Boi metal

À beira de um novo ano como de um abismo, de um anseio fundamental. De uma porta. O novo ano a rimar com animal. Proust com cafeína, tigre com Borges e boi com ano mental.

Volto ao bicho. Explicar o bicho como adivinhar o que aí vem.

Precisamos, humanos, da adivinhação genérica, cautelosa ou expectante do mundo, em cada fronteira de um ciclo. Chegar à beira de uma etapa com a motivação de um reinício. A adivinhação, a astrologia, os oráculos de culturas milenares e outras formas de previsão do futuro, sejam elas a resposta de uma divindade, o fruto de uma inspiração, o “enthousiasmós”, que significa ter deus em si, ou o estrito cumprimento de ritos, espelham uma espécie de fé confortável na predestinação. Desocultada essa e desvendados os olhos de quem pergunta. Também outras leituras do destino, do Tarot ao I Ching, na abordagem de Jung, para quem a mente era de carácter simbólico, remetem para a tentativa de compreensão através do olhar mergulhado no inconsciente. O ser em busca de um entendimento de si mesmo por meio de arquétipos. Como o inconsciente a revestir-se de um carácter mediúnico.

Explicar o Boi, o touro, o búfalo, o bicho, impossível como explicar a vida. Tantos e tão diferentes como os dias. Há que amar os animais difíceis como os dias e os anos. Cheios de dentes e garras afiadas. Um búfalo é um boi que gosta de água e cobrir-se de lama para refrescar, resistir. Depois uma camada gretada e seca assemelha-o a um pedaço de terra. Enorme torrão domesticado. Com uma gravidade espelhada no semblante ilegível e todo o estar gravitacional. Compacto como mundo físico. Preso ao solo como uma erupção da terra. E a sonhar na água, quando não trabalha de cabeça baixa. Os chifres como uma balança. Se há justiça na dedicação do esforço e da superação

Explicar o touro. A impotência face ao acontecer. Um arrastão que se consome em força. Porque o touro não é um boi como os outros. Tem a revolta de se ver na arena. Como nós. A possante imposição do que é terreno e, espicaçado, com os cascos a raspar ávidos em fúria no chão.

Situamo-nos nesta arena, às vezes destemidos de tão pouco saber. Penso na investida do animal em fúria. Touro a investir e a morrer na arena. Fúria redonda, força bruta e determinação. Mas penso naqueles cornos pontiagudos ou boleados a colher em frente. Também gravitacional e preso à terra, como uma erupção. Vulcânica. E como tal lhe sai ruidosamente pelas ventas o sopro da ansiedade que o cerca e provoca. Como humano suspiro fundo em momento de desespero. Vida livre e predestinada a este momento. Do desafio à humilhação e anulação. Para catarse, o espectáculo do outro. Na sua irracionalidade de toneladas. Manipulada por quem conhece dele o que não conhece de si, às vezes. Porque ele também não conhece de si. Há que amá-los, esses bichos corpulentos que nascem domesticados, nascem planeados e predestinados. Também eles sem saber a quê. Um sentido e um destino que só se dá a ver no momento do cumprimento. Da arena. Nada sabem de si, mas estão. E resolvem a prova do momento que surge sem escapatória, na raiva do reagir. Com todo o seu peso, em frente sem contudo poderem fugir ao desfecho final. Brutal metal. Às vezes revejo-me nele, no bicho. Quando estou em mim e o vejo em mim e revejo-me nele além de mim, vejo-o como se vê o mundo e o outro.

É a primazia do instinto sobre a objectividade. Um pujante avançar na rotina dos dias. No confuso evoluir. Ou desenhar o ano. E é o minotauro que me espera ao fundo e os labirintos. Espero até ao fim do labirinto, no fim do labirinto. E até ao fim do tempo. E não mais, porque mais não pode ser. Mas ficará uma voz a ecoar. Ou o eco, somente. E depois, um outro ano. Animal.

Este. O escarlate de Veneza a correr nas veias, tinta de séculos com cor de vasos e de versos, esse brilho insensato do sangue perdido. Sangue de boi é o nome da cor de sombra e do sangue do animal. Virado do avesso em couros, tecidos e tintas. A oxidação do sangue a escurecer como uma profética coloração de que a morte recobre os seres. Com poemas escondidos em vida por detrás da pele. Um golpe e é cor. Fica bem na morte, o vermelho vivo, que esmorece e se ensombra, como a vida se esvai dos olhos do animal. E são as coisas da vida e da morte, que nos trazem os anos. Da morte se faz tintas e tingimentos. Da vida explorados os sentimentos, fingimentos e outras formas de fazer úteis os pigmentos. Gosto dessa cor como sangue da terra. Sangrada do boi terra quando se esvai. O avesso da vida se faz morte e mesmo a morte se recicla. Em memória, também. Coisas estranhas em círculos cruéis. De vida. Os anos que se sucedem, os dias, os animais. E os que nós somos. E que não sendo iguais, somos sobretudo como eles entre eles, diferentes, vivos e mortais.

9 Fev 2021

Xunzi 荀子 – Elementos de ética, visões do Caminho

O Enriquecimento do Estado, Parte II

 

O modo de assegurar a suficiência do estado é manter frugais os gastos, enriquecer o povo e guardar bem quaisquer excedentes. Os gastos mantêm-se frugais através do ritual e o povo é enriquecido através da governação. Quando se enriquece o povo, serão grandes os excedentes.

Pois quando se enriquece o povo este terá riqueza. Quando o povo é rico, os campos serão fartos e bem mantidos. Quando os campos são fartos e bem mantidos, a sua produção será cem vezes maior. Os superiores tiram segundo o modelo apropriado e os inferiores mantêm os seus gastos frugais de acordo com o ritual. E então os excedentes se acumularão como colinas e montanhas. Se parte deles não for gasta ocasionalmente, não haverá sequer onde os guardar. Por que se preocuparia então a pessoa exemplar com a falta de excedentes? Aquele que souber como manter frugais os gastos e enriquecer o povo terá a reputação de ser ren [humano] e yi [justo], de ser sage e ser bom, dispondo, além disso, de riqueza acumulada como colinas e montanhas. Não há outra razão para estas coisas; são o produto de se manterem frugais os gastos e de se enriquecer o povo.

Se não se souber manter frugais os gastos e enriquecer o povo, então o povo será pobre. Quando o povo é pobre, os campos serão parcos e daninhos. Quando os campos são parcos e daninhos, não darão sequer metade do que é normal. Então, mesmo que os superiores gostem de tirar do povo, invadindo-o e dele roubando, a sua colheita será esparsa e haverá mesmo alguns que tentarão manter frugais os gastos sem ritual. Como resultado, terão a reputação de serem gananciosos por lucro e rapaces, sendo o seu verdadeiro ganho esvaziado e exaurido. Não há outra razão para estas coisas senão o desconhecimento de como manter frugais os gastos e enriquecer o povo. O “Anúncio ao Príncipe Kang” diz, “Quão vastamente cobre o Céu todas as coisas! Segue a virtude e enriquecerás a tua pessoa”. Isto exprime o que quero dizer.

No ritual, a nobreza e a plebe têm o seu estatuto próprio, anciãos e jovens têm a sua distância própria, ricos e pobres, humildes e eminentes, todos têm o seu peso próprio. Assim, o Filho do Céu usa uma veste-dragão vermelha e chapéu alto cerimonial. Os senhores feudais usam vestes-dragão negras e chapéus altos cerimoniais. Os oficiais usam chapéus de pele e vestes simples. De oficial para cima, todos devem ser regulados pelo ritual e pela música. As massas e plebe devem ser controladas por disposições legais.

Depois de estimar o território, estabelece-se o estado. Depois de calcular os benefícios, eleva-se o nosso povo. Certificamo-nos de que as pessoas são adequadas às suas tarefas e que dessas tarefas surgem benefícios, sendo estes suficientes para nutrir o povo. Certificamo-nos de que em todos os casos os lucros e despesas em roupa, comida e bens variados se adequam uns aos outros, certificando-nos de guardar quaisquer excedentes no tempo certo. A isto se chama “um arranjo equilibrado”, o qual estendemos desde o Filho do Céu até à plebe, independentemente da grandeza ou pequenez das suas tarefas. Por isso se diz, “Na corte ninguém obtêm a sua posição por sorte. Entre o povo, ninguém ganha a vida por sorte”. Isto exprime o que quero dizer. Aligeira os impostos sobre os campos, faz justas as tarifas nos mercados e passagens [de montanha], reduz o número de mercadores, faz por raramente usar trabalho forçado e não requisites as pessoas em tempo de trabalho agrícola. Se fizermos estas coisas, o estado será rico. E a isto se chama enriquecer o povo através da governação.

 

Nota

Xunzi (荀子, Mestre Xun; de seu nome Xun Kuang, 荀況) viveu no século III Antes da Era Comum (circa 310 ACE – 238 ACE). Filósofo confucionista, é considerado, a par do próprio Confúcio e Mencius, como o terceiro expoente mais importante daquela corrente fundadora do pensamento e ética chineses. Todavia, como vários autores assinalam, Xunzi só muito recentemente obteve o devido reconhecimento no contexto do pensamento chinês, o que talvez se deva à sua rejeição da perspectiva de Mencius relativamente aos ensinamentos e doutrina de Mestre Kong. A versão agora apresentada baseia-se na tradução de Eric L. Hutton publicada pela Princeton University Press em 2016.

9 Fev 2021

Localização das estrelas voadoras para 2021

Os Nove Palácios das Estrelas Voadoras (Jiu Gong Fei Xing) situam-se no mundo este ano nas seguintes direcções:

-O Centro, China como País do Meio (Zhongguo), contará com a influência da Estrela da Bênção Celeste 6 Branco (Liu Bai), que, apesar de ainda enfraquecida, traz potencial de inesperadas vantagens e riquezas. A República Popular da China nasceu sob o signo de Búfalo há 72 anos e por isso está em Zhi Tai Sui (conflito a ofender o Deus do Ano), que provoca vagas de instabilidade e leva a grandes mudanças. É um importante ano pois prepara a entrada no período 9 do Grande Ciclo de 180 anos do Feng Shui, que ocorrerá em 2024, e com a ajuda da estrela da Bênção Celeste, tudo se apresenta em ordem.

Além do vírus continuar como tema principal, o maior problema para este ano está relacionado com Água, havendo muita chuva, especialmente no Outono, causando avultados prejuízos e a agricultura será muito afectada.

As províncias chinesas de fronteira com outros países estão sob grande pressão devido à influência de malignas estrelas voadoras. É o caso do Sudeste, sob influência da 5 Amarelo (Wu Huang), Estrela da Fatalidade e da Ruína, a indicar sensíveis tensões no Estreito de Taiwan. No Sudoeste, Guizhou, Yunnan e fronteira com a Índia, encontra-se a Estrela de Conflito Beligerante 3 Jade (San Bi). O Noroeste, Xinjiang e Gansu, com o maligno 7 Vermelho (Qi Chi), estrela violenta a provocar destruição. O Norte, Hebei e Mongólia Interior, sob a Estrela da Doença 2 Preto (Er Hei). Já bafejados para este ano serão: o Nordeste, com a estrela voadora da Harmonia 9 Roxo (Jiu Zi); o Oeste, Sichuan e Xizang (Tibete), pois conta com a influência da Estrela da Prosperidade e Saúde 8 Branco (Ba Bai); o Leste, Zhejiang e Shandong, com a benéfica estrela voadora 4 Verde (Si Lü) da Erudição; e o Sul, Guangdong, Guanxi e Hainan, com a Estrela da Prosperidade 1 Branco (Yi Bai). Esta a localização das estrelas voadoras (potências energéticas) na posição Centro, dentro da China.

Restantes direcções

– O Norte, Beijing como capital da China e Rússia, está sobre a influência da maligna estrela voadora da Doença, 2 Preto (Er Hei). Daí ser um ano trabalhoso para o governo chinês quanto às relações exteriores, muitas em cooperação e outras por negociações, com grandes desafios e provocações em todos os domínios, político, económico e cultural. A mudança na China percebe-se a partir deste ano, pois a crise provocada em todo o mundo pela pandemia abateu-se fortemente sobre os países que durante mais de 150 anos tiveram nas mãos o controlo do poder mundial, começando agora os seus alicerces a tremer. Já na Rússia, o Presidente Putin no segundo semestre do ano poderá ter um problema de saúde e as manifestações político-económicas continuam nas ruas do país.

– O Leste, EUA e Japão, está sob a influência da benéfica estrela voadoras 4 Verde (Si Lü), ligada à Educação. Com o novo presidente, os Estados Unidos da América ocupa-se de curar as feridas internas e assim precisa de colocar o foco fora das suas fronteiras. Para combater a pandemia, em 2020 houve necessidade de pôr muito mais dinheiro em circulação, levando à perda do valor dólar. Para recuperar a economia, a atitude em desespero seria criar uma guerra e se tal ocorresse, seria a ruína para o mundo, no extremar posições, não evitando o declínio do poder americano mundial. Já no Japão, a pandemia para este ano não será muito severa, mas é o grande problema a resolver para a realização dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Ao receber de todo o mundo muita gente (atletas, delegações e espectadores), há a possibilidade de o vírus se propagar e trazer mutações complicadas. Assim, ou opta por não os realizar e será um enorme prejuízo, sem retorno do muito dinheiro já investido, ou os jogos são fechados ao público, ficando as receitas muito reduzida. A criatividade japonesa, líder das jovens tendências no Oriente, poderá ajudar a encontrar artísticas soluções para prevenir as infecções e os jogos contarem com espectadores.

– O Sudeste, Filipinas e os países do Sudeste Asiático, está sob a maligna 5 Amarelo (Wu Huang), Estrela da Fatalidade e da Ruína. Na Malásia e Indonésia, propicia a ocorrência dos normais desastres naturais, tsunamis e tremores de terra, e no Verão, rebeliões devido à crise económica a colocar dores de cabeça aos governos. Na Tailândia, escândalo na família real e manifestações nas ruas ao longo do ano.

– O Oeste, Europa Ocidental, é bafejado por a Estrela da Prosperidade e Saúde, 8 Branco (Ba Bai). O primeiro-ministro inglês poderá demitir-se e haver novo governo na Inglaterra. Já a Comunidade Europeia tenta fortemente manter-se unida, mas internamente há interesses divergentes a procurar individualizá-la como países, para separados tomarem as resoluções e negociarem, perdendo assim a união, o que permite os interesses das multinacionais reinarem contra a dignidade humana. Como este ano a indústria do turismo não arranca, sobretudo os países mediterrâneos terão graves quebras na economia. Na Europa pode-se ainda contar com muitas manifestações e para além das usuais reivindicações, junta-se a luta entre o confinar e a ruptura financeira das famílias, pois com os negócios parados, não há dinheiro para comer, nem para as obrigatórias despesas. As vacinas trazem uma boa dose de esperança para este ano, e o crescente número de imunizados permitirá aliviar o isolamento e abrir o comércio.

– O Noroeste, Europa de Leste e do Norte, encontra-se sob a influência da maligna estrela violenta 7 Vermelho (Qi Chi), levando a mais disputas internas e competição entre os países vizinhos.

