeado me reconcilio com o papel do editor. Ignorante do seu lado cabo-verdiano, acabei despertando um entusiasmo que já partiu nas mais diversas direcções, dando nó na rosa dos ventos. Está a acontecer o reencontro do Francisco com uma das suas línguas. Partiu do texto agora reescrito pelo José Luiz [Tavares] para uma narrativa gráfica que mastiga as paisagens daquelas ilhas por junto a de uma cidade mulata. (Pode ainda dizer-te mulata sem despertar os ogres da correcção automática?) Foi-me dado ainda ver partes do processo, o modo como a feitiçaria faz a ligação entre o concreto do mundo com a prática do desenho. A pintura redefine assim os dias, nada se se pôr à parte. Por aqui não nascem museus.

Na pressa vertiginosa habitual, estava a receber as últimas correcções do poetradutor, que insistia, a cada uma, em explicar-me as razões e as raízes, quês e porquês. Exemplo seja a importância do «n», onde se esconde o eu daquela língua, ainda para mais em sonoridade escorregadia que pede ginástica da língua-orgão, para que possa acontecer a língua-sentido. O José Luiz, não sei se o disse já a propósito de Camões, vai conduzindo a nova língua para mares infindos e abissais. Contra tudo e alguns, os que insistem pouco inocentemente em chamar-lhe crioulo. «Como quase vítima de glotofagia, usuário e estudioso», diz ele, «sei bem o que está subjacente à designação ainda que se não tenha a consciência: O crioulo de Cabo Verde, língua natural dos cabo-verdianos nascidos em Cabo Verde e língua de herança de parte da grande diáspora designa-se cabo-verdiano ou língua cabo-verdiana. Crioulos todos são, como a língua românica de Portugal é um crioulo do latim. Crioulo de Cabo Verde, designa apenas uma família de língua, assim como a língua românica de Portugal também indica uma família de língua.”

5 Mai 2021