– O Sul, Austrália e Nova Zelândia, está sob a influência da benéfica estrela voadora 1 Branco (Yi Bai), Estrela da Prosperidade para o que vem.
– O Sudoeste, Índia, Médio Oriente e Ásia Central, sob a maligna estrela de Conflito Beligerante 3 Jade (San Bi), que traz disputas e caos.
– O Nordeste, Península da Coreia, está sob a auspiciosa estrela voadora 9 Púrpura (Jiu Zi), a representar harmonia e paz, cooperação e o visionar o devir. É também, mas como secundária, a Estrela da Riqueza pois em 2024, no Grande Ciclo de 180 do Feng Shui, entra no Período 9 e isso faz a Estrela da Riqueza do Futuro e Estrela da Felicidade, trazendo promissoras ocasiões. Quanto à Coreia do Norte, o único problema está na saúde do Presidente Kim Jong-un. Já a Coreia do Sul tem o Gua deste ano a indicar, deitar fora o velho para se abrirem novas portas. Terá boas relações com a China, cujo Presidente visitará o país.

Quanto a Macau, a RAEM nasceu no Inverno (Água) e pelo seu Bazi precisa de Fogo para equilibrar, sendo o ano que acabou de muita Água, o que não ajudou a economia, mas por outro lado, permitiu a Macau conseguir controlar o vírus (Fogo). Este ano será um pouco melhor, mas sem grandes mudanças. Só em 2022 a economia regressará a um nível próximo do anterior. Haja saúde.

Nota: Artigo baseado nas informações do geomante Edward Li.

8 Fev 2021

Como Zhao Ji Tocou o Gesto do Calígrafo

Por Paulo Maia e Carmo

Shouyang, a lendária princesa filha do imperador Wu de Liu Song (r. 363-422) teria adormecido num jardim, de súbito despertou quando a brisa leve fez descer e poisar sobre a sua testa uma flor de ameixieira. Um momento que foi sendo transmitido de geração em geração como um bom presságio, o aparecimento de surpresa da beleza, algo que não se espera que é, claro como o súbito anúncio da Primavera, a promessa de melhores dias. Uma variedade de ameixieira, designada em português como flor de cera (Chimonanthus praecox, do grego «flor precoce do Inverno») no original la mei seria escolhida por Zhao Ji (1082-1135) o imperador Huizong, para uma pintura em que reuniu apenas três elementos principais. Além da flor de cera e de um par de tentilhões, que a incluíam na classificação genérica de «Pássaros e flores», a pintura em rolo vertical a tinta e cor sobre seda, 83,3 x 53,3 cm, que está no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, contém um poema seu. E respondendo à atitude minuciosa do autor, deverá ser entendida nesses seus detalhes. Observando os pássaros encostados, como que se protegendo do frio, dir-se-ia uma apologia do matrimónio. Porém, a partir de um outro pequeno detalhe, a interpretação da pintura centrou-se num quarto, quase imperceptível elemento: junto ao tronco, batendo as asas, uma pequena abelha. O simbolismo da abelha que constrói as colmeias e faz o mel a partir da beleza das flores, vinha evoluindo desde que Guo Pu, no século IV, observara com apreço essas «incansáveis congregações na brisa/ Esvoaçando como flocos de neve,/ Uma massa indivisível», para se ir salientando o seu caráter de grupo organizado que obedecia a uma abelha rainha (descrita no masculino pengwang) exemplo que convinha à necessidade de ordem no império.

Zhao Ji poderia mostrar nessa pintura através do exemplo pessoal, além da vontade de ordem no seu império em paz, o desejo de domínio do tempo. Como está no poema, que especifica o que na pintura pode ser vago: «Tentilhões, pássaros da montanha envaidecidos, garbosos,/ Flores de ameixieira rosadas em que se confundem a macieza e a leveza./ Com esta pintura faço convosco um acordo:/ Passarão mil Outonos até que os cabelos brancos cubram a minha cabeça.» Escrito no seu estilo caligráfico «ouro elegante» shoujin, que se assemelha a filamentos de ouro retorcidos, que recorda o provérbio «por desvios, aceder a segredos», nesta proposta de compromisso com a Natureza através das três preciosidades, poderá estar sugerindo uma quarta arte etérea, que permeia as outras três e que o aparente imediatismo da caligrafia permite entrever antes de se manifestar. De súbito, a possibilidade da caligrafia (shufa) não ser só vestígio do momento em que o pincel tocou o papel mas memória do instante em que o calígrafo acariciou o gesto da mão, embalada no sopro do espírito.

8 Fev 2021

Xunzi 荀子 – Elementos de ética, visões do Caminho – O Enriquecimento do Estado, Parte I

A miríade de coisas partilha o mesmo cosmos. Todas têm corpos diferentes, mas apesar de serem desprovidas de cabimento intrínseco, são úteis para os humanos. Este é, simplesmente, o arranjo do mundo. Diversos graus de pessoas vivem juntas. Partilham os mesmos objectivos, mas têm métodos diferentes. Partilham os mesmos desejos, mas têm diferentes entendimentos. Esta é, simplesmente, a forma como nasceram. Todos consideram justas certas coisas, sendo nisto iguais o sábio e o néscio. Contudo, aquilo que consideram justo difere, e isso é o que separa o sábio do néscio. Se a autoridade das pessoas for igual, mas o seu entendimento das coisas for diferente, agindo em nome do ganho egoísta sem temer o desastre, deixando seus desejos proliferar selvaticamente sem fim, então os seus corações estarão agitados, sem nunca conhecerem apaziguamento. Se a situação assim for, os sábios não conseguirão obter o poder de controlar. Se os sábios não obtiverem o poder de controlar, então qualquer reconhecimento de mérito será impossível. Se nenhum reconhecimento de mérito for possível, então não haverá distinção entre as massas. Se não houver distinção entre as massas, então as posições de senhor e ministros não serão estabelecidas. Se não houver senhor que regule os ministros, ou nenhum superior que regule os inferiores, então todos sob o Céu sofrerão dano por deixarem os seus desejos proliferar selvaticamente.

Todas as pessoas desejam as mesmas coisas e todas detestam as mesmas coisas. Os seus desejos são muitos, mas são poucas as coisas que os satisfaçam e, por serem poucas, é certo que as pessoas pelejarão por elas. Os produtos dos cem ofícios são meios de nutrir a pessoa, mas nem mesmo os mais capazes se conseguem dedicar a todos os ofícios, nem é possível que alguém preencha todos os cargos oficiais. Se viverem separadas e não se entreajudarem as pessoas ficarão empobrecidas. Se viverem juntas, mas não tiverem divisões sociais, lutarão entre si. A pobreza é uma catástrofe, a luta é um desastre. Se quiseres salvá-las da catástrofe e eliminar o desastre, nada melhor do que estabelecer divisões sociais claras e assim dar emprego às massas. Se os fortes ameaçam os fracos, se os sábios aterrorizam os néscios, se quem está em baixo ignora os seus superiores, se os jovens importunam os mais velhos, se não governares pela virtude, então os velhos e os fracos enfrentarão a inquietude de perder os seus meios de sustento e aqueles que estão no seu auge enfrentarão o desastre da luta divisiva. Trabalho e labor são o que as pessoas detestam, mérito e lucro são o que apreciam. Mas se não houver divisão de ocupações, então as pessoas enfrentarão a catástrofe de tentar concluir o seu trabalho sozinhas e a calamidade de terem de lutar por mérito. Se o acordo entre macho e fêmea e a divisão entre marido e mulher não for regido pelos rituais de apresentação, compromisso e casamento, as pessoas enfrentarão a inquietude de perder esse acordo e o desastre de lutar por companheiros. Por isto, o sábio cria divisões para estas coisas.

 

Xunzi (荀子, Mestre Xun; de seu nome Xun Kuang, 荀況) viveu no século III Antes da Era Comum (circa 310 ACE – 238 ACE). Filósofo confucionista, é considerado, a par do próprio Confúcio e Mencius, como o terceiro expoente mais importante daquela corrente fundadora do pensamento e ética chineses. Todavia, como vários autores assinalam, Xunzi só muito recentemente obteve o devido reconhecimento no contexto do pensamento chinês, o que talvez se deva à sua rejeição da perspectiva de Mencius relativamente aos ensinamentos e doutrina de Mestre Kong. A versão agora apresentada baseia-se na tradução de Eric L. Hutton publicada pela Princeton University Press em 2016.

3 Fev 2021

Algoritmo

E agora que o tempo nos transformou, a natureza antiga pode passar despercebida.
Somos o requiem, dilatado coro de proscritos, e já assassinámos nossos gritos.
Ficámos sentados a ver o tempo chegar, lento prosseguir…
Exemplarmente os nossos assentos são formas de morrer, selado, o tempo de viver .
Quase não temos nome, nomeamos as vozes mas não sabemos quem são.
Este interregno é um local sem rota.
Agora é luz gritante a maravilha, e se o amor bastasse o nosso nome o ergueria.
Mas não bastou. Estávamos protegidos pelas forças da terra, hoje a alma acorda
A superfície é larga, está longe e quase nos afoga. Quase Inverno que pensamos ser Verão.
E as gentes carregam suas vidas agarradas a si como únicas, e a dimensão partida segue a
Viagem da imensidão. – A vida de cada um , não quero escutá-la! –
Para ela, a ilusão de pensar que a têm, fechada como os tesouros, pois que a morte é muita
No Ano das nossas vidas múltiplas.
Nós submeteremos as vitórias aos rigores, e se não os sentirmos, nem por isso paramos de tentar. Lentos os movimentos das coisas… enquanto o evento seguir estamos expectantes, por vezes choramos, e seguem-se desistências, mas não para as lembrar.
Tínhamos mais sentidos que quando percorridos nos levavam ao céu, e de tão sonhados ainda cantava em nós querubins de um deus. Tudo esvaziado, e deste lado não fazemos mais que dizer adeus. Aos que estão, aos que partem, aos que não estão e se debatem.
E reinos outros, outras Nações, andavam em brandas asas quase esquecidos da folhagem, que ardeu, foi ardendo, e o ar que respiramos talvez esteja envenenado, e no corpo doendo o que pensamos ser efeito, são as voltas de uma alquimia votada ao realejo.
Cidades escureceram quando as florestas em brasa falaram essa dor- os dias da escuridão- bíblicos são, porque vêm lembrar os actos das nossas mãos. E mesmo assim, insistimos que eram os animais e outros hospedeiros, que de tão próximos não extinguem o lume feito pelas fornalhas que deixamos acesas.
Explicamos os males com males menores, e mesmo assim eles poderiam ter sido bem maiores. Não há já lobos no povoado, mas vimos entrar nas cidades os animais calados que a nossa segurança consentiu. Entraram sem pedir licença, e o que é certo é que tudo pareceu de repente mais bonito, presenças livres em forma de mito.
Fizemos isso a nós mesmos, atirámos para fora os que não eram da cidade desejados, coisas que nos avisavam da tormenta da exclusão, retendo perto todos aqueles que utilizávamos para o interesse da nação. Mas as pragas não se calam, nem a vida consente mais sofreguidão. Avançamos cambaleantes para os antídotos, talvez outras coisas aconteçam, e sejamos nós a formar os nossos guetos.
Imponderáveis são todos os sinais, mas não os sentir chegando, é mais, muito mais do que esperávamos ter visto. Dar a volta ao mundo parece mais fácil do que imagináramos, e talvez ele já seja pequeno para os males propagados.
Devemos esquecer a treva e voltarmo-nos para os trevos, sabendo que tudo acontece em linha de montagem para a resposta rápida que se tornou em percepção um pouco mais pequena. Encontramo-nos aqui, parados, mas valorizando o movimento.
Que seja de vento a velocidade do arranque e nele tenhamos sentidos que caminhem protegidos das mortes de antes. Um ciclo se fechou como reposteiros rasgados , assaltos empilhados , derrotas devolvidas. Sobreviventes fomos às nossas próprias armadilhas!
Conseguimos, no entanto, ver no todo o tudo que as coisas são. Ligados estamos, e nos ligamentos começamos a nascer de dia para o dia, que a noite serenou. Menos atrito, menos detrito, menos coragem? Talvez. Já não somos abundância e quebrámos a imagem.
Tudo vem de mais longe, de um ponto não esperado, e se esperar é agora um sinal, que seja largo. Reduzir as inércias devoradoras, ampliar mais caminhos, que o futuro brilha como um astro e já não é sozinho.
Cumpra cada um sua missão, que a vida não baloiça como as bolsas, mas pode abrir fissuras com abismos de extrema largura que vão engolindo as brumas e os que aqui estão.
Tudo o que é novo virá como um ladrão na noite.
Única solução.

2 Fev 2021

2021 Ano Xin Chou do Búfalo de Metal

No dia 3 de Fevereiro de 2021 celebra-se o Lichun, Princípio da Primavera, que para os geomantes do Feng Shui dá início ao ano, enquanto o Ano Lunar Chinês só começará a 12 de Fevereiro e por terminar a 31 de Janeiro de 2022 não contará com nenhum Lichun. Por isso será um ano cego, não sendo auspicioso iniciar projectos, negócios, ou casar.

As eras na China começaram a ser contadas no ano de 2697 a. E.C. e desde então já ocorreram setenta e oito ciclos de 60 anos cada e no actual ciclo, 2021 é o 38.º, que corresponde a Xin Chou (辛丑, em cantonense San Tch’ao). O Caule Celeste Xin (辛) associado ao Elemento Metal yin está conjugado com o Ramo Terrestre Chou (丑), representado no Zodíaco chinês por o animal Búfalo, cujo Elemento é Terra yin.
Metal yin encontra-se por cima de Terra yin, quando no ciclo criativo, Terra faz nascer Metal e assim o juntar mais Metal à Terra. Será um ano de predominância Metal yin e daí os conflitos passarem despercebidos, a parecer coisa leve, pois para atormentar já basta o problema causado pelo vírus covid.

Tal como no ano do Rato (Geng Zi), o do Búfalo (Xin Chou) continuará a ser bastante difícil e teremos de manter uma rigorosa disciplina a exigir as qualidades do animal do ano, obediente, dócil, tenaz e árduo trabalhador. Apenas com disciplina e muita atenção ao que nos rodeia se conseguirá reverter a difícil situação vivida no planeta. Esse esforço será como tentar unir os maxilares ao morder algo difícil; Mordidela correspondente ao hexagrama 21 apresentado no “Tui Bei tu” (Empurrar pelas costas) a acompanhar o desenho 38.º, cujo título é Xin Chou (辛丑).

Entre os sessenta desenhos do livro “Tui Bei tu”, cada, com um título, um poema e um hexagrama do Yi Jing, ao olhar para o 37.º, a corresponder ao ano Geng Zi, a imagem é de água de onde emerge uma cabeça humana nos braços do deus da Morte e no desenho 38.º, título Xin Chou, o pátio exterior em frente à porta de entrada tem corpos estendidos pelo chão. Este livro, escrito por Yuan Tiangang e Li Chunfeng, na China da dinastia Tang no século VII, baseia-se no ciclo de sessenta anos que conjuga os dez Caules Celestes (Tian Gan, 天干) com os doze Ramos Terrestres (Di Zhi, 地支) e por cíclica repetição se prediz o que ocorre em cada um dos 60 anos do ciclo (Jia Zi, 六十甲子).

No poema para o ano 38.º, a primeira parte do texto refere: fora da porta está um veado [tesouro antigamente reservada para ser caçado apenas por o imperador] e muitos são os que o querem ter, mas nessa luta haverá danos colaterais pois, magoarão pelo fogo as aves, mesmo a voar nas alturas, e os peixes, até os que vivem nas águas profundas.

Os perigos do ano

Nem com todas as medidas rigorosas o vírus deixará de estar presente e o que anteriormente era simples e fácil de realizar, agora representa um perigo. É no estar social, com abraços e beijos, encontros nos cafés, restaurantes e lugares de diversão, assim como nas viagens e no trabalho, que emerge o perigo e daí o controlo, tanto pela nossa consciência, como por novas regras proibitivas.

No mundo, a maioria das pessoas aceitou essa perda de liberdades devido à pandemia, mas no Ocidente, com as liberdades adquiridas como individuais, muitos desafiam as medidas proibitivas e essa é uma das razões para o número de mutações do vírus e de mortos.
Fechados em casa, devido ao isolamento físico ser a receita para levar de vencida a epidemia, somos colocados em vivência no seio da família.

Se por um lado é positivo, pois permite um conhecimento mais íntimo e profundo entre filhos e pais, existindo maior disponibilidade para se escutarem uns aos outros, esse estar intenso e permanente abrirá espaço a discórdias, sem lugares para escapar. Tensões a provocar discussões para descarregar e devido a interesses divergentes, fruto de cada um se preocupar apenas com o que pensa, mas não como pensa, ou o normal e ancestral conflito de gerações, esses problemas só por amor se podem harmonizar. Abrir espaço à compreensão do outro, escutando-o sem necessidade de colocar a nossa visão na conversa e a comunicação relaxada desanuvia a pressão em que vivemos.

A epidemia leva cada um a isolar-se no seu espaço e no virtual se refugiar. Daí a internet, como principal ferramenta para comunicar, a permitir substituir o trabalho no escritório e as aulas presenciais, assim como fazer reuniões, com amigos ou empresas, e mesmo entre países.

Com maior protagonismo disponibiliza novos programas, jogos e entretenimentos, levando as pessoas a nela mergulhar todo o estar, individualizando-se e a perder o contacto ao vivo. Assim, o número de divórcios aumenta e prefere-se ter animais de estimação a filhos ou a parceiros. O individualismo ganha contornos de pandemia e outros, fugindo da família, encontram refúgio nas associações cujos interesses crêem representar.

As compras ‘on-line’ ganham um valor inimaginável, transfigurando o comércio, desde o local ao mundial. Os centros das grandes urbes perdem população, pois cada vez mais pessoas ficam a trabalhar em casa e escolhem ir viver para fora das cidades, refugiando-se nas aldeias.

Assim, os espaços de escritório e lojas de comércio local terão de ser reorganizados e muitos fecharão, fazendo cair os preços das rendas. Negócios desaparecerão, muitas companhias vão à falência e os governos, sobre pressão financeira, cortam nos projectos, havendo um recorde de desempregados. Assaltos e manifestações de rua serão frequentes e em desespero tomam formas violentas, aproveitando alguns para destruir e roubar, a aumentar mais o caos.

Sob pressão da pandemia

“Como será o nosso mundo?”, pergunta feita por Edward Li ao Livro das Mutações (Yi Jing), respondida com o hexagrama 60, Jié, A medida (o controlo), Água sobre Lago. A família é o centro e passar longo tempo em casa torna-se o novo e natural estar. Se não sair de casa não haverá problemas. Mas Jié tem aqui três significados. O primeiro, não desperdiçar e economizar, nos gastos e recursos naturais, água, electricidade, comida e bens primários. O segundo, corte, nas despesas familiares e governamentais, e as empresas despedem. O terceiro, estar sobre controlo: pelas leis, para evitar a propagação do vírus como, uso da máscara, não sair de casa, fecho das lojas; quanto às atitudes, cada um deve ter consciência do espaço que ocupa e tomar atenção onde está e com os que estão à volta.

Daqui se percebe o aparecimento de uma nova realidade, onde o indivíduo é confrontado com o interesse colectivo. A primeira reacção é cada país fechar-se em si mesmo e a globalização, a uniformização do mundo, reorientar-se e sem global retornar a local. Só esta pandemia poderia colocar a venerável liberdade num desastre social e daí a dificuldade de conseguir unir os maxilares da boca. Boa saúde – (身体健康, Sun Tan Kin Hong)

1 Fev 2021

Xunzi 荀子 – Elementos de ética, visões do Caminho

O Governo do Verdadeiro Rei, Parte IX

O senhor de um estado violento não poderá, naturalmente, usar o seu exército contra nós. E porque não? Porque ninguém o acompanhará. Aqueles que o acompanhariam seriam decerto a sua própria gente. Mas o amor da sua gente por nós será como a alegria que lhes dão os seus próprios pais. O amor que têm por nós será como a atracção que sentem pelo perfume das orquídeas ou do sésamo. Olhando para trás, verão os seus superiores como vêem os castigos da marcação com ferros e da tatuagem, ou como inimigos mortais. Mesmo que a disposição e natureza do povo fossem como as de Jie e do Ladrão Zhi, como seriam capazes de fazer aquilo que odeiam de maneira a maltratar aqueles de quem gostam? Na verdade, já teríamos conquistado [os seus corações]. Por isso, entre os antigos, houve quem conseguiu conquistar todo o mundo a partir de um só estado. Tal não sucedeu por se terem deslocado para o fazer, mas sim por terem cultivado e governado os seus próprios estados, levando a que todos ansiassem pelo mesmo. Agindo assim, puderam depois punir os violentos e banir a brutalidade. Quando o Duque de Zhou conduziu a sua campanha punitiva ao sul, os estados do norte lamentaram-se, “Quem dera que tivesse vindo só aqui”. Quando conduziu a sua campanha punitiva a leste, os estados do oeste lamentaram-se, “Por que nos deixou para último?” Quem poderia ter lutado contra ele? Aquele que usar o seu estado para conseguir tais coisas se tornará um verdadeiro rei.

No dia em que tivermos acertado as coisas, o nosso exército se acalmará, os nossos súbditos se tranquilizarão e o povo comum será tratado com amor. Abriremos campos e pradarias, encheremos os celeiros e prepararemos novas provisões. Do mesmo passo, recrutaremos e selecionaremos cuidadosamente homens de talento e capacidade. Para os encorajar, estabeleceremos honras e recompensas, assim como penas e castigos para os impedirmos de praticarem o mal. Escolheremos homens argutos, fazendo-os liderar e controlar uns aos outros. Depois, nos dedicaremos a amplo armazenamento e manutenção, fazendo suficientes bens e provisões. Enquanto outros expõe e desgastam suas armas, armaduras e material diariamente nas planícies centrais, eu me dedicarei a reparar as minhas, resguardando-as nos meus armazéns. Enquanto outros diariamente dissipam e desperdiçam os seus bens, riqueza e cereais nas pradarias centrais, eu me dedicarei a armazená-los e reuni-los nos meus celeiros. Enquanto outros diariamente desbaratam contra os inimigos os seus homens de talento e capacidade, os seus assistentes de topo, os seus homens fortes e corajosos que lutam com denodo, eu me dedicarei a chamá-los para meu lado, avaliando-os, incorporando-os e refinando-os na minha corte. Quando as coisas são assim, os outros acumulam erros todos os dias, ao passo que eu todos os dias acumulo perfeições. Enquanto os outros acumulam pobreza todos os dias, eu todos os dias acumulo riqueza. Enquanto acumulam trabalhos, eu acumulo facilidade. Quando a dureza faz diariamente mais tensas e odiosas as relações entre o senhor e os ministros, os superiores e os subordinados, a bondade os fará aproximar cada vez mais de mim e me amarem. Estas coisas usarei para enfrentar os seus erros. Aquele que usar o seu estado para conseguir tais coisas se tornará um tirano.

No estabelecimento do nosso carácter poderemos seguir costumes grosseiros. Nos assuntos do estado, podemos aplicar-nos em promulgar esquemas dúbios. Ao promover ou despromover pessoas, ao enobrecê-las ou rebaixá-las, elevaremos os bem-falantes e ardilosos. Uma tal pessoa relaciona-se com o povo comum dele tirando, desrespeitando-o e dele roubando. Alguém assim colocar-se-á sempre em perigo.

Ou, no estabelecimento do nosso carácter, podemos ser levianos e rudes. Nos assuntos do estado, nos dedicarmos à usurpação. Ao promover ou despromover pessoas, ao enobrece-las ou rebaixá-las, elevaremos os homens tenebrosos e temíveis, homens enganadores e que agem por motivos ulteriores. Uma tal pessoa relaciona-se com o povo comum abusando dos seus esforços derradeiros, mas sendo lento a reconhecer os seus trabalhos e mérito.

Uma tal pessoa abusa dos seus impostos, mas olvida os seus esforços fundamentais. Uma tal pessoa será destruída.
Devemos escolher cuidadosamente de entre estas cinco possibilidade. Pois elas são os meios para nos tornarmos um verdadeiro rei, um tirano, alguém que mal subsiste em segurança, alguém que vive em perigo, ou alguém que é destruído. Aquele que escolher bem controlará os outros. Aquele que não escolher bem será controlado pelos outros. Aquele que escolher bem será um verdadeiro rei. Aquele que não escolher bem será destruído. A distância entre ser rei e ser destruído, entre controlar outros ou ser controlado por eles não é, na verdade, grande de todo.

 

Nota

Xunzi (荀子, Mestre Xun; de seu nome Xun Kuang, 荀況) viveu no século III Antes da Era Comum (circa 310 ACE – 238 ACE). Filósofo confucionista, é considerado, a par do próprio Confúcio e Mencius, como o terceiro expoente mais importante daquela corrente fundadora do pensamento e ética chineses. Todavia, como vários autores assinalam, Xunzi só muito recentemente obteve o devido reconhecimento no contexto do pensamento chinês, o que talvez se deva à sua rejeição da perspectiva de Mencius relativamente aos ensinamentos e doutrina de Mestre Kong. A versão agora apresentada baseia-se na tradução de Eric L. Hutton publicada pela Princeton University Press em 2016.

27 Jan 2021

Antuérpia – A impressão (1981) – Jacques Attali

(tradução de Emanuel Cameira)
tradução de:
ATTALI, Jacques, “Anvers – L’imprimerie”, in Les Trois Mondes, Paris, Fayard, 1981, pp. 285-288

 

Para que se reforme a Ordem, o custo da organização deve diminuir. É necessário, para isso, dissolver os impérios e conceder aos burgueses os meios para gerir o coração e o meio, fazer com que acedam ao conhecimento. É então que a impressão, até aqui reservada à elite, se torna técnica industrial. No dealbar do século XV, ractifica a vitória da Ordem mercantil sobre a Ordem imperial, destruindo o sonho de homogeneizar a Europa em torno de uma só língua, o latim. O seu sucesso é avassalador, tal a necessidade das novas classes dirigentes face ao que ela veicula.

Por volta de 1440, quarenta anos após a sua introdução na Europa, as prensas operavam em 110 cidades europeias. Ainda antes de 1500, vinte milhões de livros são publicados, e 200 milhões são-no no século XVI. Antuérpia desempenha um papel decisivo nessa difusão. Em particular, as oficinas de Christophe Plantin são um farol da impressão, apoiado pela burguesia local que de lá extrai os meios da sua força.

Mas o livro é apenas um suporte de conhecimento e não um bem industrial básico capaz de recriar o excedente. Mais uma vez, esse bem sai da terra. Omnipresente, esta fornece alimento, roupas, transporte, abrigo. Aqui, com Antuérpia, é que começa a industrialização do vestuário. Antuérpia desenvolve, de facto, a indústria da lã e, para as suas trocas, concebe uma sofisticada rede bancária, utilizando moedas de prata e, sobretudo, o «Gros». A partir do século XIII, Antuérpia conhece, assim, uma tremenda actividade de trocas (tecidos flamengos, sal zelandês, talheres ingleses, metais alemães). Depois, aproveita o declínio de Bruges para se tornar o local de troca dos produtos da Europa do Norte por especiarias portuguesas (pimenta, malagueta, canela, açúcar). Foi lá que os ingleses tingiram os seus tecidos, até à revalorização da libra, em 1564. Aí se estabeleceram os banqueiros alemães, os Höchsteller, os Fugger, os Welser. Embora marcados por um certo arcaísmo técnico, o mercado financeiro e a bolsa de Antuérpia tornaram-se os primeiros da Europa em matéria de seguros, apostas e lotarias.

A cidade, que apenas tem 20 000 habitantes em 1450, conta com 100 000 em 1560, no seu apogeu. Apesar dos Habsburgos acreditarem poder interditar a cidade aos estrangeiros, estes afluem sem cessar, acelerando o progresso e o dinamismo: 15 000 intelectuais de Espanha e de França, tendo esquecido o seu poder, asseguram o de Antuérpia, antes de fazerem, mais duradouramente depois, o de Amesterdão. Com Antuérpia, o coração muda de tamanho, tornando-se maior, mais alargado que os anteriores. É certo que, privada de exército próprio, Antuérpia domina unicamente pela sua exclusiva capacidade de administrar os vários tipos de moedas de prata. Inglaterra, França e Itália permanecem no centro. Na Alemanha e na Polónia, o sistema imperial persiste; a nobreza, para eliminar a burguesia, contenta-se em fornecer trigo, por intermédio de mercadores estrangeiros, ao resto da Europa. Exporta assim o seu excedente. Ao mesmo tempo, os impérios periféricos do mundo ameríndio são destruídos e integram-se na periferia: a Ordem mercantil mata, sem exército, melhor que os exércitos dos impérios.

Mas, por volta de 1550, esse avatar mal desenhado, essa figura da Ordem mercantil, apaga-se novamente. Antuérpia, arruinada pelas guerras religiosas, não está mais à altura da Ordem. Decresce o seu poder de compra; nela rebentam violentas crises sociais.

Junta-se uma coincidência: em meados do século XVI, a descoberta das minas da América provoca a baixa do valor da prata. Toda a rede comercial de Antuérpia, baseada nas moedas de prata, fica então desacreditada. Antuérpia ainda tenta resistir atraindo para Sevilha a prata que chega da América. Mas o ouro, que se tornou mais caro, é muito mais tentador para os especuladores. Além disso, a guerra rompe as ligações marítimas entre os Países Baixos e Espanha: o ouro e a prata da América não podem mais rumar a Norte. Antuérpia está isolada e os seus bancos são vítimas das bancarrotas espanhola e francesa, em 1557, e, depois, da portuguesa, em 1560.

Uma última vez, Espanha perde a oportunidade: a prata da América assegura-lhe uma considerável renda que pode ajudá-la a tornar-se o coração. Mas a lógica do império ainda é perversa. Sendo a prata desvalorizada graças à sua abundância, o preço dos bens, avaliados em prata, sobe. Os soldados espanhóis recebem então soldos cada vez mais elevados em prata, sem que encontrem, em Espanha, os produtos necessários para os seus gastos. Espanha deve, portanto, importar bens de consumo em troca de prata da América. Ao mesmo tempo, desencadeia-se uma acentuada inflacção. O país fica endividado e a sua moeda entra em declínio. Nem Madrid, nem Sevilha, nem Lisboa são, portanto, confiáveis para os banqueiros. Os metais preciosos apenas passam por Espanha, sem lhe acrescentar valor. Em 1557, os bancos espanhóis colapsam. A Espanha permanece no centro. Sozinha, Génova assume o último sobressalto do mundo mediterrânico e o derradeiro eco do sonho de Carlos V e de Filipe II.

Uma cidade empurrada para o mar retira daí a sua glória fugaz. Controlada, desde o ano mil, por burgueses, cinco séculos mais tarde faz deles, durante cinquenta anos, os senhores do mundo.

25 Jan 2021

Figuras da Alegria e do Silêncio no Acolhimento do Chan

Fanyin Tuoluo, o abade pintor de um mosteiro de Kaifeng no século XIV, utilizou o seu estilo caligráfico num álbum de pinturas que retratam encontros entre um mestre e um aprendiz intitulados «Feitos dos mestres Chan», diálogos de monges que foi um dos temas que ajudaram o reconhecimento do Budismo Chan. Na página que retrata «Budai e Jiang Mohe» (35,6 x 48,5 cm, a tinta sobre papel) que se conserva no Museu de Arte de Nezu, em Tóquio, ele mostra o momento em que Jiang se apercebe finalmente que o monge Budai é uma manifestação de Maitreya, o Buda do futuro. Budai, também referido como o «buda que ri», ou o «gordo» ou o «feliz», cuja lenda diz que teria vivido cerca de 907-923 no reino de Wuyue no tempo das Cinco Dinastias e Dez Reinos, e cujo nome significa «bolsa de pano», um dos elementos que o caracterizam e onde transportava consolações para o mundo que sofre, seria uma reconhecível figura na difusão popular do Chan. O riso, expressão clara da empatia com que quase sempre é retratado o Budai, também está presente na pintura do século XII, «Três gargalhadas no Rio dos tigres»

Huxi Sanxiao, que refere um provérbio que conta o momento em que o solitário monge budista Huiyuan (334-416) se encontrou com o confuciano Tao Yuanming (365-427) e o daoísta Lu Xiujing (406-477) e desataram a rir quando se aperceberam que, de tão embrenhados que estavam na sua conversa, nem se aperceberam que tinham atravessado uma região infestada de tigres. Nessa pintura que está no Museu do Palácio Nacional em Taipé, feita no estilo de «rugas talhadas com machado», fupi cun de Li Tang (c. 1050-1130) a tinta e cor sobre seda, fica clara a relação harmoniosa entre as três filosofias. Num outro ícone do Budismo, desta vez sempre envolto em silêncio, também se espelhava a harmonia e seria repetido pelos pintores.

Jueji Yongzhong, um obscuro monge pintor do século XIII é o autor de uma dessas figuras. A sua fluida e sintética «Guanyin vestida de branco» (104 x 42,3 cm, rolo vertical, tinta sobre papel) de que uma cópia está no Museu de Arte de Cleveland, contém uma curiosa anotação: «uma de oitenta e quatro mil pintadas pelo sacerdote Insei», o que seria uma resposta a uma promessa do «Sutra do Loto» que assegurava a «via do Buda» a quem se dedicasse a mostrar as figuras do Budismo. Dessa Guanyin, a que «escuta os pesares do mundo», na aparente informalidade do traço rápido, desprende-se uma impressão de proximidade. Como também no caso do diálogo a dois, ou na conversa a três com diversos pontos de vista; nessas confissões privadas transmitidas em silêncio à Guanyin, estão exemplificados valores de cumplicidade e de atenção fraterna que foram mostrados pelos pintores, testemunhos da forma como o Chan foi sendo acolhido desde que Bodhidharma atravessou um largo rio numa fina cana de bambu.

25 Jan 2021

Fernão de Magalhães & Francisco de Almeida

Aos 21 barcos da sétima armada capitaneada por D. Francisco de Almeida (1457-1510), que deixaram Lisboa a 25 de Março de 1505 com 1500 homens e onde embarcou Fernão de Magalhães, o seu irmão Diogo de Sousa, assim como Fernão Peres de Andrade, que em 1517 levará o primeiro embaixador português à China, juntaram-se depois mais seis naus, que saíram a 18 de Maio e outras duas, em Setembro.

Oito meses após a partida, já a 26 de Novembro de 1505 regressavam cinco barcos capitaneados por Fernão Soares carregados de tecidos, pérolas e especiarias e só em pimenta traziam 15 mil quintais, chegando quatro a Portugal a 22 de Maio de 1506.

Fernão de Magalhães andou um ano na expedição comandada por Nuno Vaz Pereira, que desde finais de 1506 esteve na costa oriental de África, entre Melinde, Quíloa e Sofala, servindo o Vice-Rei D. Francisco de Almeida, a executar o plano de D. Manuel proposto por Afonso de Albuquerque, regressado em Agosto de 1504, vindo de passar um ano no Oriente.

Afonso de Albuquerque fora capitão-mor da quinta armada (1503-04), da qual ainda não viera a frota comandada por seu primo Francisco de Albuquerque, com quem em Calicute derrotou o Samorim e em Cochim, da feitoria fizeram em 1503 uma fortaleza de madeira [só em 1506 erguida em pedra], deixando como capitão Duarte Pacheco Pereira, que contara com a ajuda de 30 mil malabares, associados a 160 homens dos nossos, contra 70 a 100 mil naíres do Samorim, segundo Joaquim Candeias Silva. Em Dezembro, Afonso de Albuquerque criara a feitoria em Coulão, estava em Cochim a 12 de Janeiro 1504 e seguiu para Cananor, onde se juntou ao primo. Seria a última vez que o via.

“O Estado Português da Índia surge como entidade política com a nomeação do primeiro governador, D. Francisco de Almeida, em 1505, sete anos após a chegada de Vasco da Gama [cuja armada, a quarta à Índia (1502-03), era de doze barcos da Coroa e treze de mercadores] – sete anos, em que a presença portuguesa, de início meramente diplomática e comercial, tomara gradualmente um cunho militar e passara de intermitente, ao sabor da ida e vinda das armadas, a contínua, com uma força de patrulhamento marítimo constantemente presente. D. Francisco é ainda um vice-rei flutuante, governador de um estado sem território, com o convés da sua nau por capital”, refere Luís Filipe Thomaz, que lembra, a “Índia, mais dotada pela Natureza do que a Europa e não menos desenvolvida em indústria humana, quase nada tinha a importar do Ocidente.” Os navios na viagem de Portugal para Oriente iam sem suficientes mercadorias de troca [transportando cobre, prata, chumbo e cera] e para ter lastro, ainda embarcavam pedras para erguer fortalezas e madeira já cortada para fazer barcos. “Na ausência de produtos que interessassem aos mercados indianos, os Portugueses são obrigados a pagar em metal sonante as especiarias que adquirem – o que os leva a interessarem-se igualmente pelo ouro do Monomotapa, escoado pelo porto de Sofala.

Este era tradicionalmente obtido pelos Árabes a troco de tecidos de algodão indiano, oriundo sobretudo do Guzerate. O comércio do ouro conduz assim os Portugueses ao dos panos e arrasta-os para o golfo de Cambaia – como o das especiarias os levara ao do ouro e às costas moçambicanas.”

Bloqueio à Arábia

Na oitava armada à Índia, o capitão-mor Tristão da Cunha partiu de Lisboa com onze naus a 6 de Março de 1506 e a 28 largava Afonso de Albuquerque (1452-1515), que regressava ao Oriente com cinco naus de guerra, levando já a carta para dois anos depois suceder a Francisco de Almeida no governo das Índias. As duas frotas juntaram-se na costa Oriental de África, onde em Moçambique fizeram um forte e em Abril de 1507, à entrada do Mar Vermelho conquistaram a ilha de Socotorá. Aí se separou a armada e Tristão da Cunha chegou à Índia em Agosto, apoiando o cerco de Cananor, onde os portugueses em 1505 tinham feito uma fortaleza em madeira, que então passou a ser de pedra. A 23 de Novembro dava auxílio ao Vice-Rei para derrotar a frota do Samorim de Calicute e por Cananor regressou a Lisboa a 7/12/1507 carregado de especiarias.

Já Afonso de Albuquerque, de Socotorá rumou à costa da Arábia conquistando Omã, fazendo tributárias as suas cidades e a 21 de Setembro chegava à ilha de Ormuz, à entrada do Golfo Pérsico. Cercando-a, enviou recado ao Rei, de apenas 12 anos, para se fazer vassalo dos portugueses e evitar uma guerra. Habituado a receber por quem vinha comerciar e não a pagar, o regente do Rei não aceitou. Então os portugueses abriram fogo demorado sobre as forças navais e terrestres, muito superiores às suas, sendo a resposta tão fraca que a deram por conquistada. A paz foi negociada com um tributo anual à Coroa portuguesa de 15 mil xerafins em ouro, o pagamento dos prejuízos sofridos nas naus durante o combate e um terreno na ilha para construir uma feitoria e a fortaleza. O Forte de Nossa Senhora da Conceição de Ormuz era o principal objectivo de Afonso de Albuquerque e, apesar de o ter começado em 1507, só o terminaria em 1515, pois, em Fevereiro de 1508 três capitães dos navios, liderados por Afonso Lopes da Costa, recusando ficar a construir a fortaleza, revoltaram-se e abandonaram-no para irem fazer queixa ao Vice-Rei. O futuro governador Albuquerque, [tomará posse a 29/10/1509], deixou a meio a construção, indo também para a Índia.

Conquista de Diu

Já em Março de 1508 Lourenço de Almeida morrera em Chaul, apanhado de surpresa no interior do porto pela armada do Sultão do Egipto, pois pensara ser a frota de Albuquerque, que falhara o controlo e no aviso. O Vice-Rei D. Francisco de Almeida, para vingar o filho, em Dezembro foi ao território de Cambaia, onde arrasou o porto de Dabul e seguiu para Diu.

Fernão de Magalhães participou a 2 e 3 de Fevereiro de 1509 na batalha naval de Diu, quando o ainda Vice-Rei com 19 velas atacou essa praça dos rumes (turcos) e destruiu a esquadra do egípcio mameluco Mir Hocem, a do Sultão Otomano Beyazid II, com as forças do Samorim de Calicute e do Melique Iaz de Guzarate, que governava Diu. Esta vitória deu aos portugueses o domínio do Mar Arábico.

A expedição de Diogo Lopes de Sequeira, que saíra do Tejo com quatro navios em Abril de 1508 a caminho de Malaca, afim de estabelecer um tratado comercial num dos portos mais concorridos da Ásia, passava por Cochim a 20 de Abril de 1509. Aí estava Fernão de Magalhães, que embarcou e assim passou por Samatra, antes de chegar a 11 de Setembro a Malaca, onde os locais lhes prepararam uma cilada. Avisados por chineses do plano para destruir a frota lusa, tal não teve total sucesso devido às precauções de nunca se desembarcar todos os marinheiros e assim, Sequeira conseguiu fugir com dois barcos para a Índia, deixando dezoito portugueses prisioneiros. Foram depois barrados por um barco muçulmano com quem entraram em batalha, quando Magalhães salvou da morte pela segunda vez Francisco Serrão, seu grande amigo e companheiro de aventura.

25 Jan 2021

Turcos e Bordados

6 de Dezembro de 2020

Com a cidade semi-deserta uma das coisas boas é sem dúvida ir lendo os nomes dos estabelecimentos comerciais e tentar entender a nomeação de tais espaços. Se nos dermos conta, só mesmo as lojas chinesas que já estão em maioria por todos os lados, escusam designações de qualquer género, o que se entende, dada a profusão de mercadoria diversa e em nada coincidente. E este deambular numa terra de titularidades é um exercício também ele linguístico acerca daquilo que o denominar abrange, e vamos aos turcos: de repente, pensamos no Império Otomano, em Solomião o Magnífico, Istambul, cidade entre dois continentes, e chás no deserto — mas não — apenas passamos por uma loja com o nome «Turcos e Bordados» e é bonito!

Para um qualquer transeunte de outros lados reparar nisto deve causar estranheza, mas há quem conviva com certas coisas com tanta naturalidade que nunca pensou nos turcos, e ainda outros para quem não aquece nem arrefece, e é aqui, na manobra da correlação que entra a temperatura; as toalhas turcas! Um tecido todo feito integralmente de algodão para os famosos banhos que séculos de domínio islâmico aperfeiçoou. Quanto aos banhos, são também eles um legado greco-latino, só que uma religião monoteísta requer práticas constantes de higienização fazendo de tal labor uma prédica mais, por vezes até bastante compulsiva.

É, sem dúvida, um facto que um pano por si mesmo não é nada, o que faz que se possa acrescentar toda uma técnica decorativa que transponha o seu carácter de objecto, e, por isso mesmo, na loja lhe acrescentem, bordados, que sendo esses panos “turcos” ainda suportem a delicadeza de tais artifícios, é obra! Mas um verdadeiro exemplar, tributado numa mancha iconoclástica tamanha, levará apenas franjas na ponta e riscas no fundo, o mais perto de um tratado geométrico simples, requerendo-se leve para se tornar absorvente, e quem estiver ainda muito distraído pensará que se trata de um «talit», o manto da oração, que sendo aspectos aparentemente transversais nos mostram bastante da natureza das coisas, que quanto muito, e neste caso, poderia fazer sentido uma loja «Turcos e Molhados». As franjas mostram somente que Deus nos toca indelevelmente, e sempre, em regime de extremidade, quer estejamos a tomar banho ou envoltos na oração, as riscas indicam a impossibilidade, talvez, de recorrer às imagens, mas Lisboa, é como Constantinopla, outra cidade das sete colinas, e no que diz respeito a Impérios sabe também que estes se esfrangalham, e na derrocada, as bases de uns vão formando outros, como as lojas dos tapetes persas chamados «Aladinos» que não raro têm inscrições de Arraiolos. Que os há! Bem perto até dos «Turcos e Bordados». A simulação da oferta é uma mais valia com que os puristas não contavam, e também é neste cruzar de dados com o nosso cristianismo pagão que vamos construindo estéticas desconcertantes e admiráveis.

Bom, mas também é certo que a cidade está cifrada. Os nomes em inglês, as ofertas tresvariáveis, as coberturas de pequenos cubículos sem graça nenhuma, a não ornamentação do minimalismo mórbido, mais os eloquentes «Pés de Salsa» convivem como se cada um vivesse num planeta distinto, mas que não deixa de fazer os encantos destes olhares. Como ainda não se pode ir naturalmente a lado nenhum, não raro apetece muito um «-hamame-» e em seguida jantar uma bela chanfana com vinho tinto, o que não afecta de todo a distância a que está cada um destes prazeres.

Os “turcos” podem ser bordados, e nós não reparamos nos lindos monogramas que representam o grau de familiaridade: avô, mãe, pai, filho, e se os tecidos engrossam é por que há mais algodão e não precisamos de secar tão depressa. Na cidade antiga, ainda existe a «Camisaria Controle» e os «Lençóis tipo Zé» o que dá uma tónica indispensável à sua humanização. Coisas que já não dizemos nem escrevemos, mas tempo houve em que se podia dizer e não escrever, o que ficou conhecido certamente pela frase popular «o que tu dizes não se escreve». Nestas linhas, como nos fusos de tecer, há ainda muitos Impérios, e os turcos ajudaram à queda de alguns, foram pioneiros nos Holocaustos do século XX, tentaram derrubar o nosso, mas, o seu fascínio persiste, pois que estamos em cidade de califado.

«Istanbul (not) Constantinopla» nem o Santo Sudário, uma peça de linho para os dias de maior calor; mas que estes panos são grandes monumentos, isso, ninguém duvida. Lojas abertas com inscrições várias precisam-se para manter a economia de bairro bem desperta (a venda de relíquias está proibida). «Sudário & Filhos» ao lado de «Turcos e Bordados» e ainda Maomé bordado numa nestas toalhas com a inocência estrangeira das multidões.

25 Jan 2021

Fernão de Magalhães no mar Arábico

“Foi grande a repercussão que o descobrimento do caminho marítimo para a Índia obteve nos centros políticos e comerciais da Europa. Tanto na corte pontifícia e junto dos Reis Católicos, como nos principais sectores económicos da Itália e da Flandres, a notícia constituiu uma verdadeira revolução. Muitos agentes estrangeiros vieram estabelecer-se em Lisboa, onde procuravam recolher benefícios da compra e distribuição das especiarias. É evidente que a coroa de D. Manuel I quis de imediato assegurar o monopólio dos produtos orientais, servindo-se das estruturas financeiras e técnicas que reunira ao serviço da empresa. A ciência náutica foi logo colocada ao dispor da política régia, para garantir o êxito de novas viagens à região do Malabar. O que significa que um grupo de nautas experientes, incluindo pilotos, cartógrafos e mareantes, passou a trabalhar na , dispensando uma cobertura naval aos pequenos fidalgos e aos mercadores nacionais e estrangeiros que embarcavam com aquele destino”, refere Veríssimo Serrão.

“A Cidade dos Doges [Veneza] viu-se, devido ao aparecimento no Índico das nossas esquadras, gravemente prejudicada em proveito de Lisboa e de Antuérpia – pois logo em 1501 concentrámos no grande porto flamengo avultadas exportações de mercadorias e em 1503 o negociante Tomé Lopes entende-se com alguns argentários e ali instala rendoso centro de distribuição de produtos. Pouco tardam a afluir, tanto à metrópole do Tejo como à do Escalda, os magnates da finância germânica e italiana – os Fugger, os Welser, os Hochstetter, os Imhof, os Frescobaldi, os Gualterotti – na mira de vantajosas transacções”, segundo João Ameal, que refere, tal como o Cairo, Alexandria, Beirute e Alepo, Veneza não se resignava e propôs-lhes uma aliança para combater os portugueses.

“Vacila ainda o Sultão Kansuh el Ghuri em desencadear hostilidades contra nós, tão intenso receio lhe inspira o valor já bem atestado dos portugueses; mas busca intrigar e intimidar-nos com o envio a Roma do Prior do Convento de Monte Sinai, Fra Mauro, a prevenir o Papa Júlio II do propósito em que se encontra de exercer violentas represálias sobre a cristandade palestiniana e, também, de iniciar operações de guerra no Mediterrâneo caso o Rei de Portugal insista em manter no Índico as suas armadas, os seus núcleos fortificados, os seus estabelecimentos mercantis. Quando se conhecem em Lisboa estas notícias, apercebe-se o Venturoso do vasto conluio dos adversários para nos expulsar das águas orientais.” A Lisboa chegou em Junho de 1505 Fra Mauro com o recado do Papa a exortar à desistência, mas já a armada partira e como resposta levou, estarem os portugueses decididos a avançar na empresa e substituir o eixo comercial Veneza, Alexandria, Meca, Calicute.

Com Francisco de Almeida

Através de Afonso de Albuquerque, D. Manuel compreendeu a necessidade de alterar a estratégia no Oriente e aí ter uma organização de governação. Criou o cargo de Governador, como seu representante com autoridade na Índia portuguesa. A prioridade era dar apoio e protecção às embarcações no Mar Arábico e fazer alianças com os soberanos locais para estender a soberania a outras regiões, onde se deviam criar feitorias e erguer fortalezas. Além do Malabar, procurar abrir as rotas com o Ceilão, Malaca e Insulíndia, fonte das especiarias e no Golfo Pérsico tomar Ormuz.

A primeira escolha de D. Manuel foi Tristão da Cunha, mas estando em momentânea cegueira substituiu-o por Francisco de Almeida, nomeado governador por um triénio, levando de Lisboa outorgado o título de Vice-Rei quando erguesse fortalezas em Cananor e Coulão.

O Rei investiu uma enorme soma de dinheiro para erguer a armada, co-financiada pelos alemães Welser, sendo a finalidade assegurar o domínio português no Índico e aí impor o monopólio do comércio de especiarias, assim como criar estaleiros para a reparação de navios.

A sétima armada à Índia, comandada por D. Francisco de Almeida, deixou o Tejo rumo ao Oriente a 25 de Março de 1505. Numa das 22 naus ia com 25 anos Fernão de Magalhães, um entre os 1500 soldados, fora a tripulação e onde seguia a primeira mulher a embarcar de Portugal, Iria Pereira, a acompanhar o marido António Real, mandatado alcaide-mor de Cochim.

Na costa oriental de África, a 22 de Julho em Quíloa erguiam a fortaleza e a 15 de Agosto conquistavam e incendiavam Mombaça.

Chegaram à ilha de Angediva em Setembro de 1505, fazendo um forte e depois a Cochim, onde se montou a sede da governação no Oriente e se instalou a residência de Governador, Casa da Fazenda, Casa dos Contos e Casa da Matrícula. Ainda nesse ano tomaram Cananor e construíram a fortaleza de Santo Ângelo.

Lourenço de Almeida em finais de 1505 estava no Ceilão (Sri Lanka), a origem da canela, estabelecendo em Galé uma aliança com o reino de Kotte.

Discutia-se fazer no Ceilão a capital da governação, pois de mais fácil defesa que Cochim, mas tal não foi avante.
O primeiro Vice-Rei da Índia D. Francisco de Almeida (1505-09) mandou nos finais de 1506 uma expedição “para solucionar as divergências sobre a posse do trono de Quíloa, existentes entre Hocem e Micante”, segundo João Cosme, que refere ter Fernão de Magalhães nela participado. “Crê-se que regressou à Índia na nau S. Simão que, em 19 de Setembro de 1507, partiu de Sofala em direcção à costa do Malabar.”

Desastre de Chaul

Em missão de patrulhamento, D. Francisco de Almeida enviou em 1507 o filho Lourenço para Norte, pela costa ocidental da Índia, com a intenção de estrangular Cambaia, zona de grande comércio e cujos mercadores dominavam as rotas no Índico, com ligações do Golfo Pérsico até Malaca. Como a cidade de Cambaia era de impossível ataque, pois recuada da costa e cuja muralha no alto do monte controlava o porto, situado no interior do golfo, então, era preciso nas redondezas encontrar locais para impedir a navegação dos seus barcos. A atenção virou-se para a cidade de Chaul, no Decão e mais tarde, para a ilha de Diu, no Guzerate.
Chaul, cujo Rei Nizamaluco era rival do vizinho Adil Khan de Goa, tinha no Rio Roha uma boa enseada onde os barcos portugueses aportaram pela primeira vez em 1505. Dois anos depois, Lourenço aí afundou sete navios do Samorim de Calicute.

Para travar as conquistas portuguesas realizadas nas costas ocidentais da Índia, o Sultão do Egipto enviou uma grande armada que, coligada com a do Sultanato de Deli e muçulmanos de Diu, em Janeiro de 1508 apanhou de surpresa no interior do porto de Chaul a frota de Lourenço de Almeida e derrotou-a. Capturando algumas naus, mataram D. Lourenço e mais cem homens, conseguindo outros muito a custo regressar a Cochim.

Como retaliação pela morte do filho, D. Francisco de Almeida em finais de 1508 foi aos domínios de Cambaia arrasar o porto de Dabul e Diogo Lopes de Sequeira, saído de Lisboa em Abril de 1508 ao comando da nona armada com a intenção de ir a Malaca, tentou, sem conseguir, construir em Chaul uma fortaleza.

11 Jan 2021

A Emergência do Buda e a Pintura

Sakyamuni, o Buda histórico, depois de abandonar o palácio retirou-se para as montanhas em busca de iluminação acompanhado de cinco outros ascetas e lá ficou durante seis anos, até que uma jovem, Sujata, lhe ofereceu um pouco de leite de arroz que ele, inesperadamente bebeu, terminando assim o jejum. Decepcionados , os seus companheiros deixaram-no e ele, sozinho, decide descer das montanhas e regressar ao convívio social, em direcção a Gaya, no actual Estado indiano de Bihar onde, debaixo da árvore Bodhi, alcançaria finalmente a iluminação. Os pintores adeptos do Chan, particularmente durante a dinastia Song (960-1279) encontrariam numa destas etapas do percurso do Buda, um motivo que visualmente ajudava a esclarecer a doutrina. Designaram-no Chushan Shijia (em japonês Shussan Shaka), o «Sakyamuni emergindo da montanha» e continha uma série de atributos que, mostrados em certas ocasiões, ajudava a reflexão dos monges e eram reconhecidos entre uma minoria de literatos da elite. Entre esses elementos, estavam: a dificuldade de atingir a iluminação, a necessidade do retiro espiritual mas também um aviso: o afastamento total do mundo dos homens não é desejável. Ao olhar para uma pintura feita por um monge do século XIII de quem pouco mais se sabe que um nome, Hu Zhifu, essa encenação como exemplo, fica clara. Essa pintura, que se encontra no Smithsonian, Galeria Nacional de Arte Asiática em Washington, DC (rolo vertical em tinta sobre papel, montado num painel, 92 x 31,7 cm) reluz no espírito como um espelho: um homem frágil, cansado, vem sozinho, as mãos escondidas, os pés nus, um à frente do outro parece caminhar, saindo de uma massa rochosa – uma montanha. Um elemento que se tornaria central na pintura shanshui que desde então ocuparia o pincel de grandes mestres nos anos seguintes.

Zhu Ruoji, que adoptaria o nome Yuanji Shitao (1642-1707) ao entrar para um mosteiro budista em 1651, seria um desses mestres que procurou transmitir o Chan sem usar palavras. Teria vinte e cinco anos quando, utilizando um outro ícone do Budismo, os «Dezasseis Luohans» faria numa extensa pintura (rolo horizontal, 46,4 x 598,8 cm, a tinta sobre papel) que se encontra no Metmuseum em Nova Iorque, uma sedutora demonstração das possibilidades do uso do traço da tinta preta. Numa pintura que se desenrola tendo como fundo uma «onda de pedra», estão figurados os dezasseis discípulos a quem o Buda pediu que aguardassem na montanha a emergência do Maitreya, o buda do futuro. Mas o que prende o olhar de todos é a aparição de um dragão, o agente das infinitas metamorfoses da Natureza que foi libertado, a partir dos vapores de um pequeno vaso, por um dos discípulos. A sua mão alçada, semelhante à de um pintor segurando um pincel, será um gesto visionário, uma iluminação como a que as mãos do Buda têm o poder de revelar.

11 Jan 2021

O futuro radioso

Precisamos das contribuições de certos títulos para sair de um Ano cuja radiação foi catastrófica, Alexandre Zinoviev anteviu muito tempo antes a derrocada da U.R.S.S em várias sinopses que poriam fim ao slogan simbólico e triunfalista de um radioso futuro da Humanidade. Política à parte, trata-se sempre de saber ver que os grandes empreendimentos ideológicos se separam da realidade e que as pessoas não cabem em nenhuma estrutura socialmente modificável, eles avançam, e as pessoas ficam, tão iguais a si próprias como sempre foram, máquinas audazes de sobrevivência. Se trilhássemos todos os países veríamos sem dúvida nos movimentos sociais que estivessem em curso a mais intensa fé dos homens e o seu grande vigor antes dos regimes assentarem os seus dogmas como mortalhas.

Os ciclos extraordinários dão sempre mais do que tiram, e ainda atiram para as urtigas o ranço da estabilidade mórbida que deve ser coercivamente abalroada por uma nova ordem em marcha, nesse momento, soltam-se forças de uma extrema alegria de grupo que duram pouco, mas produzem o melhor. Devagar, voltam então os tiranos com novos emblemas e não se lhes pode exigir grande coisa, a menos que estejamos em Democracia, a qual se tem tornado uma ilusão mergulhada em grandes equívocos nestes últimos tempos em que os amanhãs que a cantam ficam já nas calendas dos radiosos futuros. Se Estaline fez um acordo secreto com Hitler, de pouco ou nada nos valerá para ajuizamento, mas diz o bom senso que nunca se deve confiar nos loucos. Mas também é certo que os negacionistas atravessam-se em todos os ciclos históricos; carregam a gratidão com tanta ferocidade que se torna difícil qualquer confronto lúcido. Longe vai o Gulag, longe parece estar tudo que a intransigência determinou, mas, será que sim? Em cada dia passado neste já longínquo outro regime sentimos a imponderabilidade da marcha, e quando nos levantamos para a complexa estrutura que implantou regras fundamentais, vacilamos perante a capacidade de reversão das massas.

«Beber do rio infectado da matança» também podia ser um título que se contrapusesse à audaz radiosidade da vitória, agora, e depois de laudatórias ovações, as sociedades tão extraordinárias como as do Norte Europeu, acabamos por descobrir a produção de seres vivos aos milhares para fazer casacos “fofinhos” para um mundo de pessoas e ideias mais “fofinhas” ainda. – É! – Putin ri-se, e muito bem, das avarias envenenatórias de que o culpam, o que está certo, um antigo director da K.G.B não anda a brincar aos espiões e muito menos a falhar os alvos, e as razões aparentemente metafísicas de ter ajudado ao desastre não devem ser expostas assim com aleivosidade ocidental que se baralha toda na labuta pela verdade. O futuro do seu país pode não ter sido radioso mas será sempre suficientemente imperial para não deixar de estar atento aos fluxos da radiação do mundo.

Foi um tempo que nos incita agora a pensar na travessia das coisas, e se as ordens de expulsão exercitaram as quedas, hoje mesmo, ninguém sabe para onde fugir, e o que se nota é que tudo cai sem recurso a uma exclusão. O futuro tem cintilações tais que podemos não saber ver o que para aí vem, e se fugirmos para a frente, mesmo assim ainda carregamos os espectros dos passados longínquos, e estas órbitas chegam a um ponto que regressam aos mesmos lugares. Só nós fomos caminhando loucamente na deriva de poder apanhar a nuvem, que era Juno, a modernidade que agora se esvai, e a inventividade que se cansa e produz efeitos cegos para a Cidade única em que se tornou o mundo.

O cientista russo da vacina acaba de cair de uma janela do décimo quarto andar – e voltamos ao soneto – que a poesia já não é prosa, e dela se deitam os cientistas antes de acabar as suas invenções. Com esta suposição de homicídio, o que estava a preparar o senhor para tão vertiginoso fim? O futuro pode até ser radioso, mas nunca transparente. Zinoviev, esse, continua a ser o nosso Pai Natal da Sibéria, o dissidente do passado que nos inspira a conhece-lo e também a saborear a ironia mais audaz como forma de manter viva a lucidez. E nada mais belo que «Ivan o Terrível»!

Sou mesmo Ivan. Até dá riso
Ficar para prá´qui a criar o paraíso,
Para que os nossos filhos se venham a queixar,
Que nome Levi não se possam chamar.
Mas para ser justo, digno, perfeito
Demos a Levi o que é por seu direito.
Já que foi Levi e não Ivan quem se lembrou
De criar o paraíso e a ideia executou.
Forjando um Éden para a sua descendência
E assim levando o pobre Ivan à demência.

5 Jan 2021

O Monge Que Deu o Braço a Bodhidarma

Crónica por Paulo Maia e Carmo

Li Ao (772-841) escritor e em geral erudito confuciano, possuía uma vontade de conhecer que se manifestou no reconhecimento filosófico e literário mas também no deslumbramento do espaço. Na sua célebre «Memória da minha viagem ao Sul» que decorreu no ano 809 e que o levou de Luoyang a Guangzhou foi anotando o que via e interpretando. No dia 1 de Abril, por exemplo, escreveu: «Visitei Wudangshan (Hubei) a Montanha da floresta marcial (…) Escutei o vento nos pinheiros convocando as montanhas encantadas com longos cantos, escutei os guinchos dos macacos e rapazes da montanha que imitavam as cotovias.» É possível que tenha sido aí, nessa atenção ao que escutava, que teria ouvido falar de um mestre do Budismo Chan chamado Yaoshan Weiyan (745-827) cuja fama se difundia na habitual forma de diálogos reveladores. Um deles coloca-o conversando com o seu mestre Shitou Xiqian (700-790) que lhe terá perguntado: «Que fazes aqui?» ao que Yaoshan respondeu «Não estou a fazer nada.» «Então estás só aí sentado, a descansar» disse Shitou. Yaoshan respondeu: «Se estivesse sentado, a descansar, já estaria fazendo alguma coisa.» Essa fama de sabedoria loquaz levaria Li Ao, o confuciano, a querer conhecer o monge adepto da súbita iluminação. Porém, ao encontra-lo, terá ficado decepcionado: «Ver-te não é tão interessante como ouvir falar de ti.» A resposta do mestre perduraria na reflexão sobre a realidade final, aquilo que pode ser visto: «Porque desvalorizas o olhar e dás importância ao ouvido?» Na realização dessa imprecisão, pintores adeptos do Budismo Chan criariam uma fórmula de representação que daria um valioso contributo para a percepção de o que é a pintura.

Shi Ke, que viveu no século X, no período das Cinco Dinastias (907-960) seria reconhecido na posteridade pela pintura «Dois patriarcas» que, numa provável cópia do século XIII, se encontra no Museu Nacional de Tóquio (rolo vertical, 35, 3 x 64,4 cm, tinta sobre papel) e se tornaria icónica desse tipo de representação, utilizando só linhas velozes e sombras. Numa dessas duas figuras sentadas, «harmonizando a sua mente», observadores reconheceram a efígie do segundo patriarca do Chan, Shenguang, também conhecido como Dazu Huike (487-593) que possuiria uma inquietação que só Bodhidarma o primeiro patriarca, poderia aquietar. Quando foi ao seu encontro, ele meditava frente à parede de uma caverna, perto do mosteiro de Shaolin, e a vontade de ajudar a difundir os ensinamentos do Chan era tal que se diz que cortou e lhe ofereceu o seu braço, um sacrifício do corpo que os adeptos facilmente entenderam como sinal de liberdade espiritual. Que na pintura de Shi Ke se revela nesse diálogo entre o Chan e a pintura, que resultaria na adopção de especiosos termos para se explicar como pomo, a tinta espalhada ou yipin, a categoria naturalmente desenvolta.

4 Jan 2021

Visões do inferno e nem tanto

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 7 Dezembro

Não sei se deram por isso, mas a Livros do Meio tratou de verter para português, por obra e graça do Rui [Cascais], «Um inferno chinês», atribuído a Divino Panorama, nome justo para tão singela obra! O livrinho tem-me atormentado as noites e não falo de ilustrações, que as tem roubadas à antiguidade clássica. As torturas disputam o protagonismo com os valores da sã convivência. Um dos tribunais condenará aqueles que falam dos pecados dos outros a serem amarrados por cobras de metal e esmagados por cães de ferro. Noutro condenam-se os que se apropriam de cartas, imagens ou livros postos à sua guarda dizendo que os perderam. Também condenável se diz ser a prática da má escrita. O corpo dos inúmeros condenados irá desfazer-se das mais diversas maneiras no território. Se aprendermos a viver respeitando a luz dos outros talvez nos salvemos, mas não estou certo da leitura. Preciso de mais umas noites em branco.

Horta Seca, Lisboa, terça, 8 Dezembro

E no entanto ela move-se. A «Ilustração portuguesa» foi exposição e agora repositório das dezenas de produtores de imagens. Não gosto da expressão, mas não encontro outra, entalada entre o modo fabril e o artesanato, a exigência de um suposto mercado e o desejo íntimo de expressão. Espanta-me mais uma vez a quantidade e a qualidade do que se produz e não está tudo aqui reflectido, nem todos os que fazem, nem o muito que desenham. Mas o somatório abre janelas sobre o que se vai imprimindo nos jornais, nos livros para as infâncias, nas capas, como nos ecrãs ou nas paredes de galeria. A pandemia, por exemplo, está ausente, que a selecção foi prévia, mas próximas edições irão conter esses dias carregados de metáforas, de corpos em tensão, de retratos ao espelho, de delírios e registos do quotidiano. De qualquer modo, as facetas do cristal dos dias reflectem a luz nestas páginas. Para trás e para frente flano por entre estas construções, rostos e paisagens, para me deter no abstracto. O João [Maio Pinto] parece coreografar as melodias que se soltam da guitarra, e assim acrescenta dimensões ao que era plano antes da tinta, vazio antes do gesto. Nervuras sustentadas no que parece peça de mobiliário, figurações aparentes sustentadas por nuvens, veludo negro, subtilezas da carne. De novo, quanto de vida se perdia sem as ilustrações? Haverá vida para além delas?

Horta Seca, Lisboa, sexta, 11 Dezembro

Abrimos lugares no sítio (www.abysmo.pt). Não quisemos apenas loja, mas página onde se falará de livros e do mais a partir deles. Começámos até oferecendo distopia em rima com os dias, assinada pelo mano Zé Xavier Ezequiel. Brilhará portanto uma óbvia paixão pel objecto, reverberando no vazio, canções sólidas, formas de vestir e habitar, lâminas e algodão. Além do mais, que esperamos muito, haverá sempre encontros na «mymosa», que se chama assim pela natureza do óbvio, que naquela agora extinta sala de saciar fomes e sedes aconteceu tudo e mais alguma coisa. «Grandes conversas sobre o tempo a partir dos gregos, da física quântica, dos palcos e de Proust. Aquela sobre a pintura e como nos jogamos nela. A localização exacta do Inferno. Camões foi assunto e destino de partida.

Os detalhes do uso de variegadas drogas, desde tempos imemoriais, falas na primeira pessoa, práticas na terceira. Apareciam mágicos, dos que faziam aparecer e desaparecer. Velhos trazendo histórias e vidas pela trela. Moradores das mais distintas paragens. De súbito, ao balcão vozes cavas discutiam a teoria das cordas e o contista não queria acreditar. Aconteceram canções, mesmo que não cantadas. Fado, por uma vez. A concertina amiúde. Golpes de teatro, a dar com um pau. Gargalhadas eram o pão nosso de cada dia. Enormes momentos de futebol, com jogos dentro. E até jantares. Ou almoçares, dos que começavam ao meia dia e acabavam à meia noite, dando nós no tempo. Claro que se semearam poemas, se cimentaram amizades e outras se desfizeram. Ainda recordo o concreto de cada uma. Chorou-se, por ser o apropriado ou sem querer. Longuíssimos testemunhos de vida, gente a despir-se lentamente, locomovendo-se.»

Horta Seca, Lisboa, segunda, 29 Dezembro

Queria que acontecesse de modo semelhante, o leitor sem saber ao que vai, recebendo nas mãos um certo «Tom», e no gesto mudando a melodia dos dias. Distraidamente, terá talvez visto as três letras dançando, nos cantos inferiores da convenção. Aqui uma onda, com a linha do t prolongado atirando o redondo o pelos montes do m, delícia de movimento, a mão a fazer da assinatura ponto final. Casos há distintos, em que o t faz de antena e raiz, linha recta procurando profundezas no vazio, as restantes letras um horizonte ainda por estender. E outras declinações ainda nomeiam o produtor das imagens, um entre tantos outros, nem se dá por ele na poeira do tempo.

Mas o livro verde amplia doravante essa ligeireza. O Jorge [Silva] anda há muito a coligir papéis, pele frágil mas duradoura na qual pousam as imagens, sem que isso signifique repouso. Ainda que quietas, as imagens despertam sem cessar movimentos, a interpretação suscita o pensamento, desdobra-o em ziguezague de aproximação e afastamento das formas do real. Quanto de vida se conserva nestes traços e cores de coisa nenhuma? Foram encomendas, divertimentos, maneiras de iluminar o que se diz, de retirar ao caos uma ordem mínima capaz de sustentar olhares, de fazer cidades e por aí adiante. A verdade é que, coligidas, dizem de uma profunda plasticidade, afirmam a pés juntos dispersa identidade e nisso nos surpreende que nem madrugada. O nosso modernismo praticou o jogo com uma alegria que espanta, sem dispensar a melancolia. Foram revistas para as infâncias e cinéfilos, livros e depois produções para modelar o gosto, caricaturas a capturar rostos, cores a fixar cidades e o tanto que estas páginas ilustram. Folhear estas páginas é alinhar na brincadeira. Está lá o devido enquadramento, o lugar na fita do tempo, as explicações do artista e de quem o sabe ler, passos na direcção da armadilha, mas pouco mais importa que a sucessão libertária dos seres vivos: as imagens. Ao acaso, vejam estas duas, uma que aqui vos deixo, um galo de ferro posto algures em alto de Monsanto, a aldeia mais aldeia da grande aldeia tuga. Mas atentemos nos retorcidos do ferro, nas furações, nos recortes, nos modos de fazer penas, e digam-me onde começa a tradição e para que futuro aponta o bico. Tomás de Mello procedia com esse método em cada parte da realidade que tocava, síntese maravilhada, a extrema complexidade a pulsar na clareza. Ora como podia o nosso olhar alcançar o bicho lá no alto do longe? Só aqui, no livro de fresco verde que me surpreende com a canção do vento. Depois há um Camões actualizado, com crítica e leitura dos idos de setenta. Uma geometria a quadricular a página em fragmentos, como se a vida se tivesse desmultiplicado em partículas que convergem na cena central, um palco feito coração a pulsar com a galáxia no seu entorno. E fico horas a remirar como quem mastiga. Que interessa a disciplina onde se há-de guardar isto? Os mestres da brevidade são bem capazes de parar o tempo, e nós com eles. Poucos haviam dado por isso, mas o Jorge anda nisto há anos, a vasculhar no esquecimento para nos dizer da pujança de nomes como Pavia, Lapa, Tóssan e tantos outros. Um cata-vento, portanto. Dos que cantam direcções.

30 Dez 2020

Konstantinos Kavávis

Desçamos a Alexandria e nela tentemos focar a imagem do poeta, ao que se sabe, um homem bonito que na sua cidade foi compondo aquela obra de fronteira, tão universal, quanto cheia de Impérios e de areias, tão do corpo, do corpo tocado, da forma soprada, que Alexandria é como as lendas e Kaváfis um puro encantamento dentro dela.

Que nós, os mais naturais, pouco entendemos de fascínios e quase esquecemos a espionagem da Rota da Seda – a rota da Civilização – circuito onde toda a beleza e perigos algures se cruzaram. O poeta tinha no sangue todos estes caminhos desde a Pérsia, à Arménia, à Macedónia, Constantinopla pela herança helénica, e mesmo assim não vamos encontrar nele um ser histriónico, entusiasta, antes pelo contrário, foi um homem metódico, escrupuloso, secreto e burocrata, distinguindo muito bem os papéis do seu próprio destino. A sua obra também não foi prolífica – 154 poemas ao todo que passaram a livro póstumo e que durante a vida ele editara em panfletos, folhas soltas, num sistema de divulgação muito popular na Grécia, em neogrego, a língua do Oriente helenizado que Kaváfis faz brilhar na sua vertente linguística.

Mesmo em Alexandria poderemos dizer que não se encontra separado da sua geração no que respeita ao estilo da corrente Simbolista, mas ele não fará nenhuma alusão específica e foi ainda possível conhecer-lhe melhor os passos através do célebre «Quarteto de Alexandria», de Lawrence Durrel, que o retrata para o fim como um ancião cosmopolita avesso, no entanto, à luz eléctrica, gostando da penumbra e optando por luz de velas ou candeeiros a gasolina. Mas era a sua «noite iluminada», revestida de boémia, que o introduzia na saciedade dos corpos carregando a sua homossexualidade como um anátema social que não lhe roubara nenhum prazer saciável que tanto sentiu diante da beleza adónica.

É que Kaváfis era um esteta e nenhum moralismo lhe tiraria as forças e de tal forma um ser erótico que soube dizer como jamais escutámos no poema esta conjugação de aspectos: «esforça-te, poeta, por retê-las todas (as imagens) embora sejam poucas as que se detêm/ as fantasias do teu erotismo põe-nas semiocultas, em meio às tuas frases» esta reserva, este sentido do oculto sem no entanto anular a carga da mensagem, conferem-lhe pleno poder de concisão e vigilância que lhe permite estar atento ao dolo intranquilo de todo o prazer que não é selado. Talvez que a sua própria vida lhe desse a conhecer o limite da beleza enquanto acto transgressivo, e que nela, no pico mais alto, se correm os maiores perigos que contribuem para elevar essa busca ardente.

O poeta viajou mas é como se nada disso o tivesse impressionado. Ele era da sua cidade o amante dilecto, «aquela em que nunca chegou pois nunca partiu» e sabe-se que gostava de palmilhar a pé quotidianamente os seus bairros, falando de forma casual para quem o quisesse ouvir da sua poesia, onde fumava demoradamente uma longa piteira e se foi constituindo assim um ser sem grande propensão para outras demoras. Havia uma certa antipatia nos centros das esferas literárias que não entreteve com querelas e criticismo vão, para além de nunca lhe ter sido sensível o factor político ou social. O “bas-fond” da cidade deu-lhe as imagens mais representativas e talvez no limite se sentisse por elas subjugado por sua própria natureza poética, que não raro toca o desespero e o vazio de viver, e talvez aí a sua comoção fosse para além do instante e encontrasse matéria para os temas transformados na maravilhosa narrativa que foi afinal a rescrição continua dos seus poemas.

Aqui vemos o perfeccionista, o homem que se demora a contemplar e a corrigir exaustivamente a sua obra, sem tempo para continuar a outra que o reino da quantidade gosta de esvaziar nos incautos bloqueados. O seu tom confessional nunca fraquejou embora não nos demonstre jamais o seu martírio, será talvez esta sobriedade que mais o coloca na senda aristocrática de um sangue grego antigo de que descendia. E quando, e quanto ao corpo, há um estremecimento nessa forma tão bonita de o mencionar ao dizer: «Lembra corpo, não só o quanto foste amado, não só os leitos onde repousaste/mas também os desejos que brilharam por ti em outros olhos claramente/agora que tudo isso se perdeu no passado, é quase como se a tais desejos te entregaras/e como brilhavam, lembra, nos olhos que te olhavam/ e por ti na voz tremiam, lembra corpo».

Por ele embarcámos para Ítaca numa viagem de coragem e de amor, aprendemos a não apressar o passo e a refrear as ambições, fez-nos ainda predestinados e atentos através da ilha que é a sua alma velando por nós todos à escala humana, alertou-nos para o perigo das construções que podem ser maléficas sempre que as invocamos mal na nossa mente, olhámos ainda a beleza do altivo espírito do pensamento e a importância maior de não abrigarmos espectros. Fez-nos esperar pelos Bárbaros (que contemplam aqueles que a Europa hoje deixa a morrer no Mediterrânio) com alegria e satisfação logrando serem a única solução, sabendo que vinham das tribos festivas do mundo onde se compunham os orais poemas da sua virtude. Conseguiu remeter o fio do tempo para ciclos antropológicos que ninguém consegue ver o que abrigam de riqueza e oportunidade, causou-nos a maior abertura para vermos que padecemos de um desconhecido medo e que os ciclos históricos são como as vagas dos oceanos, navegamos por eles. Lembrou-nos os Oráculos no «Prazo de Nero» e a sua geometria do destino talvez apontasse também ela para uma certa predestinação, nascido a 29 de Abril de 1863, nesse mesmo dia morreria em 1933. Não foram os Idos de Março, esse temor antigo de que fora afinal um célebre guardião.

Não me deixei prender. Libertei-me e fui em busca de volúpias
Que em parte eram reais,
Em parte haviam sido forjadas por meu cérebro;
Fui em busca da noite iluminada.

29 Dez 2020

Teoria da indiferença

Esquece – digo – com fervor, a mansidão lenta do deserto, as flores sobreviventes. As flores adaptadas, garras de leão, lindas e em extinção. As montanhas difíceis e de raro chover. As altas moradas. As visitas guiadas. As rosas do deserto, de troncos enlaçados a lembrar corpos e a abrir flor. Os mortos. A secura árida. As ruas sem limite e o horizonte fugindo a cada passo em frente. Dado ou devolvido. As pegadas. Que, mesmo nítidas se esfumam no recorte. Vendo bem, nem o lado da frente se lhes distingue do outro. E basta um vento. Daqueles que rolam rolos de fibras secas a varrer o deserto. Crânios. Esquece a tumultuosa ferida do meio-dia, a miragem aquosa, os animais que só bebem uma vez, que não somos nós e os cascos duros, fendidos e secos. A desidratação – mais grave – um esmorecimento difícil de revolver.

Esqueço. A alegria de ansiar a costa para qualquer lado em que é sempre vale. O desenho em frente do caminho mais longo. A persistência da água no corpo, a lucidez e a própria resistência, se se me entende. As ruas do deserto largas em todos os sentidos. E os semáforos inúteis que não desistem de crescer com as primeiras chuvas. Parcas chuvas e sinais. Ossadas a dormir tristes e em pose. E as dunas. A migração. Bocas fendidas a rir sarcasmos repetidos e em coro. Sorrisos sinuosos. Ondulações sem olhos, porque já bastam as estrelas serenas do alto, a velar.

A futura morte. Do que se afoita a inventar o acaso. O caminho pela linha mais longa e pela mais larga é o azar do erro. Esqueço. Aquele gesto a pedir a face quando não haja nem o gesto nem a face e tudo esteja como sempre.

Esquecer. À beira de uma coisa como indecisamente. As impróprias flores do deserto para tudo menos solidão. Mas não sei a cura neste remédio. Ao largo, na franja ainda do deserto, recuperável pela humidade. Remédio para a esperança que é para curar se é. Mais uma amputação. Nas ruas sem desenho. Do mal de viver, como um braço estranho e a mais e só porque se sente estranho e mais. Ou da raiz que é de crescer. Poderia dar-nos, o lirismo, para a elaboração, ou a perseguição ou a caminhada e o sentido. Ou a evasão. Uma casca para defender, para matar. A dor. Reconhecer e definir. A condição patológica do limiar baixo é como não abandonar o vale para subir ao cume.

Imitar o resto da natureza e o exemplo do casulo. A casa confortável, sedosa e nada ruidosa. A magia da elaboração e a miragem da transformação. Mas tanto que fazer nas ligações entre as coisas difíceis e destiladas complicações, fadadas à arrumação contante, recorrente e desesperante. Uma espécie de lida doméstica e como ela sem fim.

Esquecer. Teorias do sentido e do sentir. Esquecer. A indiferença. Ou sentimos o mundo ou nos encerramos. Casulos de seda são riscos. Entrar borboleta e sair larva, como um erro metafórico.

Esquecer. O encontro que é saber, antes de reconhecer. Antes do deserto o desenho da porta e antes da porta. Uma vastidão de lagartos estranhos e espreitar a carantonha do tempo e é à dentada e feroz que lhes arranca inglório a cauda. Sacodem-se mais leves e rápidos e sorriem sorrisos de lagarto no pensamento de que cresce de novo. A cauda. O paradoxo no esgar da bocarra que arranca e deixa crescer.
Esquecerei. Tudo, quando morrer.

28 Dez 2020

As costas do continente americano

Apesar de os europeus já terem aportado no lado Atlântico do continente americano, não havia ainda dele consciência, crendo Cristóvão Colon ter percorrido as costas da Grande China. Essa ideia permanecia em 1499 quando o espanhol Alonso de Oreja explorou a região de Pária [Venezuela], atingida por Colon na viagem de 1498, e o florentino Américo Vespucci daí investir para Sul ao longo da costa 400 léguas, sem encontrar o tão aguardado Cabo de Catígara, a dar passagem ao Índico.

Entre esta viagem e a seguinte de Vespucci, ao serviço de Portugal Pedro Álvares Cabral atingiu em Abril de 1500 as costas orientais da América do Sul e a 5 de Março de 1501, o galego João da Nova partira com quatro embarcações ao comando da terceira frota à Índia. No Atlântico encontrou à ida a Ilha de Conceição, a 8º de latitude Sul, e no regresso, a Ilha de Santa Helena, chegando ao Tejo em Setembro de 1502.

A segunda viagem de Vespucci (para muitos historiadores não se realizou) iniciou-se em Lisboa a 13 de Maio de 1501, agora ao serviço do Rei de Portugal. Atravessou o Atlântico em 64 dias e na parte austral do novo continente durante dez meses navegou 800 léguas ao longo da costa até próximo de San Julian, a 50º de latitude Sul, na Patagónia. Explorara quase toda a costa Oriental, tanto a situada no domínio de Portugal, como muita pertencente a Espanha. Sem encontrar a tão desejada passagem, concluiu tratar-se de um novo continente. Regressou a Lisboa em 1502 e como o seu trabalho teve mais interesse para Espanha, foi depois Vespúcio recebido com muito agrado por os Reis Católicos, que lhe ofereceram trabalho para preparar pilotos e melhorar a organização da real navegação, onde então começavam a investir.

OS CORTE-REAL

A intenção de procurar novas terras e uma passagem na parte setentrional do continente levou Gaspar Corte Real a negociar com o Rei D. Manuel o doar-lhe as terras e ilhas que descobrisse, concessão feita a 11 de Maio de 1500, antes de partir. O seu pai, João Vaz Corte Real dos Açores chegara à Terra Nova em 1463 e agora era a vez de aí ir Gaspar nos seus navios. Partiu no Verão e explorando aquelas regiões, regressou no Outono. António Sérgio refere, “Animados, por este êxito, trataram Gaspar e seus irmãos (Miguel e Vasqueanes) de preparar nova viagem, com três navios que largaram de Lisboa em Janeiro de 1501, para aportarem às regiões que aquele descobrira pouco antes.

Segundo uma carta do italiano Cantino, domiciliado em Lisboa, os descobridores navegaram na direcção do Norte uns cinco meses, ao cabo dos quais encontraram grandes massas flutuantes de gelo que iam impelidas pelas águas.

Pouco depois, viram o mar completamente gelado. Isto os induziu a mudar de rumo para Noroeste e para Oeste. Ao fim de três meses de feliz viagem foram dar com uma terra muito extensa, sulcada de grandes e pitorescos rios, com frutos excelentes e variados, com árvores elevadíssimas. Os indígenas viviam da caça e da pesca. Apoderaram-se os expedicionários de uns quarenta, para os levar ao rei. Decidiu Gaspar Corte Real ficar ali por algum tempo, para explorar as costas com a sua nau, e mandou regressar as outras duas”, que chegaram ao Tejo em Outubro de 1501.

Quatro meses passaram e Gaspar não aparecia, decidiu Miguel com três caravelas ir procurar o irmão, mas também nunca mais regressou. Vasqueanes, o irmão mais velho, só não os foi procurar pois o Rei D. Manuel “não o consentiu, decidindo enviar caravelas às paragens onde haviam navegado os desaparecidos”, que regressaram sem notícias. Por inscrições gravadas no rochedo da praia de Dighton com o nome de Miguel Corte Real, sabe-se agora ter ele ali sido chefe de uma tribo indígena. O objectivo dos Corte-Real de encontrar o caminho da Índia por Noroeste mostrou-se impraticável.

BALBOA NO MAR DO SUL

A falta de proveito material das duas primeiras viagens de Colon levou a ninguém se alistar em 1498 para a terceira e sem conseguir tripulação, foi preciso comutar penas de prisão a facínoras de toda a espécie com a condição de na América ficarem em exílio por uns tempos. “A 23 de Fevereiro de 1512 ordenou Fernando o Católico o envio de mulheres escravas, vagantes e prostitutas para as Índias”, segundo Fernando Alvarez-Uria, que refere, “O novo mundo converte-se desde muito cedo em porto de destino duma população selecta, na qual evidentemente figuram homens de guerra e gente adventícia” e “ao lado destes homens, encarregados de submeter a população autóctone ao jugo real e aos mais vis sofrimentos que a cobiça impunha, apareceram muito rapidamente confessores e pregadores encarregados de submeter as almas daqueles infiéis…” Eram “Dois projectos políticos divergentes, que durante certo tempo coexistiram e foram complementares.”

Para rentabilizar as expedições e colonizar os índios, como Colon chamou aos nativos da pseudo-Índia, a Espanha enviava para as novas terras homens como o sevilhano Bartolomé de Las Casas (1484-1566). Chegou em 1502 a Hispaniola (Haiti) com os mesmos interesses e comportamento dos outros colonizadores e só em 1514 se colocou a defender os escravizados índios, sete anos após ser ordenado em Roma. Por estarem a ser rapidamente exterminados pela pólvora, o dominicano Las Casas desde 1515 fez catorze viagens para os defender perante o Rei de Espanha.

Já Vasco Nuñez de Balboa (1475-1517) em 1500 andava pelo Mar das Antilhas e em São Domingos ficou dez anos até, confrontado por dívidas, fugir para o Golfo de Darien, entre o actual Panamá e a Colômbia, onde em 1509 os espanhóis se estabeleceram. A colónia foi exterminada pelos índios e para a restabelecer em 1510 chegou Martín de Enciso, mas sem perfil para governar, tomou-lhe Balboa o posto e num lugar mais fértil construiu Santa Maria de la Antigua del Darien para base de exploração. Os índios indicando a Balboa a montanha que dali se via, disseram existir para lá dela mar e no outro lado um lugar com muito ouro. Caminhando 25 dias chegou à montanha e do cume viu uma imensidão azul, onde quatro dias depois, a 29 de Setembro de 1513 Vasco Nuñez de Balboa molhava os pés, baptizando essas águas de Mar Meridional.

No novo Continente, exploradas as costas atlânticas setentrionais e as do Golfo do México sem encontrar passagem para o Mar do Sul (Pacífico), a procura focou-se no extremo Sul, por onde andara Vespúcio.

O aventureiro e talvez até criminoso João Dias de Solis, de origem espanhola, mas nascido em Portugal, onde fizera a sua aprendizagem náutica, acabou por fixar-se em Espanha, sendo “os seus serviços aproveitados em 1508 para uma viagem de pesquisa da desejada passagem. Em vista do insucesso desta exploração, renovou Solis a tentativa em 1515, quando já era piloto-mor de Castela; desta vez atingiu as costas meridionais da América do Sul, explorando o estuário do Rio da Prata e sendo aí morto pelos indígenas”, segundo Damião Peres, que julgava Colon genovês e assim refere, Solis foi o primeiro português ao serviço de Espanha.

28 Dez 2020

Media zero

Hans Enzensberger defendeu há mais de trinta anos que a televisão é o “media zero” por excelência. Isto significa que ela se limita a indicar-nos se o aparelho está ligado ou desligado. Estando ligado, haverá imagens a percorrer o ecrã, sons que explodem ao mesmo tempo, cores e vozes a coroar o folclore tele-transmitido. Se se desliga a televisão, essa ‘coisa’ não se produz. O “media zero” gera a indiferença à distância e é criado todos os dias para que esse efeito se materialize. 
 
O que o “media zero” leva a cabo é preencher o tédio, simular apogeus sensoriais e oferecer uma companhia fantasmática a quem tem a televisão sempre ligada em casa. Trata-se de uma espécie de filme de terror disfarçado de pombinha branca magnética dentro do qual a larga maioria da população vive diariamente. Imaginar que se vence a doença contemporânea do stress implica, hoje em dia, sofá e “media zero”, ou seja: pretender o mais possível desistir de ser e anestesiar-se diante deste novo altar composto por pixels (a santidade dos dias de hoje).
 
O “media zero” cria essa ‘coisa’ (que liga os humanos à máquina) como se fosse uma penumbra que nos empresta graciosamente um estado de coma suportável. E não é apenas um apanágio da televisão. Uma boa parte das marcas e dos registos do nosso tempo são ritualizados em modo de “media zero” (a maioria das músicas que ocasionalmente se escutam – e não é apenas nos aeroportos ou nos centros comerciais – limita-se a informar-nos de que há música no ar – geralmente percussão e batida sem silêncio – ou de que, ao invés, não há qualquer música no ar).
 
Na era dos grandes clímax, a relação com a transcendência permitia perceber o humano como parte indiscutível de uma entidade superior. O natal, a páscoa e o pentecostes eram, por isso mesmo, fontes de comunhão partilhadas socialmente com avidez e entrega. O mesmo se dirá de outro tipo de clímax históricos (muitos deles ideológicos e com origem no século XIX), na medida em que fomentaram o mesmo enlevo de partilha com algo absoluto, ideal e indiscutível. Muitos vestígios rituais que continuam presentes na nossa cronologia anual decorrem destas fantasias de apogeu (são vários os feriados nacionais que as reflectem).
 
Na sociedade em que vivemos, entregue ao fluxo hipnótico dos zappings e à cegueira do consumo de bens (sobretudo tecnológicos) em desfavor de um ‘ethos’ social, todos estes rituais, sejam de origem religiosa, ideológica ou outra – caso do chamado dia dos namorados, por exemplo -, surgem perante nós à moda do “media zero”. Passamos por eles como um comboio que pára em estações que são sempre iguais e que terão sido mais sonhadas do que reais. E o fundamental – em todas essas estações – é fazer uma ‘selfie’ (individual ou da tribo) e aspirar fundo o tempo com mímicas digitais como se fosse um ‘shot’ que convida a um estado de êxtase instantâneo e imediato para logo de seguida se apagar. 
 
Ao fim e ao cabo, o significado do natal, do 5 de Outubro, da páscoa ou do primeiro de maio é praticamente nulo, pois o que povoa esses dias não é nada que alimente uma sede intrínseca de apogeu ou de realização interiormente motivada, mas tão-só o fluxo da pombinha magnética que entra e sai do shopping, tal como se entra e sai do ecrã televisivo. A diferença entre haver natal e não haver natal é apenas térmica e memorial, ou seja: mero espasmo do que passámos, há poucas décadas, a designar por “férias”; um agosto mais pequeno e mais frio com prendinhas, iluminação eléctrica nas cidades e chatices nos casais, nos pais e nos avós – e outros velhos – friamente atirados para a prateleira dos lares (é até explicável como estes tempos paradoxalmente “livres” correspondem a um cume de violência dentro das famílias). 
 
O calendário é, nesta nossa época acelerada, um recheio de companhias fantasmáticas. As datas e as “celebrações” são parte de um pano de fundo tendencialmente indiferente. Ninguém hoje pensa no futuro de ouro da humanidade, nem nada hoje atrai mais as ‘massas populares’ do que uma saudável amnésia colectiva (e da própria história). O presente e o imediato tornaram-se rei, o agora-aqui sem continuidade impera por toda a parte e a instantaneidade tecnológica veio para dar corpo a esta saga que é a nossa. Acresça-se à urgência deste ‘já-patológico’ a simulação anestesiada da eterna juventude (que passa pelo fluxo dos ginásios e das próteses ciber-estéticas). Fora deste presente eterno, tudo o que venha de longe é inevitavelmente vivido ao jeito de um filme igual a si mesmo e que repete sempre as mesmas figuras, “tipos” e imagens.
 
Tal como nos dizia Enzensberger, basta-nos saber se esse filme está agora a acontecer ou não. E esse saber – que é uma filosofia de nulidade branca sobre o branco – constitui o mais elevado e assumido culto do “media zero”. Por isso mesmo, desejo-vos a todos um bom natal!
 
*Em Português de Portugal, ao contrário do Português do Brasil (que usa “mídia” numa adaptação fonética do Inglês), a palavra “media” não tem o acento agudo que é, normalmente, próprio de uma falsa esdrúxula (como acontece com “média” no sentido de “média aritmética”, “média de vida”, “média harmónica” ou de “fazer/tirar a média”, etc.). Por diferenciação, “media”, enquanto substantivo masculino e plural (do lat. media ‘meios’), surge em Português como uma excepção e deve ser sempre assim registado – apenas “media” –, embora a sílaba tónica recaia, tal como em “média” (no sentido de “média aritmética”), na primeira sílaba.

20 Dez 2020

O olhar que nos mata

Em toda a longa marcha a visão entra como forma de julgar e esculpir a Humanidade, quer como conceito subjectivo da noção de beleza, ou invólucro da substância do desejo, ela tem forjado um sistema dúbio, intenso, desagregador e ilusório no mais desperto sentido que se tem tornado sempre mais voraz. O ilusório exercício de quem vê, não será menor que o daquele que se mostra, e tudo se plasma em visualidade que exprime uma certa inocência. Mas existe um outro olhar, bem mais penetrante que todas as associações do espectro visual e que apenas olha obliquamente o drama dos expostos, esse melodrama comum de uma deidade infantil que descarrega enchentes de bloqueios para os outros sentidos com o gritante reflexo que lhes esconde: de que se reveste a intromissão desta lente cujo filtro se rompe ao captar o contemplado? De muitas coisas, e de um poder terrível!

Górgone, lembra-nos sempre, e os gatos dizem-nos constantemente quando assumem a grande antipatia por quem os tenta deslindar, não gostando dessa devassa grosseira da observação intensa. Deus de Israel não permitiu que Moisés o contemplasse pois que este morreria, Eurídice desapareceu, e a mulher de Lot transformou-se em estátua de sal.

O Olho Galáctico, ou o que Tudo Vê, aproxima-se deste conteúdo, gera o propósito do anunciar com as pálpebras fechadas quando a sua voz é tudo o que percepciono…! Deixei de ver por desventura de superabundância de imagem humana e quando o faço, sinto uma náusea tão estranha como um lamento macerado de perplexidade, um anzol com pinças nas pupilas puxado por ímanes agonizantes, ver tudo em compressão nesta fartura inexpressiva no rosto e nos corpos dos milhões que se expõem, é quase abismo e perdição. Uma crendice que se alonga nas amostras de todos os receituários e dá estampas de intolerável entretenimento, e é esta desolação sem nome que atrai o mau olhado que anda no mundo e poucos reparam como sendo a rara coisa viva. A vulnerabilidade dos expostos em suas anatomias gera o pânico, que o lamacento olhar a todos calcina, e sem nada que os segure de si mesmos, na mira do Olho que vê nas Trevas, passeiam-se sem condições, as criaturas.

O que vemos é aquilo que querem que se veja, são armadilhadas, todas as imagens, lúgubre fachada que não escapa no entanto aos que as trespassam, e todos os sedentos da circunstância do visível acontece-lhes nunca serem a mariposa que desejam ver desabrochar em outros olhos incautos. Quem vê é quem cheira, e o que penetra, vê-se de tal forma por outros ângulos, que nada do que está em regime vigente no olhar pode causar a mais ínfima sensação.

Fechamos os olhos dos mortos por delicadeza e respeito, olhamos a desordem com mágoa, desviamos o olhar da densa combustão dos corpos, pois tudo o que não devemos ver se nos apresenta como um transtorno grave, pensamos deslindar as capacidades dos seres pela legenda das maceradas imagens e elas tornam-se rápido uma forma plana por onde correm alcateias de cegos sem sentidos. Um mundo fechado à janela do seu ver cria fantasmas que padecem.

Muito ao contrário da pueril manifestação de «olhos nos olhos» os grandes apaixonados não têm essa prática, eles pressentem-se na névoa dos seus contornos, e quase deixam de ver quando ampliados pela substância de fortes e misteriosos intervenientes outros. O ver dos amantes não necessita de nenhuma imagem nem se congrega ao redor das orientações visuais. Quando todos nos dermos conta do que se passa, ficarão apenas crateras vazias no lugar onde antes encaixaram as órbitas que tiveram das superfícies o reflexo dos loucos quando se põem a caminhar. Sem projecto, nem trajecto, os caminhos que percorrem são cegos, da volúpia, apenas os pés que não se cansam, e a natureza vagabunda de um desleixo sem causa. É onde parecemos andar neste plasma planeta, e pelos seus cantos vamos sentido como se esmagam as vontades e como os dons se esfumam quais Eurídices, pois que a certificação das presenças não passa de uma desconfiança que já não é consentida. Cegados de ver, a grande abóboda Galáxia se apaga pela manobra dos que a olhar se foram para sempre carregados de vasta escuridão.

O caminho do meio não tem imagens e não derrete no quente deserto onde as periferias acordam fazer para o caminhante pequenos oásis, aí, na torreira, nem um disco brilhante no alto é visível como prolongamento do vazio, que a miragem prossegue e a sede cede. O caminhante está sempre ao nível do seu horizonte que não necessita ser lembrado porque são as estrelas que o guiam, e essa certeza é tudo o que se deseja para não sermos escravos da aparência e dos Infernos tenazes que fabricam os sonhos. Existe um vapor pornográfico nesta vertigem das amostras, uma domesticação dos instintos a catálogo, o que faz detonar os circuitos da insuportabilidade quando o estático se move. A indução do efeito visual pode levar a encantamentos colectivos que se tornam agora os mais ardentes responsáveis do perigo comum. A prestidigitação do núcleo orbital aponta uma larga pontaria em grande escala. Nós estamos todos na mira de um colapso. É o mau olhado!

 

Quem olha para fora vê
e quem olha para dentro acorda.
Ditado Alquímico

20 Dez 2020

Uma alegoria

Uma alegoria

Bukowski correspondeu-se com Barbara Frye – a sua primeira mulher, pelo menos de papel passado – durante algum tempo antes de se conhecerem em pessoa. Ela era editora da revista de poesia Harlequin, sediada no Texas, uma das muitas publicações independentes, na América dos anos cinquenta e sessenta, cuja vocação principal era a descobrirem e dar voz aos poetas que de outro meio contavam apenas com edições de autor e um público especializado mas muito restrito – a maior parte estava nessa situação.
Bukowski escapara à morte por um triz, em 1955, quando uma úlcera hemorrágica o atirou para as urgências dos desvalidos do Hospital de Los Angeles. Precisou de inúmeras transfusões de sangue e, como não tinha seguro, estava dependente de ter crédito de sangue no hospital; não tinha. Acabou por ser o crédito de que o seu pai dispunha que o salvou – tendo em conta o quanto odiava e desprezava o seu pai não deixa de ser uma cruel ironia ter sido ele a salvá-lo, mesmo que de forma mediada.
Não tinha ainda publicado poesia. A sua primeira plaquete acaba por sair em 1960 com o título «Flower, Fist and Bestial Wail». Sem poder beber – como estava habituado a beber – atira-se a entupir as caixas de correio das dezenas de revistas especializadas em poesia nos Estados Unidos com poemas seus e, não raras vezes, longos lamentos acerca do seu génio não reconhecido. Numa das cartas, para um editor literário do Novo México, Judson Crews, escreve «ou publica estes poemas ou suicido-me». Judson for lesto a devolvê-los.
Quando Barbara acede a publicar os seus poemas na Harlequin, tecendo-lhes e a Bukowski rasgados elogios – diz considerá-lo o maior poeta da língua inglesa desde William Blake –, estabelece-se imediatamente uma relação. Rapidamente o plano profissional dá lugar à troca de entusiasmos e queixumes. Ela lamenta-se repetidamente de poder nunca vir a casar, visto ter uma deformidade física que afasta os homens – faltavam-lhe duas vértebras no pescoço; além de não conseguir virar a cabeça, dava a sensação, a quem a via, de que ela estava sempre de ombros encolhidos.
Cansado daquela ladainha, e de certo modo familiarizado com a noção ser preterido pelo aspecto, Bukowski certa noite escreve-lhe uma carta (provavelmente bêbedo) em que lhe garante não ser por meras duas vértebras a menos que Barbara iria ficar solteira. Ela era uma rapariga simpática e inteligente e, afiança, ele próprio casaria com ela se ela assim o quisesse – o equivalente dos anos cinquenta, hoje em dia, às mensagens de Facebook depois de uma noite de Incógnito.
Passados uns dias e esquecido do conteúdo da missiva que enviara, recebe uma carta de Barbara na qual ela diz aceitar o seu pedido, assim como algumas fotografias dela própria. Aí sim, Bukowski assustou-se.
Ainda assim, combinam encontrar-se em Los Angeles; ele fica de esperá-la na estação rodoviária. Mas Bukowski tem um plano: coloca-se num sítio pouco visível de onde pode vê-la sair do autocarro à socapa. Acaso ela lhe pareça tão terrivelmente disforme como ele a antecipa, pisgar-se-á dali como se nunca tivesse lá estado. As desculpas ficarão para depois. Mais vale perder a oportunidade de publicar numa revista do que hipotecar o já de si precário futuro, pensa.
Quando a avista, pensa «olha, acho que é possível». Passado algum tempo, casam em Las Vegas. O casamento, repleto das atribulações típicas da vida de Bukowski, dura apenas dois anos. Barbara Frye morre em circunstâncias misteriosas, na Índia, em 1984.
2020 é capaz de ser a Barbara Frye das nossas vidas.

19 Dez 2020

A véspera

A véspera

A véspera não é nunca apenas “ontem”. Uma véspera é uma forma diferente de olhar para o dia de amanhã. Pode ser cheio de esperança e vivido com expectativa, entusiasmo e excitação. Pode ser desesperante, triste, vivido a querer que não chegue o dia de amanhã. Em ambos os casos testemunha-se com evidência a deposição no dia seguinte, por vir. Não podemos deixar de considerar que todos os dias anteriores são véspera dos dias seguintes que virão amanhã. Mas não esse o sentido que se sublinha com a “véspera”. Invoquemos algumas vésperas importantes.
A véspera de ir de férias, a véspera do primeiro dia de aulas, a véspera de uma competição, a véspera de um exame académico ou médico, a véspera da chegada de alguém que vive longe, a véspera da partida para viver no estrangeiro, a véspera do primeiro dia de aulas, a véspera de um casamento e a véspera de um funeral. Todos os dias seguintes são marcados por uma importância significativa na nossa vida. Não aconteceram ainda, porque serão no dia seguinte, amanhã. E, contudo, estão já a implicar-nos neles. Envolvem-nos como uma atmosfera. Estão já a abrir avenidas para eles. Podemos reagir da mais variada forma: não dormimos ou dormimos. Há uma tensão que não nos deixa pensar noutro conteúdo senão no que virá com o dia seguinte.
A véspera desses dias seguintes faz deles dias mais significantes do que dias anteriores. Não pensamos nisso, mas habitualmente estamos depostos sempre num futuro mais ou menos próximo que vivemos com maior ou menor tensão. De outro modo, não íamos fazer café, não subiríamos ou desceríamos escadas, não entrávamos para dentro do carro nem saíamos dele, não aquecíamos antes de treinar, não nos preparávamos mentalmente para o que quer que fosse. O mesmo se passa com o início da semana, do mês, do ano, do quer que seja. Já nem nos lembramos mas há um querer que se abre à possibilidade de sermos diferentes de como somos. Ou pelo menos há esse projecto: deixar-se de… e passar a ser de outro modo. Deitar a “carga” navio fora para não naufragar ou então zarpar para outras paragens.
A véspera abre também uma janela para o dia seguinte. A importância do dia de seguinte é definida pela véspera. Não há importância dada ao dia seguinte se a véspera não se perfilar no horizonte. Entre nós agora e nós no dia seguinte há a véspera. A véspera dá a importância ao dia. Faz do dia seguinte não um dia qualquer mas um dia importante.
É o que acontece com a véspera de Natal. A véspera de um nascimento é a véspera de um acontecimento que não acaba com o dia, mas começa com esse dia. É o princípio de uma vida. Uma vida humana tem um “ser”, uma “actividade”, diferente dos outros seres. Ao começar, inicia-se um horizonte temporal, uma vida lúcida com expectativas, sonhos, aspirações, ambições, vontades e querer e lucidez.
Na véspera de Natal espera-se o dia, não um dia qualquer por mais importância que sejam todos os dias. Não é apenas de Jesus, menino, que se está à espera, como de um filho de uma rainha. Nem é o que se espera pelo nascimento de uma menina ou de menino que nas nossas famílias ou do próprio tem uma importância tal que muda toda a nossa vida.
A véspera de Natal é a véspera de uma outra vida, com um outro ser no tempo. Não se espera apenas um nascimento singularmente importante. Espera-se um nascimento que não terminará com a morte o percurso vital. Com o nascimento de Jesus todos sem excepção e sem nenhuma acepção pessoal seremos portadores da possibilidade que inscreve cada nova vida e cada instante dela na eternidade.
É uma véspera “e peras”.
E, contudo, lembramo-nos mais de natais passados do dos natais futuros. Talvez por isso os natais presentes sejam “mais um”. E não são, porque antecipam uma outra possibilidade. E a possibilidade de se perder essa possibilidade como véspera.

O Horto das Oliveiras

Ele levantou-se sob a folhagem cinzenta
completamente cinzenta e solta no horto das Oliveiras
E apoiou a fronte cheia de pó
no fundo das suas mãos quentes feitas de pó.

Depois de tudo:— ISTO. E ISTO era o fim.
Agora eu tenho de ir, enquanto cego,
e por que queres Tu que eu tenha de dizer
que Tu existes, quando eu próprio já não Te encontro.

Eu já não Te encontro. Não em mim, não.
Não, nos outros. Não, nesta pedra.
Eu já não Te encontro. Eu estou só.

Eu estou só com toda a amargura dos homens
que eu, através de Ti, comecei a aliviar,
Tu que não existes. Oh! inominável vergonha…

Mais tarde, conta-se, apareceu um anjo-.

Porquê um anjo? Ah! veio a noite
e folheou com indiferença as árvores.
Os pequenos sossegavam nos sonhos.
Porquê um anjo? Ah! veio a noite.

A noite que veio não era uma qualquer;
dessas que há às centenas.
Ali dormem cães e há pedras.
Ah! é uma noite triste, aquela
em que se espera até que seja de novo madrugada.

É que os anjos não se aproximam de tais camas,
e as noites não são nunca tão longas como aquela.
Os que se perderam a si largam tudo,
e são abandonados pelos pais
e excluídos do colo das mães.

(Rainer Maria Rilke, 1907. Trad. minha.)

19 Dez 2020